UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
Curso sobre
Heidegger:
Kant e o
Problema da Metafísica
Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.
2o.
semestre de 2004
Professor Bento Prado Jr.
ÍNDICE
Material Enviado por José de Medeiros Machado Jr.
Data da aula
- 01/10/2001
- 08/10/2004
- 15/10/2004
- 12/11/2004
- 19/11/2004
- 26/11/2004
- 03/12/2004
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12/11/2004
Antes de iniciar
a aula, eu quero dizer que vamos introduzi-la levantando três questões que são
de importância para nós aqui. Uma primeira questão se refere ao estilo do
Heidegger. Vocês notaram que no me comentário do Kant-Buch, há uma certa
circularidade. Quer dizer, não há um progresso linear na reflexão, é um anti-Meditações
metafísicas do Descartes, não é verdade primeira, verdade segunda, verdade
terceira… É sempre retornar ao mesmo de maneira diferente. E hoje eu lembrei
de que em português, eu vou fazer Heidegger em português aqui agora: pensar =
ruminar. Vocês não usam essa expressão: eu to ruminando tal etal coisa?
Re-pensando, re-re-pensando tal assunto. Ruminar. Porque em latim o verbo é ruminor que é igual a pensar, meditar. Ruminor, ruminare, ruminator, ruminare (?), esses são os tempos primitivos. Isso desde o latim. Mas
nas ciências naturais do mundo moderno… Eu acho que na Grécia antiga e na
Roma antiga não falava-se na linguagem ruminante. Eu suponho que não. Pode ser
que tenham pensado nisso, mas suponhamos que não. Porque na biologia moderna, o
ruminante é definido como o animal que tem uma boca (inaudível) O ruminante,
sei lá o camelo… bichos do deserto principalmente, né? Eles ingerem rapidamente
a alimentação – muito rapidamente – e tem uma pequena primeira digestão e
depois volta e mastiga outra vez… Um modelo biológico do pensamento, digamos.
Do pensamento que sempre recomeça. Eu‘tô falando isso por causa do Heidegger.
Por isso que eu vou sair um pouquinho do texto. eu vou comentar um outro texto
dele, muito posterior. Há uma espécie de circularidade ruminante. Ele diz a
primeira proposição do primeiro capítulo é a primeira proposição do segundo
capítulo, do terceiro capítulo e tal etc. Só que ela é digerida ao longo do
livro, ela é constantemente re-interpretada. Re-interpretar e assimilar não são
palavras tão diferentes assim, né? Assimilar é passar de um estágio para outro,
interpretar é passa de uma língua para outra. Então, o modelo biológico aí não
é ruim. Então eu senti nas primeiras aulas um certo mal-estar porque que queria
comentar o livro como se ele fosse as Meditações metafísicas do
Descartes, selon l’ordre des raisons. Não há ordre des raisons. Il y a une ordre de la pensée. Completamente
diferente. Raison e pensée, razão não é necessariamente igual a
pensamento, no que eu acho que tenho alguma razão, ou algum pensamento.
Dito isto, para
justificar eu sair hoje do comentário do Kant-Buch, Kant e o problema
da metafísica, eu queria levantar duas outras questões.
A primeira delas é
que eu me lembro que eu cheguei a identificar, numa aula anterior – eu não sei
se foi aqui ou…– o objeto=x no Kant… E eu falei, não, vocês têm razão. Aí
eu tropecei no texto. Mas o Heidegger, vocês lembram o comentário que eu fiz da
última aula, ele diz: o objeto fenomênico e a coisa-em-si são uma e a mesma
coisa. Mas isso baseando-se, especialmente, na primeira edição da Crítica da
razão pura. O que eu prometo a vocês, não sei se posso cumprir, o meu filho
fez uma exposição em São Paulo sobre a Dedução transcendental da segunda
edição, aquela que o Heidegger não gosta, onde ele demonstra que o objeto=x é
idêntico à coisa-em-si. Ao contrário da leitura normal. Porque a leitura normal
é a leitura hegeliana, a leitura hegeliana é o seguinte: tem o sujeito
transcendental aqui, tem o seu ponto de visão, tem uma cortina fenomênica e
aqui atrás têm as coisas-em-si que devem ser redondinhas como bolas de gude
inespacias e aqui tem o objeto=x.
