Habermas e a Virada Linguística

Habermas e a Virada Linguística
Miguel Duclós

Originalmente apresentado para o CFH/UFSC (2007)

O livro Verdade e Justificação (1999), do filósofo alemão Jürgen Habermas, traz discussões que retomam e repensam, de certa forma, pontos de vista desenvolvidos em trabalhos anteriores. O Habermas de Mudanças estruturais da esfera pública (1962) e de Conhecimento e Interesse (1968) ainda estava impregnado teoricamente com as prioridades deixadas pelos mestres da Primeira Geração da Teoria Crítica, como Adorno e Horkheimer. Podemos apontar duas destas questões que o preocupavam, a saber “um fundamento para a teoria crítica e, posteriormente, um tratamento discursivo da moral” (DUTRA, 2003). Porém, sob alguns aspectos, a partir de meados dos anos 1970 a trajetória de Habermas começa a de deslocar em direção a um diálogo mais estreito com pensadores e correntes que enfatizavam a linguagem como o prisma principal do novo tratamento dado à velhas questões filosóficas. A descoberta deste potencial catalizador da linguagem e as teorizações foram surgindo desde o século XIX, atingindo um grau maior na primeira metade do século XX. Richard Rorty, pensador estadunidense que tornou-se um grande interlocutor de Habermas, organizou em 1967 uma coletânea de ensaios intitulada A Virada Linguística. Pretendemos neste artigo apontar brevemente alguns traços e características que nos permitam entender este aumento de estatuto do problema linguagem e identificar alguns pontos de ressonância dele dentro do pensamento de Habermas.
No século XIX o pensamento europeu conheceu uma grande ebulição nos campos de conhecimentos humanos e os estudos sobre a linguagem, a gramática e a filologia floresceram na mesma medida em que o intercâmbio dos países da Europa com outros povos e culturas se intensificava. Na Alemanha, o erudito Franz Bopp conseguiu demonstrar as relações de parentesco entre algumas línguas ocidentais, como o grego e o latim, com línguas orientais, o persa e notadamente o sânscrito – cuja gramática havia sido conservada com cuidado desde tempos imemoriais pelos textos sagrados hindus. Bopp então levantou a hipótese de que estas línguas derivariam de uma proto-língua comum, o indo-europeu, classificando-as como indo-européias, e chegou mesmo a reconstruir este idioma pelo método histórico-comparativo.
Bopp influenciou diretamente o lingüista francês Ferdinand de Saussure, já no século XX, cuja tese na Universidade foi também um trabalho de gramática comparada. Porém a publicação de seu Curso de Linguística Geral, com base nas anotações de aula de seus discípulos, representou um marco divisor nos estudos sobre a linguagem, inaugurando assim a ciência lingüística. Alguns dos aspectos da obra que são aclamado são suas dicotomias, como a distinção entre sincronia e diacronia, signo e significante e entre  língua e fala. Em sua abordagem, Saussure estava interessado em extrair a unidade estrutural dentro da diversidade empírica que as diversas manifestações da fala oferecem, buscando, assim, o progresso científico através da extração de leis gerais que podem ser enunciadas.
As teorias de Saussure sobre a linguagem ultrapassaram seus limites iniciais, dando origem ao estruturalismo, corrente seminal de pensamento que permeou boa parte das discussões desenvolvidas em vários âmbitos dos estudos humanos, em diversos autores. Dentre estes podemos citar o francês Levi-Strauss na antropologia, com sua análise da estrutura comum dos mitos em vários povos, o construtivismo psicológico de Jean-Piaget, abordando as fases do desenvolvimento mental infantil, a análise do discurso literário de Roland Barthés e, na filosofia, dentre muitos autores, aspectos da teoria sobre as palavras e as coisas de Michel Foucault, que mais tarde recusou esta pecha e partiu para o chamado “pós-estruturalismo francês”.
Um dos filósofos que dialoga com Saussure é John Austin. Uma das críticas de Austin à abordagem saussuriana da língua é a de ela só teria considerado enunciados descritivos ou constativos. Um enunciado descritivo pretende que haja uma correlação entre a linguagem e o mundo, e, na falta dela, o enunciado é dado como falso. Por exemplo, Uma frase como “O Céu está acizentado hoje” seria verdadeira ou falsa de acordo com o estado do firmamento naquele momento. Austin argumenta que certas frases não podem ser consideradas verdadeiras nem falsas, pois não dizem respeito à descrição dos fenômenos do mundo. É o caso, especialmente, de frases da primeira pessoa, que levam o nome de performativas e possibilitaram o desenvolvimento da teoria dos atos da fala. Exemplos de frases perfomativas seriam “Saia já deste lugar” e “Prometo que vou melhorar”.
