VIDA DE FREDERICO NIETZSCHE
Autor: Daniel Halévy
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Tradutor: Jerônimo Monteiro
Extraído da edição da Editora Assunção ltda.
Coleção Perfis Literários
O livro foi dividido em 7 páginas
Cap. 1 – OS ANOS DE INFÂNCIA |
Cap. 2 – OS ANOS DA JUVENTUDE |
Cap. 3 – FREDERICO NIETZSCHE E RICHARD WAGNER — TRIEBSCHEN |
Cap. 4 – FREDERICO NIETZSCHE E RICHARD WAGNER — BAYREUTH |
Cap. 5 – CRISE E CONVALESCENÇA | Cap. 6 – O TRABALHO DO "ZARATUSTRA" |
Cap. 7 – A ÚLTIMA SOLIDÃO |
VI. O TRABALHO DO
"ZARATUSTRA"
I A CONCEPÇÃO DO
ETERNO RETORNO
Frederico Nietzsche
considerava Aurora como o exercício de uma convalescente que se diverte
com os desejos e as idéias e encontra em cada um sua diversão de amor ou malícia.
Fora um jogo e devia terminar. Agora, devo escolher entre as idéias
entrevistas — pensava; devo pegar uma e exprimi-la em toda sua força — dando
por encerrados os meus anos de solidão e de espera. "Em tempo de paz — escreveu
— o homem de instintos belicosos se volta contra si mesmo". Apenas saído
de seus combates, Nietzsche procura novas ocasiões de luta.
Até meados de julho,
permanecera em Veneto, nos primeiros contrafortes dos Alpes italianos; mas não
teve remédio senão procurar um abrigo menos ardente. Não esquecera aqueles
altos vales alpinos que, dois anos antes, lhe proporcionaram alívio nos males
e felicidade instantânea. Subiu até eles e se instalou de maneira rústica na
Engadina, em Sils–Maria. Mediante um franco diário conseguiu um quarto na casa
de uns camponeses, e uma pensão vizinha fornecia-lhe alimentação. Os viajantes
eram raros e Nietzsche, quando se achava de humor comunicativo, ia visitar o
professor ou o cura, gente simples que nunca mais esqueceu aquele professor
alemão, tão singular, tão instruído, modesto e bondoso.
Ele refletia, então,
sobre os problemas da filosofia naturalista. O sistema de Spencer era a
novidade da moda. Frederico Nietzsche desprezava aquela cosmogonia que, pretendendo
suplantar o cristianismo, continuava submetida a ele. Spencer ignora a
providência, mas acredita no progresso. Ensina a realidade de um acordo entre
os movimentos das coisas e aspirações da humanidade; em um universo sem Deus
conserva as harmonias cristãs. Frederico Nietzsche seguira escolas mais viris:
ouve Empédocles, Heráclito, Spinoza, Goethe, pensadores de olhar sereno, que
sabem estudar a natureza sem procurar nela nenhum assentimento de seus
desejos. Continua obediente a estes mestres e sente crescer e amadurecer
dentro de si uma idéia grande e nova.
Pelas cartas que
escreve, adivinhamos a emoção de que está possuído. Sente a necessidade de
estar só, e define a sua solidão. Paulo Rée quer ir contar-lhe a admiração que
lhe causou Aurora. Quando sabe disso, Nietzsche se desespera.
Minha boa Lisbeth — escreve ele a sua irmã: — não posso me
resolver a telegrafar a Paulo Rée, dizendo-lhe que não venha. No entanto, tenho
que considerar como inimigo a qualquer pessoa que venha interromper o
meu trabalho do verão, meu trabalho de Engadina; quer dizer meu próprio dever,
minha "única necessidade". Um homem aqui, em meio aos pensamentos que
brotam de todas as partes em torno de mim, seria uma coisa terrível; e se não
puder defender melhor a minha solidão, juro que abandonarei a Europa por muitos
anos. Já não tenho mais tempo para perder.
A senhorita Nietzsche
preveniu Paulo Rée, que renunciou ao seu projeto.
Por fim, Nietzsche
encontra aquela idéia cujo pressentimento o agitava com tanta violência. Um
dia, caminhando através dos bosques de Sils-Maria, em direção a Silvaplana,
sentou-se, não longe de Surlee, ao pé de uma rocha piramidal; e naquele
momento, e naquele lugar, concebeu o Retorno Eterno. Pensou: o tempo,
cuja duração é infinita, deve repetir, de período em período, uma disposição
idêntica das coisas. Isto é fatal. Portanto, é fatal que todas as coisas voltem
a ser. Dentro de tal número de dias, número incalculável, imenso, mas limitado
— um homem em tudo semelhante a mim, sentado à sombra de uma rocha, encontrará
de novo esta mesma idéia. E esta mesma idéia será novamente encontrada por este
homem, não só uma vez, mas em número infinito de vezes, pois o movimento que
repete as coisas é infinito. Devemos, portanto, abandonar toda a esperança e
pensar com firmeza: nenhum céu receberá os homens, e nenhum futuro melhor os
consolará. Somos a sombra de uma natureza cega e monótona, os prisioneiros de
todos os momentos. Não esqueçamos, porém, que esta tremenda idéia que nos proíbe
qualquer esperança, enobrece e exalta cada minuto de missa vida. Se o instante
se repete eternamente e deixa de se uma coisa passageira — o mínimo sol
converte em monumento eterno, dotado de valor infinito e (se a palavra divino tem algum sentido) divino. Que tudo se repita incessantemente— escreve—–é a
extrema aproximação de um mundo do futuro com um mundo do ser: ponto
culminante da meditação (*)
A emoção do
descobrimento foi tão viva, que ele chorou, permanecendo por longo tempo
mergulhado em lágrimas. Afinal, seu esforço não fora vão. Sem fraquejar diante
da realidade, sem se separar do pessimismo, mas ao contrário, levando às
últimas conseqüências a idéia pessimista da realidade, Nietzsche descobrira
esta doutrina do Retorno, que, conferindo eternidade às coisas mais fugitivas,
restaura em cada uma delas o poderio lírico e o valor religioso necessário à alma.
Em algumas linhas formula a idéia, e data-a: "Começos de agosto de 1881,
em Sils-Maria, a 6.500 pés sobre o nível do mar e muitos mais sobre o nível de
todas as coisas humanas."
Durante algumas
semanas viveu em um estado de arroubamento e de angústia. Os místicos conhecem,
sem dúvida, emoções semelhantes e seu vocabulário se adapta ao caso. Experimentava
um orgulho divino, mas ao mesmo tempo, temia e espantava-se, como esses
profetas de Israel que tremem diante de Deus ao receber de seus lábios a ordem
de sua missão.
O homem desgraçado,
tão ferido pela vida, contemplava com indizível terror a perpetuidade dos
Retornos. Isto era para ele uma espera insuportável e um suplício. Amava, porém,
esse suplício e se impunha a idéia do Retorno Eterno, como um asceta se impõe o
martírio. Lux, mea crux — escreveu em suas notas — Crux, mea lux. Sua
agitação, que o tempo não apaziguava, fez-se extrema, chegando a atemorizá-lo,
pois não ignorava a ameaça que pairava sobre sua vida.
Algumas idéias se
levantam em meu horizonte, e que idéias! — escreve a Peter Gast em 14 de agosto. — Eu próprio
não suspeitava de nada semelhante. Não digo mais, pois quero manter uma calma
inalterável. Ah, meu amigo! às vezes, certos pressentimentos
atravessam meu : espírito. Parece-me que levo uma vida muito perigosa,
pois minha máquina é daquelas que podem explodir. A intensidade dos meus
sentimentos me fazer rir e tremer; por duas vezes já, me vi obrigado a
permanecer no meu quarto por um motivo ridículo: tinha os olhos
irritados. Por quê? Porque passeando, chorara demais, não lágrimas
sentimentais, mas lágrimas de alegria; e cantava, e dizia disparates, possuído
por uma nova idéia que devo propor aos homens…
A partir desse momento
concebe uma nova missão. Tudo o que fez até então não passa de um desajeitado
ensaio, ou uma
(*) Esta fórmula
encontra-se no Der Wille zur Macht, parágrafo 286. (N. do A.).
tentativa. Agora,
porém, chegou o momento ide edificar a obra. Que obra? Nietzsche vacila: seus
dons de artista, de crítico e de filósofo, seduzem-no em diversos sentidos. Colocará
a sua doutrina em forma de sistema? Não, pois que é um símbolo que deve ser
rodeado de lirismo e ritmo. Não poderia renovar aquela forma esquecida criada
pelos pensadores da mais antiga Grécia e de que Lucrécio nos transmitiu um
modelo? Frederico Nietzsche acolhe essa idéia. Agradar-lhe-ia traduzir a sua
concepção da natureza em uma linguagem poética, uma prosa musical e poemática.
Continua procurando, e seu desejo de uma linguagem rítmica, de uma forma viva
e como que palpável, sugere-lhe uma nova idéia: não poderia introduzir no
centro de sua obra uma figura humana e profética, um herói? Um nome lhe vem ao
espírito: Zaratustra, o apóstolo persa, mistagogo do fogo. Um título, um
subtítulo e quatro linhas rapidamente escritas, anunciam o poema:
MELODIA E
ETERNIDADE
SINAL DE UMA VIDA
NOVA
Zaratustra, nascido
nas margens do lago Urmi abandona sua pátria aos trinta anos, dirige-se para a
província Ária e, em dez anos de solidão, compõe o Zend Avesta.
Desde esse momento,
seus passeios deixaram de ser solitários; Frederico Nietzsche escuta e recolhe
incessantemente as palavras de Zaratustra. Em três dísticos de doce tom, quase
terno, diz como este companheiro chegou até sua vida:
SILS-MARIA
Eu estava ali
sentado, à espera — à espera de
coisa alguma
Gozava para lá do bem e do mal: tão pronto
Da luz, tão pronto da sombra abandonado
Ao dia, ao lago, ao meio-dia, ao tempo sem objeto.
Então, amigo de repente um se converteu em dois —
E Zaratustra passou junto de mim…
Em setembro, a estação
se tornou repentinamente fria e nevosa. Nietzsche teve que abandonar
Engadina.
Alquebrado pela intempérie,
sua exaltação decaiu, e começou um longo período de depressão. Pensava
constantemente no Retorno Eterno, mas, desanimado e abatido, sentia
somente o horror de sua idéia. "Revivi os dias de Basiléia .— escreve a
Peter Gast. — A morte me contempla por cima do ombro…" É breve em suas
queixas: uma palavra deve bastar para adivinhar seus abismos. Durante aquelas
semanas de setembro e de outubro foi tentado três vezes pelo suicídio. De
onde lhe vinha essa tentação? Desejaria evitar o sofrimento? Não. Ele era
valente. Desejaria prevenir a destruição do seu espírito? Talvez esta segunda
seja- a hipótese verdadeira.
Desceu até Gênova, e
continuou sofrendo os ventos úmidos e os céus nublados de um caprichoso
outono. Suportava impacientemente a falta de luz. Uma nova tristeza completava
sua infelicidade: Aurora não tivera o menor êxito; os críticos haviam-na
ignorado e os amigos apenas a haviam lido. Jacob Burckhardt externara uma
opinião cortês e prudente: "Leio algumas partes de seu livro como se fosse
um homem velho e outras com uma sensação de vertigem." Erwin Rohde, o mais
querido, o mais estimado, não respondera à remessa do livro. Nietzsche
escreveu-lhe de Gênova, em 21 de outubro:
Meu velho e querido
amigo:
Com certeza você é
detido por algum escrúpulo. Suplico-lhe sinceramente: não me escreva. Isto
nada mu- daria entre nós, mas em troca, é-me insuportável pensar que, enviando
um livro a um amigo, exerço sobre ele uma espécie de pressão. Que importa um livro! O que tenho a fazer
importa muito mais — ou então, não saberia para que vivo. — O momento é
duro para mim. Sofro muito.
Amistosamente seu
F. N.
Erwin Rohde nem sequer
responde a esta carta. Como explicar o fracasso de Aurora? Trata-se, sem
dúvida, da velha história constante e universal; a irremediável desventura do
gênio desconhecido — porque é gênio, novidade, surpresa, escândalo. No entanto,
talvez consigamos descobrir algumas razões particulares. Desde que Nietzsche se
separou dos círculos wagnerianos, não tem amigos; e um grupo de amigos é o
intermediário mais indispensável entre um grande espírito que se exercita e a
massa do público. Nietzsche encontra-se só diante dos leitores desconhecidos,
aos quais suas constantes variações desconcertam; conta com a forma viva de sua
obra para os atrair e conquistar, mas até essa forma lhe é desfavorável. Nenhum
livro é de mais difícil acesso do que um conjunto de aforismos e pensamentos
breves. O leitor tem que concentrar toda a atenção em cada página e decifrar um
pequeno enigma e o cansaço não tarda em se apoderar dele. É possível,
ademais, que o povo alemão, pouco sensível à arte da prosa; pouco
capaz de surpreender suas belezas, acostumado aos esforços lentos.e demorados,
se achasse mal preparado para compreender uma obra tão imprevista.
