Solidão e Morte de Nietzsche – Vida de Frederico Nietzsche, Daniel Halevy / 7

VIDA DE FREDERICO
NIETZSCHE

Autor: Daniel Halévy



Tradutor: Jerônimo Monteiro
Editora Assunção ltda.
Coleção Perfis Literários

 

Cap. 1 – OS ANOS DE
INFÂNCIA
Cap. 2 – OS ANOS DA
JUVENTUDE
Cap. 3 – FREDERICO NIETZSCHE E
RICHARD WAGNER — TRIEBSCHEN
Cap. 4 – FREDERICO NIETZSCHE E
RICHARD WAGNER — BAYREUTH
Cap. 5 – CRISE E CONVALESCENÇA Cap. 6 – O TRABALHO DO
"ZARATUSTRA"
Cap. 7 – A   ÚLTIMA   SOLIDÃO

 

 

VII

A   ÚLTIMA   SOLIDÃO

I

ALÉM DO BEM E DO
MAL

A obra lírica foi
abandonada. Frederico Nietzsche não lhe dará importância por algum tempo, e
quererá voltar a ela, mas serão apenas breves veleidades: "Daqui por
diante —escreve, e desta vez a afirmação é exata — serei eu quem fala, e não Zaratustra."

O trabalho ficou inacabado.
Nietzsche sabe-o, e as inúmeras  idéias   que   não  divulgou 
entristecem-no   como  um   remorso.

Deseja tentar outra
prova, e volta, sem a menor complacência, à filosofia, procurando exprimir, em
termos abstratos o que, como poeta não soube dizer. Começa novos cadernos.
Experimenta alguns títulos: "Vontade de domínio, nova interpretação da
natureza.. .Vontade de domínio, ensaio de uma nova interpretação do
Universo…" Estas fórmulas, as primeiras que encontrou, ficaram.
Frederico Nietzsche torna á tomar entre as mãos e a desenvolver, aqui, o tema Schopenhaueriano.
O fundo das coisas — pensa — não é uma cega vontade de viver; viver é
estender-se, crescer e conquistar; o fundo das coisas, melhor definido, é uma
cega vontade de domínio, e todos os fenômenos que se desenvolvem na alma
humana devem ser interpretados como função desta vontade.

É um imenso trabalho
de prudente reflexão. Nietzsche enfrenta-o medrosamente. Como distinguir na
alma dos homens o que é força e o que, sem dúvida, é fraqueza? Talvez a cólera
de Alexandre seja fraqueza e a exaltação do místico força. Nietzsche esperara
que seus discípulos, filósofos ou fisiólogos, fizessem para ele esta análise; o
auxílio de Heinrich von Stein ser-lhe-ia precioso. Mas, encontrando-se, como se
encontra, sozinho, tem que se encarregar de todos os trabalhos. Entristece.
Despojado de lirismo, o pensamento carece de atrativo para ele. Ama a força
instintiva, a delicadeza, a graça, os sons ordenados e rítmicos; ama Veneza,
em suma, e sonha com os dias claros que lhe permitirão fugir daquela pensão de
Nice; onde a alimentação e a companhia são más.    Em 30  de março
de 1885, escreve a Peter Gast:

Querido amigo: Já
não me acontece ter prazer ao pensar numa troca de lugar. Desta vez, porém, ao
pensar que em breve estarei em Veneza e junto de você, sinto-me animado,
extasiado, e é para mim uma esperança de cura depois de uma longa e espantosa
enfermidade. Fiz a seguinte descoberta: Veneza é o único lugar que até hoje me
foi constantemente suave e benéfico… Sils-Maria, como lugar de passagem, me
convém muito, mas como residência não. Ah, se eu pudesse organizar ali uma
digna existência de solitário e de eremita!…   Mas…   Sils-Maria  está  se 
tornando  moda!

Meu querido amigo e mestre, Veneza e você se acham,
para mim, indissolúvelmente ligados. Nada me agrada tanto como sua persistente
predileção por essa cidade. Quanto pensei em você durante todo este tempo! Lia.
as memórias do velho Brosses
(1739-40) sobre Veneza e sobre o Mestre que
ali se admirava então, Hüsse
(il detto Sassonne). Não se aborreça,
porque não tenho nenhuma intenção de fazer entre vocês dois qualquer comparação 
desrespeitosa.

Acabo de escrever a
Malwida: graças a Peter Gast, os  senhores  comediantes,   embora pretensos 
gênios  da música, deixarão, dentro em pouco, de corromper o gosto.
"Dentro em pouco" é, talvez, um grande exagero. Numa época
democrática poucos homens discernem a beleza: pulchrum
paucorum est hominum. Alegra-me ser para você um desses poucos. Os
homens profundos e ditosos que me agradam, como suas
ames mélancoliques et
folies (*) como meus defuntos amigos Stendhal e o abade Galiàni, não teriam
podido suportar sua permanência na terra se não tivessem amado algum compositor
da felicidade (Galiani sem Puccini, Stendhal sem Cimarosa e Mozart).

Ah, se soubesse
como estou agora tão só no mundo! E como me é preciso representar uma comédia
para não cuspir, às vezes, de pura sociedade, no rosto de alguém! Felizmente,
algo da maneira cortês de meu filho Zaratustra existe também em seu aloucado
pai.

Quando estiver com
você, porém, e em Veneza, cessara, então, por algum tempo toda a
"cortesia", e a "comédia" e a "sociedade" e
todas as maldições nicenses… não é verdade, meu caro amigo?

Não se esqueça de que
teremos que comer
baicoli!

Cordialmente,

F. N.

Durante abril e maio,
Nietzsche reside em Veneza com a satisfação que previra. Percorre as
ruelas sombreadas e ruidosas e contempla a formosa cidade. Ouve a música de
seu amigo. Os pórticos da praça de São Marcos o resguardam em seus passeios, e
são comparados por Nietzsche àqueles pórticos de Éfeso, aos quais ia Heráclito
para esquecer a agitação dos gregos e as sombrias ameaças do Império persa.
"Que bem se está aqui — pensa — para esquecer o sombrio império, ó nosso.
Não difamemos a nossa Europa, que ainda oferece alguns belos refúgios! Esta Piazza
San Marco é
o meu melhor gabinete de trabalho…" Esta curta alegria
desperta suas disposições poéticas; quer cantar o triunfo e a morte de Zaratustra,
arrancado ao esquecimento por algumas horas. Escreve um rascunho, logo
abandonado, que é o último .

Junho leva-o de novo a
Engadina. O acaso da vida de hotel proporciona-lhe um secretário, uma tal
senhora Rödér, desconhecida, se oferece para ajudá-lo. Nietzsche dita e procura
fixar mais exatamente seu problema. Quais são os seus fins? Criticar essa
quantidade de julgamentos morais, de preconceitos e de rotinas que encadeiam
os modernos europeus: avaliar seu calor vital, isto é, a quantidade de energia
que exprimem, e fixar, assim, uma ordem de virtudes.    Quer, afinal, realizar
a "Umwerthung aller Werthe" (fórmula que encontra então) "a
reavaliação de todos os valores". Todos — escreve. Seu orgulho não se
contenta com menos. Reconhece então, e consegue definir, certas formas de
virtude que os moralistas profissionais não sabem observar: o domínio de si
mesmo, a dissimulação dos sentimentos íntimos, a cortesia, a alegria, a
exatidão na obediência e no mando, a deferência, a exigência do respeito, o
gosto pelas responsabilidades e perigos — tais eram os usos e as tendências,
hoje desprezadas, da antiga vida aristocrática, e as fontes de uma moral mais
viril e mais produtiva do que a nossa.

 

(*)    Em francês no
original nietzschiano.

 

É provável que ele fizesse,
então, leituras muito sérias. Estudou os Problemas Biológicos de Rolph,
nos quais pôde encontrar a análise desse crescimento vital que é o fundamento
de sua metafísica. Talvez tenha relido então algum livro de Gobineau (admirava
o homem e a obra); podemos, pelo menos, aventurar a conjetura. Que importam,
porém as leituras e que peso têm as influências? Nietzsche tem quarenta e dois
anos; passou já da idade de aprender e suas idéias estão todas nele mesmo. As
leituras favorecem e alimentam suas meditações, mas não as dirigem. Seu
trabalho é terrivelmente penoso e a insônia aniquila-o. Não obstante, persevera
e se nega a triste alegria de beijar pela última vez sua irmã Lisbeth, que vai
acompanhar o esposo para a América. "Vi-verás, pois, lá longe —
escreve-lhe — e eu aqui, em uma solidão mais inatingível do que todos os
Paraguai. Minha mãe terá que viver só, e todos precisaremos ter muito ânimo…
Quero-te, e choro — Frederico."

Passam oito dias e
novos projetos são forjados. Negocia com seu editor recolher todos os seus
livros e publicá-los de novo. É um pretexto que aproveita para ir à Alemanha.
"Um negócio que exige a minha presença vem ajudar os meus desejos" —
escreve, e, sem demora, se dirige a Naumburg.

O encontro é penoso. O
irmão e a irmã falam com ternura na véspera de uma separação que sabem ser
definitiva. Nietzsche não oculta as dificuldades de sua vida. "Encontro-me
sozinho diante de um imenso problema — diz ele;— é um bosque em que me perco,
uma selva virgem; "Wald und Urwald". Preciso de auxílios, de
discípulos, de um mestre. Ser-me-ia tão grato obedecer! Se me achasse perdido
numa montanha, obedeceria ao homem que conhecesse a montanha; doente obedeceria
ao médico, e se encontrasse um homem capaz de me esclarecer sobre o valor de nossas
idéias morais, eu o ouviria e seguiria. Mas não encontro ninguém, nem discípulos,
nem muito menos mestres… Estou só." A irmã responde com o conselho de
sempre: Que volte a uma Universidade qualquer; os moços sempre o escutaram, e
uma vez mais o escutarão e compreenderão. "Os moços são tão estúpidos!  
—  responde  Nietzsche  —  e   os  professores   ainda o são mais. Além disso,
todas as Universidades da Alemanha me repelem. Onde poderia eu ensinar?"
Em Zurich, sugere a irmã. Mas ele replica: "Não posso tolerar senão uniu
cidade:    Veneza."

Vai a Leipzig
conversar com o seu editor, que o recebe sem consideração alguma: seus livros
não se vendem. Regressa a Naumburg, diz adeus definitivo a Lisbeth, e parte.
Qual será o seu refúgio no inverno? No ano passado sofrerá a ruidosa multidão
de Nice. Onde irá? Talvez a Vallombrosa. Lanzky recomendara-lhe este formoso
bosque dos Apeninos  toscanos   e  espera-o  em  Florença.

Antes de sair da
Alemanha, Nietzsche, de passagem por Munich visita seu amigo de outros tempos,
o barão de Seydlitz, que o apresenta à sua esposa e lhe mostra sua coleção de
objetos japoneses. A mulher é jovem e encantadora, e a coleção interessa a
Nietzsche, que descobre a arte japonesa e gosta dessas estampas, desses miúdos
objetos impudicos e cheios de regozijo, tão pouco conformes ao triste gosto
moderno, e ao triste gosto alemão menos ainda que a qualquer outro. Seydlitz é
perito em coisas belas e em viver bem. Nietzsche inveja-o um pouco.
"Talvez seja tempo, querida Lisbeth — escreve a sua irmã — de me
procurares uma esposa. Filiação: alegre, bonita, jovem; em resumo: um pequeno
ser corajoso à Ia Irene de Seydlitz (com a qual quase nos tratamos  por 
tu."

Ei-lo já na Toscana.
Lanzky recebe-o, acompanha-o e o conduz ao observatório de Arcetri, nas alturas
de San Miniato, onde mora um homem excêntrico: um leitor dos seus livros.
Leberecht Tempel, guardava, junto à sua mesa e aos seus estranhos instrumentos,
as obras de Frederico Nietzsche, das quais sabia de memória e costumava recitar
não poucas passagens. Leberecht Tempel era um caráter singularmente nobre,
verídico e desinteressado. Os dois homens falaram durante meia hora, e, ao que
parece, se entenderam. Nietzsche   retirou-se   muito   emocionado.

— Gostaria que este
homem não tivesse conhecido os meus livros — disse a Lanzky. — É demasiado
sensível, demasiado bom.    Eu lhe  causarei dano.

Pois ele sabia as
terríveis conseqüências de suas idéias e temia, para os que as lessem,
sofrimentos iguais aos seus.

Não permaneceu na Toscana,
pois o ar rude e frio que sopra das montanhas sobre Florença, incomodava-o. De
novo o assaltaram as recordações de Nice. Nice, a cidade dos cento  e vinte 
dias  de sol.

De Nice escreve a sua
imã, em 15 de novembro de 1885:

"Não se
assombre demais, querida irmã, se o seu irmão, que tem em suas veias sangue de
toupeira e de Hamlet, lhe faz sinais, não de Vallombroso, mas de Nice. Foi
admirável para mim haver experimentado quase simultaneamente o ar de Leipzig,
de Munich, de Florença, de Gênova e de Nice. Você não pode imaginar até que
ponto Nice vence as demais neste concurso. Como no ano passado, vim parar na Pensão
de Genebra, viela de Santo Estevão. Encontrei-a reformada, mobiliada de novo,
pintada, muito agradável. Meu vizinho de mesa é um bispo, um
"monsignore" que fala alemão. Penso muito em você.

Seu

Prinz
Eichhorn."

"Eis-me de
volta a Nice —
escreve em outra
carta — quer dizer, à razão!" Sua satisfação é tal que observa com
indulgência a cidade cosmopolita, divertindo-se com o espetáculo.

Minha janela dá
para o "square" dos Focenses
— escreve a Peter Gast. — Que prodigioso cosmopolitismo nesta aliança de
palavras/ Não o faz rir? E é muito certo, aqui viverem os focenses. Ouço no ar
o rumor de triunfo e de super-heroísmo — uma voz que me inspira confiança e me
diz: aqui estás tu em teu lugar… Quão longe a gente se sente, aqui, da
Alemanha!  "Ausser-deutch" — é coisa que eu não saberia dizer com
bastante força.

Empreende de novo as
suas habituais caminhadas ao sol pelos campos brancos que dominam o mar. Sete
anos de recordações ligam o seu pensamento a este mar, a estas costas, a estas
montanhas. Sua fantasia desperta, ele ouve-a e segue-a. Nenhuma hora passa em
vão; todas são afortunadas e deixam, como lembrança e testemunho da felicidade
que trouxeram, um epigrama, um poema em prosa, uma máxima, um 
"lied", ou uma  canção.

Difama os modernos,
não só por gosto, mas também — pelo menos é o que pensa — cumprindo seu dever
de filósofo que, falando para o futuro, deve contradizer o seu tempo. No
século XVI o filósofo que elogiava a obediência e a cultura tinha razão. No
século XIX, em nossa Europa desvalorizada pelos parisienses e pelos
wagnerianos alemães, nesta enfraquecida Europa que procura constantemente o
concurso das massas e a unanimidade, o menor esforço e o sofrimento menor — o
filósofo deve elogiar outras virtudes, e deve afirmar: "Aquele que sabe
ser o mais solitário, o mais escondido, o mais distante, que sabe viver para
além do bem e do mal, senhor de suas virtudes e poderoso em sua vontade — esse
é o verdadeiramente grande, pois que nisso reside a grandeza." E esse
homem deve indagar constantemente de si mesmo: "É possível a
grandeza?" — "Ist Veredlung möglich?" Não deixamos de ouvir esta
pergunta, formulada  aos  vinte   e   seis   anos.            