E o Hegel, na Fenomenologia
do Espírito fala: ‘tá tudo errado porque quando você… ‘Tá tudo errado
não, porque o ponto de partida dele é kantiano. Mas acontece o seguinte: quando
você pensa o mundo fenomênico como cortina, você dá a volta por trás,
ultrapassa a cortina fenomênica e o que que você descobre? Que não há nada! Que
não há nada por trás do fenômeno, o que é o idealismo hegeliano. Isso é
idealismo. Ser é ser aparente, ser fenomênico. Só o sujeito que institui…
Agora o Heidegger diz: não é bem assim porque o objeto=x é a coisa-em-si. Bom,
depois meu filho vai tentar convencê-los de que isso faz sentido do ponto de
vista do Kant contra o Hegel ,sobretudo na edição B, que, segundo o Heidegger
seria a interpretação idealista, a decadência idealista do Kant. Finitismo na 1a.
edição e na 2a. edição ele abre o caminho para Fichte, Schelling,
Hegel. Deposi o Heidegger vai acabar sendo Schellinguiano.
ALUNO: Mas mesmo
havendo essa identificação entre o fenômeno e a coisa-em-si, não se dissolve a
tensão entre essência e aparência…
Não, não. De
jeito nenhum. Num estágio superior, digamos, você diz, do ponto de vista
ontológico, de uma ontologia da finitude, a coisa-em-si não é senão as suas
manifestações. Do ponto de vista de Deus, não sei. Mas pelo menos para nós, a
coisa-em-si não é senão aquilo que ela se mostra. Dá pra entender isso? No caso
do Hegel, você tem uma superação da perspectiva da finitude. Porque a razão é a
razão absoluta. A razão humana é um momento do tornar-se consciente da razão
absoluta de Deus. Então o intellectus archetypus é o telos do
Hegel. Então pra ele o Kant ‘tá atrasado. Não percebeu que nós somos Deus
pensando ainda confusamente as coisas. Dá mais um tempo… Já teve a física
newtoniana, já teve a revolução copernicana, já teve a revolução francesa, já
teve a literatura alemã e tal, tudo isso e logo, logo, nós vamos perceber a nós
mesmos do ponto de vista de Deus, não do ponto de vista finito. Enquanto no
Kant, o sujeito finito, ele tem idéias; idéias que são reguladoras, mas que não
são constitutivas. Você pode dizer que a passagem do Kant ao Hegel é a passagem
da idéia de que uma idéia conceptiva (?) é uma idéia constitutiva, uma idéia
que cria seu objeto. Uma idéia reguladora é uma idéia que é um instrumento de
que o ser se utiliza para unificar as aparências e tal… Bom, essa é a
primeira observação.
Uma segunda
observação… Nós falamos rapidamente, você falou: o quiasma não é uma boa
imagem porque o quiasma não tem essa forma: Y,
ele tem essa forma: X. É mais ou
menos isso, não é? Eu tenho a impressão que isso não é suficiente pra gente
mudar a expressão mesmo porque, no caso do Kant o problema todo é a relação
entre o entendimento e a sensibilidade, que são heterogêneos e teriam na
imaginação a sua raiz comum e por isso essa… Mas é o ponto onde eles se
cruzam. Aqui, a metáfora do Kant é a seguinte: A imaginação
talvez seja o coração das faculdades do entendimento. Então, pouco importa se
a…
ALUNO: Porque
quando você fala de raiz comum, o que que dá a entender? Que as duas coisas têm
origem no mesmo lugar…
Eu ‘tô tentando
me defender dizendo que o coração é a raiz.
ALUNO: De uma
outra perspectiva, né?
Bom, dito isto,
eu vou ler e comentar com vocês um texto muito posterior do Heidegger. Chama-se Das Wesen des Grundes, A essência do fundamento. O fundamento é o
coração. Mas é um texto que ele escreveu em 46, se não me engano… Ele
publicou em 46. Quer dizer, mais de 20 anos… 49. Vinte anos depois do Kant-Buch e muito depois da derrota do nazismo na II Guerra Mundial, do qual ele foi
partícipe, onde retoma todas as questões do seupensamento de uma maneira
ligeiramente diferente do que aquela expressa no Ser e tempo e no Kant
e o problema da metafísica. Grosso modo, antes de começar a comentar
um parágrafo ou dois parágrafos do Heidegger… Que pra nós esse texto tardio é
interessante porque até hoje nós não chegamos a démêler, como dizem os
franceses, a desmisturar, a compreender a relação entre origem e fundamento.
Desde o início, eu disse: eu ‘tô meio perplexo porque parece que há uma circularidade
entre origem e fundamento. Bom, e o livro dele chama-se A essência do
fundamento, Das Wesen des Grundes, a essência do chão. Grund é chão, né? Então, eu quero comentar esses parágrafos pra ver se a gente
retrospectivamente ilumina um pouco melhor a dialética, se a gente pode usar
essa expressão pouco heideggeriana, entre origem e fundamento. Mas antes eu
deveria falar um pouco da evolução do Heidegger.