Um formoso mês de
novembro logra reanimar Frederico Nietzsche. "Ressurjo de entre os meus
desastres" — escreve ele. Percorre a montanha, a costa genovesa, volta a
subir às rochas onde imaginara as páginas de Aurora, e, aproveitando a
doçura do tempo, banha-se no mar. "Sinto-me tão bem, tão orgulhoso, tão
completamente príncipe Dorial — escreve a Peter Gast. — Só me falta
você, querido amigo. Você e sua música."
Desde as
representações dos Niebelungen em Bayreuth, ou seja, 5 anos — Nietzsche
se havia privado de música. Cítve musiciam!, escrevia. Receava, se se
abandonasse ao prazer dos sons, ser novamente dominado pela magia da arte wagneriana.
Conseguiu, afinal, livrar-se de seus temores. Seu amigo Peter Gast havia-lhe
tocado, em junho, em Rocoaro, cânticos e coros que se entretivera compondo
sobre os epigramas de Goethe. Paulo Rée dissera-lhe um dia: "Nenhum músico
moderno seria capaz de pôr em música versos tão ágeis." Peter Gast
aceitara o repto e ganhara, segundo Nietzsche, encantado com a vivacidade dos
seus ritmos. "Você deve perseverar w aconselhou-o; — trabalhe contra
Wagner músico, como eu trabalho contra Wagner filósofo. Esforcemo-nos, Rée,
você e eu, em libertar a Alemanha. Se você conseguir encontrar uma música
adequada ao universo de Goethe (música que não existe), terá feito uma grande
coisa… Esta idéia reaparece erri todas as suas cartas. Seu amigo se acha em
Veneza, ele em Gênova. Nietzsche espera que naquele mesmo inverno a Itália os
inspirará a ambos, alemães desarraigados, uma metafísica e uma música novas.
Aproveita a melhoria
de seu estado de saúde para ir ao t.entro. Ouve a Semíramis de Rossini e
quatro vezes a Julieta, de Bellini, Uma noite sentiu curiosidade de
ouvir uma ópera francesa cujo autor lhe era desconhecido.
Hurra, meu amigo! — escreve a Peter Gast — fiz uma. nova e
feliz descoberta: uma ópera de Georges Bizet (quem é esse homem?): Carmen. Ouve-se
como uma novela curta de Merimée, espiritual, forte, emocionante em vários momentos.
Um verdadeiro talento francês que Wagner não desorientou, um franco discípulo
de Berlioz . Não estou longe de pensar que Carmen é a melhor ópera que
existe. Tanto tempo quanto vivermos, ela fará parte de todos os repertórios da
Europa.
A descoberta de Carmen é o acontecimento do seu inverno. Falava delas muitas vezes, e muitas
voltava a ouvi-la. Tendo escutado aquela música franca o apaixonada, sente-se
melhor armado contra as seduções românticas, sempre poderosas sobre a sua alma.
“Carmen liberta-me" – escreverá.
Frederico Nietzsche
volta a encontrar a felicidade que gozara no ano anterior; semelhante, mas
baseada numa emoção mais grave: o pleno meio-dia chega após a aurora. Pelos
fins de dezembro atravessa e vence uma crise, comemorada numa espécie de poema
em prosa que traduzimos aqui. É a continuação daquelas meditações e daqueles
exames de consciência que escrevia, quando jovem, nos dias de São Silvestre:
Para o Ano Novo — ainda
vivo, penso ainda. É preciso que viva ainda, pois ainda é preciso pensar. Sum,
ergo cogito; cogito, ergo sum. Hoje é o dia em que cada um encontra
liberdade para exprimir seus desejos e seu mais caro pensamento: Expressarei,
pois, o desejo que se forma hoje em mim mesmo, e direi qual o pensamento que
trago no coração este ano, por cima de todos; que pensamento escolhi como
razão, garantia e regozijo de minha vida futura. Quero exercitar-me todos os
dias em ver em cada coisa, o necessário como se fora uma beleza, e desta
maneira serei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati — seja
este, daqui por diante, meu amorl Não quero acusar, não quero, nem mesmo acusar
os acusadores. Afastar meu olhar — seja esta a minha única negativa. Em
outras palavras, quero, em qualquer circunstância, ser sempre um afirmador.
Os trinta dias de
janeiro se passam sem que uma nuvem escureça o seu céu. Em sinal de gratidão,
Nietzsche dedicará a este esplêndido mês o quarto livro de La Gaya Scienza, que intitula Sanctus Januarius, livro admirável, rico em
pensamento crítico, em íntimas sutilezas e dominado, da primeira à última
página, por uma emoção sagrada: Amor fati.
Em fevereiro, Paulo
Rée, de passagem por Gênova, permanece uns dias com seu amigo, que lhe mostrou
seus passeios. preferidos e o conduziu até às enseadas rochosas "onde,
dentro de seiscentos ou de mil anos — escreve, caçoando, a Peter Gast — se
levantará uma estátua ao autor de Aurora." Depois, Paulo Rée desceu
para Roma, onde o esperava a senhorita de Meysenbug. Rée sentia certa
curiosidade em penetrar o mundo wagneriano, fortemente agitado pela espera de Parsifal,
o mistério cristão que se devia dar em Bayreuth, no mês de julho. Nietzsche
não quis acompanhar Paulo Rée. Cuidava zelosamente de sua solidão, e a
iminente representação de Parsifal fazia mais vivo o seu ardor pelo
trabalho. Não tinha ele, também, uma grande obra para amadurecer? Não tinha
que escrever o seu mistério anticristão, o seu poema do Retorno Eterno? Este
era seu pensamento constante, pensamento que lhe proporcionava uma felicidade
graças à qual podia recordar com saudade menos dolorosa o seu mestre dos dias
passados. Richard Wagner parecia-lhe, a um tempo, muito afastado e muito próximo
dele. Muito afastado, pelas idéias; mas que valem, para um poeta, as idéias?
Muito próximo pelos sentimentos, os desejos, a emoção lírica; e não é isto o
essencial? Todo o desacordo entre os líricos baseia-se apenas em matizes, pois
por alguma razão habitam um mesmo universo e trabalham com a mesma coragem para
dar uma significação e um valor supremos aos movimentos da alma humana.
Leiamos esta página que Nietzsche escrevera naquela ocasião, e compreenderemos
melhor o estado de sua alma:
Amizade Estrelar — Éramos
amigos e chegamos a ser estranhos um para o outro. Mas assim está bem, e não
queremos ocultar nada e nada dissimulamos; nada temos de que nos envergonhar.
Somos dois navios, cada um com. seu porto e sua rota. Cruzamo-nos por acaso e
celebramos juntos uma grande festa — e nossos dois animosos navios
repousaram tão tranqüilamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, que ambos
pareciam ter alcançado a meta que lhes era comum. Mas a força todo poderosa do
nosso dever nos lançou de novo para mares e sóis diversos, e talvez nunca mais
nos tornemos a ver, ou talvez nos encontremos de novo sem que nos reconheçamos:
os mares e os sóis diversos nos terão transformado. Estava escrito em nossos
destinos: tínhamos que nos tornar estranhos um ao outro. Razão de mais para nos
respeitarmos mutuamente! Razão de mais para santificar a idéia de nossa amizade
encerrada! Existe, sem dúvida, um astro afastado invisível e prodigioso, que
dita uma lei comum ás nossas pequenas evoluções. Elevemo-nos até este
pensamento! Nossa vida, porém, é demasiado curta e nossa vista demasiado
fraca: não poderemos ser realmente amigos; teremos que nos contentar com essa
possibilidade sublime… E se for necessário ser inimigos sobre-a terra,
acreditamos, apesar de tudo, em nossa amizade de estrelas.
Que forma tomava,
então, em seu espírito, a exposição lírica do Retorno Eterno? Ignoramo-lo.
Nietzsche não gostava de falar do seu trabalho; queria acabar antes de anunciar".
Não obstante, gostava que seus amigos conhecessem o novo movimento em que
empenhava seu pensamento. Com este fim dirigiu uma carta à senhorita de
Meysenbug, na qual trotava Wagner sem deferência, acrescentando uma promessa um
tanto misteriosa: "Se não estou demasiado iludido com respeito ao meu
futuro, será graças à minha obra que continuará o que de melhor há na obra de
Wagner — e daí, talvez, o cômico da aventura…
No começo da
primavera, Nietzsche, seduzido por um capricho, embarcou com o capitão de um
veleiro italiano que zarpava para Messina e fez o cruzeiro do Mediterrâneo. A
travessia foi terrível e Nietzsche esteve gravemente doente. Mas sua
permanência em Messina foi, em compensação, grata. Escreveu versos, prazer que,
desde muitos anos não experimentava. Eram impromptus e epigramas,
inspirados, talvez naquelas felizes glosas goetheanas que Peter Gast pusera em música. Nietzsche procurava, então, um canto da natureza e da humanidade favorável à produção
de sua grande obra. Sicília — bocal do mundo, onde mora a felicidade — segundo
ensina o velho Homero, pareceu-lhe um refúgio ideal, e, esquecendo depressa
sua incapacidade para suportar o calor, decidiu instalar-se em Messina por todo
o verão. Alguns dias de siroco, pelos fins de abril, abateram-no, e viu-se
obrigado a preparar as malas.
Recebeu, entretanto,
algumas linhas da senhorita Meysenbug, que lhe pedia encarecidamerite que se
detivesse em Roma. Sendo Roma uma de suas etapas normais, aceitou. Sabemos
quais as razões da insistência da senhorita de Meysenbug. Esta mulher admirável
não se resignara nunca à desventura de seu amigo, cujo destino em vão procurava
tornar mais doce. Conhecia a delicadeza e a ternura do coração de Nietzsche, e
com freqüência quisera encontrar-lhe uma companheira. Não tinha, acaso, ele
mesmo lhe escrito: "Digo-lhe, confidencial-mente, que o que me faz falta é
uma boa esposa"? Na primavera daquele ano de 1882, a senhorita de Meysenbug acreditou haver encontrado o que precisava (*), e era este o objeto de
sua carta. A senhorita de Meysenbug possuía o gosto e o costume da bondade,
mas talvez não tivesse suficientemente em conta que a bondade é uma arte
difícil e na qual as derrotas são muito cruéis.
(*) Esta história
íntima foi conhecida por poucas pessoas, na maioria desaparecidas’ hoje. Duas
mulheres sobrevivem: uma, a senhora Förster-Nietzsche, publicou trechos que
desejaríamos fossem mais serenos e mais claros. A outra, senhorita Salomé,
escreveu um livro sobre Nietzsche no qual são indicados alguns fatos e citadas
algumas cartas. A senhorita Salomé se negou a qualquer discussão sobre o
assunto, que considera pertencer só a ela. As tradições orais são contraditórias
e numerosas. Umas, espalhadas na sociedade romana onde se desenrolou a
aventura, são menos favoráveis à senhorita Salomé, que nelas aparece como uma
espécie de Maria Baschkirscheff, uma aventureira intelectual demasiado
empreendedora. As outras, espalhadas na Alemanha, entre os amigos da senhorita
Salomé, são muito diferentes. Tivemos em conta todas estas tradições: As
primeiras influenciaram o trabalho que publicamos nos Cahiers de Ia
Quinzalne, caderno doze da décima série, págs. 24 e segs. As segundas, que
conhecemos mais tarde, nos parecem preferíveis. Convém, porém, afastar
qualquer esperança de certeza. (N. do A.)
A moça que a senhorita
de Meysenbug encontrara chamava-se Lou Salomé. Tinha apenas vinte anos; era
russa, de admirável inteligência e de ardor intelectual; de uma beleza não
perfeita, mas esquisita e extremamente sedutora. E, freqüente verem-se surgir
de repente em Paris, Florença ou Roma, moças exaltadas, originárias de
Bucarest, Filadélfia ou Kief, animadas de bárbara impaciência por se iniciarem
na cultura e conquistar um lar em nossas velhas capitais. Lou Salomé, com toda
a certeza, tinha qualidades muitíssimo raras. Por outro lado, sua mãe a seguia
através da Europa levando seus abrigos e chalés. A senhorita de Meysenbug
tomou-se de afeto por ela, deu-lhe para ler as obras de Nietzsche, que Lou
Salomé pareceu entender, falou-lhe muito daquele homem extraordinário que
sacrificara a amizade de Wagner para manter a sua liberdade, e disse-lhe:
"É um filósofo muito rude, mas o mais sensível e afetuoso dos amigos e
para quantos o conhecem, a lembrança da sua vida solitária é um motivo de tristeza…"
A senhorita Salomé mostrou grande entusiasmo e interesse em conhecê-lo, e
declarou que se sentia destinada a compartilhar espiritualmente uma existência
como a de Nietzsche. De acordo com Paulo Rée, que, segundo parece, conhecia-a
de mais longo tempo e a estimava igualmente, a senhorita de Meysenbug
escreveu a Frederico Nietzsche.