Difama também os
alemães, o que constitui o seu segundo prazer, mais íntimo e mais vivo; A
Europa germanizada esqueceu a franqueza; dissimula suas malícias, seus impudores,
suas astúcias. É preciso que recobre o espírito do velho mundo, o espírito
daqueles franceses dos tempos antigos, que viviam com uma clarividência, uma
liberdade e uma força tão belas. "É preciso mediterraneizar a música —
diz ele — como também nossos modos e preferências." Através destas
páginas de Nietzsche é fácil ouvir os conselhos de seus "defuntos 
amigos",   Stendhal   e  o   abade  Galiani.

"Os homens de
tristeza profunda — escreve — denunciam-se quando são felizes: agarram sua
felicidade como se a quisessem abrasar e sufocar num acesso de ciúme… Ah!
Sabem muito bem que a felicidade foge diante deles!"

Pelos fins de
dezembro, na proximidade das festas cujas recordações comovem o seu fiel
coração, Nietzsche viu fugir diante de si a felicidade. O prazer das idéias
vivas e das belas imagens não o satisfaz por completo. Outras necessidades
protestam, e afinal, se vingam; a "profunda tristeza" recobra seus
direitos e seu poder. A multidão nicense já não o diverte, nem o
"square" dos focenses. Que lhe importa o "Gai Saber" e seus
preceitos? E a luz, e o vento, e as canções provençais? Ele é um alemão, filho
de um pastor protestante, e vê aproximar-se com o coração oprimido, os veneráveis
dias de Natal e São Silvestre.

Sente-se aborrecido na
mesquinha pensão onde mora, com seus móveis tocados por muitas mãos, com seu
quarto aviltado pela comunidade. Chegam os dias frios. Sendo pobre, não pode
ter calefação. Regela-se e lamenta amargamente a falta das estufas da
Alemanha. Lamentáveis lugares nos quais não se pode, sequer, estar só. À
direita, um menino atormenta um piano com suas escalas; em baixo, dois amadores
se exercitam ao clarim e ao violino. Cedendo ao desespero, Nietzsche escreve a
sua irmã, que passa em Naumburg o último Natal:

Que estúpido é não
ter ninguém aqui que possa rir comigo! Se eu estivesse melhor de saúde e fosse
mais rico, gostaria de ir morar no Japão, para ter um pouco de alegria. Em
Veneza sou feliz porque ali se pode viver à japonesa sem demasiado esforço.
Todo O resto da Europa é pessimista e triste. A horrível perversão da música,
feita por Wagner, é um caso particular da perversão e confusão universais. Aí
está de novo o Natal, e dá pena pensar que tenho que continuar vivendo, como o
faço há sete anos, a modo de um proscrito ou um cínico desprezador dos homens.
A ninguém importa, já, minha existência. O Lama tem "algo melhor" em
que pensar, ou, pelo menos, tem algo de sobra em que pensar…

   O  quê?   Não é
alegre a minha carta de felicitação Pascoal?    Yiva o Lama!

Teu F.

Por que não vais
para o Japão? Lá a vida é mais sensata, e tão alegre!

Oito   dias mais 
tarde,   escreve  uma   carta   mais   serena, arrependido, talvez, de sua
confissão:

Querida, o tempo
está hoje magnífico e é forçoso que teu Fritz te faça de novo boa cara, embora
tenha passado nestes últimos tempos dias e noites muito melancólicos. Por
sorte, o meu Natal foi um verdadeiro dia de festa. Ao meio dia recebi os vossos
amáveis presentes apressando-me a pendurar ao pescoço a corrente do relógio e
a colocar no bolso do paletó o lindo calendário. Quanto ao
"dinheiro", se é que vinha na carta (nossa mãe assim o escreveu)
escapou-me das mãos. Perdoem a este animal cego que desfez o pacote na rua. Seguramente,
alguma coisa caiu quando eu abria impacientemente as cartas. Esperemos que
alguma velha, ao passar por ali tenha encontrado
o "seu pequeno Menino Jesus". Depois de
me inteirar de tudo o que disseram, fui à minha península de São João, fazendo
a pé uma grande caminhada pela costa, e instalei-me, enfim, não longe de
alguns soldados que jogavam bola. Rosas recém–abertos, gerânios nas sebes
tudo verde! tudo quente! Nada do norte! Ali o teu Fritz bebeu três copos
bem cheios de um doce vinho do lugar, e talvez se tenha embriagado um
pouquinho. .. Pelo menos, pôs-se a falar ás ondas, e quando estas, ao
desfazer-se com demasiada força desmanchavam-se em espuma e  lhes dizia como
se diz às galinhas: "Psstl Psst Psst!" Depois, voltei a Nice e à
noite comi principescamente na pensão, contemplando a resplandecente árvore de
Natal. Acredita que encontrei um padeiro de luxo que sabe o que são os
"Quackkuchen"? Disse-me ele que o rei de Wurtemberg mandara
prepará-los iguais como os que me agradam, para o dia de seu aniversário.
Lembrei-me disto ao escrever a palavra "príncipescaménte"
… In
alter Liebe,   teu  F.

N.B. Aprendi novamente a dormir ("sem narcóticos).

Janeiro, fevereiro,
março de 1886: sua tristeza parece menos viva. Dá forma à sua obra, às notas
que sua fantasia ditou. Faz quatro anos que deixou de publicar seus aforismos.
A matéria que os seus cadernos lhe oferecem é imensa, e ele se propõe a extrair
dela um volume. Todos os seus esforços são empregados em ordenar e escolher.

Teria esquecido a obra
sistemática em que pensara no inverno anterior. Não. Ele sente constantemente a
proximidade e a necessidade desta obra. Quer desculpar diante de si próprio a
demora, sob o pretexto de que precisa se divertir com um livro leve, antes de
se lançar a tão grande empresa. Encontra um título: Além do bem e do mal, e
um subtítulo: Prelúdio de uma filosofia do futuro. Deste modo, anunciará
a obra mais importante e constantemente adiada — engana-se a si mesmo ao ligar
com um vínculo fictício a diversão  e  o 
dever.                                                         

Lembremos-nos daquele
entusiasmo alegre e confiado com que ele anunciava em outro tempo a conclusão
de um livro. Já não existe confiança nem alegria: ele sabe que ninguém o lera.
Sua ventura, porém, excede sempre à esperança, e Nietzsche, ainda desta vez não
previu a prova que teria de suportar. "Além do bem e do mal" não
encontra editor. Nietzsche entra em conversação com uma casa de Leipzig, que
declina suas propostas; escreve a Berlim, sem melhor resultado. Seu livro é
repudiado em todos os lugares. Que fará? Pensa em dividi-lo em folhetos, porque
assim talvez cheguem mais facilmente ao público. E escreve um ensaio de
prefácio:

Estes folhetos
constituem a continuação dás
Considerações
Extemporâneas, que publiquei há uns dez anos para atrair "meus
semelhantes" até mim. Eu era, então, bastante jovem para ir assim,
pescando, com uma impaciente esperança. Hoje, depois de cem anos
meço
o tempo com o meu metro!
"não sou, ainda bastante velho"
para ter perdido toda a esperança e toda a confiança.

Não demora, porém, em
abandonar esta idéia. "Já não tenho outro recurso — escreve a sua irmã —
senão amarrar o meu manuscrito e guardá-lo numa gaveta."

Seguindo o seu
costume, vai passar a primavera em Veneza, mas não encontra ali o seu amigo,
que, na ocasião, percorre as cidades da Alemanha tentando, em vão, colocar sua
música. Peter Gast compôs uma ópera: O Leão de Veneza — que é recusada,
de teatro em teatro. Nietzsche escreve-lhe, consolando-o e dando-lhe coragem.
Um e outro, alemães de nascimento, mediterrâneos de vocação, habitando, um em
Nice e outro em Veneza, têm a mesma ambição e o mesmo infortunado destino.

Volte escreve-lhe Nietzsche volte à solidão
em que ambos sabemos viver, em que só nós sabemos viver. ..    O wagnerismo é
que lhe fecha o caminho, além dessa grosseria e teimosia alemãs, que desde o
"Império" não têm cessado de crescer. Será preciso que nos coloquemos
em guarda e em armas, para impedir que nos façam morrer de silêncio
a
você e a mim…

Frederico Nietzsche
sente sua solidão diminuída por esta camaradagem na vida difícil. A
infelicidade de Peter Gast é semelhante à sua, e isto lhe permite falar-lhe
como a um irmão. Peter Gast é pobre: "Que a minha bolsa nos seja comum —
diz-lhe Nietzsche — compartilhemos o que tenho…" Peter Gast perde o
ânimo e duvida de si próprio. Nietzsche conhece essa angústia, sabe quanto é
necessária a confiança para o homem que trabalha, e como o enfraquece depressa
o desdém público.

"Coragem —
escreve-lhe; — não se deixe deprimir. Esteja certo, pelo menos, de que eu
creio em você; preciso de sua música — sem ela, não poderia viver…" Não
duvidemos da sinceridade de Nietzsche quando fala assim. Sua capacidade de
amor e de admiração, que é imensa, foi colocada neste último companheiro que
lhe resta, e sua amizade transfigura a música de Peter Gast.

Na própria Veneza ele
é infeliz: a luz excessiva fere-lhe os delicados nervos dos olhos. Gomo em
outra ocasião em Basiléia, tem que se encerrar, com as venezianas fechadas, e
negar-se o prazer dos esplêndidos dias italianos. Onde encontrará refúgio?
Recorda os bosques alemães, tão vastos, sombrios e benéficos para vista, e cede
à nostalgia da pátria. Embora se irrite, embora se rebele contra ela, ama-a; e
como poderia não a amar? Sem sua divina música, que regulou o ímpeto de seus
primeiros desejos — sua alma seria outra. Sem sua língua, difícil e esplêndido
instrumento — seu pensamento seria outro. Schopenhauer e Wagner, dois alemães,
foram seus verdadeiros mestres, e continuam a sê-lo (como em segredo se
confessa). Seus verdadeiros discípulos, se é que existirão algum dia, nascerão
na Alemanha, nesta pátria cruel que ele não pode  renegar.

Por esse tempo recebe
da Alemanha notícias que o comovem: Rohde foi nomeado professor na
Universidade de Leipzig. Nietzsche sente-se feliz e felicita-o em termos
esquisitos. No entanto, não se pode defender de certas idéias e comparações
melancólicas. "Agora — escreve a Peter Gast — a faculdade de filosofia se
compõe pela metade, de meus "bons amigos" (Zarncke, Heinze, Leskian,
Windisch, Rohde, etc.)".

Repentinamente, sente
desejo de partir. Quer ver sua mãe abandonada pelos filhos; quer ouvir as
lições do seu velho amigo; quer, afinal, enfrentar aqueles editores famosos
que imprimem vinte mil volumes por ano e repudiam os seus. Abandona Veneza e
parte diretamente para Leipzig.

Vai à casa de Erwin
Rohde, mas escolhe mal a hora. Encontra um homem ocupado e preocupado, que
recebe com desatenção e aborrecimento aquele singular personagem que frustrou
sua própria vida. "Vi Nietzsche — escreve Rohde mais tarde, numas poucas
linhas em que explica seu frio acolhimento. — Toda sua pessoa mostrava a marca
de uma indescritível estranheza, que me inquietou profundamente. Havia nele
algo que eu jamais conhecera, e daquele Nietzsche que eu conhecia, haviam desaparecido
uma porção de traços. Parecia estar chegando de um país onde ninguém
habitasse."

Nietzsche disse-lhe:
"Queria ouvir você falar." Rohde leva-o consigo e o faz sentar-se em
meio àqueles moços que ignoram a sua obra e até seu nome. Nietzsche ouve e
depois se retira. "Ouvi Rohde na Universidade — escreve brevemente a sua
irmã. Já não posso me comunicar com pessoa alguma. É evidente que Leipzig não é
um lugar de refúgio, nem de repouso para mim".

Fugiria de Leipzig
como fugira de Nice ou de Veneza, mas algumas penosas ocupações obrigam-no a
ficar. Um após outro, sonda vários editores, tentando colocar seu livro, até
que, enfim, sua dignidade se rebelasse, desejando que sua obra apareça,
resolve pagar as despesas da impressão, não obstante a pesada  carga que isso
representa.

Sua mãe espera-o em
Naumburg onde, desde a partida de sua filha, vive só. Nietzsche sente por ela
uma piedade vivíssima. Sabe.que está desolada com o abandono de seus filhos, e
desesperada com as impiedades que ele escreve em seus livros. "Não os
leia. Ignore-os — diz-lhe ele constantemente; — não é para si que os
escrevo." Mas ela não pode reprimir a curiosidade, e o seu
descontentamento, assim, jamais se apazigua.

Não querendo abandonar
novamente a Alemanha sem lhe proporcionar nem que seja uma curta alegria,
Nietzsche vai passar uma semana ao seu lado, mas não tem a força suficiente
para conter a confidencia dos seus dissabores e lamenta-se, exalta-se,
entristecendo com isso a pobre mulher, a quem deixa, afinal, mais infeliz do
que a encontrara à sua chegada.

Ao passar por Munich
procura encontrar-se novamente com o barão de Seydlitz e sua esposa, desejoso
de descansar junto desses amáveis amigos. Mas o barão está ausente, e a casa
fechada.

Deixando aquela
Alemanha que não tornará a ver, Nietzsche viaja até à Alta Engadina, onde
sempre espera encontrai" algum alívio. Mas, ao chegar ali, em pleno julho,
encontra apenas brumas glaciais que lhe provocam uma grande crise do
nevralgias  e  de  melancolia.

 

II

A VONTADE DE DOMÍNIO

Poderemos dizer que
Nietzsche encontra amigos na Engadina? Convirá tal palavra a essas figuras
incertas, essas mulheres russas, inglesas, suíças, judias, que, vendo
regressar, a cada estação, aquele homem encantador, sempre doente e só, não lhe
podem recusar uma fugaz simpatia? São elas: as senhoras Rõde e Marusoff; as
senhoritas Zimmern e von Silas-Marschlins (esta, amiga da senhorita de
Meysenbug), e outras que se deixam adivinhar, mas cujos nomes permanecem desconhecidos.

Como o julgavam estas
pessoas delicadas e afáveis? Nietzsche evitava cuidadosamente as palavras que
pudessem surpreendê-las ou fazer-lhes pena. Continha suas idéias perigosas;
queria e sabia ser para elas um companheiro amável e instruído, refinado e
discreto. Uma destas amigas, uma inglesa de saúde delicada, a quem Nietzsche
visitava e distraia com freqüência, disse-lhe um dia:

— Sei que o senhor
escreve, senhor Nietzsche. Gostaria de conhecer seus livros.

Nietzsche sabia que
essa inglesa era uma católica fervorosa.

— Não. Não quero que a
senhora os conheça. Se fôssemos acreditar no que escrevo, uma pobre criatura
doente, como a senhora, não teria direito algum à vida.