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Bom, então tem
1900, grosso modo, 1920, 1930, aqui que começa a catástrofe, 33, o
nazismo, o regime nazista, 45, esse texto que a gente vai ler hoje. Aqui (em
torno de 1933) tem uma virada, uma virada em que, de uma certa maneira, a
ontologia da finitude do Dasein dá lugar, inclusive o sentido positivo
atribuído à palavra metafísica, não aristotélica,, não clássica, é a
fenomenologia do Dasein, ontologia fundamental que permite a pergunta
pela questão do Ser. Nos anos 30, sob influência do conceito de acontecimento
(?) há uma pequena guinada, ele chama Kehre, Kehre é guinada, né?
Que é a virada, digamos, dum pensador que desiste da dimensão quase que
antropológica, quase que finitista do Ser e tempo, do Kant e o
problema da metafísica e tal etc. e retorna ao romantismo alemão, Hölderlin.
Em que os personagens não são mais o Dasein e o limite do mundo, mas
são… Tem uma rase dele na Carta sobre o humanismo que pé mais ou menos
dessa época em que ele diz “a linguagem é a mansão do Ser e os poetas e os
filósofos são os guardiães dessa mansão”. Mas ele tem outras expressões em que
essa tarefa parece de primeira urgência. Berger em português se diz
pastor. Bom daí muda um pouco a coisa porque esses textos são tirados da Carta
sobre o humanismo em que ele faz o elogio do Marx e tal mas deprecia toda a
filosofia ocidental. O Marx entendeu, chegou lá, mas não percebeu. Um negócio
anti-humanista, portanto, de uma certa maneira, anti-finitista. Porque o
finitismo tem alguma coisa que ver com o humanismo, com a dimensão finita
humana. A Carta sobre o humanismo é uma carta anti-humanista, não no
sentido desagradável da palavra, como poderia ser emitido por um (???), mas num
sentido diferente, mais rico porque ou você pensa o homem como sujeito da téchne – ele acha que nesse momento a metafísica vira ciência, téchne (inaudível), a culpa toda da bomba atômica é de Platão. Ele chega a dizer isso.
A bomba atômica nasceu com Sócrates e Platão. Os pré-socráticos estava livres
disso porque eles viviam no Logos, a linguagem, o Ser. A decadência da
filosofia resulta no mundo contemporâneo. A concepção lógico-tecnológica da
definição do objeto enquanto um ser como (???), um ente é um esboço de
dominação técnica do ente…É bem verdade que acusar o Platão de ser
responsável pela bomba atômica é mais ou menos como acusar o Marx de ser
responsável pelo gulag. É razoavelmente insensato. O Marx não sabia o
que que era o gulag. O Platão não tinha a menor idéia do que seria
bomba atômica. Você não pode dizer que ‘tava implícito… Não, você pode dizer
mas lancemos uma luz de suspeita nesse raciocínio.
O que eu quero
retomar é um comentário que ele faz do Kant 20 anos depois do Kant-Buch nesse livro que se chama A essência do fundamento. Grosso modo,
você pode dizer que ele interpreta a história da filosofia ocidental da
seguinte maneira:
Você tem os
pré-socráticos, (inaudível) e depois tem a objetivação do Ser, mais ou menos
como Nietzsche. Sócrates, Platão, Aristóteles e tal etc. definem o Ser como
ente, como um ser conhecido, determinado e manipulado. Depois você tem a
culminação da identificação entre técnica e metafísica. É por isso que no Kant-Buch ele atribui sentido positivoà metafísica (…). Mas, justamente, nesse mesmo esquema
ele identifica esse desvio. Pra usar uma linguagem que não é nada
heideggeriana, essa alienação da filosofia ocidental é a imposição do chamado
princípio de razão suficiente. Na lógica tradicional, você tem três princípios:
identidade (a=a), contradição (a ≠ a é falso) e terceiro excluído (ou a
ou ┐a). E o Leibniz, no século XVII enuncia um quarto princípio pra fazer
a passagem da lógica pra ontologia ou pra cosmologia, o princípio de razão
suficiente. O que quer dizer princípio de razão suficiente? O Leibniz, como
todo delirante, como todo filósofo metafísico, imagina mais ou menos o
seguinte: como pode ser aquilo que é? Não há dúvida de que existe o
entendimento infinito de Deus. Como Deus é infinitamente bom, ele é
infinitamente racional, então ele ‘tá preso pelos três princípios lógicos. Deus
não pode ser contraditório consigo mesmo. Se ele é bom, não pode ser
contraditório. Mas por que que ele produziu esse mundo que ele produziu?
