TOMZÉ, TORCENDO AS REGRAS DO JOGO

mar 4th, 2011 | Por | Categoria: Música        

Nei Duclós

Eis uma reportagem importante que Miguel Duclós desencavou na sua pesquisa sobre o meu trabalho no acervo da Folha. Um longo texto de 33 anos atrás sobre TomZé e seu “Estudando o Samba”, bem na época em que ele não estava na moda e desenvolvia seu trabalho fundamental, mais tarde descoberto pelos americanos e que o lançou de volta ao centro das atenções. Temos aqui dois exemplos de vanguarda, guardadas as devidas proporções, claro: o do músico revolucionário e o do repórter de cultura livre de amarras, que foi buscar no artista verdadeiro, fora do circuito e lutando pelo seu disco e show, a pauta para ocupar espaço na grande imprensa. Viva a memória! O que fazemos com gosto e determinação, fica.

Folha de S. Paulo, Ilustrada, 31.03. 1978

NEI DUCLÓS

Qualquer conversa com Tom Zé não obedece a um encadeamento linear, tradicional. onde uma pergunta corresponde obrigatoriamente a uma resposta. Ele prefere descobrir e provocar coisas, recuando ou avançando nas suas posições — aparentemente confusas, exatamente pela forma de diálogo que ele costuma adotar — lembrando sempre que escolher as palavras é uma atividade muito perigosa, pelas múltiplas opções de significados que elas oferecem. A conversa, assim, dá mais ou menos a idéia que ele pretende transmitir no seu show “Estudando o samba”, que há um ano está apresentando, junto com Vicente de Carvalho, em todo o estado e que hoje.,amanhã e domingo, às 21 horas e ao preço de CrS 30.00 vai oferecer para quem for assisti-lo na sala Gil Vicente do Teatro Ruth Escobar (Rua dos Ingleses. 209).

“Eu tou te explicando pra te confundir, tou te confundindo pra te esclarecer, tou iluminando pra poder cegar, tou ficando cego pra poder guiar”, diz ele numa das músicas do show (Tou, de parceria com Elton Medeiros), que faz parte do seu último LP, que também se chama “Estudando o Samba” e foi lançado em 1976. Antes, portanto, do “Eu vim pra confundir e não pra explicar”, do Chacrinha e “Não precisa explicar, eu só queria entender”, do Planeta dos Homens.

Tomzé acha que a televisão diluiu bastante impacto do seu jogo de significados, além de não citar a fonte. Ao mesmo tempo, ele sabe que as coisas são descobertas ou criadas para serem usadas — “Não é tempo da posse, é tempo do uso” é uma das frases que ele mais gosta de usar — e que seu trabalho é realmente mais para desencadear do que para “passar” diretamente para o público.

Ele cita o exemplo de Raul Seixas, que teria solucionado melhor várias propostas que ele mesmo lançou no mercado através dos seus cinco LPs gravados na Continental. Sua preocupação principal, portanto. é fazer da linguagem um instrumento de alerta. A todo momento, substitui palavras por outras e assim mesmo não fica satisfeito. Para compensar sua dificuldade de se expressar pelo “discurso” (a linguagem linear), rabisca no papel ou canta alguma música. Já que ele não gosta de gravador, fica difícil reproduzir fielmente alguns pensamentos de Tomzé a não ser, obviamente, as frases que ele escreve para esclarecer alguns pontos da conversa. Mas pode se tentar, com as devidas ressalvas: “O Aurélio Buarque de Holanda deveria nos dizer, diariamente, o significado de algumas palavras chaves, usadas por todos, como democracia ou protesto. Assim, ele diria: o significado hoje de tal palavra é esse.”

A discussão mais freqüente que ele sustenta nos seus shows — normalmente apresentado para universitários — envolve também um problema de significados. Trata-se do tema, sempre atual, pelo menos no Brasil, do artista se apresentar como herói a ser um emissor de mensagens. Já gastas e conhecidas o que apenas provocam o amén — ou aplauso do público: “Depois de espetáculos desse tipo, o público costumo sair cansado, com uma expressão estranha, diz Tom Zé. Parece que ele carrega um grande complexo de culpa por ter participado de um coito coletivo. A minha preocupação não é falar palavras de ordem, mas fazer perceber que as pessoas são capazes de ter reflexão sobre as coisas. Uma vez fiquei envergonhado de participar de um júri num festival estudantil de música popular, pois quando foi apresentada uma canção dessas que falam que o patrão é feio e a empregada é bonita, todos os membros do júri começaram a se movimentar, a transparecer que aquilo era uma maravilha, aquela coisa gasta e imbecil, influenciando o público com essa posição, tomada coletivamente através de um código que foi emitido pelo ar. Para mim, a música de contestação, enquanto palavra de ordem, é uma forma reacionária”.

Ele reconhece, que, apesar do protesto estar, de modo geral, por baixo, essa fórmula ainda é multo usada, principalmente no circuito universitário, onde existe outra discussão muito comum: o rock e a música brasileira. Todos os participantes de um debate estavam criticando a música dançante, “alienada” e, enquanto conversavam, uma menina de 15 anos sacudia a perna o tempo todo. Num momento TomZé chamou atenção para a importância de alguém fazer música para que a juventude dance, e não fique “aleijada” pela falta de movimentação do corpo e excesso de atividade mental.

Tom Zé não aceita a má fé ou a impaciência em relação à música feita no Brasil. Ele acha que já demos dois produtos acabados, que foram exportados, como a bossa nova e o Tropicalismo e que atualmente estamos numa fase de fermentação, que ainda vai chegar. Lembra, Inclusive, a importância da bossanova, que pela primeira vez apresentou o homem brasileiro sem machismos inúteis, um homem brasileiro coloquial, que causou um escândalo na época, já que colocava no mercado elementos femininos: “Hoje podemos usar essas roupas e cabelos graças à bossa nova, ao Troplcalismo”, lembra ele. E também ao rock, concorda. Mas o rock não faz parte da formação de Tom Zé, que é formado em contraponto, harmonia e história da música na Universidade de Música da Bahia, onde ficou seis anos escutando de tudo, desde os clássicos aos compositores da música dodecafônica. “Aquilo não tinha muito a ver”, confessa ele, mas lhe permitiu decifrar e desenvolver alguns enigmas musicais, deixando-o livre para trabalhar com a imensa matéria-prima da música brasileira. Já disse, em 73: “Pretendo trabalhar com um maior número de elementos criativos”.

Esses anos todos em que permaneceu no limbo, não afetaram o ânimo de TomZé, que com seus shows, suas aulas de violão e seus projetos (incluindo um disco de pesquisa que ele promete gravar) sobrevive física e espiritualmente com seu trabalho constante. “Quero uma forma de energia que alimente a vontade de pensar, um modo de ver a vida através da reflexão, como se fosse uma luta pela dúvida viva e contra a certeza castradora”.

O show de TomZé— que em maio lançará o LP “Correio da Estação do Brás” — faz parte de um projeto maior. “Encontro de Novo”, que vai apresentar, também no Ruth Escobar, Dércio Marques e Odair Cabeça de Poeta e o Grupo Capote. A Idéia é trazer gente da música brasileira que não recebe multa força dos metas de comunicação mais diretos como rádio e TV. Dércio será de 7 a nove de abril e Odair de 13 a 16 de abril.

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