E, como de outra vez
ela lhe dissesse: — Já sei, senhor Nietzsche, porque hão nos deixa ler seus
livros. Em um deles, o senhor escreveu: "Se vais com as mulheres, não
esqueças o chicote".— Ele respondeu, com voz desolada, tomando entre as
suas as mãos da senhora que assim o censurava:

— Por Deus, minha
amiga! Asseguro-lhe que minhas palavras não têm esse sentido!

Admiravam-no estas
mulheres? É preciso um juízo muito seguro para se atrever a admirar um autor
desconhecido, e, sem dúvida, elas não tiveram tanta audácia. Estimavam e tinham
certo afeto ao seu companheiro de hotel; reconheciam seu singular gênio de conversador,
e na mesa redonda procuravam o lugar mais próximo ao seu. Tudo isto era muito
pouco, se pensarmos em sua glória atual, mas era muito então, para ele. Graças
a estas amigas, tornava a encontrar, na Engadina, algo dessa confiança que era
tão necessária à sua alma, e que perdia assim que entrava na Alemanha. Durante
o verão de 1886, alguns bons músicos passaram por Sils. Descobriram que Nietzsche
era um ouvinte de raras qualidades, e quiseram ser ouvidos por ele. Esta
gentileza comoveu-o. "Observo — escreve a Peter Gast — que nossos artistas
cantam e tocam só para mim. Se isto continuasse, acabariam botando-me a
perder."

Certa lenda oriental
relata as aventuras de um soberano que excursionava disfarçado pelos seus
domínios. Ninguém o reconhece, mas adivinham-no, e um respeito instintivo
acolhe sua chegada. Nietzsche, naquele hotel da montanha, faz pensar no
soberano disfarçado e adivinhado a meias.

Fraco consolo, porém.
Poderiam estas mulheres adivinhar uma angústia cuja profundidade eram incapazes
de medir? Nietzsche atravessava esse grave momento em que todo o homem, por
muito que resista à verdade, tem, afinal, que saber o que lhe nega e lhe
oferece o destino com uma inexorável constância. De boa ou má vontade, chegara
o momento em que ele devia arrancar do coração as últimas esperanças. "Nestes
tempos, — escreve a Peter Gast — tenho-me sentido indizivelmente triste, e as
preocupações tiram-me o sono." Este dado é breve, mas, a sua irmã ele
confessa mais, escrevendo-lhe páginas e páginas terríveis de força e de
monotonia.

Onde estão aqueles
velhos amigos aos quais antigamente me sentira tão estreitamente ligado?
Habitamos mundos diferentes e falamos línguas diferentes! Como um estranho,
como um proscrito, vago entre eles sem que me dirijam uma palavra ou um olhar.
Calo-me, pois que ninguém compreende minhas palavras.
.. Ah, bem posso dizer: jamais me
compreenderam! É espantoso ver-se condenado ao silêncio quando se tem tanto que
dizer,.. Teria eu sido criado para a solidão, para não encontrar nunca uma
pessoa para me fazer ouvir? A incomunicabilidade é, em verdade, a mais
espantosa das solidões. Ser
diferente é trazer uma máscara de bronze
mais dura do que todas as máscaras de  bronze. A amizade perfeita só é
possível
inter pares. Inter pares: palavras embriagadoras! Que
confiança, que esperança, que perfume, que beatitude promete a um homem fatal
e constantemente só! a um homem que é
diferente, que jamais encontrará
ninguém semelhante! E, no entanto, este homem é um bom indagador, e procurou muito…
Ah, loucura fugaz destas horas em que o solitário acredita encontrar um amigo,
e estreita-o entre seus braços: presente dos céus, dom inestimável! Mas não se
passou ainda uma hora, quando já o repudia com repugnância e se afasta com asco
de si mesmo, como se se sentisse desonrado, diminuído, doente com sua própria
companhia.

Um homem profundo
tem necessidade de amigos, a menos que tenha um Deus. E eu não tenho nem Deus,
nem amigos. Ah, irmã! esses que você designa com essa palavra, em outro tempo
foram meus amigos. Porélh, e agora?

Perdoe-me este
acesso de paixão; a cansa disto foi minha última viagem.. . Minha saúde não é
boa e nem  má.   Só a pobre alma é que se encontra ferida e ávida.

Dê-me alguns homens
que consintam em me ouvir e me compreendam
e me sentirei são  e salvo!

Aqui, tudo segue
seu curso. As duas inglesas e d velha russa (a compositora) voltaram; esta
última, muito doente

Nietzsche voltou a se
ocupar do projeto da Wille zur Macht. Sua infeliz passagem pela
Alemanha, modificara seus propósitos. Pensava: Para que escrever obras de
combate? Sem aliados e sem leitores, nada posso contra o aviltamento da Europa;
cumpra-se, pois o destino. Algum dia, esse aviltamento encontrará seu fim; dia
longínquo, que eu não verei. Então, descobrirão meus livros e eu terei
leitores. Hoje não posso lutar, pois nem sequer tenho inimigos…

Em julho, ao sair
daquela Alemanha que pusera tão à prova sua capacidade de paciência, havia
redigido um plano detalhado.   Em  setembro,   escreve:

Anuncio, para os
próximos quatro anos, o término de minha obra em quatro volumes. Só ó título já
é para dar medo:
Vontade de Domínio, ensaio de uma reavaliação de todos os
valores. Necessito de todas as minhas forças saúde, solidão, e bom
humor
e, talvez, também, uma mulher.

Para onde se retirará
ele para compor essa nova obra? Gênova inspirara-lhe os dois livros de
convalescente: Aurora e La Gaya Scienza; Rapallo e Nice
inspiraram-lhe o Zaratustra. Agora, pensa na Córsega. Desde muito tempo
sente curiosidade por essa ilha selvagem, e, nela, por uma cidade:  Corte.

Ali foi concebido
Napoleão
escreve. Que
lugar, pois, mais apropriado para empreender a reavaliação de todos os
valores?… Também para mim se trata de uma
concepção.

Ah… esta obra
napoleônica, cujo simples título deve assustar, começa por assustar o seu
autor. Nietzsche não ignora onde o leva esta "via mala des
conséquences"
(*) que segue desde algum tempo. Posto que uma força
ávida e conquistadora reside no coração da natureza, todo o ato que não
corresponda a esta força é inexato e fraco. Di-lo e escreve-o, e tal é,
exatamente, seu pensamento: o homem nunca é tão grande como quando reúne em si
a presteza e o refinamento do espírito a uma certa rudeza e crueldade ingênita
dos instintos.   Assim  foi   compreendida  a   virtude pelos  
gregos   e   a virtú pelos italianos. Os políticos franceses do século
XVII, e depois deles, Frederico II, Napoleão e Bismarck; agiram de acordo com
estas máximas. Perturbado por suas dúvidas e extraviado em seu problema,
Nietzsche faz firme finca-pé nesta verdade fragmentária, mas segura: É
preciso ter a coragem da nudez psicológica.
Exercita-se o mais possível
para isso, mas fica insatisfeito. Seu espírito é invencivelmente claro, sua
alma invencivelmente sonhadora, e esta definição dos homens mais fortes é
pequena e gelada para os seus sonhos. Já não admirará Schiller e Mazzini que
antes escolhera para mestres? Não duvidemos: jamais alma alguma foi tão
constante como a sua. Mas receia, seguindo-os, ceder a uma fraqueza, e os
mestres que escolheu agora chamam-se Napoleão e César Bórgia. Mais uma vez se
afasta de sua missão e ilude as afirmações peremptórias.

 

(*)    Sic,  no 
texto.

 

 

O editor Fritzsch
concorda, mediante um auxilio pecuniário, em publicar uma segunda edição de A
Origem da Tragédia,
de Aurora e de La Gagá Scienza. Havia
muito tempo que Nietzsche desejava acrescentar um prefácio a estas obras
antigas, corrigi-las e talvez aumentá4as. Empreende imediatamente este novo
trabalho e se absorve nele.

Já não irá à Córsega.
Regressando à costa genovesa, detém-se em Rufa, não longe de Rapallo, acima de
Portofino, cuja crista arborizada se adianta pelo mar. Torna a encontrar os
passeios e os lugares em que Zaratustra lhe falara. Como se sentia triste
naquele tempo! Acabava de perder seus dois últimos amigos, Lou Salomé e Paulo
Rée; não obstante, prosseguia em seu trabalho, e criava, no próprio momento de
sua grande dor, sua obra mais corajosa. Deixa-se comover pelo passado e cede à
emoção de suas recordações.

Por esses dias recebe
uma carta que é o primeiro sinal de sua próxima glória. Em agosto de 1886, desesperando
de ver-se compreendido por seus compatriotas, enviara seu livro Além do Bem
e do Mal
a dois estrangeiros — o dinamarquês Jorge Brandes e o francês
Hipólito Taine. O primeiro não respondeu, mas Taine escreveu, em 17 de outubro
de 188(1, uma carta que trouxe a Nietzsche um pouco de alegria:

Meu senhor:

Ao regressar de uma
viagem encontrei o livro que ò senhor teve a amabilidade de me enviar. Como o
senhor diz, está cheio de "pensamentos posteriores"; a forma, tão
viva, tão literária, ó estilo apaixonado, o curso com freqüência paradóxico,
abrirão os olhos do leitor que deseje entender. Eu recomendaria aos filósofos
especialmente o seu primeiro trecho sobre ós filósofos
e a filosofia (págs. 14, 17, 20, 25); mas
os historiadores e os críticos acharão também um rico espólio de idéias novas,
(por exemplo,
41, 75, 76, 149, 150, etc.). O que o senhor diz do gênio
e dos caracteres nacionais em seu oitavo ensaio, é extraordinariamente
sugestivo,
e hei de reler este pedaço, embora se encontre nele uma frase demasiado lisonjeiro
para mim. O senhor me faz grande honra em sua carta, colocando-me ao lado do
senhor Burckhardt, de Basiléia, a quem admiro infinitamente. Creio ter sido o
primeiro em assinalar, na imprensa francesa a sua grande obra sobre a
Cultura
do Renascimento na Itália…

Aceite, com minha
cordial gratidão, a segurança dos meus melhores sentimentos.

H.   Taine.

Paulo Lanzky foi se
encontrar com Nietzsche em Ruta. Não o vendo fazia 18 meses, ficou assombrado
com a mudança que observou nele. O corpo parecia prostrado, as feições
alteradas. Mas o homem continuava sendo o mesmo: por amarga que fosse agora a
sua vida, continuava tão afetuoso e ingênuo como antes, e tão pronto para o
riso como um menino. Arrastava Lanzky consigo para a montanha que, a todos os
momentos oferece pontos de vista tão grandiosos sobre o mar e os Alpes
nevados. Juntos descansavam nos lugares mais belos e, logo, recolhendo alguns
sarmentos de outono e alguns ramos secos, acendiam fogueiras cujas labaredas e
fumarada Nietzsche acolhia com gritos  de júbilo.

Foi então, naquela
hospedaria de Ruta, que Nietzsche redigiu os prefácios de Aurora e de La
Gaya Scienza
nos quais conta, com tão estranha vivacidade sua odisséia
espiritual: Triebschen, a amizade de Wagner; Metz e a descoberta da guerra;
Bayreuth, a esperança e a desilusão; o rompimento com Richard Wagner; o
estraçalhamento de seu amor; os cruéis anos que atravessou, privado de lirismo
e de arte; finalmente, Itália, que lhe devolve um e outra; Veneza e Gênova, as
duas cidades que o salvaram, e a costa da Ligúria, berço de Zaratustra.

Quando Nietzsche
escrevia assim, lutando contra a depressão — tomaria drogas que favorecessem a
excitação indispensável para o trabalho? Certos testemunhos parecem afirmá-lo.
Sabemos que tomava cloral e um extrato de cânhamo indico que, em pequenas
doses, lhe proporcionava repouso mas que, ao contrário, o excitava se tomado em
doses fortes. Embora seja possível que manejasse, em segredo, uma farnia-copéia
mais complicada, como é muito freqüente com os nervosos.

Nietzsche amava aquela
costa italiana. "Imagine-se — escreve a Peter Gast — uma ilhota do
arquipélago grego trazida até aqui pelos ventos. É uma costa de piratas,
inclinada, dissimulada, perigosa…" Propunha-se passar ali o inverno,
mas não tardou em modificar seus projetos e querer regressar a Nice.   Em vão
tratou Lanzky de o segurar.

—   O senhor queixa-se
do seu abandono — disse-lhe. — Mas, de quem é a culpa? O senhor mesmo desalenta
seus discípulos. Chama-me para cá, chama Peter Gast, e, de repente, vai-se
embora!

—  A luz e o ar de
Nice são-me indispensáveis — respondia. — Tenho  necessidade  da baía  dos
Anjos.

Partiu só. Durante o
inverno acabou de escrever os seus prefácios, releu e retocou suas obras. Ao
que parece viveu num singular estado de abandono, de indecisão e de melancolia.
Enviou seus manuscritos a Peter Gast, como fazia sempre, mas o seu pedido de
conselho tem um desusado acento de humildade e inquietação: "Leia-me com
maior desconfiança que nunca — escreve, em fevereiro de 1887 — e
diga-me simplesmente: tal coisa está bem; tal não o está; isto me agrada; por
que não isto  de preferência?, etc."

Lê, e suas leituras
parecem dirigidas por uma curiosidade mais livre e menos ordenada pela rigidez
das idéias preconcebidas. Familiariza-se com as obras dos decadentes franceses;
aprecia os trabalhos de Baudelaire sobre Richard Wagner, e os Ensaios de
Psicologia Contemporânea
de Paul Bourget; lê os contos de Maupassant, e
admira "esse grande latino". Folheia alguns volumes de Zola, e não se
deixa seduzir por esse pensamento puramente popular, por essa arte absolutamente
decorativa. Compra e comenta a lápis nas margens o Esboço de uma moral sem
obrigação nem sanção.
Guyau  verá, como Frederico Nietzsche, e
ao mesmo tempo que ele, a idéia de fundar uma moral sobre as modalidades
expansivas da vida; Guyau porém, interpretava-as em outro sentido, e compreendia
como força do amor o que para Nietzsche era força conquistadora. O acordo
inicial, não obstante, é seguro, e Nietzsche estima a obra inteligente e pura
do filósofo francês. A notoriedade dos novelistas russos começava por aqueles
tempos. Nietzsche interessa-se por esses poetas de uma raça jovem, violenta e
sutil, cujo encanto Sempre sentiu.

"Conhece
Dostoievsky? — escreve a Peter Gast — Ninguém, afora Stendhal, me satisfez e
deleitou tanto. Eis aqui um psicólogo com o qual me entendo." Aponta o novo
autor a todos os seus correspondentes. O fervor religioso daqueles eslavos
interessa-o e merece a sua indulgência. Não é um sintoma de debilidade — pensa
— mas o desvio de uma energia que não pode aceitar os frios limites da
sociedade moderna e cuja rebeldia adota a forma de um cristianismo revolucionário.
Aqueles bárbaros, violentados em seus instintos, perturbam-se e acusam; entram
num período de crise que não  terminou   ainda.    Nietzsche   escreve:

 

"Esta
consciência inquieta é uma enfermidade, mas uma enfermidade do gênero da
gravidez.
.."

