gontijoloyola

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  • em resposta a: Obras de Kant #83778

    Se quiser uma introdução ao pensamento de Kant, sugiro o livro IMMANUEL KANT, de Otfried Höffe, editora Matins Fontes, estruturado sobre as peguntas kantianas: 1. o que posso saber? 2. o que devo fazer? 3. o que me é permitido esperar? Boa sorte.

    Olá.Antes de tudo, um esclarecimento. Quando falo em fé, não me refiro a um conjunto de dogmas e doutrinas que constituem um culto. É comum falar, por exemplo, “a fé católica”, “a fé espírita”, etc., ou perguntar “qual é a sua fé?”. Como mostrado no primeiro texto, uso a palavra “fé” na sua acepção subjetiva, como crença pessoal em alguma coisa – um dos componentes da experiência religiosa, ao lado dos princípios, da compaixão e da experiência mística. Um fanático pode ser cristão, mulçumano, judeu, etc. Sua “fé”, no sentido de doutrina, será respeitável, mas sua “fé”, no sentido de crença, será criticável em razão de seu fanatismo.Num filme chamado “Uma Cruz á Beira do Abismo” (The Nun’s Story, 1958, EUA), um dos personagens é uma freira muito fervorosa em sua fé, mas também muito tensa. A certa altura, alguém lhe diz, em tom de alerta: “Tensão é sinônimo de luta interior!”.Essa frase lança alguma luz sobre a fé dos fanáticos. Uma convicção que não esteja fortemente fundada no coração precisa de uma vontade férrea para ser colocada em prática. Algo bem diferente da serenidade daqueles que se sentem perfeitamente à vontade no caminho que escolheram.Na oração de São Francisco, o católico pede: “Senhor, (...) consenti que eu semeie (...) fé onde haja dúvida.” A mensagem é clara: a fé é usada para aplacar a dúvida. O antônimo de dúvida é certeza. A fé é capaz de germinar no árido terreno da dúvida, substituindo a certeza porventura inacessível, para nos tirar de um estado de hesitação paralisante.Não me agrada a fé dos fanáticos. A dúvida soa tão forte em seu espírito, que, para abafá-la, só mesmo uma vontade férrea e atitudes drásticas. De duas uma: ou o fanático martiriza a si mesmo, com repressão e autocontrole excessivos (e às vezes autopunições), ou demoniza o outro, projetando neste as próprias dúvidas encobertas e desejos reprimidos.Para afastar mal-entendidos, lancemos mão do que Fernando Pessoa denominou “o recurso covarde do exemplo”. Imaginemos que um ateu tenha passado por um traumatizante período de forte depressão. Nesse ínterim, aproximou-se de alguma doutrina religiosa, passando a freqüentar seus cultos e dedicando-se a suas práticas de oração ou meditação em busca de consolo e esperança para seguir adiante. A partir daí, imaginemos que ele possa ter seguido um de dois caminhos diversos:1. Ele encontrou consolo em suas práticas e percebeu que a vida possui uma dimensão espiritual que nos pode servir de porto seguro em momentos difíceis. A experiência tornou-o mais compassivo, pois passou a ser empático ao sofrimento alheio. Superada a depressão, sabe-se agora capaz, nas adversidades, de evocar sua experiência de superação emocional como fonte de serenidade e confiança.ou2. Ele encontrou consolo em suas práticas, mas culpou-se pela depressão, entendendo-a como conseqüência de seu estilo de vida pouco afeito à espiritualidade. Superado o período depressivo, enxergou-se como purificado das mazelas morais do passado, tornando-se crítico dos costumes atuais - os quais seriam sintomas da decadência moral da civilização.Em ambos os casos o indivíduo poderia alterar seus hábitos anteriores à experiência da depressão. Todavia, enquanto na primeira hipótese a mudança comportamental se fundaria basicamente na compaixão e serenidade, no segundo se apoiaria sobretudo na vontade. Neste último caso, ele quereria se distanciar do que era antes, haveria uma repulsa à parcela de sua personalidade que o havia levado a se comportar daquela forma. Seria a vontade férrea que lhe permitiria manter-se “na linha”, o que seria facilitado pela projeção de seus desejos no “outro” – eu me purifiquei, os impuros agora são os outros. Estaria prefigurado o fanatismo.Vamos agora à sua pergunta:Você acha que nós humanos, seríamos mais complacentes com a diversidade religiosa, e a religião seria muito mais respeitada se não pudesse ser manifestada?Veja bem. A manifestação religiosa é um direito básico do ser humano, protegido tanto pelo Declaração dos Direitos do Homem quanto pela Constituição da República Federativa do Brasil, que asseguram a liberdade de pensamento, de culto e de expressão. A religião costuma ser ritualística, apoiando-se em costumes, práticas, hábitos, vestimentas, celebrações, etc. Parece-me impossível, portanto, assegurar a liberdade religiosa, mas proibir sua exteriorização (embora paradoxalmente uma lei francesa recente o tenha feito).Ocorre que vivemos sob a lei de um Estado com feições laicas e pluralistas. As práticas religiosas, como as artísticas, esportivas, etc., tem de se submeter a certas regras, havendo limites a respeitar. Uma prática religiosa que consistisse, por exemplo, no sacrifício de animais silvestres, teria de se ver às voltas com a lei de crimes ambientais. O ordenamento jurídico de um país deve se pautar por uma espécie de “neutralidade metafísica” - termo cunhado pelo filósofo político americano John Rawls – para permitir a convivência pluralista. Segundo esse autor, não se pode querer que as leis de um Estado reflitam um “consenso abrangente”, ou seja, um consenso sobre todos os aspectos existências humanos, mas apenas o chamado “consenso sobreposto” - um consenso sobre aquilo que pode permitir a convivência dentro da diversidade.Hoje em nosso país há abusos em algumas práticas religiosas, sem dúvida. Mas tais abusos ocorrem também em outras áreas, não havendo por que tratar diferentemente os que se dão como manifestação da fé. Veja-se, por exemplo, o abuso consistente no excessivo volume de alto-falantes em igrejas. Esse tipo de perturbação do sossego público ocorre também em shows de música e eventos esportivos. Devem, portanto, receber igual tratamento dos órgão responsáveis pela fiscalização urbana.Mas aí já é outra história.Obrigado.