Este chegou, e ouviu o
elogio da senhorita Salomé: fina, inspirada, corajosa; intransigente na investigação
e na afirmação; uma heroína, por todos os acontecimentos de sua infância; em
suma, a promessa de uma grande vida. Nietzsche concordou em vê-la. Ela lhe foi apresentada e conquistou-o imediatamente, certa manhã, na igreja de São
Pedro. Durante seus longos meses de meditação, esquecera o prazer de conversar
e ser ouvido. A jovem russa, como lhe chama era suas cartas, ouvia
deliciosamente. Falava pouco, mas o seu olhar tranqüilo, seus movimentos
seguros e doces, suas menores palavras, não deixavam dúvida acerca da
agilidade do seu espírito e da presença de,sua alma. Nietzsche depressa a
amou; talvez desde o primeiro instante. Disse à senhorita de Meysenbug:
"Da ist eine seele welche sich mit einem hauch ein Kõrperchen geschaffen
hat" (Aqui está uma alma que com um sopro se transformou num corpozinho).
Já a senhorita Salomé não se deixou seduzir do mesmo modo. Sentiu, não obstante,
a singular qualidade do homem que lhe falava. Teve com ele longas palestras, e
a violência do seu pensamento encheu de perturbação até seus sonhos. A aventura
que terminou em drama — começou imediatamente.
Poucos dias depois
desta primeira entrevista, a senhora o a senhorita Salomé partiam
de Roma. Os dois, filosofou, Nietzsche e Paulo Rée, partiram com elas,
ambos entusiasmados com a pequena. Nietzsche dizia a Rée: "É uma mulher
admirável; case-se com ela…" — "Não — respondia Rée. — Sou
pessimista, e a idéia de propagar a espécie humana me é odiosa. Você é quem se
deve casar com ela; é a companheira que lhe falta…" Nietzsche afastava
esta idéia. Provavelmente dizia a seu amigo o mesmo que a sua irmã:
"Casar! Nunca! Teria que me acostumar a mentir." A senhora Salomé
observava aqueles dois homens rondando em torno de sua filha; Frederico Nietzsche
inquietava-a; preferia Paulo Rée.
As duas mulheres e os
dois filósofos se detiveram em Lucerna. Frederico Nietzsche quis mostrar à sua nova amiga aquela casa de Triebschen onde
conhecera Richard Wagner. Quem não pensava no mestre, então? Levou-a até aos
alamos cujas altas folhagens rodeavam os jardins; descreveu-lhe os dias
inesquecíveis, as alegrias e as cóleras magníficas do grande homem. Estavam
sentados à beira do lago e ele falava em voz baixa, contida, mostrando uma
fisionomia transformada pela lembrança das alegrias a que renunciara. De súbito,
calou-se, e a moça, olhando-o, viu que chorava.
Nietzsche contou-lhe
toda a sua vida: a infância, a casa pastoral, a misteriosa grandeza do pai, tão
rapidamente arrebatado; os anos piedosos, as primeiras dúvidas e o horror de
um mundo sem Deus no qual é preciso resolver-se a viver; a descoberta de
Schopenhauer e de Wagner, o culto que lhes dedicara e que o consolara da perda
de sua fé.
— Sim — disse (e a
senhorita Salomé confirma estas palavras) — assim começaram minhas aventuras,
que não terminaram ainda. Onde me conduzirão? No que me aventurarei ainda?
Acabarei por voltar à fé, ou chegarei a uma nova crença? — E, gravemente,
terminou: — Em todo o caso, é mais verossímil uma volta ao passado do que a
imobilidade.
Frederico Nietzsche
não confessara ainda o seu amor. Sentia-lhe a força, no entanto, e não podia
resistir mais. Mas faltou-lhe a coragem de se declarar. Por fim, pediu a Paulo
Rée que falasse em seu nome, e afastou-se.
Em 8 de maio, havendo-se
instalado por alguns dias em Basiléia, viu os Overbeck e se confiou a eles com
estranha exaltação. Uma mulher entrara em sua vida, o que era para ele uma
felicidade e para seu pensamento um bem; de agora em diante, este seria mais
vivo, mais matizado, mais rico, mais rico, mais emocionante. Preferiria,
seguramente, não se casar com a senhorita Salomé, desdenhando, como desdenha,
todo laço carnal. Mas terá, sem dúvida, que lhe dar seu nome para deixá-la a
salvo de murmúrios, e de sua união espiritual nascerá um filho espiritual: o
profeta Zaratustra. É pobre, o que é desagradável e um obstáculo. Mas não
poderá vender em bloco a algum editor, por uma soma considerável, toda sua
obra Futura? É preciso pensar nesta possibilidade.
Estas efusões não
deixaram de inquietar os Overbeck, que auguraram mal de uma união tão estranha
e de Um entusiasmo tão súbito.
Frederico Nietzsche
teve, afinal, a resposta de Lou Salomé: ela não queria casar-se. Um desengano
sentimental que acabava de atravessar — dizia ela — deixava-a sem forças para
conceber e alimentar um novo amor. Negava-se, pois aos desejos de Nietzsche.
Mas a negativa vinha amenizada: a única coisa-que ela lhe podia oferecer, a
amizade, o afeto espiritual — estava à disposição de Nietzsche.
Este regressou
imediatamente a Lucerna. Viu Lou Salomé, instou para que lhe desse uma resposta
mais favorável: mas a moça repetiu sua negativa e seu oferecimento. Tendo que
assistir em julho às festas de Bayreuth, de que Nietzsche se empenhava em afastar-se,
prometeu reunir-se a ele em seguida, e permanecer algumas semanas a seu lado.
Escutaria, então, suas lições e confrontaria o último pensamento do mestre com
o do discípulo emancipado. Nietzsche teve que acabar aceitando as condições e
os limites que a moça impunha à sua amizade, e aconselhou-lhe a leitura de um
de seus livros: Schopenhauer como educador, obra da juventude, hino à valentia
de um pensador e à solidão voluntária que Nietzsche continuava aprovando.
— Leia-o — disse-lhe ele — e estará em
condições de me ouvir.
Frederico Nietzsche
partiu de Basiléia, regressando à Alemanha. Desejava, então, aproximar-se do
seu país. Tais desejos, absorventes e súbitos eram, como sabemos, familiares
nele. Um suíço que encontrara em Messina, elogiara-lhe a beleza de Grunewald,
perto de Berlim. Desejando estabelecer-se ali, escreveu a respeito a Peter
Gast, ao qual, seis semanas antes anunciara Messina como sua residência estival.
Visitou Grunewald, que
lhe agradou bastante. Mas, na mesma ocasião, viu Berlim e alguns berlinenses,
que lhe desagradaram em extremo. Percebeu que seus últimos livros não haviam
sido lidos ali e que suas idéias eram totalmente ignoradas; sabia-se somente
que era o amigo de Paulo Rée e, decerto, seu discípulo. Tudo isto lhe desagradou;
partiu sem demora e passou umas semanas em Naumburg, onde ditou o manuscrito
do seu próximo livro, La Gaya Scienztí (*). Ao que parece falou discretamente de sua nova amiga a sua mãe e a sua irmã e aos seus.. Sua
alegria maravilhava-os. Não souberam a causa e ignoraram que o seu estranho
Frederico guardava no coração um sentimento e uma esperança de felicidade que
Lou Salomé não conseguira desalentar completamente.
A representação de Parsifal estava marcada para 27 de julho. Frederico Nietzsche foi passar
uns dias num povoado dos bosques turingíos, Tautenburg, pouco distante de
Bayreuth, onde se iam encontrar todos os seus amigos: os Overbeck, os Seydlitz,
Gersdorff, a senhorita de Meysenbug, Lou Salomé e Lisbeth Nietzsche. Era ele o
único que faltava ao encontro. É provável que, naquele instante, uma única palavra
do mestre bastasse para o atrair. Talvez Nietzsche tenha esperado essa
palavra.. A senhorita de Meysenbug pensou em fazer uma tentativa de
reconciliação, e, na verdade, chegou a nomear Nietzsche diante de Wagner; mas
este impôs-lhe silêncio e saiu, batendo a porta.
(*) O y na
palavra Gaya, não parece italiano. Seguimos a ortografia de
Nietzsche. (N. do A.)
Frederico Nietzsche,
que sem dúvida ignorou sempre este incidente, permaneceu nos bosques em que já
passara àqueles penosos dias de 1876. Que desgraçado era então! E que feliz
era agora, em troca! Reprimira suas dúvidas; um grande pensamento animava-lhe
o espírito e um grande amor o coração. Lou Salomé acabava de lhe dedicar, em
sinal de simpatia espiritual, um belo poema:
AN DEN
SGHMERZ
Wer kann
dich fliehn, den du ergriffen hast,
Wenn du die ernsten Blicke auf ihn richtest?
Ich will nicht flüçhten wenn du mich erfasst
Ich glaube nimmer, dass du nur vernichtest!
Ich weiss, durch jedes Erden-Dasein muss du ghen,
Vnd nichts bleibt unberührt von dir auf Erden:
Das Leben ohne dich — es
würe schón,
Vnd doch — auch du bist werth gelebt zu werden!
À DOR
Quem dominado por
ti, pode fugir,
Se sentiu teu grave olhar fixo em si?
Eu não fugirei se me tomares;
E jamais crerei que faças mais que destruir.
Sei que deves visitar tudo o que vive sobre a terra;
Nada, nela, pode fugir ao teu domínio.
Sem ti, a vida seria formosa;
No entanto, tu mereces, também que alguém te viva!
Tendo lido estes
versos, Peter Gast acreditou que fossem de Nietzsche, que se regozijou com
este erro.
Não — escreveu-lhe. — Essa poesia não é minha. É
uma das coisas que exercem sobre mim poder tirânico e que jamais pude ler sem
chorar: tem o acento de uma voz que eu esperava, esperava desde a
minha infância. Quem a escreveu foi minha amiga Lou, de
quem decerto você
não ouviu falar ainda. Lou é filha de um general russo; tem vinte anos; seu
espírito é penetrante como o Olhar de uma águia; tem a coragem de um leão, e,
no entanto, é uma menina, muito feminina e que talvez não viva muito…
Releu pela última vez
o seu manuscrito de La Gaya Scienza, e mandou-o ao editor.
Vacilava um pouco, na ocasião de publicar esta nova coleção de aforismos. Sabia
que seus amigos criticavam o número de seus volumes, demasiado grande, seus
ensaios demasiado curtos e seus esboços apenas formados. Ouvia estas criticas
e respondia a elas com aparente boa vontade de ser modesto. Esta boa vontade
era, sem dúvida, dissimulada, pois que não podia se resolver a acreditar que,
por curtos que fossem seus ensaios, e por pouco completos que fossem seus
esboços, não valesse a pena serem lidos.
Pensava muito nos
festivais de Bayreuth, mas dissimulava ou não confessava senão em parte o seu
pesar. "Estou muito contente por estar impedido de ir — escreve a Lou
Salomé. — E no entanto, se pudesse estar ao seu lado, em conversa, se pudesse
dizer-lhe isto e outra coisa ao ouvido, ser-me-ia possível, até, suportar a
música de Parsifal (de outro modo seria impossível)."
Parsifal triunfou. Nietzsche acolheu a notícia em tom de
troça. "Viva Cagliostro! — escreve a Peter Gast. — O velho feiticeiro
conseguiu novamente um êxito prodigioso; os senhores velhos
soluçavam…"
Assim que terminaram
as festas, a jovem russa veio reunir–se a ele, acompanhada de Lisbeth.
As duas moças se instalaram no hotel onde Nietzsche as esperava, e ele começou
imediatamente a iniciação de sua amiga.
Lou Salomé ouvira em
Bayreuth o mistério cristão, a história da dor humana, sofrida como uma prova
e finalmente consolada com a bem-aventurança. Nietzsche ensinou-lhe um mistério
ainda mais trágico: a dor em nossa vida e em nosso próprio destino; não
esperemos passar através dele; aceitemo-lo mais plenamente do que os cristãos. Detenhamos-nos
nele. desposemo-lo, amemo-lo com um amor ativo; sejamos ardentes e implacáveis
como ele, rudes com os demais como para com nós próprios; aceitemo-lo com sua crueldade
e brutalidade; atenuá-lo é ser covarde; e para temperar o nosso valor,
meditemos no símbolo do Retorno Eterno.