(Inaudível) Então ele diz: bom, o entendimento infinito de Deus é capaz de
conceber um número infinito de mundos possíveis. Isso, os imbecis dos filósofos
analíticos atuas, esse negócio de mundos possíveis, eles acham uma besteira
radical. Revive hoje nas reflexões lógicas. O Leibniz eu acho mais razoável.
Ele era metafísico mesmo. Você falar em mundos possíveis pra um metafísico,
tudo bem; pra um lógico, é complicado.. Mas então Deus, antes da criação, tem o
seu entendimento que é infinito. Ele pode representar-se infinitos mundos
possíveis. Mas como ele é bom – ele é infinitamente inteligente, capaz de
conceber todas as possibilidades – , mas como ele é infinitamente bom, ele
escolhe um mundo que tem a menor quantidade de contradição possível. Com isso,
nós passamos dos princípios lógicos aos princípios ontológicos. Quer dizer,
quando você fala dos três primeiros princípios são regras do pensar sobre o
Ser. Quando você fala do princípio de razão suficiente, você fala da razão do
ser ser como ele é – ser assim ou assado, Deus decidiu. E o Heidegger diz mais
ou menos, e eu concordo com ele, que o Leibniz, na verdade, ao formular o
princípio de razão suficiente – acho que ele é o primeiro a falar desse
princípio lógico – ele exprime um pressuposto de toda a filosofia anterior.
Quer dizer, Platão, Aristóteles e tal, todos supunham que cada ser tinha uma
razão de ser. Obviamente o Heidegger diz: o império do princípio de razão
suficiente começa como desenvolvimento da metafísica ocidental. Sem o princípio
de razão suficiente, você não tem a tecnologia. O que não é tão insensato. Se
um ser é feito por razões, ele pode ser manipulado racionalmente, tecnicamente.
Não é alguma coisa que pinta diante de você como um leão que salta na tua cara,
que você não é capaz de dominar. É um objeto.
Então, em vez de
ficar falando livremente com vocês, eu sou obrigado a ler um parágrafo do
Heidegger. Porque é como o Kant reaparece dentro desse livro Von Wesen des
Grundes, A essência do fundamento. É o último parágrafo da segunda
parte do livro. Eu ‘tô lendo esse trecho pra vocês por causa da dialética
fundamento e origem. A primeira parte chama-se O problema do fundamento;
a segunda parte, A transcendência como o recinto da questão em torno da
essência do fundamento. Então, nós ‘tamos em casa. A questão do fundamento
tem como horizonte a questão da transcendência. Bom, resta saber o que que é
transcendência, né?
Tem um primeiro
parágrafo em que ele fala de transcendência – trans-cendere – que é
ultrapassar-se em direção ao outro. No segundo parágrafo ele diz: “A
transcendência na significação terminológica que importa clarificar e
apresentar significa o que é próprio do estar-aí humano. Decerto não como modo
de comportamento entre outros possíveis (inaudível), mas como
constituição fundamental do ente antes de todo comportamento.” Transcendência é ex-stasis, ex-stasis é estar fora do ser. Ex-sistere,
ser para fora de si. E eu inventei in-sistere, retornar sempre a si
mesmo, cair em si mesmo pra pensar. Porque a palavra insistir não quer dizer
necessariamente isso. Então ele diz: transcendência é ex-sistere.