    “Se não virdes sinais e milagres, não crereis.” (João, 4:48)“Eu não creio em Deus: eu sei” (Carl Gustav Jung)Olá. Parece-me que o debate chegou ao impasse final. Não acho simplório discutir a morte. Não é à toa que já se verteu tanta tinta sobre o tema, que sem dúvida constitui uma de nossas grandes preocupações existenciais. Discutir religião não se resume a refletir sobre a morte, mas esta é claramente uma das principais perturbações que nos fazem, mesmo quando saudáveis e jovens, desejar a transcendência e buscá-la. Charles Bukowski disse: "Deus é um anzol no céu". Ele era ateu; eu não sou. Mas se houvesse mesmo um anzol, a isca seria a superação da morte.Também discordo de suas ponderações sobre a fé.Se a fé não se pudesse conciliar com a razão e com a experiência, eu a temeria profundamente. Se a fé tivesse sempre de ser inabalável, então a fé dos fanáticos homens-bomba seria digna de louvor.Para o homem que se autodetermina, a fé é um salto na escuridão; para o que não, a fé pode ser a própria escuridão.O salto no escuro é inevitável, pois, conquanto seja a vida sempre um mistério, precisamos de uma direção e uma rota. É isso que a fé nos proporciona. Mas a fé é pura vontade – é um querer sem saber. E a vontade, quando não se mostra permeável à razão, à sensibilidade e à experiência, pode cegamente seguir por caminhos perigosos. Um homem religioso não se deve contentar com a fé na transcendência. Sua mente e seu coração devem também ser capazes de dizer algo sobre ela.Não vejo como buscar pontos de convergência a partir daqui. Já expus meu pensamento sobre o tema e creio ter compreendido o seu – o qual respeito, embora dele discorde.De qualquer modo, estou sempre aberto e disposto à troca de idéias.Obrigado.  :)