"São inolvidáveis
para mim aquelas horas em que revelou seus pensamentos — escreve a senhorita
Lou Salomé. — Confiávamos como se fossem um mistério indizivelmente penoso de
dizer; só em voz baixa e com toda a aparência do mais profundo horror falava
dele. E, realmente, a vida era para ele um sofrimento tão vivo, que sofria do
Retorno Eterno como de uma atroz certeza." A senhorita Lou Salomé ouvia
estas confissões com uma inteligência e uma emoção daquelas ropa aria à sua vida, e o diz..mque não permitem
duvidar das páginas que escreveu em seguida.
Nesses dias concebeu
um breve hino, que dedicou a Frederico Nietzsche:
Como o amigo ama o
amigo,
Assim te amo, vida surpreendente!
Que me alegre ou chore em ti,
Que me dês sofrimento ou alegria,
Te amo, com tua dita e tua dor;
E se me deves aniquilar,
Sofrerei ao separar-me de ti
Como o amigo que se arranca dos braços do amigo,
Estreita-me com toda minha força:
Se já não tens alegria alguma para mim,
Que me importa! Inda me fica a tua dor.
Encantado com a
oferta, Nietzsche quis responder com outra. Fazia oito anos que se proibira de
compor música, criação que o enervava e esgotava; não obstante, se impôs a tarefa
de compor um ditirambo doloroso sobre os versos da senhorita Salomé. Este
trabalho, demasiado emocionante, causou-lhe grandes transtornos: nevralgias,
crises de dúvida, de aridez e de saciedade. Viu-se obrigado a iv para a cama.
De seu próprio quarto, dirigiu a Lou Salomé curtos bilhetes: "De cama. Terrível
acesso. Desprezo a vida."
Mas, estas semanas de
Tautenburg têm a sua história secreta, que conhecemos mal. Lou Salomé —
escreve a senhorita Nietzsche — não foi, jamais, amiga sincera de,seu irmão:
tinha curiosidade em ouvi-lo, mas sua paixão e seu entusiasmo eram fingidos, e
freqüentemente se sentia cansada com a terrível agitação de Nietzsche. Lou
Salomé escreveu isso a Paulo Rée, de quem a senhorita Nietzsche recebeu,
surpreendida, umas linhas muito singulares: "Seu irmão fatiga nossa
amiga. Abrevie o encontro, se for possível."
Sentimo-nos inclinados
a crer que a senhorita Nietzsche sentia ciúmes daquela iniciação que ela não
recebera, ciosa, também, da jovem eslava, de suas seduções um tanto misteriosas
e da atenção com que era preciso ouvi-la se se queria dar prazer a Nietzsche.
Sem dúvida, este
atemorizou Lou Salomé com a violência de suas paixões e a magnitude de suas
exigências; ao oferecer-se como amiga, ela não previra as crises de uma amizade
mais arrebatada que um amor tempestuoso. Nietzsche reclamava absoluta submissão
a todas as suas idéias e a moça se recusava a isso. Pode se dar a
inteligência, como o coração? Além disso, Nietzsche não admitia a sua orgulhosa
reserva e reprovava como uma falta essa independência que ela queria conservar.
Uma carta enviada a Peter Gast deixa adivinhar estas dissensões:
Lou ficará ainda uma semana comigo — escreve
em 20 de agosto de Tautenburg; — é a mais inteligente de todas
as mulheres. Cada cinco dias temos uma pequena cena trágica. Tudo o que
sobre ela lhe escrevi é absurdo, não menos absurdo, sem dúvida do que isto que
escrevo agora.
Esta frase um pouco
desconfiada e reticente, não indica um coração menos entusiasta. Lou Salomé
parte de Tautenburg;. Frederico Nietzsche continua a escrever-lhe cartas, muitas
das quais conhecemos; confia-lhe seus trabalhos e seus projetos: quer ir a
Paris ou Viena, com intenção de estudar ciências físicas para aprofundar a
teoria do Retorno Eterno, pois não é bastante que seja surpreendente e bela, é
preciso que seja também verdadeira. Tal como o vemos, vê-lo-emos sempre: tentado
pelo seu espírito critico quando segue uma inspiração lírica; tentado (pelo
gênio lírico quando realiza suas análises críticas. Conta-lhe o êxito feliz do Hino
à vida, inspirado pelos seus versos e que ele submeteu ao julgamento de
amigos músicos. Um diretor de orquestra quase lhe prometeu uma audição;
inclinado à esperança, ele comunica a notícia. "Por este estreito caminho
— escreve-lhe — poderemos chegar juntos à posteridade, ficando, ainda,
aberto qualquer outro caminho." Em 16 de setembro escreve, de Leipzig, a
Peter Gast: "últimas notícias: no dia 2 de outubro, Lou vem aqui; dois
meses depois partiremos para Paris, e lá permaneceremos, talvez, durante anos.
Tais são os meus projetos."
Sua mãe e sua irmã
criticam-no. Ele sabe, e essa hostilidade não o desgosta. "Todas as
virtudes de Naumburg estão contra mim — escreve — e convém que assim
seja."
Dois meses depois, a
amizade rompeu-se. Que aconteceu? Quem sabe se não é difícil imaginá-lo: Lou
Salomé foi reunir-se a Nietzsche em Leipzig, como prometera, mas Paulo Rée
acompanhava-a. Sem dúvida, Lou desejava que Nietzsche compreendesse que a
amizade sempre oferecida tinha que ser livre e sem submissões; uma simpatia e
não uma consagração intelectual. Haveria Lou Salomé pensado bem nas
dificuldades de semelhante empresa e nos perigos de tal ensaio? Aqueles dois
homens se haviam enamorado dela. Qual foi a sua atitude entre os dois? Pode se
assegurar que, ao tentar reter a ambos junto de si, não cedia a um instinto
talvez inconsciente, de curiosidade intelectual e de domínio feminino? Quem o
poderia dizer? Quem, jamais, o saberá?
Frederico Nietzsche se
tornou triste e desconfiado. Certo dia acreditou que seus companheiros, que
falavam em voz baixa, caçoavam dele. De outra vez, chega até ele uma história
pueril que, no entanto, precisamos transcrever, e que o agitou profundamente:
Rée, Lou Salomé e Nietzsche haviam tirado juntos uma fotografia. Lou
Salomé e Rée haviam-lhe dito: "Suba nesta "charrete" de
criança; nós seguraremos os varais; será o símbolo de nossa união…"
Nietzsche respondera: "Não. A senhorita Lou deve sentar-se na
"charrete" e Paulo Rée e eu seguraremos os varais…" Assim se
fez e a senhorita Lou mandou a fotografia a muitos amigos seus, (pelo menos é o
que se contava) como um símbolo de sua supremacia.
Uma idéia mais cruel
não demorou a torturar Frederico Nietzsche: Lou e Rée estão de acordo contra
mim — pensava; sua amizade atraiçoa-os: eles se amam e enganam-me… Assim,
tudo se tornava vil e mesquinho em torno de si. A aventura espiritual que havia
sonhado terminava em lamentável disputa. Perdia sua estranha e sedutora
discípula e perdia o melhor e mais inteligente de seus amigos daqueles últimos
oito anos. Finalmente, ferido e abatido por estes acontecimentos degradantes,
e faltando, ele próprio, aos deveres da amizade, denuncia Rée e Lou Salomé:
"É um espírito maravilhoso, mas débil e sem finalidade alguma. Isto, por
causa de sua educação: todo. o homem deve ser educado para se tornar, de um
modo ou de outro, um soldado; e a mulher, de uma forma ou de outra, a esposa de
um soldado."
Nietzsche não tinha
nem experiência nem resolução suficientes para cortar pela raiz essa situação
infinitamente penosa. Sua irmã, que detestava a senhorita Salomé, alimentava
suas suspeitas e rancores, e acabou intervindo de maneira brutal. Sem estar
autorizada, segando parece, escreveu à moça uma carta que determinou a ruptura.
A senhorita Salomé ofendeu-se. Conhecemos o rascunho da última carta que
Frederico Nietzsche lhe dirigiu, rascunho que esclarece um pouco do acontecido:
Mas que cartas são
essas, Lou? Meninas de escola irritadas é que escrevem assim. Que tenho eu que
ver com essas misérias? Compreenda-me: desejo que você se eleve diante de mim;
não quero que diminua mais ainda.
Só reprovo o ter
demorado tanto em perceber o que eu desejava de você. Em Lucerna dei-lhe o meu
ensaio sobre Schopenhauer dizendo-lhe que os meus pontos de vista essenciais
estavam ali, e acreditando que eles seriam também os seus. Você deveria, então,
ter lido e dito: Não. (Nestes assuntos odeio toda a superficialidade). Teria, assim, me poupado muitas
coisas! A poesia À Dor, que você escreveu, é uma profunda negação da
verdade.
Creio que ninguém
pensa de você tanto mal e tanto bem como eu. Não se defenda. Eu já a defendi,
diante de mim e diante dos outros melhor do que você o poderia fazer. As
criaturas de sua espécie não são suportáveis pelos demais senão quando têm um fim elevado.
Que pobre é você em
veneração, em reconhecimento, em piedade, em cortesia, em admiração e em
delicadeza! (Para não falar de coisas mais elevadas.) Que responderia, se eu
lhe dissesse: É corajosa? É incapaz de uma traição?
Então? Não
compreende que quando um homem como eu se aproxima de você precisa fazer sobre
si próprio uma grande violência?… Você conheceu um dos homens mais
generosos, mais benéficos que existem; mas, contra os pequenos egoísmos e as
pequenas fraquezas, meu argumento, saiba-o bem, é a repugnância. Ninguém é tão rapidamente vencido
pela repugnância como eu.
No entanto, não me
iludi sobre coisa alguma; vi em você esse sagrado egoísmo que nos obriga a
ceder o que há de mais elevado em nós. Ajudada não sei por que malefício, você
o trocou pelo seu oposto, o egoísmo do gato que só quer a vida…
Adeus, querida Lou.
Não a verei mais. Defenda sua alma de semelhantes ações e consiga com outros o
que comigo já é irreparável.
Não li sua carta
até ao fim, mas, de qualquer modo, li demasiado. Seu
F. N.
Frederico Nietzsche abandonou Leipzig.
ASSIM FALAVA ZARATUSTRA
Sua partida foi rápida
como uma fuga. Passa por Basiléia e se detém em casa de seus amigos Overbeck,
que ouvem as suas queixas. Foi desenganado de seu último sonho. Todos o traíram:
Lou, Rée, fracos e pérfidos; Lisbeth, sua irmã, inconsciente e grosseira. De
que traição se queixa, é de que acontecimento? Não o diz, mas prossegue na sua
amarga queixa. Os Overbeck desejam retê-lo ao seu lado durante alguns dias,
mas ele foge. Quer trabalhar, e vencer sozinho a tristeza de ter sido enganado
e a humilhação de haver-se enganado. Talvez queira, também, tirar proveito do
estado de paroxismo e do sursum lírico a que o levara o seu desespero.
Parte e diz a seus amigos: "Hoje entro em absoluta solidão."
Parte e para,
primeiro, em Gênova. "Frio; doente. Sofro", escreve laconicamente a
Peter Gast. Abandona essa cidade em que talvez o importunem as recordações de
um tempo melhor, e afasta-se, seguindo a costa. Na época de que falamos,
Nervi, Santa Margarida, Rapallo, Zoagli, eram lugares desconhecidos dos
turistas, simples aldeias habitadas por pescadores que ao anoitecer recolhiam
seus barcos ao fundo das enseadas, e cantando remendavam suas redes. Frederico
Nietzsche descobriu estes magníficos lugares e escolheu o mais magnífico,
Rapallo, para nele humilhar a sua miséria. Em uma página muito simples,
descreve as circunstâncias de sua permanência ali:
Passei o meu
inverno de 1882-83 na graciosa
baia de Rapallo que chanfra a Riviera, não longe de Gênova, entre o cabo de
Portofino e Chiavari. Minha saúde não era dás melhores; o inverno, frio e
chuvoso; uma pequena hospedaria (*), situada bem à beira do mar, me
oferecia um abrigo bem pouco satisfatório, sob todos os pontos de vista.
Apesar disso — veja-se aqui um exemplo da minha máxima que afirma que
tudo o que é decisivo acontece apesar de— foi neste inverno e em meio a
este desconforto que nasceu o meu Zaratustra. Todas as manhãs me dirigia para o
sul pelo magnífico caminho que sobe até Zoagli entre pinheiros e dominando o
imenso mar, e (à medida que a saúde mo permite) chegava até Portofino,
bordeando a baía de Santa Margherita. Andando por esses caminhos é que me veio
toda a primeira parte do Zaratustra (fiel mir em); mais ainda, o
próprio Zaratustra como tipo; ou, mais exatamente, Zaratustra caiu sobre mim (überfiel
mich…).