transcendência intencionalidade, reportar-se ao outro etc. Nesse parágrafo, ele
‘tá re-expondo as idéias do Ser e tempo dentro da nova perspectiva. Ele
‘tá insistindo sem se repetir. Ele diz: vamos retomar as teses básicas do ser
e tempo dentro dessa perspectiva da história da metafísica. Ele vai
ultrapassar a metafísica. Então tem os pré-socráticos que são valorizados; o
Platão e o Aristóteles que são um pouco diminuídos porque preparando o
princípio de razão suficiente. Mas eu vou ler sem comentar pra vocês uma
página, eu vou comentar só o parágrafo seguinte, que é o pré-Kant: Leibniz,
Baumgarten, a filosofia alemã do séc. XVII, séc. XVIII. Mas pra vocês ouvirem o
Heidegger falando. “Sem nos determos no conceito de mundo de Leibniz,
mencionemos a determinação do mundo na metafísica escolástica. Baumgarten
define [a definição do Baumgarten que é o fundador da estética, só que
estética na cabeça do Baumgarten é uma coisa diferente do que era…, pro
conhecimento sensível, não era exatamente o que se tornou pro Kant – não o Kant
da estética transcendental, em que tem o mesmo sentido do Baumgarten, mas a
estética no sentido do juízo estético]: o mundo é uma série multitudo
totum [uma série completa] de coisas finitas atualmente existentes que não é
parte de algo mais.” O mundo é uma série finita, um conjunto de coisas
finitas não necessariamente finito, não sei. Você pode imaginar um conjunto
infinito de coisas finitas… Ah, não sei. “O mundo é aqui identificado com
a totalidade do que é simplesmente presente e decerto no sentido de ens
creatum [que aí ele ‘tá brigando contra a objetivação do ser no ente pelos
gregos e a cristianização da filosofia grega em que o ente é um ente criado por
Deus]. Isto porém significa que a concepção do conceito de mundo depende da
compreensão da essência e da possibilidade das provas da existência de Deus [que nos remonta a Deus que é o princeps, principium, o princípio
e o príncipe do universo]. Isto torna-se claro em Crusius [que é outro
filósofo alemão que eu jamais li] que define assim o conceito do mundo: um
mundo é uma conexão real de coisas finitas que por seu turno já não é uma parte
de outra à qual pertenceria em virtude de sua conexão real.” Essa
definição me pareceu um pouco complicada. Tem uma complexidade de coisas que já
não é parte de outra complexidade, uma certa autonomia. No fundo, é Leibniz:
infinitos mundos possíveis, infinitas conexões possíveis de coisas finitas, mas
todas elas são autônomas e Deus escolhe a melhor. Do ponto de vista de Deus, a
guerra do Iraque, o terremoto de Lisboa, os vulcões tal, etc. – é o melhor dos
mundos possíveis, este mundo real. Mas este mundo real não deve nada aos outros
mundos, uma parte dos outros mundo, a não ser pelo fato de estar sujeito como
eles aos princípios puramente lógicos da não-contradição, da identidade e do
terceiro excluído. Quer dizer, em nenhum mundo pode haver terremoto de Lisboa e
não haver terremoto de Lisboa. Ou, num mundo diferente do nosso, não haver
anjos e haver anjos ao mesmo tempo. Não é possível, nãoé pensável. Não é
pensável por Deus e, portanto, não pode ser. “O mundo é, pois, contraposto
ao próprio Deus. Mas é também distinto de uma criatura individual.” Quer
dizer, o mundo é diferente de Deus, mas também é diferente da criatura
individual, assim como é também diferente das múltiplas criaturas que existem
ao mesmo tempo e que não se encontram em conexão alguma. Quer dizer, o
princípio de razão suficiente não implica na exclusão de toda e qualquer forma
de contingência. “E, por fim, o mundo distingue-se também de um agregado de
coisas criadas [o mundo não é simplesmente uma totalidade de coisas] que
é apenas uma parte de um outro como qual se encontra em conexão real.” Bom,
isso é só a introdução – como é que ele passa do Leibniz, do Crusius pro Kant.
Ele descreve nas duas páginas anteriores como o Kant reformula o Laibniz e ssa
tradição da filosofia alemã – como é que ele, de leibniziano se transforma em
Kant. Como se a Crítica da razão pura derivasse de uma tentativa de
elucidação, de dissolução de dificuldades da metafísica neo-escolástica
racionalista moderna, da escola de Wolff, Crusisu e assim por diante. Então ele
diz: “Esta cruz [a cruz de que se fala é a cruz em que o Kant foi
crucificado, quer dizer, a passagem de Leibniz pra ele próprio com a ajuda
desgradável do Hume, por exemplo] foi um peso para Kant na década seguinte [bom,
então agora nós entramos no Kant de 20 anos depois do Kant-Buch]. Com
efeito, na Crítica da razão pura, a universitas mundi
[universalidade do mundo, essa idéia de que o mundo é uma totalidade que
transcende a série finita dos objetos. Pode ter elefante, mas não precisa ter
elefante pra ter mundo.] torna-se um problema e, claro está, sob vários
aspectos. Importa classificar o seguinte [aí são três aspectos que ele vai
sublinhar]: 1- a que se refere a totalidade representada sob o termo mundo,
isto é, a que se pode dela unicamente referir?” O que quer dizer
“totalidade do mundo”? Aí eu vou me libertar do texto do Heidegger e vou deixar