    Olá. Vejo que há uma divergência na compreensão dos conceitos. O budismo, de fato, é às vezes chamado a “Religião sem Deus”. Entretanto, dentro da dicotomia exposta (ateu x religioso), insiro os budistas obviamente na segunda categoria. Apesar das diferenças, certamente o Dalai Lama está muito mais próximo de um monge cristão do que, por exemplo, de Marx e Sartre. Quero me ater à definição apresentada na última correspondência. O religioso é aquele que crê na transcendência; o ateu, aquele que não crê. Não lhe peço que adote tal definição, pois a palavra “ateu” está ligada etimologicamente à noção de divindade. Peço apenas que a considere neste debate, evitando assim que fiquemos paralisados em definições conceituais. Podemos, se quiser, substituir “ateu” pelo conjunto formado por materialistas e naturalistas. Segundo Huston Smith, em seu famoso livro As Religiões do Mundo, são materialistas os que afirmam que só a matéria existe; os naturalistas, por sua vez, admitem que as experiências subjetivas são diferentes da matéria, mas defendem que sua existência é totalmente dependente da matéria. Pois bem. Assentados esses pontos, passo à discussão acerca da experiência mística, para explicar por que entendo que buscar a experiência direta da transcendência pode abrir ao homem possibilidades inacessíveis ao ateu (materialista/naturalista). Tais possibilidades dependem, porém, de o homem não abrir mão de sua autonomia, trocando-a pela fácil muleta dos dogmas (ser livre é de fato angustiante, mas o homem não precisa matar Deus para se sentir livre). David Bohm, um dos mestres da física quântica, julgava ilimitada a ciência, mas a definia de forma bastante abrangente, como a atitude de “estar aberto às evidências”. Deixando de lado a questão de ser ou não adequada à Ciência tal definição, podemos lançar mão da “abertura às evidências” como o método de abordagem da realidade aqui defendido. Estar aberto às evidências não se encontra em oposição à fé. Ambos podem caminhar juntos – e há vantagens em que assim seja. A consciência e o Nada - Para os não religiosos (ateus, materialistas, naturalistas...), a morte do corpo físico traz como conseqüência o perecimento da consciência. Pode-se dizer, então, que a consciência desaparece no nada quando perde a estrutura que a sustenta – o corpo físico. Segundo essa visão, qualquer jornada da consciência para além de si mesma vai culminar infalivelmente na não-consciência. O ser humano que busca, o buscador existencial, está fadado a encarar o Nada. As grandes tradições religiosas pregam a transcendência. Após a morte, a dissolução do corpo não destrói a consciência. Os caminhos subseqüentes apontados pelas tradições religiosas são os mais variados. De qualquer modo, a consciência sobrevive ao corpo. Assim, um indivíduo que pretenda ir além da consciência não terá sua jornada culminando infalivelmente no nada. A experiência dos buscadores de todas as religiões revela que a busca, quando bem-sucedida, nos leva a um jubiloso estado alterado de consciência. A fé - A fé é sempre um salto no escuro. Ela existe onde não há o conhecimento advindo da experiência. Todo indivíduo tem sua fé, seja no que for, pois esta é o sustentáculo da vontade existencial. O marxista tem fé na revolução proletária que nos conduzirá a uma sociedade sem classes. O cientista, na ciência. O religioso, em sua religião. A fé constitui uma vontade que busca, sem garantias, realizar de determinada maneira um valor. O fanatismo ocorre quando uma vontade férrea busca valores desprovidos de compaixão. Essa é uma característica de qualquer espécie de fanatismo, não apenas o religioso. É a fé de revolucionários sanguinários e de terroristas suicidas. A fé que enfatiza a vontade em detrimento da compaixão é encontradiça naqueles que, conquanto neguem algum aspecto do humano, são por ele dominados, estando intensa e irremediavelmente apegados a algum conteúdo humano que dá ensejo a uma ação destrutiva.  