Pois que Nietzsche
espera sempre. Defende obstinadamente suas idéias contra suas repugnâncias;
quer que seus pensamentos permaneçam livres, benévolos e confiantes, e quando
sente crescer dentro de si e subir até eles o ódio à Europa e a seus povos
aviltados, quando tem medo de ceder ao seu humor amargo, controla-se em
seguida, Não — repete a si mesmo — jamais foi a Europa tão rica em homens,
idéias e aspirações; jamais esteve tão bem preparada para as grandes obras como
o está hoje, e é preciso, contra toda a aparência, esperar tudo destas multidões,
por mais que a sua fealdade pareça dever matar toda a esperança.

Durante os primeiros
meses de 1887, Frederico Nietzsche entabulou relações com uma certa senhora V.
P. com a qual foi a San Remo e Monte Cario. Ignoramos o nome desta mulher e
não conhecemos nenhuma carta escrita por ela, ou a ela dirigida. Há em tudo
isto certo mistério, e talvez amor. Pelo menos, não é despropósito supô-lo. (*)

Sem dúvida, Nietzsche
acompanhava a senhora V. P. quando ouviu nos concertos do cassino de Monte
Cario o prelúdio de Parsifal. Ouviu sem ódio, com a repentina
indulgência de um lutador fatigado. "Gostei muito de Wagner — escreve em
setembro a Peter Gast — e ainda gosto…" Sim! é claro que ainda gosta
dele, quando pode falar assim da sinfonia que acaba de ouvir:

Não quero saber se
esta arte pode ou deve servir a algum fim
escreve a Peter Gast; contento-me, agora, em perguntar:
Teria jamais Wagner feito algo melhor? E encontro a mais extremada consciência
e precisão psicológica na maneira de dizer, de exprimir e de comunicar a
emoção; a forma mais curta e mais direta; cada matiz sentimental definido com
uma brevidade quase epigramática; uma clareza descritiva tal que, escutando
esta música se pensa em um escudo maravilhosamente cinzelado; por fim, um
sentimento, uma experiência musical da alma, extraordinária e sublime; uma
"elevação", no sentido formidável da palavra; uma simpatia, uma penetração
que entram como um punhal na alma, e uma infinita piedade pelo que descobriu e
julgou no fundo desta alma.    Tais belezas se encontram em Dante e em

mais ninguém.   
Que pintor pintou jamais um tão melancólico olhar de amor como Wagner nos
últimos acentos do seu prelúdio?

 

(*) Os costumes são
bastante livres nas pensões mediterrâneas, e sem dúvida, não conhecemos todos
os episódios da vida de Frederico Nietzsche, e não nos está autorizada a
hipótese. Segundo um testemunho que pudemos recolher, sua conduta na Engadina
jamais deu motivo a qualquer murmúrio. Parece, pelo contrário, que evitava as
moças.   (N. do A.)

 

 

Que fácil lhe seria
chegar a ser um grande critico; de agudeza igual; mas muito superior amplitude
de vistas, à desse Sainte-Beuve tão estimulado por ele! Nietzsche sabe que o
"diletantismo da análise" (a expressão é sua) tem seduções a que
ele, por sua parte, mal? consegue resistir. Seus melhores leitores
observaram isso com freqüência. "Que historiador é 6 senhor!" lhe
dizia em outro tempo Burckhardt, e Taine o repete, embora o cumprimento pouco
satisfaça a Nietzsche. Despreza a função do historiador e do crítico. Um jovem
alemão conhecido em Nice lhe diz que os professores de Tubinga o consideram
como um espírito dissolvente e um negador radical. Isto entristece-o. Se se
afastou violentamente do romantismo do amor e da piedade, não foi para
chafurdar no romantismo inverso da violência e da energia. Admira Stendhal, mas
não quer ser stendhaliano. Ais crendices cristãs nutriram sua infância; as
doutrinas de Pforta amadureceram–no; Pitágoras, Platão e Wagner aumentaram e
elevaram seus desejos. Quer ser poeta e moralista, inventor de virtudes, de
veneração e de serenidades — nenhum de seus leitores, nenhum de seus amigos
compreendeu esta intenção. Corrigindo ás provas de Aurora, relê esta antiga
página, cuja verdade subsiste:

Adora-se a força de joelhos segundo o velho costume
dos escravos
e, no entanto, quando ê preciso determinar o grau de venerabilidade,
o que importa é o grau de razão na força; é preciso avaliar em que
medida foi superada a força e a que fins obedece como instrumento e como meio.
Para semelhantes avaliações, porém, existem ainda muito poucos olhos; a gente
chega até a considerar como uma blasfêmia a avaliação do gênio. Assim, o
espetáculo mais belo se acha, talvez, condenado à obscuridade, e, apenas
surgido, desaparece na noite eterna; refiro-me ao espetáculo dessa força que o
gênio emprega, não em obras, mas no desenvolvimento de
si mesmo como tal
obra, quer dizer, no domínio de si próprio, na ordenação e seleção das
inspirações, e dos esforços que surgem. O grande homem permanece invisível,
como uma estrela longínqua, no que tem de mais admirável: sua
vitória sobre
a força fica sem testemunhas, e não é glorificada, nem cantada…

Ah! para vencer a
força é preciso ter algum apoio exterior — a razão, ou a fé. Nietzsche negando
a uma e a outra todos os seus direitos,  desarmou-se para o  seu  combate.

Pelos começos de março
um forte tremor de terra assustou os desocupados cosmopolitas de Nice.
Frederico Nietzsche admirava estes movimentos da natureza que recordam ao
homem a sua insignificância. Dois anos antes, a catástrofe do Krakatoa, que fez
perecer em Java duzentas mil pessoas, haviam-no entusiasmado: "Que
formosura — dizia a Lanzky, que a seu pedido, lhe lia as notícias — duzentas
mil pessoas destruídas de um só golpe! É magnífico! Eis aí como deveria
terminar a humanidade, como terminará algum dia!" E externou o seu desejo
de que uma gigantesca onda suprimisse, pelo menos, Nice e seus habitantes.
"Mas — observou Lanzky — nós também seríamos suprimidos." "Que
importa!" —respondeu Nietzsche.

Seu desejo, quase
realizado, regozijou-o. Mas nem por isso apressou de um só dia sua partida.

Até agora escreve em 7 de março r— tenho vivido
com um sentimento de ironia e de fria curiosidade em meio destes milhares de
seres em estado de demência. Mas ninguém pode responder por si mesmo; talvez
amanhã eu seja tão pouco razoável como qualquer outro. Há nisto um
imprévi que não deixa de ter seu encanto.

Em meados de março
havia terminado os seus prefácios, e, como diz num deles: "Que nos importa
o senhor Nietzsche, suas doenças e suas curas? Falemos claramente, vamos direito
ao problema." Está bem.. Vamos direito ao problema. Determinemos, entre os
inumeráveis fins que se propôs o homem, quais são os que realmente o elevam e
enobrecem; saibamos, afinal, ganhar nossa vitória sobre a força. Em 17 de março escreve um plano:

Livro primeiro — O
Niilismo Europeu
Livro segundo — Crítica dos valores superiores Livro
terceiro — Princípio de uma nova avaliação Livro quarto — Disciplina
e seleção.

É quase a mesma
disposição que indicara em julho de 1886: dois livros de análise e de crítica e
dois livros de doutrina  e  afirmação;  no total,  quatro  livros,  quatro 
tomos.

A primavera afundava-o
todos os anos em um estado de incerteza e de mal-estar; não sabia onde
encontrar, entre Engadina e Nice, um lugar onde o ar fosse bastante puro e não
fizesse demasiado calor; onde a luz fosse suave e não lhe molestasse os olhos.
Naquele ano de 1887 deixou-se tentar pelos lagos da Itália, e, abandonando
Nice, dirigiu-se ao Lago Maior. Este Mediterrâneo em miniatura, encerrado entre
montanhas, agradou-lhe extraordinariamente, em princípio.    "Este lugar me parece mais formoso e emocionante do que todos os
da Riviera — escreve. — Como é possível que eu tenha demorado tantos anos em
descobri-lo? O mar, como todas as coisas enormes, tem algo de estúpido e de
indecente que não existe aqui.

Corrige as
provas da La Gaya Scienza; relê Humano, demasiado humano, e
de novo se detém em considerar com ternura sua  obra desconhecida.

No
entanto, se refaz. Só a próxima obra importa! Obriga-se a recomeçar suas
meditações; e imediatamente se enerva e se sente esgotado. De repente renuncia
a uma visita a Veneza, que havia projetado. "Minha saúde me impede —
escreve a Peter Gast. — Sou indigno de ver coisas tão belas."

Para
cúmulo de seus males surge uma disputa epistolar entre Erwin Rohde e êle.
Nietzsche tivera ocasião de escrever algumas linhas ao amigo mais íntimo de
outros tempos, e não resistira ao prazer de apontar, maliciosamente: "Só
me entendo, já, com gente velha, como Taine e Burckhardt; você não é bastante
velho para mim. .." Isto ofendeu a Erwin Rohde. Professor, ao
passo que Nietzsche não é nada; com reputação na Europa culta, ao passo que
Nietzsche continua ignorado, apesar de seus livros extravagantes — não admite
a irreverência e defende sua dignidade. Sem dúvida a sua carta devia ser
muito rude, pois que fê-la restituir mais tarde e a destruiu.

Este
contratempo foi muito nocivo para Nietzsche. Tão minada e em ruínas se achava a
sua saúde, que resolveu seguir um tratamento de banhos e massagens em um
estabelecimento . especial de Coira, na Suíça, onde se entregou documente às
mãos dos médicos.

No
entanto, trabalhou e fez um enérgico esforço para descobrir e definir aqueles
valores morais que desejava propor. Mas foi tudo em vão. Apesar de seus esforços, o problema do seu terceiro livro — Princípio de uma nova
avaliação
— continuava de pé diante dele. Transcrevamos aqui a definição
mais precisa que nos proporciona outro plano:

Terceiro
livro — Hipóteses  do  legislador.  Vincular de novo as forças desordenadas,
de maneira que não se  destruam mais  em seus  choques;  permanecer atento,  ao
acréscimo  real   da força.

Que quer
dizer isto? Que acréscimo real, que direção real das coisas nos designam estas
palavras? Um crescimento de intensidade? Então, todo o movimento da energia,
sempre que esta seja intensa, .será bom. Mas não é assim que se deve entender.
Nietzsche escolhe, prefere, exclui. Este acréscimo é, pois, o sinal de uma
ordem, de uma hierarquia natural. Mas em toda a hierarquia se faz necessário um
critério que distribua os graus. Qual será esse critério? Em outro tempo,
Nietzsche teria dito: a crença que eu tenha oferecido; minha afirmação lírica.
Pensará ainda assim? Sem dúvida, suas idéias pouco variam. Sua audácia, porém,
está diminuída pelo sofrimento, e as prolongadas indecisões fizeram mais
exigente o seu espírito crítico. Deseja, procura, e parece pedir à ciência, ao
"médico filósofo", a base real que todos os seus costumes
intelectuais lhe negam.

A má
notícia acaba de arruinar sua coragem: Heinrich von Stein morreu, antes de
fazer trinta anos, de uma paralisia do coração.

Esta
noticia me pôs fora de mim
escreveu Nietzsche a Peter Gast; —• eu lhe tinha
realmente um grande afeto. Sempre me pareceu que me estava reservado para o
futuro. Pertencia a esse pequeno grupo de homens cuja
existência me
regozija; e êle também tinha grande confiança em mim… Quanto
rimos, aqui mesmo! Sua visita de dois dias a Sils, foi uma das mais
raras e delicadas homenagens que já recebi. Isto causou aqui grande impressão.
Êle dissera no hotel:
Se venho aqui não é precisamente por  causa  da 
Engadina.

Passam-se
três semanas. Êle se queixa da amarga disposição em que se encontra, e das
suscetibilidades que lhe rebaixam a alma. No entanto, anuncia outro trabalho.
Que novo trabalho poderá ser este?

Não é a Vontade
de domínio.
Sua impaciência, aumentada pelo trabalho, se submete com
dificuldade à lentidão do pensamento. Seu gênio de improvisador e polemista é o
único que sobrevive de seus antigos dotes. O sr. Widmann, critico Suíço,
acaba de escrever um estudo sobre o Além do Bem e do Mal, obra em que só
havia visto um manual de anarquismo: "Este livro é dinamite",
declara. Frederico Nietzsche quer replicar e escreve em seguida, de uma vez,
em quinze dias, um, dois, três curtos ensaios cujo conjunto intitula: "Zur
Genealogie der Moral" {(Para a Genealogia da Moral).
Esta obra,
escreve Nietzsche no frontispício, é "destinada a completar é esclarecer a
anterior: Além do Bem e do Mal."

Eu disse —
escreve — em suma, que me coloco para além do bem e do mal — Gut und Bóse. —Mas
quererá isto- dizer que desejo me emancipar de toda categoria moral? De maneira
alguma. Recuso a exaltação e a doçura a que chamam o bem; e a difamação
da energia a que chamam o mal; mas a história da consciência humana —
sabem os moralistas que existe tal história? — nos descobre uma porção de outros
valores morais, de outras maneiras de ser bom, de outras maneiras de ser mau,
e numerosos matizes de honra e desonra. Neste mesmo terreno, a realidade é
movediça, e livres as iniciativas:   é preciso procurar e inventar.

Mas
Nietzsche desenvolve ainda mais o seu pensamento: "Eu quis — escreve meses
mais tarde, a propósito deste livro —disparar um tiro de canhão com pólvora
mais sonora." Expõe a distinção entre as duas morais: uma ditada pelos amos
e a outra pelos escravos; pretende reconhecer nas raízes verbais o sentido
antigo do bem e do mal. Bônus, buonus, diz, vem de duonus, que
significa guerreiro: malus vem de mêlas negro: os loiros arianos,
antepassadas dos gregos, designavam com esta palavra a maneira habitual de
trabalhar de seus escravos e vassalos, os mediterrâneos com sangue cruzado de
negros e semitas. Frederico Nietzsche não recusa estas noções primitivas  do 
nobre e  do vil.

Em 8 de
junho, numa carta escrita de Sils-Maria, anuncia a Peter Gast a nova obra:

Estes
últimos dias, que foram melhores, empreguei–os energicamente na redação de um
breve ensaio que, ao que creio, põe em
plena luz o problema do meu último livro. Todo o mundo se
queixou de que "não se me compreendia", e os cem exemplares vendidos
não me permitem duvidar de que, em realidade, não me entendem. Você sabe que
em três anos gastei cerca de quinhentos
táleres em despesas de impressão tudo isso, sem a menor remuneração, preciso que o saiba! E tenho
quarenta e três anos e quinze livros! Mais ainda: depois de um exame e de
muitas e penosas diligências que não posso dizer, comprovei ser um
fato que
nenhum editor alemão quer editar meus livros (mesmo que eu ceda os direitos de
autor). É possível que este folheto que hoje termino faça com. que se adquiram
alguns exemplares do meu livro anterior (quando penso no pobre Fritzsch, que
carrega sobre si todo o peso de minha obra, sinto pena). Talvez os meus
editores se beneficiem algum dia. Quanto a mim, sei muito bem que, quando me
começarem a entender,
já  não poderei  recolher  benefício  algum.