Austin argumenta ainda que os constativos são, na realidade, perfomativos escondidos sob uma véu de imparcialidade objetiva. Os constativos ocultam um sujeito no enunciado que realiza um ato de fala. Por exemplo, uma frase como “É proibido fumar” traz subentendida junto de si que a proibição é feita por alguém e expressa como ser. Poderia ser retraduzida, portanto, por “Eu proíbo fumar” mesmo se expressa uma vontade coletiva, pois torna-se performativa no momento que é posta. Para explicar estes atos de fala e colocar o problema das razões que justifiquem as verdades neles contidas, Austin distinguir três tipos de ato: o locucional, o ilucucional, e o perlocucionário. O primeiro se realiza se enunciando uma frase, é somente o ato lingüístico de dizer. O perlocucionário se realiza pela linguagem e o ilocucional se realiza na linguagem.
Além deste veio estruturalista na abordagem da linguagem apontar ainda outros. O logicismo de Quine e Frege, notadamente, foi desenvolvido pela chamada filosofia analítica da linguagem. Um ponto importante de sua teoria foi o da distinção entre sentido e referência, que ajudou a conceituar termos fundamentais para os filósofos analíticos, tratando de questões como a  identidade e investigando  o alcance da referência das sentenças declarativas, enriquecendo, assim, a semântica e dando início às teorias sobre o enunciado predicativo, buscando a essência representacionista da linguagem. Também Nietzsche merece ser lembrado pois, com sua formação de filólogo misturado à maestria com a linguagem, forjou o método genealógico, mais tarde aproveitado por Foucault na Arqueologia do Saber,  tirando conclusões filosóficas antes impensadas através da análise histórica e etimológica de alguns conceitos. O exemplo mais importante disso se dá com a sua investigação sobre a origem dos conceitos de bem e mal e a posterior inversão deles pela criação da moral dos fracos. Porém, este pensador é considerado mesmo por Habermas como um ponto de inflexão no decurso da filosofia moderna, com suas críticas à razão, a valorização do instinto e da vontade, o ataque virulento à metafísica e à busca por mundos-verdade e mesmo as pretensões de objetividade. Neste ponto, vale lembrar que para Nietzsche o preço que pagamos pela unidade do objeto é a unidade da nossa alma. No contraponto, Nietzsche oferece a explosão do múltiplo através do exercício do perspectivismo, alcançável pelos “espíritos livres” quando, heracletianamente, entendem a realidade como polemos e se metem no nobre jogo de criar valores e afirmar suas vidas.
Todas estas discussões estão no ponto de fundo da problemática de Habermas em Verdade e Justificação; já que era preciso pensar a virada lingüística no interior de suas teorias políticas, adaptadas às novas configurações sociais que o capitalismo delineava. Dentro  neste livro ganha força a discussão com Heidegger e Wittgenstein. Wittgenstein arrasou com a lógica, a qual chama de tautológica e limitou ainda mais o campo do conhecimento com sua nova teoria do sentido – que afirma que o “sentido é o uso da linguagem”  – e o que chamou de jogos de linguagem. Se lembrarmos o aforismo 5.4711 do Tractatus Logico-Philosophicus onde Wittgenstein diz: “Especificar a essência da proposição significa especificar a essência de toda descrição e, portanto, a essência do mundo”, podemos entender um pouco as tentativas de superar a metafísica que vinham ocorrendo desde a problemática deixada pelo sistema de Kant.
O dogmatismo metafísico aceita como pressuposto, sem questionamento, a idéia de existência de uma realidade existente em si mesma mas acessível à razão, como Deus, alma, mundo, matéria, forma ou substância. A “revolução copernicana” de Kant, contudo, trouxe uma nova perspectiva para o tratamento destas questões. Antes, considerava-se que o mundo estava em repouso e o sol girava em torno dele, por isso os cálculos astronômicos não coincindiam; Copérnico então considerou o sol imóvel e a Terra móvel, a realizar o giro em torno do astro. Assim como o Sol, a razão também girava em torno do mundo, buscando iluminá-los. Com Kant a razão fica imóvel e o mundo dos fenômenos é por ela iluminado conforme o raio de sua ação. Como sabemos, Kant, na procura por um juízo sintético a priori que confirmasse a metafísica, fez a distinção entre os chamados phaenomena e noumena, ou as coisas tais como aparecem ao sujeito (fenômenos) e tais como são nelas mesmas (coisa-em-si). Este último aparece como um limite inacessível à razão humana