Poder-se-ia dizer, com base no exposto, que quem não tem fé na transcendência, quem defende o nada após a morte, possui fé no nada. A pergunta que se faz então é a seguinte: que tipo de ação seria justificada pelo nada? O nada justifica acordar cedo, ir para o trabalho, fazer planos, assumir compromissos, entusiasmar-se? Certamente não. O nada não sustenta uma vontade a ele direcionada. O nada justifica apenas o desespero e o medo.   A conclusão que se tira desse raciocínio é que aqueles que negam todo e qualquer tipo de transcendência possuem fé em algo mais, algo que lhes sustenta a vontade de viver. E, dada a certeza da morte, é razoável concluir que essa vontade só é sustentável por meio de algum mecanismo embotador da auto-consciência, da percepção inequívoca da finitude humana. Não houvesse esse mecanismo, os sentimentos de impotência e inutilidade da ação se imporiam.   Como se disse, a fé é sempre um salto no escuro. A fé na transcendência, a fé religiosa, também o é. Entretanto, iniciada a busca espiritual, a fé pode conduzir o indivíduo a sinais da transcendência. Se isso ocorrer, o confiar que caracteriza a fé poderá ser substituído pelo saber. Não há mais salto no escuro quando a confiança é substituída pela certeza. Assim, o desapegar-se daquilo que não se coaduna com a transcendência torna-se um movimento natural. A atenção liberta-se do medo e de sua obstaculização, podendo dedicar-se ao momento presente. É mais fácil viver no aqui e no agora quando se toma por garantida a eternidade. Os âmbitos da existência - Todo indivíduo experimenta o existir em três âmbitos: o cognitivo, o moral e o existencial (idéias, valores e a própria percepção direta do existir). É fácil ser materialista no plano cognitivo, cultivando idéias críticas em relação à transcendência e à religião. Mais difícil é ser puramente materialista em seu conjunto de valores – o mundo moral. É muito comum, aliás, encontrarmos pessoas cujas idéias e valores não sejam coincidentes. No plano existencial, todavia, não há espaço para simulações. A forma como o indivíduo percebe diretamente a existência revela o conjunto de sua personalidade. Não é possível experimentar o Nada, pois onde há consciência o nada não está e vice-versa.  Conseqüências - Vamos então às conseqüências lógicas disso:1. Qualquer discurso materialista acerca do Nada – a não-existência – está desprovido de uma base existencial segura, pois o Nada não é passível de experimentação.2. O plano moral também se assenta em bases deficientes, pois a valoração do Nada é na verdade a valoração da idéia do Nada.3. Se o Nada é a dissolução do Ser, a experiência humana mais próxima de sua realidade é apenas a experiência da aproximação do Nada (que talvez provocasse náuseas, como devia achar Sartre).  Concluindo, podemos apontar as dificuldades apresentadas pela postura não-religiosa:1. a ausência de uma base existencial abrangente;2. um conjunto de valores que pode ser fulcrado seguramente no intelecto, mas apenas precariamente no plano existencial. O materialista só poderá viver a sua Verdade (o Nada) no plano cognitivo e parcialmente no plano moral. O religioso, por sua vez, poderá não só experimentar a sua Verdade (a transcendência) nos três âmbitos, como também ultrapassá-los, alcançando um quarto plano, que poderemos chamar de plano místico. Outras conclusões podem ser tiradas. Os materialistas estão impedidos de comprovar sua cosmovisão, pois a não-existência não pode fazer parte de seu arcabouço existencial. Os religiosos, por sua vez, conquanto não possam comprovar seu sistema em um laboratório, por meio de um experimento controlado, podem experimentá-lo por meio de práticas como a meditação e a oração contemplativa. Seu conhecimento, portanto, pode ter base empírica, de caráter fenomenológico.  Alonguei-me um pouco, mas acredito que tenha exposto as linhas gerais de meu pensamento sobre o tema. Obrigado.