Em dez semanas ele
concebe e termina seu poema. É uma obra nova e, se se pretender seguir a gênese
de- suas idéias, surpreendente. Ele meditava, sem dúvida, uma onra lírica, um
livro sagrado, mas a doutrina essencial desta obra devia ser dada pela idéia do
Retorno Eterno. Pois bem, na primeira parte do Zaratustra, a idéia do Retorno
Eterno não aparece. Nietzsche segue uma outra, diferente e contrária — a idéia
do Super-homem, símbolo de um progresso real que modifica as coisas, promessa
de uma evasão possível para além do acaso e da fatalidade.
Zaratustra anuncia o
Super-homem — é o profeta de uma boa nova. Em sua solitude descobriu uma
promessa de felicidade, e traz esta promessa; sua força é doce e benfazeja e
prediz um grande futuro em recompensa de um grande trabalho. Em outras
ocasiões, Frederico Nietzsche o fará empregar uma linguagem mais áspera.
Leia-se, porém, esta primeira parte, procurando não confundi-la com as que vêm
em seguida, e sentir-se-á o tom cheio de santidade e a doçura.
Qual seria a causa do
abandono da idéia do Retorno Eterno? Nietzsche não nos diz uma única palavra
capaz de esclarecer este mistério. A senhorita Lou Salomé
nos assegura
(*) Albergo Ia
Posta (dado fornecido por M. Lanzky). (N. do A.).
que em Leipzig,
durante seus curtos estudos Nietzsche havia compreendido a impossibilidade de
fundamentar em razões as suas hipóteses. Isso, porém, não diminuía o seu
valor lírico — do qual, um ano mais tarde ele saberá tirar partido — e, de
qualquer modo, não explica a aparição de uma idéia contrária. Que pensar,
então? Talvez o seu estoicismo se tenha sentido vencido pela traição
dos amigos. "Apesar de tudo — escreve a Peter Gast em 3 de
dezembro — não desejaria reviver estes últimos meses." Sabemos que ele não
cessava de experimentar em si próprio a eficácia de seus pensamentos. Incapaz
de suportar o símbolo cruel, julgou impossível propô-lo aos homens sem mentir,
e inventou um símbolo novo, o Ubermensch, "o
Super-homem". "Não quero recomeçar.— Escreve em suas notas— (ich
will das Leben nicht ivieder). Como pude suportar? Criando, fitando o
Super-homem que diz sim à vida. Ah! Eu também procurei dizer sim!"
Frederico Nietzsche
quer responder ao grito da sua juventude: Ist Veredlung moglich? "É
possível o enobrecimento?" E quer responder: sim. Deseja e consegue crer
no Super-homem. Consegue apoderar-se dessa esperança que convém aos desígnios
da sua obra. Que é que se propõe? Entre tantas veleidades que o tentam, esta é
a mais forte": deseja responder ao Parsifal, obra contra obra.
Richard Wagner desejou mostrar a humanidade salva de sua fraqueza pelo
mistério eucarístico, o sangue impuro dos homens renovado pelo sangue eternamente
vertido de Cristo. Frederico Nietzsche quer mostrar a humanidade salva de sua
fraqueza pela glorificação de sua própria essência, pelas virtudes de um grupo
escolhido que purifica e renova seu sangue voluntariamente. Será esse todo o
seu desejo? Certamente que não. Assim falava Zaratustra é algo mais que
uma resposta ao Parsifal. As idéias de Nietzsche têm origens sempre
graves e longínquas. Qual será sua vontade final? Quer orientar e dirigir a
atividade dos homens; quer criar costumes, indicar aos humildes sua tarefa, aos
fortes, seu dever e seus mandamentos — e elevá-los a todos para um sublime
destino. Desde menino, de adolescente e de moço, teve essa aspiração. Aos
trinta e oito anos, neste momento de crise e decisão, torna a encontrá-la, é
quer agir. O Retorno Eterno já não o satisfaz, pois não tolera o viver
prisioneiro dentro da natureza cega. A idéia do Super-homem, que é um princípio
de ação e uma esperança de salvação, ao contrário — seduz-o.
Qual é o sentido desta
idéia? É uma realidade, ou um símbolo? Uma ilusão, ou uma esperança? Impossível
dizê-lo. O espírito de Nietzsche é rápido e sempre oscilante. A veemência da
inspiração que o arrasta não lhe deixa nem tempo, nem força para definir; antes
de compreender perfeitamente as idéias que o agitam — ele mesmo as interpreta
em diversos sentidos. Às vezes, ó Super-homem lhe parece uma realidade muito
séria; com maior freqüência, porém, parece descuidar ou desdenhar toda a crença
literal, e sua idéia não é senão uma fantasia lírica que ele usa para animar a
baixa humanidade. É uma ilusão, Uma ilusão útil e benfazeja, diria, se ainda
fosse wagneriano e se atrevesse a empregar de novo o vocabulário dos seus
trinta anos. Nesses momentos gostava de repetir a máxima de Schiller:
"Atreve-te a sonhar e a mentir…" Acreditamos que o Super-homem é,
sobretudo, o sonho é a mentira de um poeta lírico. Cada espécie tem seus
limites, é não os pode franquear. Nietzsche sabe-o e o escreve. Foi um
trabalho penoso. Um tanto refratário a conceber esperanças, Nietzsche
rebelava-se freqüentemente contra a tarefa que se impusera. Todas as manhãs,
ao sair de um sono que o cloral fazia doce, voltava à vida com uma horrível
amargura; vencido pela tristeza e o rancor, escrevia páginas que em seguida se
obrigava a ler atentamente, corrigindo ou suprimindo. Temia aquelas horas
malignas em que a cólera o possuía como uma vertigem e lhe escurecia as
melhores idéias. Evocava então seu herói, Zaratustra, sempre nobre, sereno e
procurava junto dele alivio e conforto. Numerosas passagens do seu poema são a
expressão desta angústia. Zaratustra
fala-lhe:
Sim, conheço o teu perigo, Mas, por meu amor e minha esperança,
te rogo: não arrojes de ti teu amor e tua esperançai
O homem nobre está
sempre em perigo de se converter num insolente, num caçoísta e num destruidor.
Ah! Conheci homens nobres que
perderam suas mais altas esperanças, e, desde então, caluniaram todas as mais
altas esperanças.
… Por meu amor e minha esperança te rogo: não arrojes o herói que há em tua alma; crê na
santidade de tua mais alta esperança!
O combate sente-se
continuamente. Não obstante, Nietzsche avança em seu trabalho. Tem que
aprender diariamente e de novo a sabedoria e moderar, destruir ou enganar seus
desejos. Mas ele já está acostumado a este rude combate, c consegue trazer sua
alma novamente a um estado de serenidade e fecundidade. Termina um poema que
não é senão o começo de um poema mais vasto. Zaratustra, voltando às suas montanhas,
abandona os homens. Ainda duas vezes terá que descer até eles, antes de lhes
ditar as tábuas de sua Lei. O que ele diz, porém, é suficiente para deixar
entrever as formas essenciais de uma humanidade obediente às minorias
escolhidas. Ela se divide em três castas: a mais baixa, a casta popular,
abandonada às suas crenças humildes; acima desta, a casta dos chefes,
organizadores e guerreiros; e acima destes, a casta sagrada, os poetas que
criam as ilusões e indicam os valores. Recordemos o ensaio de
Richard Wagner sobre a
arte, a religião e a
política, tão admirado, havia tempo, por Nietzsche. Nele se propõe uma
hierarquia semelhante.
Em seu conjunto, a
obra é serena; é a mais formosa vitória de Frederico Nietzsche. Ele reprime suas
tristezas; exalta a força, não a brutalidade; a expansão, não a agressão. Nos
últimos dias de fevereiro de 1882, escreve essas páginas finais que são,
talvez, as mais belas e mais religiosas que o pensamento naturalista tenha já
inspirado:
Meus irmãos!
Permanecei fiéis à terra, com toda a força do nosso amor! Que o vosso pródigo amor e o vosso conhecimento
concordem com ò sentido da terra. Eu vos suplico e vos rogo.
Não deixeis nossa virtude voar longe das coisas terrestres e
debater-se contra muros eternos! Ah! Houve sempre tanta virtude
extraviada!
Como eu, trazei de
novo á terra a virtude extraviada; sim, trazei-a à carne e à vida, a fim de que dê á terra seu
sentido — um sentido humano!
Enquanto Nietzsche, na
costa genovesa acabava de compor esse hino, Richard Wagner morria em Veneza. Nietzsche recebeu a notícia com grave emoção, e reconheceu uma espécie de
providencial acordo na coincidência dos acontecimentos. O poeta de Siegfried morrera! Pois bem, a humanidade não ficaria um momento sem lirismo, pois
que Zaratustra já havia falado!
Fazia seis anos que
não dava sinal de vida a Cosima Wagner; mas, naquele momento quis lhe dizer
que não esquecera nada dos dias passados e que compartilhava de sua dor.
"Estou seguro de que você me aprovará" — escreveu à senhorita de
Meysenbug (*).
Em 14 de fevereiro,
escreveu ao editor Schmeitzner:
Hoje tenho algo
para lhe dizer: acabo de dar um passo decisivo, quero dizer, proveitoso pára o senhor mesmo.
Trata-se de um opúsculo de cem páginas apenas intitulado: Assim falava Zaratustra.
Um livro para todos e para ninguém. É um poema, ou um quinto evangelho, ou
qualquer outra coisa que não tem nome; além disso, a mais séria, a mais feliz,
também, de minhas produções— e acessível a todos…
(*) Carta inédita
fornecida por M. Romain Rolland (N. do A.).
Escreve a Pe r Gast e
à senhorita de Meysenbug, dizendo-lhes que nesse ano renunciaria a toda a
sociedade e que irá diretamente de Gênova a Sils.
O mesmo fizera Zaratustra,
que deixara a grande cidade regressando às montanhas. Mas, Frederico Nietzsche não
é Zaratustra. É fraco, e a solidão exalta-o e espanta-o. Passam-se várias
semanas. O editor Schmeitzner é lento. Nietzsche se impacienta e modifica seus
projetos para o verão; deseja ouvir uma voz humana. Sua irmã, que se encontra
em Roma, ao lado da senhorita de Meysenbug, adivinhando que ele está cansado e
acessível, aproveita o momento para tentar uma aproximação. Nietzsche hão se
defende, e promete ir a Roma.
Ei-lo em Roma. A sua velha amiga entrá-lo, imediatamente, numa brilhante sociedade, a que pertencem
Lembach e – também aquela brilhante Donhoff, hoje princesa von Bulow, mulher
amável e grande compositora. Frederico Nietzsche sente com desagrado quão
diferente é daqueles alegres conversadores; percebe o quanto é desconhecido
deles, e compreende a diferença que existe entre o seu mundo e este. "É
um homem estranho, curioso e profundamente excêntrico" — pensam todos de
Nietzsche. Um grande espírito? — Ninguém se atreve a lançar este julgamento
audaz. E Frederico Nietzsche, tão orgulhoso quando se encontra sozinho, se admira,
se perturba e se humilha. Dir-se-ia que carece da força necessária para
desprezar esta gente que não o entende. Inquieta-se e começa a temer por Zaratustra,
seu bem-amado filho.
"Desgosta-me
pensar— escreve a Gast — que
lerão o meu livro e até que, possivelmente, falem dele. Quem, porém, é bastante
grave para me compreender? Se eu tivesse a autoridade do velho Wagner, meus
assuntos estariam em melhor situação; tal como estão as coisas, ninguém me
poderá salvar dos homens de letras. Para o diabo!
Outros dissabores vêm
atormentá-lo. Durante o inverno acostumara-se ao uso do cloral para combater a
insônia, e privando-se dele agora, não conseguia recuperar um sono normal. O
editor Schmeitzner imprime lentamente Assim falava Zaratustra. Por que
esta demora? Nietzsche se informa e respondem-lhe que é preciso, primeiro,
tirar quinhentos mil exemplares de um hino para as escolas dominicais. Espera
ainda uma semana, sem receber nada. Pergunta de novo e dão-lhe outra desculpa:
a coleção de hinos está pronta, mas ó preciso tirar e lançar um grande lote de
folhetos anti-semitas. Chega junho, e o Zaratustra não apareceu ainda.
Nietzsche se irrita e sofre pelo seu herói cujos passos são impedidos pela
dupla necessidade da beatice e do anti-semitismo.