Em 20 de
julho manda o manuscrito ao editor. Em 24 pede a devolução, por telegrama, a
fim de lhe aumentar algumas páginas. Todo o verão transcorre entre doenças,
tristezas e a correção de seu livro, que não cessa de retocar, aumentando-o e
fazendo-o cada vez mais vivo. Pelos fins de agosto, vendo um espaço em branco
na última página da primeira parte, Nietzsche acrescenta esta curiosa nota, na
qual indica os problemas não estudados e que não terá, já, tempo nem forças
para abordar:

NOTA — Aproveito
a ocasião que esta primeira dissertação me oferece para exprimir, pública e
formalmente um voto o qual, até agora, não comuniquei senão a alguns sábios,
ao acaso das conversações. Seria de desejar que uma faculdade de filosofia;
mediante uma série de concursos acadêmicos, coadjuvasse a propagação dos
estudos  da
história  da  moral.     Talvez este  livro sirva para dar
um impulso vigoroso nesta direção..   Eu proporia a seguinte questão:

Que
indicações nos fornecem a lingüística e especialmente as investigações
etimológicas, para a história da evolução dos conceitos morais?

Por
outra parte, não seria menos necessário interessar no estudo destes problemas
os fisiólogos e os médicos. Realmente, antes de tudo seria preciso que todas as
tabelas de valores, todos os imperativos de que falam a história e os estudos
etnológicos, fossem esclarecidos e explicados pelo seu lado
fisiológico, antes de se tratar de sua
interpretação pela psicologia.
.. A pergunta: "Que vale tal ou qual
tabela de valores, tal ou qual moral?" precisa ser examinada dos mais
diferentes pontos de vista. Em nada se deveria colocar mais discernimento e
delicadeza do que no estudo da
finalidade dos valores. Aquilo, por
exemplo, que tenha um valor evidente no que concerne á maior capacidade de
duração de uma raça, não teria, de modo algum, o mesmo valor quando se tratasse
de criar um tipo de força superior. O bem da maioria e o bem da minoria são
dois pontos de vista de valorização absolutamente opostos. E que a ingenuidade
dos biólogos ingleses considere, se lhe agrada, o primeiro como superior em si… Todas as
ciências deverão preparar, de agora em diante, a tarefa do filósofo do futuro,
que consiste em resolver o
problema dos valores, em determinar a
hierarquia dos valores.

Chega
setembro. As provas estão corrigidas, e começa a fazer frio na Engadina. O filósofo
errante tem que procurar novo  refúgio  e novo trabalho.

Para
dizer a verdade — escreve a Peter Gast
vacilo entre Veneza e Leipzig. Talvez devesse ir
trabalhar em Leipzig, pois que ainda me falta aprender muito, interrogar e
ler, para o grande
pensum de minha vida, que já agora não posso deixar
de levar a cabo. Mas isso não seria coisa para um outono e sim para
todo um
inverno passado na Alemanha… E, tudo bem pesado, minha saúde me dissuade
de empreender este ano semelhante tarefa. Assim, pois, será Veneza ou Nice, e,
de certo ponto de vista puramente interior, talvez seja preferível. Tenho
maior necessidade de viver só e recolhido do que de ler e investigar cinco
mil problemas.

Peter Gast
está em Veneza e Veneza, como se poderia prever, acaba ganhando a partida
contra Leipzig e Nice. Nietzsche vive umas semanas ocioso e quase feliz na
cidade das "cem profundas solidões". Não escreve coisa alguma. Peter
Gast nos informa que os seus dias decorrem em ócio.   Não municiou às
bibliotecas de Leipzig para se fechar num quarto de Veneza. Passeia, freqüenta
as míseras trattorie, nas quais come ao meio-dia o mais humilde e
cortês dos povos. Nas horas de mais intensa claridade, vai repousar seus olhos
nas sombras da Basílica, e quando começa a declinar o dia, reinicia seus
eternos passeios. Então pode, sem sofrimento, contemplar San Marco e o revoar
de suas pombas, a lagoa, com suas ilhas e seus templos. No entanto, não pára de
pensar em sua obra. Imagina-a lógica e livre, simples no plano, numerosa em
detalhes, luminosa num certo mistério, e com certa sombra em cada linha.
Desejaria, enfim, que fosse semelhante a esta cidade dileta, a esta Veneza
cuja vontade soberana se alia a todos os jogos da fantasia e da graça.

Leiamos
esta página de notas, escrita em novembro de 1887, e compreenderemos o quanto é
sensível nela a Uombra di Venezia:

O Livro
perfeito; ter em conta:

1  —A
forma. O estilo.
Um monólogo ideal. Tudo o que tiver uma aparência
douta, absorvido nas profundezas. Todos os acentos da paixão profunda, da
inquietação e também da debilidade. Cores suaves, manchas de sol
a
felicidade curta, a sublime serenidade.
Ir além das demonstrações. Ser
absolutamente pessoal sem empregar a primeira pessoa. ■. Uma espécie de
memórias; dizer as coisas mais abstratas da maneira mais concreta e mais
cruel. A história inteira como se tivesse sido
vivida e sofrida
pessoalmente… Até onde seja possível, coisas visíveis, precisas e
exemplos… Nenhuma descrição; todos os problemas transpostos ao sentimento,
até à paixão.

2  — Termos
expressivos. Vantagem dos termos militares. Procurar expressões para substituir
os termos filosóficos

Em 22 de
outubro, acha-se em Nice.

Dois
acontecimentos (sem dúvida, a palavra não é demasiado forte) encheram suas
primeiras semanas de permanência naquela cidade: Perdeu seu mais antigo amigo
e adquiriu um leitor.

O amigo perdido
foi Erwin Rohde. O desentendimento iniciado na primavera anterior, consumou-se
então. Nietzsche escreveu a Rohde, sem que sua intenção inicial fosse
molestá-lo: "Não se afaste de mim tão à toa — dizia-lhe anunciando-lhe a
remessa de seu último livro A Genealogia da Moral. — Na minha idade e
na minha solidão, não posso me resignar sem pena a perder os poucos homens em quem confiava antigamente…" Não
pôde, porém, limitar-se a essas palavras. Recebera de Hipólito Taine uma
segunda carta muito amável (*), e Erwin Rohde, em sua carta de maio, tratara
Taine com pouco respeito. Nietzsche quis defender seu correspondente francês, e
acrescentou:

N. B. Suplico-lhe que julgue mais razoavelmente  ao
sr. Taine. As grosserias que você diz e pensa dele, mortificam-me. Posso
perdoar ao príncipe Napoleão, mas não ao amigo Rohde. É-me difícil crer que
quem não compreenda esta raça de espírito severo e de grande coração, possa
compreender qualquer coisa de minha obra. Por outro lado, você jamais me
escreveu uma palavra que me permitisse pensar. Você percebe o destino que pesa
sobre mim… Tenho quarenta e três anos vividos, e me encontro tão só como se
fosse uma criança.

Todas as relações
ficaram interrompidas.

O novo leitor que
adquiriu foi Jorge Brandes, que acusou o recebimento da Genealogia com
uma carta maravilhosamente inteligente e viva:

Respiro em seus
livros um espírito novo e original. Nem sempre compreendo perfeitamente o que
leio, nem sempre percebo até onde o senhor quer chegar, mas muitos pontos se acham
de acordo com as minhas idéias e minhas simpatias. Como o senhor, aprecio pouco
o ideal ascético; a mediocridade democrática me inspira, como ao senhor, uma
repugnância profunda; aprecio o seu radicalismo aristocrático. O desprezo que
o senhor sente pela moral da piedade é algo que não consigo ver muito
claramente… Nada sei sobre o senhor. Vejo, com assombro, que é professor,
doutor. Em todo o caso,  felicito-o de todo o coração por ser,
intelectualmente, tão pouco professor
O senhor pertence ao pequeno número de homens com quem eu gostaria de
falar.

Ao que parece,
Nietzsche devia ter sentido vivamente o consolo, o conforto que representava o
haver encontrado, afinal, dois testemunhos do seu trabalho, de tão rara
qualidade como Taine e Brandes. Não se inteirava, também, naqueles dias, de que
Brahms lia com grande prazer Além do Bem e do Mal?   Mas a amargura
tomara-lhe a alma, e a faculdade de

 

(*) Fico muito
satisfeito — escrevera Taine — em saber que os meus artigos sobre Napoleão lhe
hajam parecido verdadeiros, e nada pode mais exatamente resumir a minha impressão
do que as duas palavras alemãs de que o senhor se serviu: Unmensch und
Ubermensch,
(Carta de 12 de julho de 1887.) (N. do A.)

 

sentir as impressões
propícias, parecia ter-se extinguido  nele. Perdera  essa   alegria 
interior,   essa   serenidade   que   resiste     a toda a prova, de que outras
vezes se sentira tão orgulhoso e suas cartas não revelam senão tristeza.

É um desastre do qual
só sobrevive a atividade do espírito, que se exercita com singular energia. Mal
podemos enumerar os motivos que o preocupam.

Peter Gast transcreve
para orquestra o seu Hino á Vida. Nietzsche vigia este trabalho, e às
vezes corrige. Sobretudo, porém, admira ingenuamente esta nova forma de sua
obra. Aparece, então, o Diário dos Goncourt. Ele lê esta interessantíssima
novidade" e senta-se, em pensamento, àquela mesa de Magny que congrega
Flaubert, Sainte-Beuve, Gautier, Taine, Gavarni e Renan. Todas essas distrações
não impedem que comece resolutamente a sua grande obra, a obra decisiva, em que
a sua sabedoria e não a sua cólera há de falar. A obra serena, na qual a
polemica não encontrará lugar. Em poucas linhas define o seu desígnio:

Ter percorrida toda
a extensão da alma moderna, ter comido em um cada um de seus recantos: meu orgulho,
minha tortura, minha alegria.

Superar
efetivamente o pessimismo, e, afinal, um olhar goethiano, cheio de amor e de
boa vontade.

Nesta nota, Nietzsche
aponta Goethe como inspirador do seu último trabalho. Para dizer a verdade,
nenhuma natureza é mais dissemelhante à sua, mas esta mesma diferença é que
determina a escolha. Goethe não humilhou nenhuma forma da atividade humana, nem
excluiu a menor idéia de seu mundo intelectual; recebeu e administrou, como um
dono benévolo, a imensa herdade das culturas humanas. Tal 6 o último ideal, o
último sonho de Nietzsche. Deseja, no tini de sua vida (pois que ele conhece
seu destino) derramar, como um sol descambante, as mais doces claridades;
interpenetrar tudo, justificar tudo, esclarecer tudo, sem que subsisti) uma
sombra à superfície das coisas, nem uma tristeza no interior das almas.

Determina, sem
dificuldade, as idéias diretrizes dos dois primeiros volumes: O Niilismo
Europeu
e a Crítica dos Valores Superiores. Desde quatro anos não
escrevera unia única linha que não pertencesse a esta análise ou a esta
critica, Escreve rapidamente, e se irrita. "Um pouco de ar puro! —
exclama. — Este absurdo estado em que se acha a Europa, não pode durar muito
tempo…" Não é mais que uni grito logo reprimido. Nietzsche expulsa a
impaciência como uma fraqueza. Com um canto de amor é que ele tem que responder
aos ataques da vida. Quer voltar, e volta, realmente, a pensamentos mais
serenos; e pergunta: Será certo ser absurdo o estado da Europa? Talvez exista
uma razão para esses fatos,  uma  razão  que  não  percebemos.    Talvez  
convenha   reconhecer nessa atonia da vontade, nesse relaxamento democrático,
uma certa utilidade e um certo valor conservador. Parecem irreprimíveis e
talvez sejam necessários. Embora sejam hoje deploráveis para nós, talvez acabem
por ser benéficos:

Reflexão — É
insensato imaginar que toda esta vitória dos valores possa ser
antibiológica. É preciso procurar explicá-la por um interesse vital para a superveniência
do tipo "homem", embora este deva ser alcançado pela preponderância
dos fracos e deserdados. Talvez que, se as coisas fossem de outro modo, o homem
já não existisse.
Problema.

A elevação do tipo
é perigosa para a conservação da espécie.    Por que?

As raças fortes são
raças
pródigas… Encontramo–nos
aqui diante de um problema de
economia.

Reprimindo toda a
repugnância, vedando-se toda a maldição, Nietzsche quer e consegue considerar
com serenidade, estas tendências à reprovação. Reflete: Deveremos negar às
massas o direito de procurar suas verdades e suas crenças vitais? E, privados
das massas, que seriam os senhores? Esses precisam que aquelas sejam felizes.
Sejamos pacientes, suportemos que nossos escravos, rebeldes e por alguns
momentos nossos amos, inventem as ilusões que lhes sejam favoráveis. Que
acreditem na dignidade do trabalho! Se com isso se tornarem mais dóceis  ao
trabalho,  sua  crença é  saudável.

O problema escreve Nietzsche está em fazer o homem
o mais utilizável possível, e aproximá-lo, até onde seja possível, à máquina
que nunca se engana: para isso é preciso armá-lo com as virtudes da máquina, e
ensiná-lo a suportar o aborrecimento, a dar ao aborrecimento um encanto
superior…, É preciso que os sentimentos
agradáveis sejam relegados a
uma categoria inferior… A forma maquinai da existência, considerada como a
mais nobre e elevada, deve se adorar a si própria.

Uma cultura elevada
não se pode edificar senão num vasto terreno, sobre uma sadia mediocridade
fortemente consolidada.

Por muito tempo
ainda, o fim único deve consistir na
diminuição do homem, pois é preciso, antes de tudo, criar uma grande base sobre a qual
se possa elevar a raça dos homens fortes…

O apequenamento do
homem europeu é um processo ao qual não se deveriam opor entraves; antes, pelo
contrário, conviria acelerá-lo ainda mais. É a força ativa que permite esperar
o advento de uma raça mais forte, de  uma raça  que possua até  ao  excesso 
essas  mesmas

qualidades que
faltam à espécie desvalorizada (vontade, responsabilidade, certeza, faculdade
de se fixar um objetivo).

Pelo fim de 1887,
Nietzsche conseguira terminar o primeiro esquema do trabalho de síntese que se
propusera. Concede, neste esquema, uma certa dignidade e um certo direito
àqueles motivos que em outro tempo difamara. Os projetos finais de Zaratustra já nos haviam dado indicações semelhantes: "Os discípulos de Zaratustra
dão aos humildes e não a si mesmos, a expectativa da felicidade… Distribuem
as religiões e os sistemas segundo a hierarquia…." Com intenção
semelhante, ele escreve agora: As tendências humanitárias não são antivitais,
pois convém às massas que vivem com lentidão, e convindo a elas, convém à
humanidade, que precisa da satisfação das massas. As tendências cristãs são
igualmente benfazejas, e nada é tão desejável como a sua permanência, pois
convém a todos os que sofrem, a todos os fracos, e é necessário para a saúde
das sociedades humanas que o sofrimento e as debilidades inevitáveis sejam
recebidas sem rebelião, submissamente e, se possível, amorosamente. "Diga
o que disser do cristianismo — escrevia a Peter Gast em 1881 — não posso
esquecer-me de que lhe devo as melhores experiências da minha vida espiritual,
e espero não ser jamais ingrato  com ele, no fundo do  coração…"

Este pensamento e esta
esperança nunca o abandonaram, e ele fica satisfeito por haver encontrado,
afinal, uma palavra de justiça para o culto de sua infância — o único que se
oferece às almas.