    Olá.De fato, há várias formas de manifestar a religiosidade. “Religioso” é um termo muito genérico, talvez mais que “ateu”. Entretanto, quando pergunto se “a religião acrescenta ao homem algo que o ateísmo não pode alcançar”, estou apenas perguntando se a religião, genericamente tomada, abre novas possibilidades existenciais – apenas isso. Voltando a Sócrates, pergunto: o que há em um religioso que faz com que ele seja um religioso e não um ateu ou outra coisa? Algo certamente há, conquanto seja impreciso o conceito. Tomemos, portanto, o termo religião com o sentido de “crença na transcendência”, abstraindo as diferenças entre as suas diversas manifestações (evitando-se assim a paralisia do pensamento e o conseqüente fim do debate).Não pude entender, todavia, sua afirmação de que o ateísmo é uma religião, embora seja por demais sabido que ateus podem se comportar como fanáticos religiosos (veja-se, por exemplo, a Revolução Cultural chinesa). Talvez esse tópico mereça maiores explicações. Aliás, tal concepção não se coaduna com o raciocínio por mim exposto no parágrafo anterior.Aprecio sua abordagem. Entretanto, gostaria, para não perder o foco, de voltar aos dois temas apresentadas como perguntas em meu primeiro texto: o livre-arbítrio e a experiência mística. 1. Livre-arbítrio - Você falou em dogmatismo. Eis aí algo com potencial para comprometer a autonomia individual. Mas seria o dogmatismo apanágio dos religiosos? Certamente não, como provaram Stalin e Mao Tse Tung, dentre outros ateus comunistas. A crença na transcendência não implica a abdicação da razão individual, o que fica claro, por exemplo, para quem lê São Tomás de Aquino. Há, porém, espaço ainda para debatermos como e a partir de que momento a crença na transcendência pode redundar no dogmatismo.2. Experiência mística – Talvez seja este o tópico com maior potencial de gerar divergências. A experiência direta da transcendência é um aspecto facilmente esquecido por aqueles que relacionam a religião apenas à fé e aos princípios. Quando dizemos que a religião pode nos ajudar a superar uma perda, estamos sendo simpáticos a ela, mas de modo algum estamos confirmando suas crenças. Pode-se tratar de um auto-engano (útil, mas ainda um engano). Diferentemente, acreditar na possibilidade de um conhecimento direto de algo que transcenda o humano representa uma confirmação do mundo religioso tomado genericamente (ainda que não diga nada quanto às divergências entre as religiões), razão pela qual muitos recuam diante dessa inequívoca tomada de posição. Talvez seja isso que mais valha a pena discutir.Obrigado.