Desanima de escrever e
deixa depositadas na estação suas malas com os livros e manuscritos que
trouxera: cento e quatro quilos de papel. Tudo em Roma o enfadava: a mesquinha
plebe de bastardos filhos de padres e os padres mais feios ainda que seus
bastardos; as igrejas, "cavernas de cheiro insípido". Seu ódio ao
catolicismo é instintivo e vem de longe; cada vez que se aproxima dele,
estremece. Não é o filósofo que julga e reprova: é o filho do pastor luterano,
que não suporta a outra igreja cheia de incenso e de ídolos.
Ouve elogiar a beleza
de Aquila e sente o desejo de abandonar Roma. Frederico de Hohenstaufen,
imperador dos árabes e dos judeus, o inimigo dos papas, residiu ali, e Nietzsche
também gostaria de fazer o mesmo. No entanto, o quarto que ocupa em Roma é
formoso e bem situado — piazza Rarberini — na parte mais alta de uma casa. Ali
pode esquecer a cidade; o murmúrio da água que um tritão deixa escorrer do seu
búzio, disfarça o rumor humano e encobre sua tristeza. Nesse quarto, é que ele
improvisou, uma noite, a mais comovedora expressão de desespero e solidão:
Sou luz. Ah! se eu
fosse noite! Estar rodeado de luz é a minha solidão.
Por que não serei sombra e trevas? Como beberia, então, nos seios da luz!
… Mas vivo em minha própria luz e bebo as chamas que se levantam de mim.
Assim falava Zaratustra — Um livro para todos e para ninguém, apareceu enfim,
nos primeiros dias de junho.
"Movimento-me
muito — escreve Nietzsche. — Vivo numa agradável sociedade, mas assim
que me sinto só, sinto-me mais emocionado que nunca." Em breve conhece a
sorte de seu livro. Seus amigos apenas lhe falam dele; ninguém se interessa por
esse Zaratustra, estranho profeta que ensina a incredulidade em tom bíblico.
"Como é amargo!" dizem a senhorita Nietzsche e a senhorita Meysenbug,
cristãs de coração, que se sentem feridas pelo livro. "É eu — escreve
Nietzsche a Peter Gast — eu, que sinto o meu livro tão doce!"
O calor dispersou
aquela sociedade romana. Nietzsche não sabia para onde ir. Esperara dias tão
diferentes! Realmente, abrigara a convicção de que comoveria a Europa letrada
e de que enfim, conquistaria um público, ou (talvez mais exatamente) que não
ele tão fraco, mas sim Zaratustra, tão forte, conquistaria um grupo de
discípulos e talvez de fiéis. "Para este verão — escrevia em maio a Peter
Gast — tenho um projeto: escolher, no meio de qualquer bosque, um castelo
preparado antigamente pelos beneditinos para as suas meditações, e enchê-lo de
companheiros e de homens escolhidos… Não tenho outro remédio senão começar a
procurar novos amigos”.
Mas em 23 de junho,
aterrado pela perda de suas esperanças, subiu para o seu retiro predileto da
Engadina.
Lisbeth Nietzsche, que
regressava à Alemanha, acompanhou-o. Jamais sua irmã o viu tão brilhante e
alegre como naquelas poucas horas de viagem. Improvisava epigramas,
"bouts-rimés" cujos temas eram propostos por sua irmã; ria como um
menino e, temendo os intrusos que teriam perturbado sua alegria, em cada
estação chamava o chefe de trem e subornava-o para que os deixassem a sós.
Frederico Nietzsche
não vira Engadina desde o verão de 1881, quando concebida a idéia do Retorno
Eterno e as palavras de Zaratustra. Dominado pelas recordações e
pela repentina solidão, arrastado por um prodigioso movimento de inspiração,
escreveu em dez dias a segunda parte de sua obra.
Esta segunda parte é
amarga. Frederico Nietzsche não pode reprimir por mais tempo os rancores que já
no inverno anterior o haviam ameaçado; já não sabe unir a força à doçura.
Antes, Zaratustra dizia: "não sou caçador de moscas", e desdenhava de
seus adversários. Falou, então, como um benfeitor, e não o ouviram. Nietzsche
empresta-lhe, agora, outra linguagem: "Zaratustra justiceiro — escreve em
suas curtas notas — uma manifestação da justiça em sua forma mais grandiosa; da justiça que forma, que edifica, e que, portanto, tem que
destruir."
Zaratustra justiceiro
só tem insultos e lamentações em seus lábios. Canta aquele canto noturno que
Nietzsche improvisara uma noite em Roma para si só.
Sou luz. Ah, se
fosse noite! Estar rodeado de luz é a minha solidão…
Já não é aquele herói
que Frederico Nietzsche criara tão superior a toda a humanidade. É um homem
desesperado — é Nietzsche, em suma, demasiado fraco para exprimir outra coisa
senão sua irritação e suas queixas:
Em verdade, meus
amigos, caminho entre os homens como entre fragmentos e membros de homens!
Nada tão espantoso
para os meus olhos como ver os homens despedaçados e dispersos como se
estivessem estendidos num campo de matança.
E quando meus olhos
do presente fogem para o passado, encontram sempre o mesmo: fragmentos,
membros e espantosos acasos — nada
de homens,
Ah, meus amigos: o
presente e o passado sobre a terra são, para mim, as coisas mais insuportáveis; e não me seria possível viver se
não tivesse a visão do que fatalmente há de vir.
Um visionário, um
criador, futuro ele próprio, e ponte para o futuro, ah! e de certo modo, um
doente também, em pé sobre essa ponte: Isto é que é Zaratustra.
Caminho entre os
homens, fragmentos do futuro, desse futuro que contemplo nas minhas visões.
Nietzsche difama os
mandamentos morais que ampararam a velha humanidade e deseja aboli-los para
implantar os seus. Conheceremos, afinal, esta nova Lei? Nietzsche demora em
divulgá-la. "As qualidades do Super-homem se fazem cada vez mais
visíveis" — escreve em suas notas. Desejaria que assim fosse, mas poderá
ele acaso, invadido pelo descontentamento e pela amargura, enunciar e definir
uma forma de virtude, um novo bem e um novo mal, como prometera? Pelo menos,
tenta fazê-lo. Um humor áspero e violento arrasta-o, e a virtude que exalta é
a força crua, não disfarçada pelos homens; é o ardor selvagem que as prescrições
morais quiseram constantemente atenuar, matizar ou vencer* Atraído por esta
força, cede ao seu influxo:
Contemplo com
arroubo os milagres que o ardente sol faz florescer — diz Zaratustra. — Tigres, palmeiras,
serpentes cascavéis… Em verdade, há um futuro até para o mal e o homem
não descobriu ainda o mais ardente meio-dia... Um dia, virão ao mundo
dragões maiores…. Vossa alma está tão longe do que é grande, que o
Super-homem lhes padeceria espantoso fim sua bondade!
Com esta enfática
frase, cujas palavras são mais sonoras que fortes, parece Nietzsche querer
dissimular algo que não consegue satisfazê-lo em seu pensamento: não volta a
insistir sobre esse evangelho do mal, e, prefere marcar o difícil momento em
que o profeta anunciará sua lei. Zaratustra deve, primeiro, terminar sua
tarefa de justiceiro e de destruidor dos fracos. Tem que golpear, mas com que
arma? Nesta segunda parte, Nietzsche emprega a idéia do Retorno Eterno, que
desprezara na primeira, modificando, porém, o sentido e a aplicação. Já não é
um exercício de vida espiritual, nem um processo de edificação interior — mas
um martelo, segundo ele próprio declara, um instrumento de terror moral, um símbolo
que dispersa o sono.
Zaratustra reúne seus
discípulos e quer lhes comunicar a doutrina, mas sua voz desfalece e morre.
Repentinamente sacudido pela piedade o próprio profeta sofre ao evocar a espantosa
idéia; vacila no instante de destruir as ilusões de um futuro melhor, as
esperanças de vida futura e de beatitudes espirituais que com suas nuvens escondem
aos homens a miséria do seu estado. Perturba-se. Um corcunda, que
adivinha o que se passa no seu interior, interpela-o, rindo divertida-mente:
"Por que Zaratustra fala a seus discípulos de modo diferente daquele com
que fala consigo próprio?" Zaratustra compreende seu erro, e procura
novamente a solidão. E assim termina a segunda parte.
Em 24 de junho daquele
ano de 1882, Nietzsche se havia instalado em Sils; antes de 1 de julho, escreve
a sua irmã:
Suplico-lhe,
suplico-lhe urgentemente, que procure Schmeitzner e obtenha dele, verbalmente
ou por escrito, como achar melhor, a promessa de que, assim que receba o
manuscrito, mande imprimir a segunda parte do Zaratustra— Esta segunda parte ê hoje uma realidade. Por
maiores esforços que você faça para a imaginar, não fará uma imagem exagerada
da veemência de sua criação. Em nome do céu, peço-lhe que arrume bem as coisas
com Schmeitzner; eu sou demasiado irritadiço para o fazer.
Schmeitzner
compromete-se e cumpre a palavra. Em agosto, as provas chegam às mãos de
Nietzsche, que, sem forças para este trabalho, deixa a Peter Gast e a sua irmã
o cuidado de as corrigir. As coisas terríveis que disse e as mais terríveis
ainda, que estão por dizer, aniquilam-no.
Outras preocupações se
juntam à tristeza do seu pensamento. Certa conduta indiscreta de sua irmã
reanimara os dissentimentos. do verão anterior; na primavera, ao
reunir-se–lhe, e sabendo que ela tem certo costume de enredar as coisas,
dissera-lhe: "Prometa-me não tocar de novo naquela história de Lou Salomé
e de Paulo Rée." Durante três meses ela se contivera, mas, em seguida,
faltou à sua promessa e falou. Ignoramos o que disse, e, de novo a obscuridade
desta história nos envolve. "Lisbeth, — escreve Nietzsche à senhora
Overbeck — quer se vingar a todo o custo da jovem russa. ." Sem dúvida,
Lisbeth lhe relatara algum fato, ou alguma conversa que ele ignorava. Uma
irritação doentia apoderou-se dele, e, sob seu influxo, escreveu a Paulo Rée a
seguinte carta, da qual se achou um rascunho (embora não seja seguro que tenha
sido enviada tal como aqui a lemos):
Com grande atraso,
quase com um ano de atraso, vim a saber o papel que o senhor desempenhou nos acontecimentos
do último verão, e jamais tive a alma tão cheia de asco como a tenho agora, ao
pensar que um indivíduo da sua espécie, insidioso, embusteiro e falso, pôde, durante
anos, chamar-se de meu amigo. A meu ver, isto / um crime, e não somente contra
mim, mas antes e, sobretudo, contra a amizade, contra essa vazia palavra
amizade.
… Teria um grande
prazer em lhe dar uma lição de moral prática, com um par de pistolas; talvez
conseguisse, na melhor das hipóteses, interromper definitivamente seus
trabalhos sobre a moral. Nestes trabalhos, é preciso ter as mãos limpas e não
os dedos sujos, senhor doutor Paulo Rée!
Esta carta não é
suficiente para condenar Paulo Rée. Nietzsche escreveu-a arrebatado pela cólera
e atendendo a informações de sua irmã, quase sempre mais arrebatada do que
verídica. A carta tem valor como testemunho precioso da impressão causada em
Nietzsche pelo caso; mas é um fraco testemunho dos antecedentes mal conhecidos
da questão.
Qual foi a conduta de
Paulo Rée, quais as suas culpas e quais os seus direitos? Em abril de 1883,
seis meses depois das dificuldades de Leipzig, Rée propusera a Nietzsche dedicar-lhe
uma obra sobre as origens da consciência moral — Obra totalmente inspirada nas
idéias nietzschianas. Nietzsche recusara esta homenagem pública, escrevendo a
Peter Gast: "Não quero que se me confunda com ninguém". Uma carta
escrita por Jorge Brandes, em 1888, mostra-nos Paulo Rée vivendo em Berlim com
a senhorita Salomé "fraternalmente", segundo ambos dizem. Não é de
duvidar que Rée ajudasse a senhorita Salomé, em 1893, a escrever o seu livro sobre Frederico Nietzsche, livro muito inteligente e muito nobre. Inclinamos-nos
a crer que entre aqueles dois homens só houve um contratempo: o amor comum
que a mesma mulher lhes inspirou. ,
Frederico Nietzsche
escreve longas cartas febris. Lamenta ver-se, depois dos quarenta anos, traído
por seus amigos. Franz Overbeck, inquieto, sobe a Sils para o distrair da
solidão em que ele se debate e se consome. Sua irmã, pessoa prudente, de gostos
burgueses, dá-lhe conselhos em resposta às suas lamentações. "Está
sozinho, é certo, mas você não procurou a solidão? Entre a serviço de alguma
Universidade; quando tiver um título e alunos, será conhecido e seus livros já
não cairão no vácuo…" Nietzsche ouve de mau humor estes conselhos, mas
acaba aceitando-os e se dirige ao reitor da Universidade de Leipzig, o qual,
sem demora, aconselha-o a que não tente, pois que nenhuma Universidade alemã
poderia aceitar entre os seus professores um ateu, um anticristão declarado.