Várias foram as tentativas de recuperar os objetos clássicos da metafísica, como na Fenomenologia do Espírito de Hegel ou de superar de vez esta cisão exposta nos dualismos como “ser e aparecer” ou “sujeito e objeto”, como no pensamento fenomenológico existencialista.  O novo modelo de linguagem inaugura uma verdadeira era de imagens e as questões metafísicas são tratadas dentro destes limites gramáticos, nominais e representativos. Com isto surgem novos problemas, como o de uma fundamentação não-relativista da ética, que mormente preocupa Habermas. Habermas é um pensador alemão que trafega ainda dentro do projeto kantiano e tem um propósito hegeliano de unificação do saber. A liberdade como ideal regulador, por exemplo, dá um tom de confiança e leveza para as radicais transformações sociais que propõe e vislumbra no horizonte. Também o ideal kantiano de autonomia, defendido no ensaio O Que é o Esclarecimento?, está presente nas preocupações do filósofo. Talvez por conta disso considere que as tentativas de superação da metafísica não foram bem sucedidas. As experiências estéticas de vanguarda, o êxtase dionisíaco, a exaltação da vontade e da virtude e o combate radical da ontologia dos pensadores pós-modernos não teriam oferecido uma alternativa suficiente ao modelo de conhecimento centrado na razão e que gerou, na modernidade, ganhos emancipatórios reais, que não podem ser ignorados, como a fundamentação racional do Estado de Direito, a Declaração Universal dos Direitos dos Homens, a igualdade de direitos com as mulheres, o fim da tortura nas prisões etc.
Com o fim de uma fundamentação absoluta da verdade, a filosofia teria perdido sua posição privilegiada diante de outras ciências. Se a epistemologia antes podia julgar a validade dos fundamentos científicos, agora ela vai ter que investigar o melhor critério de validade para justificar a tomada de posições. Assim, antigas correntes epistemológicas se põe em embate com as novas questões trazidas pelo fim dos objetos clássicos da metafísica. Idealismo, Realismo, Pragmatismo, Positivismo e Relativismo confrontam-se no tatame comum diálogo filosófico para tentar mostrar a efetividade de suas posições. É de Richard Rorty a frase de efeito que declara a morte da epistemologia. A posição de Rorty tende para um pragmatismo que defende a postura do Ironista.
Habermas também adota um pragmatismo, porém distinto do de Rorty. A proposta de Habermas é a da mudança de paradigma. Antes, com a herança do realismo aristotélico, podíamos falar de uma filosofia do ser, da existência. Esta na modernidade é questionada por Descartes, que inaugura a filosofia da consciência com ponto de partida no cogito. A filosofia da consciência coloca o sujeito como anterior ao mundo na ordem das razões. Habermas, reconhecendo as críticas que foram feitas à razão instrumental, por exemplo por Adorno & Horkheimer na Dialética do Esclarecimento vê a necessidade de mudança do paradigma, sem no entanto se render às promessas tênues e voláteis da desrazão. O que ele propõe é a mudança da razão monológica do sujeito para a razão comunicativa comunitária, discursiva, capaz de fazer a ponte entre os vários sujeitos que agem no palco comum do discurso dentro de um estado racionalmente justificado.
Porém este discurso, para obedecer ao ideal regulador de liberdade, precisa ser eticamente justificado. Habermas assume como necessária a questão da ligação umbilical entre teoria e prática e isto permeia também sua proposta de pensar a filosofia da consciência nos termos da filosofia da linguagem, fazendo como que um balanço da filosofia teórica. Admitindo a existência de um mundo resistente a nossas ações, Habermas resgata o conceito de “mundo da vida” (Lebenswelt), procurando articular as relações entre esta ética do discurso , a cultura política e as formas de organização social, efetivadas na institucionalização sistêmica do mundo da vida, entre a faticidade e a verdade:
“O conceito de um mundo idêntico, indisponível e independente de nós, obtém cidadania a partir da resistência que ele oferta a nossos juízos, quando deles deduzimos ações. Essa resistência põe em questão nossa intuição realista da verdade ao nível da ação, determinando a passagem para o nível do discurso. A referência a objetos nos  confronta com o mundo; já as pretensões de verdade nos confrontam com outras  pretensões de verdade.  A resistência do mundo expulsa as crenças do modo de inquestionabilidade próprio do mundo da ação, tornando dissolúvel o nexo conceitual  entre verdade e justificação discursiva, embora não no domínio da linguagem, onde isso é impossível, mas naquele da ação, em razão da resistência do mundo às conseqüências práticas dos juízos teóricos. O modo de inquestionabilidade próprio do mundo da ação, ou seja, de um conceito de verdade incondicionada, sem índices  epistêmicos, corresponde ao realismo das práticas cotidianas. A resistência do mundo  fere essa relação ingênua com o mundo, determinando a passagem da ação ao  discurso. No discurso, a argumentação teria uma função supressiva capaz de restabelecer aquela ingenuidade perdida com a resistência do mundo. Ela sanaria uma  falha na relação da verdade não epistêmica com o mundo. Seria uma espécie de serva da  verdade não epistêmica.” (DUTRA, 2003)
Tendo em vista este caráter prático e mesmo político da teoria do discurso de Habermas, temos de nos preocupar com a legitimidade de sua efetivação nos debates que tomam lugar na esfera pública. Certamente o cuidado em apontar como caminho a  criação de espaços em diversas instâncias, das mais simples e regionais às mais complexas e totais, dentro no estado de direito mostra uma inclinação democrático-liberal de acordo com o ideal regulador de liberdade. Porém, a própria língua é também uma imposição de modelo civilizatório, assim como o modo como são aceitos os padrões de debates públicos. Esta imposição por um lado cerceia as manifestações expressivas não-padronizadas que o espírito humano é capaz de produzir com fecundidade, e elege um modo particular de racionalidade historicamente estabelecida, em moldes aceitos pela civilização ocidental, como primaz em relação a aspectos comunicacionais que, aceitando obedecer o padrão imposto, perdem sua própria riqueza e essência internas. Sujeitos capazes de articular melhor seus discursos, com um maior domínio teórico e um maior grau de convencimento, parecem disparar como líderes retóricos dentro do espaço de debates, o que nos leva a perguntar: seria o lugar do discurso um lugar um lugar de privilégio? O próprio desenvolvimento da ciência, como mostrou muito bem Thomas Kuhn, obedece a interesses que são extra-científicos. Por exemplo, a economia pode dar o tom do desenvolvimento de pesquisas sobre a sementes transgênicas e a política pode fazer com que o governo dos EUA sustente um bonito discurso anti-terror para impor uma lei de ferro no Oriente Médio, afim de explorar seus recursos não-renováveis.
Estas questões parecem preocupar Habermas quando consideramos sua afirmação de que o direito está colonizado o mundo da vida. Careceria a própria percepção do mundo da vida de Habermas daquela força que o grau dissolvente de elementos assíncronos trazem ao impor sua presença compulsória e simultânea, que perturba a monotonia invernal da abordagem racional dos fatos? A opção de Habermas pelo pragmatismo coloca como critério validador o grau de êxito das iniciativas e teorias diante da “resistência do mundo”. Porém, a própria avaliação do êxito pressupõe um modelo.  Neste ponto entra a incorporação do estruturalismo construtivista de Jean-Piaget e a importância do desenvolvimento da educação que prepara os falantes para “agir universalmente”, dentro de um lugar livre, onde os falantes possam escapas do ser, envolvidos pelas imagens representacionais do mundo. Concluimos esta breve exposição acerca da problemática habermasiana com a esperança de que o desenvolvimento pleno das potencialidades da razão possam se efetivar através da educação e do seu exercício público, conduzindo a humanidade à aceitação das diferenças, e criando uma forma perene de reflexão racionalizada capaz de servir como contraponto seguro ao caráter explosivo e muitas vezes contraditório das diferentes experiências de realidade.

            BIBLIOGRAFIA

  1. HABERMAS, J. Verdade e Justificação. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004
  2. HABERMAS, J. Discurso Filosófico da Modernidade. Trad. Luiz Repa. São Paulo: Martins Fontes, 2000
  3. DUTRA, D.V. Da Revisão do Conceito Discursivo de Verdade em Verdade e Justificação. Revista ethic@ v.2 n.2 , UFSC, 2003.
  4. FIORIN, J. L. A linguagem em uso. In: FIORIN, J. L. Introdução a Linguística I. São Paulo: Ed. Contexto, 2004.
  5. OLIVEIRA, N. O Mundo da vida (Lebenswelt) Enquanto forma de vida (Lebensform) social. Disponível em http://www.geocities.com/nythamar/habermas2.html . Acesso 06.12.2007.

The Linguistic Turn. Alguns preferem traduzir por “Giro Linguístico”.

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