    Obrigado pelo comentário, Z.É uma fato da experiência que existem “dogmáticos, iludidos e fundamentalistas de ambos os lados”. Concordo. Mas as entrelinhas de sua resposta revelam o seguinte pensamento: do ponto de vista existencial, tanto faz ser ateu quanto religioso. Parece-me, portanto, uma posição mais simpática ao ateísmo, pois dá a entender que a religião não pode acrescentar nada ao indivíduo.Apresento então uma pergunta alternativa (sem invalidar a primeira já feita):A religião acrescenta ao homem algo que o ateísmo não pode alcançar?Obrigado.

    em resposta a: "Citação" de Rousseau #82813

    Olá!A discussão é interessante. Na parte "questões sobre filosofia geral" - "será que existe um Deus", lanço a seguinte pergunta:Qual a diferença entre um ateu e um religioso igualmente piedosos?Está relacionada à frase aqui discutida, "sou ateu, graças a Deus".Espero que o debate continue. Obrigado.

    em resposta a: Dilema Ético na Montanha #80990

    Citação de Miguel Duclós: “O dualismo ético permitiria apenas duas éticas, ou no mínimo duas éticas? i.e , uma variação ética particular para cada grupo envolvido. Esse ponto me parece importante. Com o fim da noção de um Absoluto no campo teórico ético, foram tentadas várias maneiras de fundamentar a ética unicamente com a razão.”Olá.  :)Sem dúvida, a questão do relativismo ético é fundamental para a discussão da contemporaneidade, marcada pelo pluralismo de concepções morais.Parece-me importante diferenciarmos aqui as concepções morais das concepções políticas, se não quisermos cair sempre num aparente – e, certamente, equivocado – antagonismo entre harmonia social e liberdade individual. Você bem ressaltou o nome de Jurgen Habermas, um dos que superaram esse aparente antagonismo. Sua concepção é, sem dúvida, política, acolhendo o pluralismo de concepções éticas, cujo entendimento em sociedade se daria por meio da ação comunicativa.Outro que também deixou para trás esse problema foi o americano John Rawls, que defendia a “neutralidade metafísica” da Filosofia Política. Na vida política, o consenso que se busca é o “consenso sobreposto” – não há necessidade de um consenso a respeito de questões de fundo metafísico (Existe Deus? Qual a natureza do homem? Qual o objetivo da vida? etc), mas apenas quanto a regras sociais mínimas que permitam a convivência de homens livres. Quanto aos alpinistas, acredito que a vida urbana tende a enfraquecer o que poderíamos denominar “ética da solidariedade”. O homem urbano é um homem ilhado, que tende à auto-suficiência. As facilidades do consumo nos permitem esse isolamento. No campo e em cidades pequenas, é comum cumprimentar os que encontramos nas ruas ou dar carona a desconhecidos. Em cidades maiores, todavia, condutas semelhantes parecem, respectivamente, inconvenientes e perigosas. Pode-se pensar que talvez os alpinistas de hoje (que em sua maioria devem ser citadinos) tenham crescido nessa cultura do cada-um-por-si.A questão que eu gostaria de ressaltar, porém, é mais específica. É claro que cada alpinista tem direito a suas convicções morais e de outro modo não poderia ser numa sociedade pluralista. Voltando a Rawls, não há necessidade de um consenso abrangente entre eles – podem ser religiosos ou ateus, egoístas ou solidários, conservadores ou constestadores, não importa. Mas será que uma conduta tão significativa quanto o socorro a um moribundo não deveria fazer parte das regras indispensáveis à convivência? Não seria adequado exigir uma conduta específica quanto a isso? A vedação à omissão do socorro não faria parte do consenso sobreposto? Tanto Rawls (que já morreu) quanto Habermas, acredito, responderiam afirmativamente a isso, pois o que ambos buscam é uma validação intersubjetiva das regras de conduta. Tanto a “ação comunicativa” de Habermas quanto o experimento mental da “posição original” de Rawls tentam superar as visões parciais, centradas em interesses particulares, para chegar a uma conclusão válida para um indivíduo tomado em sua generalidade, um sujeito “quase impessoal”.Imaginemos um grupo de alpinistas que pretendem escalar o Everest discutindo quais seriam as regras de condutas adequadas àquela prática esportiva. Mais especificamente, discutem a questão do dever de prestar socorro a um colega ferido. A discussão é anterior a qualquer situação concreta. Assim, cada alpinista pode se ver não apenas tendo de prestar socorro, mas também sendo socorrido e salvo da morte pelo colega. Não seria razoável estabelecer uma regra de conduta que vedasse a omissão pura e simples de socorro? Acho que sim.Aliás, não é por outro motivo que o Código Penal, em seu artigo 135, tipifica como crime a omissão de socorro, nos seguintes termos: Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte. Assim, continuo com minha conclusão do texto anterior: “(...) não há como justificar a omissão de socorro de outro alpinista, salvo se o salvamento colocasse em sério risco aquele que tentasse o salvamento”.