a minha imaginação funcionar. O que que pode ser a totalidade do mundo se
existem infinitos mundos possíveis? Um mundo possível que se tornou real, ele
não é propriamente parte… a série dos mundos possíveis não fazem uma
totalidade porque esses mundos possíveis são contraditórios. Embora todos eles
estejam sob o princípio da não-contradição, se existe um mundo, não existe
outro. Então, aqui o primeiro cheiro parece como se ele dissesse o que vira a
idéia de totalidade do mundo: uma cruz, uma crucificação do Kant. “2- O que
é que se representa no conceito de mundo? (…) 3- Que caráter tem a
representação de semelhança e totalidade, isto é, qual é a estrutura conceptual
do mundo como tal?” Ele ‘tá explicando o Kant. O que é representação do
mundo, o que é conhecimento do mundo e qual é a estrutura conceptual subjacente
a essa concepção do mundo. É a Crítica da razão pura. Tem sensibilidade,
tem entendimento, tem a razão e tal etc que se combinam para formar um mundo,
para dar mundaneidade ao mundo. “As respostas de Kant a essas questões, que
ele próprio não põe de modo tão expresso (…).” Aí o Heidegger ‘tá dizendo
que ele é mais claro, mais direto que o Kant, mais depressa ao essencial do que
o Kant que se demora em coisas inessenciais. “As respostas de Kant a essas
questões, que ele próprio não põe de um modo tão expresso suscitam uma
modificação plena do problema do mundo.” Então aqui em 46, ele diz: Kant,
outra vez um corte na história da metafísica. O Kant revoluciona a metafísica. “Sem
dúvida também para o conceito de mundo de Kant se mantém que a totalidade nele
representada se refere às coisas presentes finitas.” Isto é, o conceito de
mundo de Kant não se choca com a concepção clássica porque é um conjunto de
coisas finitas e acho dificilmente alguém discordaria dessas idéias porque é
claro que existem elefante, existem pirâmides, coisas muito grandes, porém
finitas, limitadas, senão não haveria mundo. “Só que esta referência (…).” Aqui tem um erro de tradução. Porque aqui na tradução brasileira – é uma edição
bilíngüe –, tem “Só que essa referência à finalidade”, mas é claro que
não é finalidade, é finidade, Endlichkeit. “Só que essa referência à
finidade, essencial ao conteúdo do conceito de mundo recebe um novo sentido
contraposto ao Leibniz (…).” A série infinita dos mundos possíveis,
existe um mundo e esse mundo é finito. Ele não é só composto de coisas finitas
mesmo que sejam elefantes. Mas o mundo é finito como todo horizonte é finito.
Acho que um bom exemplo é o campo de visão. Você não pode ver atrás da sua
nuca. O seu campo visual é finito e é total. “A finidade das coisas
simplesmente presentes não é determinada mediante uma demonstração ôntica de
que elas foram criadas por Deus, mas é exposta considerando que as coisas só
existem enquanto são objeto possível de um conhecimento finito. Isto é, um
conhecimento que, antes de mais nada, deve deixar que eles se dêem como já
simplesmente presentes.” No que não há novidade nenhuma em relação ao Kant-Buch.
A escolha do Kant finitista – forget o intellectus archetypus, só
tem o entendimento finito do homem e as coisas se dão para um sujeito finito
ALUNO: E as
coisas que não aparecem é como se não existissem…
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Mas isso é o que eu ‘tava respondendo à Léa: não existem coisas que não
aparecem. Tudo que é aparece. Porque é boa a sua pergunta porque ajuda a
responder à Léa. O que quer dizer finitismo? Vamos pensar da seguinte maneira:
você tem um sujeito finito aqui que tem um campo de visão limitado, que vê só
essas coisas aqui, ‘tá? Agora, a aparência… Tem um número infinito de
coisas-em-si que só Deus vê porque as fez.
Então tem
uma espécie de texto (?) infinito no Kant. E a interpretação do Heidegger, que
eu acho que é boa, não é necessariamente a mais verdadeira. O Hegel pensava
assim, só que ele achava que o filósofo tinha que ser Deus. Agora, o que o
Heidegger ‘tá dizendo aqui… eu vou reler a frase: “A finidade das coisas
simplesmente presentes [aquelas que só se apresentam dentro daquela luzinha
ali] não é determinada mediante uma demonstração ôntica de que elas foram
criadas por Deus, mas é exposta considerando que as coisas só existem enquanto
são objeto possível de conhecimento finito. Isto é, para um conhecimento que
deve, antes de mais nada, deixar que eles se dêem como simplesmente presentes.” Isto é, só é aquilo que se dá. Sem doação, não há Ser. Aí é o finitismo,a
interpretação heideggeriana. “‘Fenômenos’ [diz ele entre aspas, isto é,
coisas na aparência] é o nome que Kant dá a este ente que, quanto à sua
acessibilidade, depende de uma aceitação receptiva.” Uma intuição finita –
que dizer, ele ‘tá pegando a linguagem do Kant pra transformá-la. Porque quando
você pensa em expressões como “fenômeno” e “aparência”, volta a oposição entre
o subjetivo e o objetivo. Ele diz: quando o Kant emprega essas expressões, o
que ele está fazendo é dando a este ente – o fenômeno, ente, ser assim… “Quanto
á sua acessibilidade, [quanto à nossa maneira de acesso a ele] que ele
depende de nossa aceitação receptiva [aqui, por via da intuição].