"Esta resposta me devolveu a coragem" — escreve ele a Peter Gast, e
manda a sua irmã uma carta em termos rudes, que ferem Lisbeth:
Sem dúvida convém
que eu seja ignorado; mais ainda: convém que eu próprio vá ao encontro da
calúnia e do desprezo. Meus "próximos" são os primeiros a se porem
contra mim: assim o compreendi no último verão, e, magnificamente, tive
consciência de que me achava no meu caminho.
Quando me ocorre pensar "não posso suportar mais a solidão" — sinto-me
em rebelião contra o que há de mais elevado em mim.
Em setembro dirigiu-se
a Naumburg, onde tinha o propósito de se demorar algumas semanas. Sua mãe e
sua irmã inspiravam-lhe sentimentos complexos que escapam à análise. Amava-os
por serem seus e porque ele era terno e fiel, e infinitamente sensível às
recordações. Mas cada uma de suas idéias, cada um de seus desejos afastavam-no
deles e seu espírito desprezava-os. Não obstante, a velha casa de Naumburg era
o único lugar do mundo onde ainda encontrava — com a condição de não se demorar
nela muito tempo — certa doçura da vida.
Encontrou a mãe e a
filha em plena discórdia. Lisbeth havia-se enamorado de um tal Förster,
agitador, ideólogo germanista, anti-semita e que organizava uma empresa de
colonização no Paraguai. Lisbeth queria casar-se com ele e segui-lo e sua mãe,
desesperada, tentava retê-la. A senhora Nietzsche recebeu seu filho como um
salvador e narrou-lhe os insensatos projetos de Lisbeth. Nietzsche ficou
consternado. Conhecia aquele homem e suas idéias e desprezava as paixões
baixas e torpes que sua propaganda suscitava; desconfiava, até, que esse tal Förster
falara mal de sua obra. Que Lisbeth, sua companheira de infância seguisse
aquele homem, era mais do que podia suportar. Chamou-a e falou-lhe com
violência. Ela, porém, replicou com energia. A moça, embora franzina
Em meados de novembro,
abandona Gênova, e, seguindo a costa ocidental, põe-se em busca de um retiro
para o inverno. Deixa para trás San Remo, Menton, Mônaco e detém-se em Nice,
que o encanta. Encontra ali esse ar vivo, essa plenitude de luz e esses dias
transparentes que tão necessários lhe são. "Luz, luz, luz! — escreve. —
Eis-me aqui de novo em equilíbrio." Desagrada-lhe a cidade cosmopolita, e
de início, aluga um quarto numa casa da velha cidade italiana, não Nice, mas
Nizza, como ele escreve sempre. Tem por vizinhos gente do povo, trabalhadores,
pedreiros, empregados e todos, falam italiano. Foi em condições semelhantes
que em Gênova, em 1881, encontrara certa felicidade.
Afugenta os
pensamentos vãos e faz um enérgico esforço para terminar o Zaratustra. Mas eis
aqui o maior de seus infortúnios: a dificuldade do seu trabalho é extrema,
talvez insuperável. Terminar o Zaratustra? A obra é imensa. Trata-se de um
poema invocado para fazer esquecer os poemas de Wagner; de um evangelho que
deverá fazer esquecer os Evangelhos. Durante seis anos, de 1875 a 1881, Frederico Nietzsche havia examinado todas as morais e mostrado a ilusão que lhes serve
de base; definiu sua idéia do universo, apresentando-o como um mecanismo cego,
como uma roda que gira eternamente sem objeto. Não obstante, ele quer ser um
profeta anunciador de virtudes e de fins: "Eu sou aquele que dita os
valores para mil anos", diz ele nessas notas em que seu orgulho relampeja.
"Imprimir sua mão nos séculos, como sobre cera; escrever sobre a vontade
dos milênios como sobre o bronze, mais duro que o bronze, mais nobre que o
bronze – eis aqui (dirá Zaratustra) a beatitude do criador."
Que leis, que tábuas
quererá Nietzsche ditar, que valores escolherá para honrá-los ou desprezá-los,
e qual é o seu direito de escolher e construir uma ordem de beleza e de virtude,
dentro da natureza, regida por uma ordem mecânica? Sem dúvida, Frederico
Nietzsche nos responderia que o seu direito é o. direito do poeta cujo gênio,
criador de ilusões, impõe à imaginação dos homens tal amor ou tal ódio, tal Bem
ou tal Mal; mas não por isso deixa de reconhecer a dificuldade de sua empresa,
como confessa na segunda parte, últimas páginas de seu poema: "O perigo
está — diz Zaratustra — em que o meu olhar se dirige para cima ao mesmo tempo
em que minha mão desejaria se agarrar e suster… nó vazio!"
Nietzsche quer
alcançar a meta que se propôs. Neste mesmo verão sentiu a trágica ameaça que
pesa sobre sua vida, e sente impaciência por terminar uma obra que deverá ser,
afinal, a expressão de seus últimos desejos, de seu último pensamento. Tivera
a intenção de acabar o seu poema em três partes; mas duas já estão escritas e
ele não disse ainda quase nada. O drama não está sequer esboçado. É preciso
mostrar Zaratustra em contacto com os homens, anunciando o Retorno Eterno,
humilhando os fracos, fortificando os fortes, destruindo a velha humanidade; é
preciso mostrar o Zaratustra legislador, ditando suas Tábuas, morrendo, afinal,
de piedade e de alegria, na contemplação de sua obra. Sigamos as notas de
Nietzsche:
Zaratustra alcança,
ao mesmo tempo, o extremo desespero e a maior felicidade. No mais terrível
instante do contraste, sucumbe.
A história mais
trágica, com um desenlace divino.
Zaratustra se faz
gradualmente, maior. Sua doutrina se desenvolve à medida que ele cresce.
O Retorno Eterno brilha como um sol poente sobre a
última catástrofe.
Na última parte,
grande síntese de quem cria, ama e destrói.
No mês de agosto,
Nietzsche, imaginara um desenlace. Suas disposições intimas eram, então,
adversas, e o trabalho ressentira-se disso. Volta, pois ao esquema, e procura
tirar partido dele. O que deseja escrever é um drama. Situa a ação num lugar
antigo, numa cidade devastada pela peste. Os habitantes desejam iniciar uma
nova era; procuram um legislador, e chamam Zaratustra, que desce até eles
seguido de seus discípulos.
— Vão — diz-lhes — e
anunciem o Retorno Eterno… Os discípulos têm medo, e confessam-no:
— Nós podemos
suportar a tua doutrina — dizem — mas podê-lo-á também esta multidão?
— Devemos fazer um
ensaio com a verdade! — responde Zaratustra. — Essa verdade deve destruir
a humanidade, pois bem, que assim seja!
Os discípulos
continuam vacilando. E então, Zaratustra ordena:
— Eu pus em vossas
mãos o martelo que há de forjar a humanidade — utilizai-o!
Mas os discípulos
temem o povo, e abandonam seu mestre. Zaratustra, então fica só. A multidão se
espanta, se irrita e enlouquece ouvindo-o:
Um homem suicida-se,
outro enlouquece. Um divino orgulho de poeta anima Zaratustra: Tudo deve
ser trazido à luz. Mas, no momento em que, simultaneamente, anuncia o Retorno
Eterno e o Super-homem, cede à piedade.
Todos o renegam. É preciso — dizem — sepultar esta doutrina e matar Zaratustra.
Já não há no
mundo alma alguma que me ame — murmura este — como poderia eu
amar a vida?
E morre de
tristeza, ao descobrir o sofrimento
de que é causa.
— Por amor, causei a
mais violenta dor; agora, sucumbo à dor que causei.
Partem todos, e Zaratustra,
que permaneceu só, toca com a mão sua serpente: Que me aconselha a minha sabedoria? A serpente morde-o;
a águia destrói a serpente, o leão se precipita sobre a águia, e Zaratustra
morre presenciando a luta entre seus animais.
Quinto ato: os
louvores.
A liga de fiéis que
se sacrificam sobre a tumba de Zaratustra. Os fiéis haviam fugido, c agora,
vendo-o morto, tornam-se herdeiros de sua alma e elevam-no à sua altura.
Cerimônia fúnebre: Nós é que o matamos. Os louvores.
O grande meio-dia — Meio-dia e Eternidade.
Não obstante as grandes
belezas que este plano deixa entrever, Frederico Nietzsche abandona-o.
Desagrada-lhe mostrar a humilhação de seu herói? É provável, e, assim, vemo-lo
procurando um desenlace (triunfal. Mas esbarra, principalmente, com uma
dificuldade de fundo, que talvez não conceba claramente: os dois símbolos sobre
os quais repousa o seu poema, o Retorno Eterno e o Super-homem, constituem, em conjunto, um desacordo que torna impossível o acabamento da
obra. O Retorno Eterno é uma áspera verdade, que suprime toda esperança; o
Super-homem é uma esperança e uma ilusão. Não há ponte alguma de um a outro, e
a contradição é completa. Sé Zaratustra ensina o Retorno Eterno, não poderá
despertar nas almas uma crença apaixonada na super-humanidade; e se ensina o
Super-homem não poderá propagar o terrorismo moral do Retorno Eterno. Não
obstante, obrigado a. refugiar-se neste absurdo pela desordem e premência de
seus pensamentos, Nietzsche impõe a Zaratustra essa dupla tarefa.
Compreenderá
claramente o problema? Ignoramo-lo. Jamais confessa estas reais dificuldades
em que tropeça. Se não as vê claramente, porém, sente certo temor e procura uma
saída.
Escreve um segundo
plano, que não deixa de ser habilidoso : a mesma decoração, a mesma cidade
açoitada pela peste, consumida pelas chamas; a mesma súplica a Zaratustra, que
vai até àquele povo dizimado. Vai, porém, como benfeitor, e evita anunciar a
terrível doutrina. Desde inicio, dita as suas leis e fará-las aceitar. Mais
tarde, só mais tarde anunciará o Retorno Eterno. Quais são as leis que ele
ditou? Frederico Nietzsche indica-as. Aqui está uma das páginas, bem raras,
pela qual discernimos a ordem que ele sonhou:
a) O dia,
novamente dividido; exercícios físicos para todas as idades da vida. A
competição como principio.
b) Â nova nobreza e sua educação. Unidade obtida por seleção. Uma festa
para fundação de cada família.
c) . Os ensaios. (Para os maus,
castigo). A caridade renovada pela preocupação das gerações futuras. — Os
maus, respeitáveis como destruidores, pois a destruição é necessária. E também
como fonte de força. Deixar-se instruir pelos maus e não lhes proibir a concorrência.
Utilizar os degenerados. O castigo se justifica quando se utiliza o criminoso
como objeto de experiência (para .uma nutrição neva). O castigo é consagrado
assim…
d) Salvar a mulher, mantendo-a mulher.
e) Os escravos (colméia). As crianças e suas virtudes. Aprender a
suportar o repouso. Multiplicação das máquinas. Transformação das máquinas em
beleza.
Para vocês, fé e servidão!
f) As épocas de solidão. Divisão do tempo e dos dias. A
Alimentação. Simplicidade. Um laço de união entre os pobres e os ricos.
A solidão
necessária de quando em quando, para que o ser penetre em si mesmo e se
concentre..
A Ordenação das
Festas, fundada sobre um sistema de universo: festas das relações cósmicas,
festa da terra, festa da amizade, do grande meio-dia.
Zaratustra explica
as suas leis e as faz amar por todos; repete nove vezes as suas predicações, e
anuncia, por fim, o Retorno Eterno. Fala ao povo, e suas palavras têm um
acento de prece.
O grande problema. No
princípio foram dadas todas as leis. Tudo está preparado para o anúncio do
Super-homem — grandioso e terrível instante! — Zaratustra revela
a doutrina do Retorno Eterno — que agora pode ser suportada; ele próprio
a suporta pela primeira vez.
Momento decisivo: Zaratustra
interroga toda aquela multidão reunida para a festa:
— Quereis que tudo
isto recomece?
— Sim!
Zaratustra morre de alegria.
Ao morrer, está abraçado á terra. E embora ninguém tivesse dito
coisa alguma, todos souberam que Zaratustra estava morto.
É um belo desenlace,
mas Nietzsche não demora em achá-lo demasiado fácil e demasiado bonito. Aquela
aristocracia platônica, instituída um pouco às pressas, deixa-o em dúvidas.