    em resposta a: Dilema Ético na Montanha #80987

    Olá colega, :)A questão é saber se o alpinismo, por suas peculiaridades, torna necessário um sistema ético particular. Sugiro, a princípio, uma analogia com a relação ética / política, sobre a qual muito já se escreveu. Inspirando-me no texto “Ética e Política”, de Norberto Bobbio (In Teoria Geral da Política, Editora Campus), posso afirmar que há pelo menos três pontos de vista sobre a questão: o monismo ético rígido, o monismo ético flexível e o dualismo ético.Pela visão monista rígida, há apenas um sistema normativo ético. Qualquer conduta que dele se afaste será moralmente equivocada. Um exemplo clássico desse monismo é a razão prática kantiana, fundada sobre o imperativo categórico, que exige a adoção de condutas que possam ser transformadas em lei universal. Pela visão monista flexível, também há apenas um sistema normativo ético, mas este admite derrogações, aceitando exceções justificáveis. Bobbio cita como exemplo o filósofo Jean Bodin, que escreveu Os Seis Livros da República e criticou duramente Maquiavel. O Código Penal Brasileiro, se me permitem a analogia como um sistema normativo jurídico, em vez de ético, pode servir de exemplo do monismo flexível, pois adota um sistema de criminalização baseado na tipicidade (adequação da conduta do agente àquelas descritas pela norma penal), mas admite exceções que excluem a antijuridicidade (ex.: a legítima defesa e o estado de necessidade) e a culpa (ex.: a embriaguez involuntária provocada por terceiro).Finalmente, a visão dualista admite a existência de dois sistemas normativos éticos, cada um aplicável a uma esfera específica da vida humana. O exemplo mais óbvio é a doutrina contida em O Príncipe, de Maquiavel, que deixa claro que o Príncipe, para bem governar, haveria de seguir um código de condutas próprio, bastante distinto da ética cristã que predominava à época. Com base nessa visão, poderíamos, por exemplo, imaginar a existência de uma “ética do alpinismo”, uma “ética dos fortes”, segundo a qual a morte seria o preço a ser pago pelos que falhassem e ser salvo por outrem ou pedir ajuda representaria uma desonra para aquele que deveria ser sepultado pela montanha que o derrotou, etc.Feitas tais considerações, apenas com o objetivo de sistematizar a visão do problema, posso afirmar o seguinte: 1. Conquanto o alpinismo seja, sem dúvida, uma atividade bastante peculiar, não é uma atividade que exija oposição entre seus participantes. A luta do alpinista é contra si mesmo e contra a montanha, não contra outros alpinistas. A rivalidade pode ocorrer, mas é contingente, não necessária à sua prática.2. Ainda que exigisse essa oposição, isso não significaria ausência de limites na busca da vitória. O futebol, por exemplo, exige a vitória sobre o adversário, mas esta deverá ocorrer sem desrespeito ao que se costuma chamar fair play. A exigência de limites se dá porque o futebol, embora também seja uma atividade peculiar, não se encontra isolado da vida social. Pode-se dizer que ele representa um subsistema normativo, mas nunca um sistema isolado. Desse não-isolamento advém a necessidade de observância dos aspectos fundamentais do sistema ético mais abrangente, qual seja, aquele que regula a vida social em geral. Um jogador pode dar um tranco em seu adversário numa disputa de bola, mas se lhe der uma cotovelada sem bola será expulso. O alpinismo também possui o seu fair play, não apenas entre alpinistas de um mesmo grupo, mas também entre alpinistas que eventualmente rivalizem na busca da fama.3. Não se pode esquecer que a ajuda recíproca certamente é favorável à própria prática do alpinismo, pois aquele que salva poderá um dia ser salvo por outrem. Há, portanto, uma boa base para a empatia. Aqueles que não se sensibilizam com a situação de um colega demonstram desprezo pela vida humana.4. Concluindo, pode-se aceitar que um monismo rígido não seja adequado à prática do alpinismo, mas um dualismo absoluto é inaceitável, pois, como se disse, aquela não se encontra isolada da vida social. O mais apropriado é um monismo flexível que, em razão das peculiaridades dessa prática, admita um subsistema normativo ético, que derrogue algumas normas do sistema geral. Voltemos à analogia do futebol: se um jogador fizer, fora do campo, o que faz dentro deste (dar um tranco em quem está a seu lado numa fila e tomar o seu lugar), sua conduta será reprovada eticamente. Assim, os esportes em geral podem ser vistos como subsistemas normativos. Por mais dura que seja a prática do alpinismo, suas particularidades não podem se sobrepor à vida humana, cujo valor nem em tempos de guerra é plenamente esquecido (há regras para lidar com prisioneiros, com feridos no campo de batalha, etc.).Conseqüentemente, não há como justificar a omissão de socorro de outro alpinista, salvo se o salvamento colocasse em sério risco aquele que tentasse o salvamento. ;)