Todavia o mesmo ente (…).” Isso já estava escrito… Engraçado, eu falei
de ruminação pra vocês, falei de ruminor, ruminare, e aqui ‘tá
reaparecendo, ele ‘tá ruminando coisas que ele escreveu… A identidade entre o
objeto=x e a coisa-em-si. “Todavia, o mesmo ente, entendido como possível
objeto de uma intuição absoluta, isto é, criadora, é por ele chamado de
coisa-em-si.” Aí vai pro lado dele. Coisa-em-si é objeto da intuição de
Deus. “A unidade da conexão dos fenômenos, isto é, a constituição ontológica
do ente acessível ao conhecimento finito é determinada pelos princípios
ontológicos. Isto é, o sistema dos conhecimentos sintéticos a priori.”
Eu disse que a
primeira parte era a idéia de fundamento. E ele liga a idéia de fundamento ao
princípio de razão suficiente. Um princípio que ele vai demolir. Porque o
negócio é profundamente paradoxal. Como eu sugeri em aulas anteriores, sem
muita certeza, ao contrário da filosofia grega – em que arché é o
princípio, o fundamento –, o Heidegger teria, se eu entendi bem, uma distinção
entre origem e fundamento. Obviamente, origem e fundamento da filosofia. Qual é
a origem da filosofia? A origem da filosofia está no coração do Dasein,
do Estar-aí. Você pode ser fazendeiro, proprietário ou despossuído, pode ser
herói ou vilão, mas você tem um ser tal que no fundo se interroga sobre o seu
próprio ser em algumas situações, principalmente nas situações de angústia. Não
é puramente psicológico… Digamos, o sujeito está em estado psicológico de
depressão… É que quando você tem esse desvio, esse deslize, que você perde os
amparos mundanos, técnicos,, sociais e tal etc., você chega afetivamente, não
intelectualmente, à questão “por que o Ser e não o nada?” “Por que” maiúsculo.
Talvez em vez de dizer “psicológico”, dizer “ontológico”.Então, grosso modo,
o Ser e tempo é o quê? Bom, para perguntar pelo sentido do Ser, nós
temos que perguntar pela estrutura de ser daquele ser que pergunta pelo Ser. Se
não tivesse ninguém que se angustiasse… É a descrição essa estrutura que vai
te permitir… Porque é este tipo de ser que pergunta pelo ser. Então você vai
falar do sentido do Ser a partir da estrutura do sujeito que interroga a
respeito do sentido do ser. Então, você tem uma espécie de movimento que vai da
origem da pergunta filosófica, a Stimmung, a angústia, que leva à
pergunta pelo Ser como fundamento.
Só que, assim
como a Stimmung, a angústia é perceber que nada tem fundamento, que o
Ser é contingente (?), que não há razão, a boa fenomenologia do Dasein vai descobrir que o Ser é nada. O Ser não é nada.
Eu gostaria de
acrescentar algumas coisas que podem ser esclarecedoras. É claro que aí eu ‘tô
falando do Heidegger em geral, ao longo de sua carreira, mas depois dos anos
30, depois do nazismo, ele muda um pouquinho e ele vai virar romântico. Como
falar sobre aquilo que não é objetivo? A poesia, o mito. Eu volto àquela frase:
O Ser é a mansão da linguagem, de que os poetas e os filósofos são os
guardiões, os pastores. Mas o ser não é nada, a não ser a linguagem que diz
indiretamente, de uma certa maneira. Mas o eu ‘tava preocupado era com a idéia
de origem e fundamento. E eu ‘tava lembrando de uma frase do Hegel… Bom, nada
mais anti-heideggeriano do que o Hegel, nada mais anti-hegeliano do que o
Heidegger, mas a língua alemã permite permutas… O Hegel em algum lugar, ele
diz: Zu Grund gehen ist in Abgrund “mergullieren”. Imaginemos que isso é
alemão. Quer dizer, ir em direção ao fundamento é mergulhar na falta de
fundamento. Não tem fundo… Tem origem e uma espécie de negatividade.