Em 14 de dezembro de
1887, Nietzsche dirige a um antigo correspondente dos dias de Basiléia, Carl
Fuchs, uma carta de  acento  altaneiro:

Vai ser preciso
apagar quase tudo o que escrevi. Durante estes últimos anos a veemência das
minhas agitações interiores tem sido terrível. Hoje, no momento em que devo
ainda mais me elevar, o meu primeiro trabalho é o de me modificar novamente,
despersonalizar–me  para formas  mais   elevadas.

Sou velho? Não sei.
Não sei, também, que juventude me  seria ainda necessária.

Na Alemanha se
queixam muito das minhas
excentricidades. Más, como ignoram onde está colocado o meu centro, é difícil que possam
discernir onde e quando  sou excêntrico.

Pelas datas de suas
notas, parece que Nietzsche abordava um problema diferente no mês de janeiro de
1888. Aquelas humildes multidões, cujos direitos admite e mede, não mereceriam
viver se suas atividades não estivessem, em última instância,  regidas por um 
grupo  selecionado,  e  não  fosse utilizada para fins gloriosos. Quais serão
as virtudes desse grupo e que fins servirá? Deste modo, Nietzsche volta a
encontrar-se com o problema que o atormenta. Definirá, afinal, essa grandeza
desconhecida, talvez inexeqüível, à qual há tanto tempo aspira sua alma? De
novo é dominado pela tristeza; uma vez mais se queixa de sua irritabilidade e
de sua desconfiança, a tal ponto extremada que cada dia, à hora do correio,
vacila e estremece antes de abrir  suas cartas.

Jamais a vida me
pareceu tão difícil… — escreve a Peter Gast em
15 de janeiro. Já não sei me acomodar a
nenhuma espécie de realidade. Quando não consigo esquecê-las, despedaçam-me…
Há noites em que não me agüento mais, de angústia. E tenho ainda tanto por
fazer!
tudo posso dizer. É forçoso, pois, que me mantenha de
pé. E para isso faço todos os esforços, pelo menos pela manhã. Nestes dias a
música tem–me dado sensações que eu não sentira nunca. Alivia-me,
desembriaga-me de mim mesmo. É como se eu me visse a mim próprio desde uma
grande altura, como se me
sentisse de uma grande altura. Assim, torna-me
mais forte, e, normalmente, depois de cada serão musical (ouvi a
Carmen quatro
vezes), tenho uma manhã cheia de descobertas e de idéias enérgicas. É uma
coisa admirável. É como se eu me tivesse banhado em um elemento
mais
natural. A vida sem música é simplesmente erro, cansaço, exílio.

Procuremos segui-lo em
seu trabalho. No momento, limita-se a uma investigação histórica e se esforça
por descobrir a classe social, a raça ou o partido que autorizem a esperança
de uma humanidade mais nobre. Aqui está o europeu  moderno:

Como poderá sair
dele uma raça de homens fortes? Uma raça de gostos clássicos? O gosto clássico
é a vontade da simplificação, da acentuação… a nudez psicológica. .. Para
se elevar daquele caos a esta organização, é preciso ver-se obrigado por uma
necessidade. É preciso não poder escolher: desaparecer,
ou
impor-se. Uma raça dominadora não pode ter senão origens terríveis e
violentas. Problemas: onde estão os
bárbaros do século XX? É evidente
que não poderão aparecer e impor-se senão depois de terríveis crises
socialistas. E estes serão os elementos capazes da maior rudeza com relação a
si mesmos, e capazes de garantir a
vontade mais persistente.

Será possível
discernir na Europa moderna estes elementos  predestinados  à  vitória?    Nietzsche 
esforça-se  para   isso, e anota nos seus cadernos os resultados da
investigação:

 

Os entraves mais
favoráveis e os remédios contra o modernismo.

E, principalmente:

l.o O serviço militar obrigatório,
com guerras verdadeiras,  que façam cessar toda a espécie de gracejos;

2.o A estreiteza nacional, que simplifica e concentra. Essa
indicação é corroborada por estas outras:

A manutenção do estado militar é o último meio que nos deixaram,
tanto para conservar as grandes tradições como para a implantação do tipo
superior do homem
o tipo forte. E todas as circunstâncias que
perpetuam a inimizade e o afastamento entre os Estados se encontram, assim,
justificadas…

Que imprevista
conclusão para as polêmicas nietzschianas. Nietzsche, que havia
desonrado o nacionalismo, neste grave momento procura um apoio — e encontra o
nacionalismo ! Descoberta ainda mais imprevista: continuando suas
investigações, Nietzsche prevê, define e aprova a constituição de um partido
que não pode ser senão uma forma ou reforma da democracia positivista. Discerne
as linhas gerais de duas agrupações vigorosas e sãs, suficientes para
disciplinar os homens:

Um  partido  
da  paz,  nada  sentimental,   que   proíbe

a guerra a si mesmo
e aos seus membros; que os proíbe, também, de recorrer aos tribunais; que
provoca contra si a luta, a contradição, e a perseguição; um partido dos
oprimidos, pelo menos por algum tempo; e logo o grande partido oposto aos
sentimentos de rancor e de vingança.

Um partido da guerra, que, com a mesma lógica e a mesma severidade contra si mesmo,
procede em sentido oposto.

Deveremos reconhecer
nestes dois partidos as forças organizadas que trarão essa era trágica da
Europa
que Nietzsche anuncia? Talvez, mas tenhamos cuidado em hão exagerar
a importância destas notas, que não passam de rápidos apontamentos; como
surgiram e passaram pelo espírito de Nietzsche, devem surgir e passar diante
de nós. Sua vista penetra em todos os sentidos, mas não se detém em nenhum.
Nenhum puritanismo trabalhador pode satisfazê-lo, pois sabe que o esplendor das
culturas humanas se acha ligado aos privilégios das aristocracias. Nenhum
nacionalismo pode satisfazê-lo, amando, como ama, a Europa e suas inumeráveis
tradições.

Que recurso lhe resta?
Limitou-se a procurar, em sua própria época, os pontos de apoio de uma cultura
mais elevada; por alguns momentos, acreditou tê-los encontrado.    Mas enganara-se,
e, em vista disso, afastou-se desses pontos que impõem direções estreitas que
seu espírito não tolera. Em 1875 — e a antigüidade do texto prova a permanência
do conflito — escrevera: "Na vida do pensador há isto de extraordinário:
duas inclinações contrárias obrigam-no a seguir, ao mesmo tempo, duas direções
diferentes, mantendo-as sob seu jugo; por uma parte, ele quer saber, e,
abandonando sem se cansar o terreno firme que sustem a vida dos homens, aventura-se
nas regiões incertas; por outra parte, quer viver, e, sem se cansar nunca,
procura um lugar onde firmar-se…

Nietzsche tinha
abandonado Wagner, e errado pelas regiões incertas. Agora, procura um último
refúgio seguro, e que encontra? O estreito reduto nacionalista. Mas Nietzsche
se afasta dele, pois se bem possa ser um grosseiro recurso, um artifício útil
para manter certa solidez nas massas, certo princípio de gosto e severidade,
não pode, nem deve ser a doutrina da elite européia, elite disseminada,
inexistente, sem dúvida, à qual se dirigem seus pensamentos.

Deixa, assim, de
pensar no nacionalismo, que é o expediente de um século pobre, e sem se
limitar, já, à investigação das crenças benfeitoras para os humildes — que lhe
importam estes? — pensa em Napoleão e em Goethe, ambos superiores ao seu
tempo e aos preconceitos de seus respectivos países. Napoleão desdenha a
revolução, mas capta a sua energia; despreza a França, mas dirige-a; sua
ambição é a conquista e a reforma da Europa. Goethe não tem grande estima pela
Alemanha, e pouco se interessa pelas suas lutas: quer possuir e reanimar todas
as idéias e todos os sonhos dos homens, e conservar e enriquecer a vasta
herança dos valores morais que a Europa criou. Napoleão conhecia a grandeza de
Goethe, e Goethe observava com alegria a vida do conquistador, ens
realissimum.
O soldado e o poeta — um, mantendo os homens na submissão, no
esforço e no silêncio; o outro, assistindo, contemplando e glorificando —
formam o par ideal que vemos reaparecer em todos os instantes decisivos da vida
de Nietzsche. Este admirou a Grécia de Theogonis e de Píndaro, a Alemanha de
Bismarck e de Wagner; um grande rodeio condu-lo novamente ao seu ideal, a essa
Europa irrealizada, da força e da beleza, da qual Napoleão e Goethe foram, no
dia seguinte ao da Revolução,  os solitários representantes.

Por uma carta dirigida
a Peter Gast em 13 de fevereiro de 1887, sabemos que Nietzsche se achava, nesta
data, pouco satisfeito com o seu trabalho. "Não saí das tentativas, das
introduções e das promessas de toda a espécie…" — escrevia ele; e
ajuntava: "O primeiro rascunho do meu Ensaio de uma Reavaliação de
Valores
está pronto. Afinal de contas, foi uma tortura, e nem sequer tenho
coragem de pensar nele.

Dentro de dez anos
farei algo melhor." Qual é a causa desta insatisfação? Ter-se-á cansado
dessa tolerância, dessa condescendência para com as necessidades dos fracos e
das massas, que se impusera três meses antes? Sentir-se-á impaciente por
desabafar sua cólera?

As cartas que dirige
então a sua mãe e sua irmã (nem todas foram publicadas), permitem-nos chegar
até ele de modo muito íntimo. Escreve a essas duas mulheres de que se encontra
separado, com uma ternura que torna difícil a simulação e até a coragem.
Abandona-se como se encontrasse prazer em voltar a ser uma criança para elas. É
doce e obediente para sua mãe, e assina sua carta: "teu vetusto
filho". Fala a sua irmã como um camarada, e como se tivesse esquecido
completamente todas as faltas de que antes a acusara. Sabe que ela jamais
regressará do longínquo Paraguai, sente a sua falta e quer-lhe mais do que
nunca, por saber que a perdeu. Lisbeth é enérgica e arrisca valentemente sua
vida. Nietzsche admira nela essas virtudes que estima acima de todas e que são,
a seu ver, as virtudes de sua raça, a nobre raça dos condes Nietzki. "Em
tudo o que dizes e fazes — escreve-lhe — sinto intensamente que um mesmo sangue
corre por nossas veias…" Ouve-a amàvelmente, mas ela não deixa de lhe
dar conselhos talvez demasiado judiciosos. Já que se queixa de solidão, que
procure uma cátedra, que se case. Para Nietzsche, a resposta é fácil: Onde
encontrar uma esposa? E, se por acaso encontrasse alguma teria direito de lhe pedir
que compartilhasse sua vida? E, não obstante, ele sabe a doçura que uma mulher
traria à sua vida, e o diz.   Ouçamo-lo:

Nice, 25 de janeiro de 1888.

É preciso que eu te
conte uma pequena aventura: Ontem, quando fazia o meu costumeiro passeio, ouvi,
não longe de mim, uma voz e um riso cálido e franco (parecia-me estar ouvindo
o teu riso), e, quando a pessoa em questão passou junto a mim, vi uma
encantadora moça de olhos escuros, delicada como uma corça. Isto reanimou por
um momento o meu coração, meu velho coração de filósofo solitário: pensei nos
seus, conselhos matrimoniais, e, durante todo o passeio, não pude mais afastar
de mim a imagem daquela jovem e amável criatura. Não há dúvida de que me seria
muito proveitoso ter ao meu lado um ser tão delicioso; mas, para ela, seria
igualmente proveitoso? Não faria esta moça desgraçada com as minhas idéias? E
meu coração não se despedaçaria (supondo que a amasse), ao ver sofrer uma
criatura tão encantadora?   Não, não! nada de casamento!

Não será por esse tempo
que lhe açode ao espírito uma idéia singular e maléfica? A cada instante se
representa in, mente as alegrias de que se acha privado: glória, amor,
amizade;

pensa com rancor
naqueles que as possuem, e, sobretudo, em Richard Wagner, cujo gênio se vira sempre tão bem recompensado. Que formosa era, quando
Nietzsche a conhecera em Triebschen, aquela incomparável mulher, Cosima Liszt,
que, embora casada, desafiando a maledicência do povo, viera viver com Richard
Wagner, compartilhando suas lutas e ajudando-o no trabalho! Atenta e lúcida,
ativa e eficaz, assegurava-lhe o repouso que até então lhe faltara. Que teria
sido dele sem ela? Teria conseguido dominar seu ânimo agitado, impaciente e
inquieto? Teria sido capaz de realizar aquelas grandes obras que sempre
anunciava? Cosima apazigua-o e o dirige; graças a ela, termina a tetralogia,
edifica Bayreuth, escreve Parsifal… Nietzsche recorda aqueles
admiráveis dias de Triebschen, quando Cosima o acolhia, ouvia suas idéias e
seus projetos, lia seus manuscritos e se mostrava benévola e atenta. Nietzsche
exalta-se. O sofrimento e a irritação deformam suas recordações. Interroga-se:
não teria amado Cosima? E ela mesma, não o teria amado? Nietzsche gostaria de
acreditar nisso e, efetivamente, acaba acreditando. Sim, houve amor entre eles,
e Cosima tê-lo-ia salvo como salvara Wagner, se, por um favorável acaso, o
tivesse conhecido alguns anos antes. Mas o acaso sempre fora adverso a Nietzsche,
e também nesta ocasião Wagner o despojara, ficando com tudo:   glória, amor e
amizades.

Nas últimas obras de
Frederico Nietzsche se adivinha este estranho romance. Um mito grego ajuda-o a
expressar e velar o pensamento: o mito de Ariadne, Teseu e Baco. Teseu se
extraviara; Ariadne, encontrando-o, conduzira-o até ao fundo do labirinto;
mas" Teseu é pérfido, e abandona sobre uma rocha a mulher que o
salvara; e Ariadne morreria, só e desesperada, se Baco não tivesse
acudido, Baco-Dionísio, que a ama. O enigma dos três homens ,é bastante
transparente: Ariadne é Cosima; Teseu, Wagner e Baco-Dionísio,   Nietzsche.

Em 31 de março escreve
novamente, e a sua linguagem é a de um homem perdido:

Estou perdido,
oprimido noite e dia de maneira insuportável, pelo dever que me foi imposto
(mir gestellt ist), e pelas condições de minha vida,
absolutamente contrárias ao cumprimento deste dever. É nisto, sem dúvida, que
reside a causa da minha angústia.