    em resposta a: CRÍTICA AO IMPERATIVO CATEGÓRICO KANTIANO #81343

    Miguel, muito obrigado pela resposta. Num pequeno texto denominado “Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade”, Kant rebate críticas de Benjamin Constant e reafirma o dever de falar a verdade, sem nenhuma exceção possível, ainda que fôssemos indagados por um assassino quanto à presença de uma possível futura vítima em nossa casa. Kant conclui que “todo homem (...) possui não só o direito mas até mesmo o estrito dever de enunciar a verdade nas proposições que não puder evitar, mesmo que venha a prejudicar a ele ou a outras pessoas”. Nesse ponto, a concepção kantiana fere meu senso de justiça (como, acredito, o de muitos) e me força a vê-la como insatisfatória para solucionar os problemas éticos que se nos apresentam no dia-a-dia. De fato, como bem argumentado, existe uma base comum subjacente à diversidade humana. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição de 88, sobretudo em seu art. 5º, referem-se a esse homem tomado abstratamente, criando um arcabouço mínimo de direitos e garantias, válido indistintamente para todos. Também quando se fala em “todos são iguais perante a lei” (CR 88, art. 5º, caput), não se está desconsiderando a desigualdade manifesta entre as pessoas, mas sim resguardando a igualdade abstrata, tomada a priori, ou seja, aquele mínimo que torna humano um indivíduo, independentemente de qualquer elemento específico – sexo, raça, educação, caráter, riqueza, desempenho, etc. A crítica que gostaria de fazer respeita justamente a que Kant limita sua ética a essa humanidade abstrata, afastando-se dos fatos e pessoas específicas, afastando-se do concreto. A idéia de que todo homem é um fim em si mesmo, na forma colocada por Kant, é fundamental para a construção de um “mínimo ético” entre os povos, mas insuficiente como parâmetro ético individual. No exemplo supracitado, a possível futura vítima não é considerada como pessoa específica, como indivíduo (com nome, endereço, família e história próprios), mas como mera variável de uma equação universalizante. Nesse caso específico, a pura empatia (ou, se quisermos uma máxima, a “regra de ouro”: “faça aos outros o que gostaria que lhe fizessem”), embora impregnada de subjetividade, talvez pudesse dar resposta mais satisfatória à questão de qual conduta adotar. A base do equívoco ético kantiano parece estar em que, buscando um critério prático universal, ele reduziu essência do homem ao racional. Para Kant, as inclinações e necessidades do indivíduo, por não constituírem sua essência, não podem ser consideradas se quisermos uma vontade autônoma. A vontade livre é apenas a vontade puramente racional. A vontade humana, desvestida de tudo que for particular e empírico, é a vontade racional. Não obstante as qualidades da razão prática kantiana, parece-me claro que a natureza racional do homem não lhe esgota a essência. Ademais - e talvez em razão disso -, constitui um equívoco agir sempre conforme preceitos éticos estabelecidos a priori, à revelia do particular e do empírico. Um abraço.  :)

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