(Inaudível) E o fundamento que o filósofo vai encontrar é a falta de fundamento
no Ser, a falta do princípio de razão suficiente, que é: o universo não tem
razão. Razão temos nós brigamos uns com os outros – na pragmática. Razão temos
nós quando fazemos ciência, tecnologia… Mas o mundo não tem razão nenhuma,
não tem fundamento. Aí bate com o Wittgenstein.
ALUNO: E a
partir daí ele retorna de novo à origem? Isso é repensado…
Sim. Mas eu
tenho a impressão que na segunda fase não é tanto essa dialética que funciona,
mas é muito mais a história da metafísica. Aí ele fica mais nietzscheano,
digamos. Quer dizer, como que na história da filosofia houve os caras que
pensaram direito – os pré-socráticos.
ALUNO: Aqui em Ser
e tempo tem uma citação muito interessante que eu acho que está ligada à
questão… Ele fala o seguinte: “Esse fato de viver no ser e não (inaudível) no sentido de ser/estar ao mesmo tempo envolto em obscuridade demonstra a
necessidade de princípio de se repetir a questão sobre o sentido do Ser.”
A origem é isso.
O Ser e tempo é uma investigação da origem da questão do ser mas em
busca de um fundamento. Mais tarde é como se esse fundamento… Já ‘tá mais ou
menos antecipado aí. Mas a coisa não tem fundamento… Então ele fica mais
historicista, digamos. Tem os pré-socráticos, gente colosso (?) que pensava o Logos.
Não o mundo, a linguagem. Depois tem Platão, Aristóteles e tal, esse pessoal
que começa a fazer pensamento coisificante, racional. E vai e termina na
ciência/tecnologia que é a realização da metafísica do princípio da razão
suficiente. (Inaudível) E segundo ele nós temos que atravessar isso e pensar
não técniensar ne atravessar isso.azer pensamento
positivante, racionalnstra a necessidade de princ mais anti-hegeliano do que o
Heidco-cientificamente, aber dichterweise (?), à maneira dos
poetas. À maneira dos poetas, dos profetas… Antecipar aquilo que ‘tá para a
vir. Essa mania de jogar no futuro é uma mania nietzscheana. O Nietzsche fazia
a crítica da cultura do tempo dele, da filosofia do tempo dele, e falava nos
filósofosdo futuro. Foucault fala dos pensadores do futuro. Aqueles que não
pensaram ainda e que vão pensar melhor do que nós. O Heidegger partilha um
pouco desse estilo. Como se ele dissesse: hoje nós não pensamos nada. Talvez
ultrapassada essa penumbra de tecnocracia, de capitalismo… Não sei se ele era
tão anti-capitalista assim, já que ele era nazista. Mas eu acho que ele era um
anti-capitalista romântico, quer dizer, um anti-capitalista nazista. Você pode
ser nazista e anti-capitalista, né? Retardatário, arcaico… Depois que essa
fumaça acabar, nós vamos poder começar a pensar. Nós vamos poder começar a
escrever como já se escreveu em alguns momentos da antigüidade. Como o
Rousseau. O Rousseau dizia isso. O Rousseau tem uma bela frase em que ele
dizia, antecipando Nietzsche; Nietzsche não gostaria desse paralelo. O silêncio
retórico. O Rousseau diz: hoje a retórica acabou. O único lugar pra retórica
que resta é a eclesiástica, os padres que fazem discursos e ninguém escuta.
Perdemos os pulmões e perdemos a capacidade de audição. Os gregos, não. Pros
gregos, a palavra era a força pública. Para que retórica hoje quando há a força
pública no sentido estrito da palavra? Basta botar placas de trânsito e homens
armados para impor uma opinião. Não precisa argumentar, manda a polícia militar
e bota placas silenciosas. Não tem nenhuma audibilidade. A retórica exauriu-se.
E com ela o pensamento. De uma certa maneira, é um certo tipo de pessimismo,
digamos. Uma espécie de teórico do catastrofismo, decadentismo. A idéia da
decadência do Ocidente. Tem versão de esquerda, versão de direita. O Heidegger
é um dos teóricos trágicos, né? Ele participou da decadência do Ocidente como
reitor da Universidade de Berlim. Tirando todos os judeus da universidade e
preservando apenas o mestre (?), os amigos (?) etc.
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