… Minha saúde,
graças a um inverno extraordinariamente benigno, a uma boa alimentação e aos
passeios que dou, continua muito boa. Só a pobre alma está doente. Por outro
lado, não ocultarei que este inverno foi muito rico em aquisições espirituais
para a minha grande obra; assim, não é õ espírito que está enfermo, nem
nenhuma outra coisa, com exceção da pobre alma…

No dia seguinte, Nietzsche
abandona Nice. Antes de subir a Engadina, quer fazer uma tentativa em Turim,
cujo  ar seco e espaçosas ruas lhe haviam elogiado. Viaja com dificuldade,
perde suas maletas, irrita-se, discute com os empregados e permanece dois dias
doente em Sampierdarena, perto de Gênova. Imediatamente depois, passa três dias
em Gênova descansando, com o espírito ocupado pelos recursos felizes que ali
encontra. "Dou graças ao meu destino — escreve a Gast — por me haver
conduzido a esta cidade onde a vontade se eleva, e a covardia não é
possível. Jamais me senti  tão  satisfeito  como  nesta  peregrinação  a 
Gênova…"

No sábado, 6 de abril,
chega a Turim, morto de cansaço. "Já não sou capaz de viajar só — escreve
a Gast, na mesma carta. — Agito-me demais e tudo me afeta estupidamente…"

 

III. EM   DIREÇÃO   AS   TREVAS

 

Suspendamos nosso
relato e previnamos o leitor: o pensamento de Nietzsche, cuja história temos
seguido até aqui, já não tem história. Uma influência, que não vem do espírito,
mas do corpo, altera-o. Dizem alguns que Nietzsche já estava louco de há
muito, o que é aceitável, dada a impossibilidade de precisar o diagnóstico.
Mas, pelo menos, a vontade e a reflexão não tinham desaparecido nele. Ainda
sabia se conter e corrigir-se. Na primavera de 1888 perde estas faculdades;
sua inteligência não se obscurecera ainda e não escreve uma só palavra que não
seja penetrante e clara. Sua lucidez é extrema, mas desastrosa: só se exercita
para destruir. Quando se estudam os últimos meses desta vida, é como se se
assistisse ao trabalho de uma máquina de guerra que a mão humana já não
governa.

Frederico Nietzsche
abandona aquelas investigações morais que sustiveram, enriqueceram e elevaram
a sua obra até então. Recordemos a carta dirigida a Peter Gast em fevereiro de
1888: "Encontro-me num estado de irritabilidade crônica, sobre o qual me
concedo, nos melhores momentos, uma espécie de trégua, que não é, seguramente,
das mais gratas, adotando, como adota, a forma de um excesso de
rudeza…" Estas palavras esclarecem os três próximos livros: O Caso
Wagner,   O   Crepúsculo   dos  ídolos  
e   O   Anticristo.

Apressemos a história
destes meses em que Nietzsche deixa inteiramente de ser ele próprio.

Em 7 de abril
chegou-lhe a Turim uma carta imprevista: Jorge Brandes comunicava-lhe a
intenção de consagrar a sua filosofia uma série de conferências:
"Irrita-me o falo de ninguém  o  conhecer  aqui,  e quero  fazê-lo 
conhecido  de   um   só golpe. "Eis aqui, em verdade, meu caro senhor, uma
surpresa! — responde Nietzsche. — Como encontrou coragem para falar em público
de um vir obscurissimus? Imaginará o senhor, talvez, que eu seja
conhecido no meu país? Muito longe disso! Tratam-me, nele, como algo singular e
absurdo que não é preciso levar a sério… A longa resistência exasperou
um pouco o meu orgulho — acrescenta para terminar. — Sou um filósofo?    Que
importa!"

A carta de Brandes
deveria ter sido para ele uma grande alegria e, se estivesse em estado
favorável, talvez fosse a sua salvação. Pelo menos, é quase seguro que deve
ter-lhe dado certa satisfação; embora, para dizer a verdade, apenas se encontrem
rastos dela. É tarde, e Nietzsche já entrou no caminho a que o arrasta o seu
destino. Durante esses dias de fadiga e tensão, fez uma das mais importantes leituras
de sua vida — a última. Desejando conhecer o modelo dessas sociedades
hierarquizadas cuja renovação esperara, consegue uma tradução dás leis de Manu.
Lê e sua esperança não se vê traída. Este código, que estabelece os costumes e
a ordem de quatro castas; esta linguagem, tão bela, tão simples e tão humana na
sua severidade; esta constante nobreza e, por fim, esta impressão de segurança
e de doçura que se desprendem do conjunto do livro — entusiasmaram-no. Leiam-se
certos mandamentos  de  suas primeiras páginas:

Quando nasce um
menino varão, antes de se cortar o cordão umbilical, prescreve-se a seguinte
cerimônia: dé-se-lhe mel e manteiga clarificada em uma colher de ouro,
recitando as palavras sagradas.

Que seu pai faça
cumprir a cerimônia de lhe dar um nome no décimo ou undécimo dia, ou em um dia
lunar propicio, em um momento favorável, sob a influência de um astro
venturoso.

Que o nome de um
brâmane exprima, com o primeiro dos seus nomes, o favor propício; o de um
kchatrya, o poder; o de um vaisya, a
riqueza; o de um
sudra, a abjeção.

Que o nome de uma
mulher seja fácil de se pronunciar, doce, claro, agradável, e propício; que
termine em vogais longas e seja semelhante a palavras de bênção…

Nietzsche admira e
copia não poucos trechos. No velho texto hindu reconhece esse olhar goethiano,
cheio de amor e de boa vontade;
e nele ouve esse Canto d’amore que
ele mesmo havia  querido cantar.

Mas, ao mesmo tempo em
que admira, julga.    Esta ordem hindu tem por fundamento uma mitologia que
jamais conseguiria enganar os sacerdotes que a interpretam.    "Estes
sábios . escreve ele —não acreditam  em  nada  disso;  de  outro  modo não o
poderiam inventar…"    As leis  de Manu são mentiras hábeis e formosas.
Coisa indispensável: posto que a natureza é um caos, uma irrisão de todo o
pensamento e( de toda a ordem, aquele que aspirar à fundação de uma ordem
deverá afastar-se dela e conceber um mundo ilusório. Estes mestres
construtores, os legisladores hindus, são também mestres na arte de mentir, e,
se Frederico Nietzsche não se pusesse em guarda, seu gênio o teria arrastado
pelo caminho da mentira.

Eis aqui o instante de
uma crise da qual só conhecemos a origem e o fim. Nietzsche está só em Turim;
ninguém assiste ao seu trabalho e ele a ninguém se confia. Que pensa? Estuda,
sem dúvida, e medita sem cessar neste velho livro ário que lhe oferece o modelo
de suas idéias. Más, se o código de Manu é o mais belo monumento de perfeição
estética e social, é também o mais belo monumento de picardia intelectual, e
nada há que Nietzsche possa amar mais e detestar mais. Reflete, se assombra, e
suspende o trabalho. Quatro anos antes, uma dificuldade semelhante impedira-o
de terminar o Zaratustra. Nem uma palavra já, do Super-homem e do Retorno Eterno. As fórmulas ingênuas foram abandonadas; más as
tendências que elas encobriam: uma — lírica, ávida de instruções e de ordem,
por ilusória que fosse; a outra — Crítica, ávida de destruição e de lucidez —
são invariáveis e se exercitam aqui. Nietzsche vacila: afinal, que fará? Dará
ouvidos àqueles brâmanes, àqueles sacerdotes, astutos condutores de homens?
Não. A lealdade é uma virtude a respeito da qual não admite transações. Mais
tarde, muito mais tarde, talvez dentro de alguns séculos, os homens, mais
conscientes do sentido de suas vidas, da origem e do valor dos seus instintos,
do mecanismo das hereditariedade — possam tentar novas legislações.
Hoje não o podem, pois só conseguiriam acrescentar mentiras e hipocrisias às
velhas mentiras e às velhas hipocrisias que já lhes servem de empecilho.
Nietzsche se afasta das idéias que desde seis meses seguia com tanta energia,
e torna a se encontrar subitamente, como quando tinha trinta anos, indiferente
a tudo o que não seja o serviço da verdade.

"Tudo o que é
suspeito e falso deve ser trazido à luz
— escrevia então. — Não queremos construir prematuramente, não
sabemos se podemos construir e se não é preferível não construir nada. Há
pessimistas covardes e resignados; não queremos ser destes."

Quando assim falava,
Nietzsche possuía a força suficiente para contemplar com calma um trabalho
atenuado pela esperança. Essa força de sua juventude e essa serenidade dos
dias de antigamente, perderam-se em 15 anos, e toda esperança o abandonou. Sua
alma enferma não resiste à irritabilidade. Um acontecimento esclarece e
finalmente, põe ponto final às nossas conjeturas: Nietzsche renuncia a compor
:i sua grande obra e dedica-se ao trabalho de escrever um libelo.

A época da serenidade
passou. Ferido de morte, Nietzsche quer devolver golpe por golpe. Volta-se
contra Richard Wagner, o falso apóstolo "do Parsifal, o ilusionista
que seduzira sua época. Antigamente, Nietzsche serviu-o. Agora, é preciso que
o combata e o vença. A paixão é o dever impelem–no á isso. "Eu criei o
wagnerianismo — pensa — eu o devo destruir." Quer libertar, mediante um
ataque violento, os seus contemporâneos, que, menos fortes que ele, continuam
submetidos ao prestigio daquela arte. Necessita humilhar aquele homem ao qual
tanto quisera, e ao qual quer ainda; necessita difamar o mestre que tão
benéfico lhe fora nos anos de juventude; necessita, enfim, (estaremos
enganados?) vingar-se de uma felicidade perdida. Insulta Wagner: é um decadente,
um farsante, um Cagliostro moderno. Esta indelicadeza — fato inaudito na vida
de Nietzsche — bastaria para provar a sua enfermidade latente.

Não sente o menor
escrúpulo. Uma alegre excitação favorece e abrevia o seu trabalho. Os
alienistas conhecem estes estados singulares que precedem as últimas crises da
paralisia geral- Frederico Nietzsche parece abandonar-se a uma superabundante
alegria. Atribui esse bem-estar ao clima de Turim, que experimenta pela
primeira vez.

Turim, meu querido
amigo — escreve a Peter Gast
— , é
uma descoberta capital. Falo-lhe disso pensando que também você poderá
aproveitar, Meu humor é bom, trabalho desde a manhã até à noite
um
folheto sobre a música ocupa os meus dedos
digiro como um semi-deus;
durmo, apesar do barulho noturno dos carros: outros tantos sintomas da
adaptação de Nietzsche a Turim.

Achando-se na Engadina
em julho, algumas semanas úmidas e frias fazem-lhe mal. Perde o sono. A
exaltação alegre desaparece, ou se transforma em humor amargo e febril. A
senhorita de Salis-Marschlins que contou suas recordações num interessante folheto,
viu-o então, depois de uma separação de dez meses, e notou a mudança.
Observando-o com atenção, viu que ele passeava sempre sozinho, e com estranha
precipitação. Cumprimentava, também, muito depressa, detendo-se apenas um
instante, ou, mais geralmente ainda, passando de largo, a grandes passos, como
que espicaçado pela pressa de voltar à hospedaria para anotar as idéias que
durante o caminho lhe tinham acudido ao espírito. Nietzsche fez algumas
visitas à senhorita de Salis-Marschlins, e não lhe escondeu suas preocupações.
Receava as aperturas pecuniárias, pois o capital que havia constituído sua
pequena fortuna estava quase esgotado; e poderia, com os três mil francos de
pensão que lhe concedia a Universidade de Basiléia, atender às necessidades da
sua vida e à publicação, sempre onerosa, de seus  livros?    Em   vão  
diminuía   suas   viagens   e   em   vão   se limitava às acomodações mais
econômicas e à alimentação mais simples:   seus  recursos   chegavam  ao  fim.

Termina o O Caso
Wagner,
acrescenta ao seu texto uma; introdução e um post-scriptum, um
segundo post-scriptum, e um epílogo. Dir-se-ia que sente a necessidade de
aumentar sua obra em cada dia, e cada dia fazê-la mais áspera. Nó instante, não
se acha satisfeito, e sente, depois de haver escrito, certos
remorsos.                                                                                                            

Que este folheto
tão ousado— escreve a Peter Gast, em
11 de agosto de 1888 — lhe tenha agradado, é para mim um considerável
alivio. Há momentos, sobretudo durante a noite, em que não me sinto bastante
corajoso para tantas loucuras e rudezas. Tenho dúvida com respeito a algumas
passagens; talvez tenha ido demasiado longe (não nas coisas, mas no modo de as
exprimir). Talvez se pudesse suprimir a nota em que falo das origens
familiares de  Wagner.
..

Por esta mesma época,
dirige à Senhorita de Meysenbug uma  carta  que dá bastante  que pensar:

Dei aos homens o
livro mais profundo e isto se
paga
caro… Ser imortal custa algumas vezes a vida. E sempre em meu caminho o
cretinismo de Bayreuth! O velho sedutor Wagner, embora morto, continua me
roubando aqueles poucos homens que a minha ação podia influenciar. No entanto,
na
Dinamarca — é absurdo dizê-lo! celebraram-me neste inverno. O
doutor Jorge Brandes, de espírito tão vivo, atreveu-se a falar de mim na Universidade
de Copenhague. E com êxito brilhante! Sempre mais de trezentos ouvintes! Em Nova- York prepara-se algo semelhante. Sou o espírito
mais independente que existe na
Europa, e o
único escritor alemão e isto já é alguma coisa!

E acrescenta, em
post-scriptum: "É preciso ter uma alma grande para suportar o que
escrevo. Assim, tenho a sorte -de irritar contra mim tudo o que é fraco e
virtuoso." A indulgente senhorita de Meysenbug compreendeu que nestas linhas
havia uma censura dirigida a ela, mas respondeu docemente, como era seu
costume: "Diz que tudo o que é fraco 6 virtuoso está contra você? Não seja
tão paradóxico. A virtude não é fraqueza, mas força, como já o dizem exaustivamente
as palavras. E não é você a viva contradição de tudo p que diz? Pois você é
virtuoso, e o exemplo de mui vida,
se os homens a pudessem conhecer, havia de convencê-los melhor que seus livros.
Não tenho a menor dúvida-" Nietzsche respondeu-lhe: "Li com
verdadeira emoção sua encantadora carta, minha querida amiga; sem dúvida, você
tem razão e eu também…"

Que vida precipitada!
Durante o dia caminha, compondo suas frases e aguçando suas idéias; à noite
trabalha, e muitas vezes está ainda escrevendo quando, às primeiras luzes da
madrugada, o dono da hospedaria se levanta e sai sem fazer ruído, para seguir
na montanha, a pista dos cabritos monteses. "Mas não serei eu também, um
caçador de cabritos moriteses?" — pensa Nietzsche sem interromper o seu
trabalho.

O Caso Wagner está terminado. Nietzsche começa um outro libelo, não
contra um homem, mas contra as idéias, contra todas as idéias que os homens
encontram para orientar seus atos. O mundo metafísico não existe, e os
racionalistas sonham; não existe o mundo moral, e os moralistas sonham. Que
resta, pois? "O mundo das aparências, talvez? Não! Com o mundo da
verdade, abolimos o mundo das aparências".
Existe, apenas, a energia
renovada a cada instante: Incipiet Zaratustra. Nietzsche procura um
título para este novo folheto. Sua primeira idéia é chamá-la ócios de um
psicólogo.
Em seguida, imagina: O Crepúsculo dos ídolos, ou a filosofia
do martelo.

Em 7 de setembro manda
o manuscrito ao editor, dizendo–lhe que esse livrinho deverá comover,
escandalizar, pôr em tensão os espíritos e prepará-los para receber sua grande
obra.

Pensa nela
constantemente, e apenas terminado o segundo folheto recomeça o trabalho. Mas
já não se reconhece a obra serena e goethiana que o autor projetara. Ensaia novos
títulos: Nós, os imoralistas, Nós, os hiperbóreos, mas acaba de
decidindo pelo título antigo: Vontade de domínio, ensaio de  uma
reavaliação  de  todos  os  valores.

De 3 a 30 de setembro, em vinte e sete dias, escreve uma primeira parte: O Anticristo, e é o seu
terceiro libelo. Desta vez fala claramente; indica-nos o seu sim e o seu não, sua linha reta, seu fim; exalta a mais brutal energia.
Todos os imperativos morais, tenham sido ditados por Moisés ou por Manu, pelo
povo ou pelas minorias selecionadas — são falsos. A Europa esteve perto da
grandeza, escreve ele, quando, nos primeiros anos do século XVI foi possível
esperar que César Bórgia se apoderasse do papado.

Devemos aceitar como
definitivas estas idéias, por serem as  últimas  expressadas  por  Nietzsche?

Ao mesmo tempo em que
escreve o Anticristo, volta aos seus Poemas Dionisíacos, esboçados em
1884, e terminados. Neles encontramos a expressão segura dos pressentimentos
que então o agitavam:

Descamba o sol.

Logo  não  terás
mais sede,

coração abrasado!

Uma frescura
impregna o ar:

aspiro os sopros de
bocas desconhecidas;

O grande frio
chega…

Ao meio-dia, o sol
fixo e escaldante cai sobre minha cabeça.

Eu vos saúdo, a vós
que chegais,

oh ventos rápidos,

oh frescos
espíritos do entardecer!

O ar circula,
sereno e puro. Não me lançou um olhar oblíquo e sedutor esta noite?

Permanece firme e
animoso, coração! Não me perguntes: por quê?

Anoitecer de minha
vida! Descamba o sol.

Em 21 de setembro, ele
se acha em Turim. Em 22 aparece nas livrarias O Caso Wagner. Aqui está,
afinal, um livro de que os jornais dizem alguma coisa. Mas os seus comentários
exasperam Nietzsche. Salvo um autor suíço, Carl Spitteler — ninguém o
compreendeu. Cada palavra lhe permite medir a ignorância em que o público se
encontra de sua obra. Desde dez anos procura e segue idéias encontradas somente
por ele. Os críticos alemães não o entenderam; sabem, apenas, que um tal
senhor Nietzsche, discípulo de Wagner, escrevera, havia tempo, algumas coisas
em louvor de seu mestre; assim, quando lêem, agora, O Caso Wagner a
única coisa que lhes ocorre dizer é que o senhor Nietzsche acaba de romper com
seu mestre. Isto, no entanto, não o incomoda muito; mas, em troca, chegam-lhe
ao vivo, as censuras de alguns dos poucos amigos que ainda tem. Jacob
Burckhardt não se manifesta, e a senhorita de Meysenbug escreve uma carta
indignada e severa:

Estas são coisas responde-lhe Nietzsche sobre, as quais
não posso admitir contestação. Sou, em questões de
decadência, a
instância mais alta que há sobre a terra; estes homens de hoje, com seu
instinto lamuriento c degenerescente, deviam sentir-se muito satisfeitos por lerem
junto a si alguém capaz de lhes Oferecer um vinho generoso
nos mais
sombrios momentos. Seguramente, O fato de Wagner ter conseguido fazer com
que acreditas sem nele é uma prova de
gênio, mas este é o gênio de mentirae eu tenho a honra de ser o contrário: um gênio da verdade.

Apesar desta agitação,
suas cartas exprimem num felicidade inaudita.    Não há nada que não admire.   
O  outono esplêndido, as ruas, as galerias, os palácios, os cafés de Turim, são
magníficos; as refeições, suculentas; os preços, módicos. Digere bem, dorme
maravilhosamente. Ouve algumas operetas francesas e nada lhe parece tão
perfeito como este gênero ligeiro, "paraíso de todas as delicadezas".
Assiste a um concerto no qual cada obra, seja de Beethoven, Schubert, Rossaro,
Goldmark, Vilbac ou Bizet — lhe parece igualmente sublime. "Não parei de
chorar… — escreve a Peter Gast. — Creio que Turim, tanto do ponto de vista
musical, como de todos os. outros, é a cidade mais sólida que
conheço."

Poder-se-ia esperar
que esta embriaguez evitasse a Nietzsche a consciência do destino que o
aguarda, mas não é assim. Algumas palavras, poucas mas esclarecedoras, indicam
sua clarividência. Sente a aproximação do mal. Sua razão foge-lhe. e ele
percebe a fuga. Em 13 de novembro de 1888, manifesta a Peter Gast o desejo de
o ver ao seu lado, e sua pena pela impossibilidade de ele vir; é essa a sua
queixa constante, cuja mesma constância diminui seu alcance. Nietzsche, que o
sabe, previne o amigo: "Interprete como trágico o que lhe digo." Em
18 de novembro escreve uma carta que parece transbordante de alegria. Fala das operetas
que acaba de ouvir, de Judie e de Milly Meyer: "Para nossos corpos e nossas
almas, querido amigo, a salvação é uma pequena intoxicação parisiense." E
acrescenta, ao terminar: "Peço-lhe que também interprete como trágica esta
carta."

Assim, o estado de
alegria física a que o leva a demência iminente, não impede nem os pensamentos,
nem a angústia. Deseja reunir pela última vez as recordações e as impressões
que a vida lhe deixara, e compõe uma obra estranha, triunfal e desesperada.
Vejamos os títulos dos capítulos. Porque sou tão prudente; Porque sou tão
sábio; Porque escrevi tão bons livros; Porque sou uma fatalidade; Glória e
Eternidade…
Esta última obra tem o titulo: Ecce Homo. Que quer
dizer com isso? Que é um Anticristo, ou um novo Cristo? Ambos ao mesmo tempo.
Como Cristo, crucificou-se Cristo é homem e Deus; venceu as tentações a que se
fizera acessível. Nietzsche é homem e super-homem: conheceu todos os desejos
fracos e todos os pensamentos covardes — e repudiou-os. Ninguém antes dele fora
tão terno e tão rude ao mesmo tempo; nenhuma realidade o atemorizou. Tomou
sobre si não os pecados dos homens, mas todas as suas paixões em toda a sua
força. "Jesus crucificado — escreve — é um anátema contra a vida; Dionísio
despedaçado é uma promessa dê vida, de vida indestrutível, eternamente renascente…"
O solitário cristão tinha seu Deus; Nietzsche vive só e sem Deus. O sábio
antigo tinha seus amigos; Nietzsche vive só e sem amigos. O estóico tinha fé no
sentido do seu esforço; Nietzsche vive no esforço e sem fé. E, no entanto, vive
e consegue cantar naquele cruel momento supremo, seus hinos dionisíacos.   
"Não sou um santo — escreve — mas um sátiro…    Escrevi tantos livros, e
tão belos — como não deveria ser grato à vida?"

Isto não é verdade.
Nietzsche não é um sátiro, mas um santo, um santo ferido que deseja morrer. É
grato à vida, diz, mas isso não é certo; sua alma está cheia de amargura.
Mente, mas a mentira é às vezes, uma vitória — a única que resta ao homem.
Quando Arria, moribunda em conseqüência do ferimento que se infligirá a si própria,
diz ao esposo, passando-lhe a arma: Pete, non dolet…, mentiu, mas esta
mentira foi a sua glória. "Sua santa mentira — escrevia Nietzsche em 1879
— obscurece todas as verdades que os moribundos ,têm proferido." Não
seria esta a ocasião de repetir um juízo semelhante? Frederico Nietzsche não
triunfa: Ecce Homo. Está destruído, mas não o confessa. E poeta e deseja
que o seu grito de agonia seja um canto; um último transporte lírico eleva sua
alma e lhe dá força para mentir:

Dia de minha vida!

Eis  que resvalas
já para a noite!

Já  teu  olho 
brilha

meio cego;

já as gotas de  teu
orvalho

saem espalhadas
como lágrimas;

já se estende,
serena, sobre o mar leitoso,

tua amada púrpura,

tua última e tardia
serenidade

Em torno, tão só as
vagas e seu jogo.

O que antes fora
difícil

naufragou num azul
olvido.-

Inativa, ali vaga a
minha barca.

Tempestades,  
viagens…   quão  esquecidos!

Os  desejos  e  as 
esperanças  submergiram;

a alma e o mar
estão imóveis.

Sétima solidão!

Jamais senti

tão perto de mim a
doce segurança,

nem mais cálidos 
os raios do sol.

E não brilha
ainda a neve do meu cume?

Prateado e rápido,
um peixe

resvala e foge, ao
lado de meu barco

No entanto, sente
chegar até ele a glória tanto tempo desejada. Jorge Brandes, que vai repetir e
imprimir suas conferências, consegue-lhe um novo leitor, o sueco Augusto Strindberg.
Cheio de alegria, Nietzsche dá a notícia a Peter Gast: Strindberg escreveu-me —
diz "- "pela primeira vez recebo uma carta na qual encontro um acento
histórico e mundial (Welthistorik)."    Em São Petersburgo preparam uma tradução do seu Caso Wagner, e em Paris, Hipólito Taine
lhe arranja um correspondente: João Bourdeau, redator de Débats e da Revue
des Deux Mondes.
"Afinal — escreve Nietzsche — o grande canal de Panamá
para a França está aberto…" Seu antigo camarada, Deussen, manda-lhe dois
mil francos, oferta de um desconhecido que deseja ajudar a publicação de suas
obras. A senhorita de Salis-Marschlins oferece, com o mesmo fim, mais mil.
Talvez Nietzsche fosse feliz, mas já era demasiado tarde.

Gomo se passaram esses
últimos dias? Ignoramo-lo. Vivia em casa de uma família modesta, que lhe
proporcionava moradia e, se o quisesse, refeições. Corrigia as provas de Ecce
Homo
acrescentando ao texto primitivo um post-scriptum e, depois, um
poema ditirâmbico; ao mesmo tempo, preparava a publicação de um novo
opúsculo:   Nietzsche contra Wagner.

"Antes de lançar
o primeiro volume de minha grande obra — escreve ao editor — é necessário
preparar o público; é necessário criar uma verdadeira tensão; ou acontecerá o
que aconteceu com o Zaratustra…." Em 8 de dezembro escreve a
Peter Gast: "Reli Ecce Homo pesando cada palavra em uma balança de
ouro; esta obra divide, por assim dizer, a história da humanidade em duas
partes: o mais alto superlativo da dinamite."" Em 29 de dezembro
escreve ao editor: "Penso como o senhor: não passemos de mil exemplares
para Ecce Homo; para uma obra de grande estilo, mil exemplares já é um
número pouco razoável na Alemanha. Na França, digo-Ihe com a maior
seriedade,
conto com uma tiragem de 80.000, ou 40.000 exemplares." Em
2 de janeiro, um novo bilhete (os caracteres da escrita são grossos e
disformes): "Devolva-me  o poema:   adiante  cora  Ecce!

Segundo uma tradição
difícil de comprovar, durante estes últimos dias, Nietzsche tocara
freqüentemente para seus hospedeiros fragmentos de Wagner, dizendo-lhes:
"Eu o conheci", e falando-lhes de Triebschen. Realmente, não é improvável
que estas recordações de seus melhores dias 6 tenham visitado então,
impelindo-o a contá-los àquela pobre gente que nada sabia de sua vida. Acabava
de escrever, em Ecce Homo:

Já que falo aqui
das horas de gás que encontrei na minha vida, sinto necessidade de exprimir
minha gratidão pelo que foi, e muito, o mais profundo e mais satisfatório dos
meus repousos. Tal foi, sem dúvida alguma, minha intima amizade com Richard
Wagner. Faço justiça ao resto de minhas relações humanas; mas por coisa
alguma deste mundo desejaria esquecer os dias de Triebschen, dias de confiança,
de alegria, de sublimes acasos, de
profundo olhar… Ignoro o que Wagner foi para outros.    Pelo nosso céu jamais
passou uma nuvem.

Em nove de janeiro de
1889, achando-se Franz Overbeck com sua esposa à sacada de sua casinha de
Basiléia, viu o velho Burckhardt bater à sua porta. Como Burckhardt não era
dos seus íntimos, Overbeck teve o pressentimento de que Nietzsche, amigo
comum, era a causa daquela visita. Desde algumas semanas ele vinha recebendo
de Turim cartas inquietantes. Burckhardt confirmou esses temores. Trazia uma
carta muito longa, e que não deixava lugar a dúvidas: Nietzsche enlouquecera:
"Eu sou Fernando de Lesseps — dizia; —sou Prado; sou Chambige (os dois
assassinos de que falavam, então, os jornais de Paris); fui enterrado duas
vezes este outono…"

Poucos momentos
depois, Overbeck recebia uma carta semelhante, e, todos os amigos de Nietzsche
se inteiraram, de modo igual, da catástrofe.   Ele escrevera a todos.

Amigo Jorge! escreveu a Brandes desde que tu me
descobriste, já não é raro me encontrar; o difícil, agora, é perder-me!

O  crucificado.

Peter Gast recebeu
umas palavras cujo trágico significado não compreendeu:

Ao meu mestre
Pietro.

Canta-me um novo
canto. O mundo é claro, e todos os céus se regozijam.

O crucificado.

"Amo-te, 
Ariadne"  — escreveu  a   Cosima  Wagner.

Overbeck sé pôs
imediatamente em marcha. Encontrou Nietzsche vigiado pelos seus hospedeiros,
martelando no piano com o cotovelo, cantando e gritando sua glória dionisíaca.
Conseguiu conduzi-lo a Basiléia e fazê-lo entrar, sem muito trabalho, num
sanatório, onde não demorou a vir buscá-lo sua mãe.

Ainda viveu dez anos.
Os primeiros foram terríveis, e os últimos um pouco melhores. Às vezes
chegou-se a ter, até, alguma esperança. De vez em quando, Nietzsche se recordava
de sua obra:

— Não  escrevi 
livros  muito  lindos?  — perguntava.

E quando lhe mostravam
algum retrato de Wagner, dizia:

Gostei muito desse
homem.

Estas voltas à
consciência podiam ter sido atrozes, mas parece que não o foram. Um dia, sua
irmã, que se achava sentada junto dele, não pôde conter as lágrimas.

— Porque choras,
Lisbeth? — disse ele. — Acaso não somos  felizes?

A inteligência
destruída não pôde ser salva, mas a alma permaneceu inalteravelmente doce e
encantadora, acessível às  impressões puras.

Certo dia (um jovem,
que trabalhava na edição de seus livros acompanhava-o nos curtos passeios), viu
Nietzsche na beira do caminho uma mocinha cujo aspecto deve tê-lo atraído
singularmente. Parou diante dela, separando com as mãos os cabelos caídos sobre
o rosto, e contemplando com um sorriso aquela cândida face, disse:

— Não  se  diria  a
própria  imagem  da inocência?

Frederico Nietzsche
morreu em Weimar, em 25 de agosto de 1900.

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