Corresponde exatamente aos seus desejos. Mas, corresponderá aos seus
pensamentos? Hábil em destruir todas as morais anteriores, Nietzsche não
acredita ter o direito de propor tão depressa uma moral nova. Inquieta-o,
também, a aclamação final. Todos respondem: Sim! Será isto concebível?
As sociedades humanas arrastarão sempre após si uma turba imperfeita, à qual só
se fará obedecer pela força, ou pelas leis. Frederico Nietzsche não o ignora:
"Sou um visionário — escreve em suas notas; — mas minha consciência
ilumina inexoravelmente minha Visão e sou eu próprio quem duvida dela."
Termina renunciando a este último plano. Jamais contará a vida ativa, nem a
morte de Zaratustra.
Nenhum documento nos
permite penetrar o segredo de sua tristeza: nenhuma carta, palavra alguma a
expressam. Consideremos este silêncio como uma confissão de sua angústia c de
sua humilhação. Não são, por acaso, certas? Frederico Nietzsche desejava sempre
escrever uma obra clássica, — um livro de história, um sistema, um poema —
digna dos antigos gregos que escolhera por mestres, mas jamais pudera dar
forma a esta ambição. Ao finalizar aquele ano de 1883, acabava de fazer uma
tentativa quase desesperada; a abundância e a importância de suas notas
permitem-nos medir a grandeza que foi absolutamente estéril. Ele nem consegue
fundar sim meia moral nem compor o seu poema trágico. Frustra, ao mesmo
tempo, suas duas obras e vê desvanecer-se seu sonho. Que é ele, afinal de
contas? Um infeliz, capaz, unicamente, de esforços breves, de cantos líricos e
de lamentações.
O ano de 1884 começava
tristemente. Alguns dias formosos que por acaso fez em janeiro, reanimaram-no.
Subitamente, ele improvisa: nada de cidades, nem de povos, nem de leis; uma
desordem de queixas, apelos e de fragmentos morais que se diria escombros
subsistentes da maior obra em ruínas. Tal é a terceira parte do Zaratustra. Como Nietzsche, o profeta vive só, retirado na montanha. Fala para si próprio,
ilude-se, esquece que está só. Ameaça e exorta uma humanidade que nem o teme,
nem o escuta. Preconiza o desprezo das virtudes habituais, o culto do valor, o
amor da força e das gerações que nascem. Não desce, porém, até ela, e ninguém
ouve a sua predica. O profeta sente-se triste e deseja morrer. E então, a
Vida, que surpreende o seu desejo, chega até ele e reanima-o:
— Oh, Zaratustra! —
diz a deusa — não estales o teu chicote, porque esse som é insuportável! Tu bem
sabes que o ruído assassina os pensamentos… E se soubesses que pensamentos
tão ternos me ocorrem! Ouve: não me és bastante fiel, não me amas tanto como
dizes; sei que pensas me abandonar.
Zaratustra ouve a
reprimenda, sorri, e demora em responder.
— Confesso — diz
afinal. — Mas tu sabes tão bem como eu que.
E inclinando-se para a
deusa diz-lhe algo ao ouvido. Adivinhamos á palavra segredada: Que importa que
eu morra! Nada se separa e nada se aproxima, pois cada instante tem o seu
retorno — cada instante é eterno.
— Como! — responde a
deusa — tu sabes disso, Zaratustra? Mas… se ninguém o sabe!…
Seus olhares se
cruzam. Olham-se. Olham juntos para o prado que ondula sob o frescor da tarde;
choram, e, depois, silenciosos, ouvem e compreendem as onze sentenças do velho
sino que bate meia-noite na montanha.
Uma! Oh, homem, alerta!
Duas! Que diz a profunda meia-noite?
Três! Tenho dormido… tenho dormido!…
Quatro! De um pesado sono despertei!…
Cinco! O mundo é profundo.
Seis! Mais profundo do que o dia imaginava.
Sete! Profunda é sua dor…
Oito! Mais profunda, porém, do que a aflição, é a alegria.
Nove! A dor diz: Passa e termina!
Dez! Mas toda a alegria deseja a eternidade…
Onze! Deseja a profunda eternidade!
Doze!
Então, Zaratustra se
põe em pé. Recobrou a segurança, a doçura e a força. Toma novamente seu cajado
e desce, cantando, para os homens, Um mesmo versículo termina as sete estrofes
do seu hino:
"Nunca encontrei
a mulher com a qual desejaria ter filhos, afora esta mulher que amo — pois eu
te amo, oh, Eternidade!
Eu te amo, oh,
Eternidade!"
No começo do poema, Zaratustra
entrava na grande cidade, "a vaca multicolor" (assim a chama ele) e
iniciava seu apostolado. Ao fim da terceira parte, Zaratustra, desce para a
grande cidade, para recomeçar, nela, seu apostolado. Frederico Nietzsche,
lutador vencido, em dois anos de esforço e de canseiras — retrocedeu… Era
1872 enviava à senhorita de Meysenbug a série interrompida de suas conferências
sobre o futuro das Universidades: "Isto dá uma sede terrível! — dizia —
e, depois, nada para beber!" Estas mesmas palavras se podem aplicar ao
seu poema.
A VISITA DE
HEINRICH VON STEIN
No mês de abril de
1884 Frederico Nietzsche publica simultaneamente as segunda e terceira parte
do Zaratustra. Nesse momento parece feliz.
"Tudo chega a seu
tempo — escreve a Peter Gast em 5 de março — tenho quarenta anos e me encontro
exatamente no ponto que me propunha aos vinte. Foi uma grande, formosa e
formidável viagem!"
"Com você —
escreve a Rohde — que é um homo literatus não quero reter esta
confissão: parece-me que com esse Zaratustra levei ao seu ponto de perfeição a
língua alemã. Depois de Lutero e de Goethe, havia um terceiro passo a dar.
Diga-me, velho e querido camarada, se a força, a flexibilidade e a beleza do
som já estiveram alguma vez tão bem combinadas em nossa língua… Meu estilo é
um bailado: jogo com simetria de toda espécie e até a própria escolha das
vogais é um jogo."
Esta alegria dura
pouco. Nietzsche não sabe que novo trabalho iniciar, e seu ardor, sem
ocupação, converte-se em cansaço. Escreverá o seu sistema, ou alguma “filosofia
do futuro”? Pensa nisso um instante: Mas não. Cansado de pensar e de
escrever, gostaria de descansar ao som de uma bela música. Que música escolher,
porém? Ah! Aquela que ele poderia amar, não existe. A italiana é suave; a alemã,
pedante — nenhuma para o seu gosto. Nenhuma bastante lírica e viva, grave e
delicada, rítmica, irônica e apaixonada. Carmen agrada-lhe bastante; no
entanto, à Carmen prefere as composições de seu discípulo Peter Gast.
"Sua música! — escreve-lhe — tenho necessidade de sua
música…"
Peter Gast achava-se
instalado em Veneza; Nietzsche deseja reunir-se-lhe, mas Veneza é úmida, e ele
não se atreve a abandonar Nice até meados de abril. A luz chegou a ser para ele
uma exigência de enfermo, cada ano mais imperiosa; um dia sem luz entristece-o;
oito dias sem luz destroem-no.
Em 21 de abril chega a
Veneza. Peter Gast instala-o não longe de Rialto. A janela do seu quarto
abre-se sobre o Grande Canal e dali ele pode gozar o espetáculo da admirável
cidade, depois de uma ausência de quatro anos. Sua alegria é realmente a de
uma criança. Vaga por aquele dédalo veneziano, animado pelas surpresas do sol e
da água, pela graça de um povo discreto e alegre, os jardins imprevistos, os
musgos e as flores crescidos entre as pedras. "Cem profundas solidões —
anota — juntas compõem Veneza — e dai, sua magia. Um símbolo para os homens do
futuro." Caminha pelas vielas estreitas, como se andasse pelas montanhas,
durante quatro ou cinco horas diárias. Tão depressa se mistura com a multidão
italiana, como se isola, e sem cessar reflete nas dificuldades do seu
trabalho.
Pergunta a si mesmo o
que escreverá. Pensara comentar, numa série de folhetos, alguns versículos do
seu poema. Mas ninguém se dignou ler as palavras de Zaratustra. Seus amigos já
o leram. Ele espera suas cartas, mas não recebe nenhuma — triste silêncio que
o surpreende continuamente. Um jovem escritor, Heinrich. von Stein é quase o único que lhe dirige palavras calorosas. Nietzsche renuncia ao seu propósito,
sentindo o ridículo que seria comentar uma Bíblia ignorada pelo público.
Pelos meados de junho
sai de Veneza. Ocupam-no diferentes projetos: pensa muito seriamente na sua
"filosofia do futuro" e decide abandonar, ou pelo menos adiar o
poema, para poder se dedicar a longos estudos — "cinco ou seis anos, talvez,
de meditação e de silêncio" — e chegar a formular seu sistema de maneira
precisa e definitiva. Dirige-se à Suíça, a fim de ler livros de ciência
histórica e natural na biblioteca de Basiléia; mas a sua permanência ali é
curta. O calor sufocante deprime-o; os amigos de Basiléia não o satisfazem: ou
não leram o Assim falava Zaratustra, ou leram-no muito mal.
"Encontrava-me entre eles como entre vacas", escreve a Peter Gast — e
dirige-se para Engadina.
Em 20 de agosto
recebeu umas linhas de Heinrich von Stein anunciando-lhe sua chegada.
Quem era este
visitante? Um homem muito jovem; pois que tinha apenas vinte e seis anos, mas
não havia na Alemanha um escritor no qual se tivessem depositado maiores esperanças.
Em 1878 publicara um pequeno volume intitulado Die Ideale des Materialismus,
Lyrisçhe Philosophie. Frederico Nietzsche, reconhecendo neste ensaio uma
tentativa análoga à sua, entabular relações com o autor, acreditando haver encontrado
um espírito semelhante ao seu, e um companheiro de trabalho; uma vez mais,
porém, sua esperança frustrou-se. A senhorita de Meysenbug, mais benévola do
que perspicaz (era este, talvez, seu único defeito), acreditou não poder fazer
nada melhor do que conduzir Heinrich von Stein para o circulo de Wagner, e lhe
abriu as portas do mestre, sendo ele admitido como o fora Nietzsche dez anos
antes. Von Stein viveu naquele ambiente, e em vão Nietzsche o preveniu várias vezes. "Você admira Wagner. Muito bem. Mas cuidado para
que isso não dure demasiado tempo." Heinrich von Stein não soube resistir
nem emancipar-se. Wagner fala e ele ouve devotadamente. Sua busca intelectual,
até então inquieta e fecunda, se detém; Stein fecha seus cadernos de notas: foi
conquistado por um homem demasiado grande; foi, por assim dizer, aspirado,
esgotado. As obras que publicou (Stein morreu aos trinta anos) são penetrantes
e sóbrias; falta-lhes, porém, uma qualidade — a mesma qualidade que deu tanto
valor aos Seus primeiros ensaios: a audácia e a temeridade, o encanto das
idéias nascentes, inseguras e apressadas.
Frederico Nietzsche
continuara interessando-se por Stein, é vigiava seus trabalhos e amizades.
"Heinrich von Stein — escrevia em julho de 1883 à senhora Overbeck, — é
agora o adorador da senhorita Salomé. Meu sucessor neste emprego como em
tantas outras coisas." O perigo em que se achava o moço fazia-lhe pena.
Heinrich, no entanto, lia e apreciava os livros de Nietzsche, coisa que este
sabia com natural complacência. Quando recebeu a carta de Stein, sentiu-se estranhamente
emocionado.
Qual a razão dessa
visita? Stein parecia haver compreendido Assim falava Zaratustra; haveria
esse livro lhe inspirado um desejo de liberdade? Iria Nietzsche conquistar para
a sua causa, em compensação de tantos amigos perdidos, a este que por si só
valia mais que todos os outros juntos? Iria conquistar o discípulo de Wagner, o
filósofo de Bayreuth? Podia, realmente, esperar esta desforra? Respondeu sem demora
a Stein, dando-lhe as boas vindas, e assinou: "O solitário de
Sils-Maria".
Talvez possamos
atribuir a esta visita uma razão secreta que Nietzsche não suspeitara. Se
Heinrich von Stein, íntimo e fiel amigo de Cosima Wagner foi procurar
Nietzsche, seguramente não o fez sem a aprovação e os conselhos desta mulher
tão prudente. Até aquele momento de sua vida, Nietzsche não atacara Wagner,
limitando-se apenas a separar-se dele. Por outra parte, em julho de 1882
parecia consentir numa reconciliação. A tentativa da senhorita de Meysenbug,
autorizada ou não por ele, fazia-o pensar. Mais tarde, em fevereiro de 1883,
por motivo da morte de Wagner, Nietzsche escrevera a Cosima. Realmente, até
então, soubera evitar as palavras irreparáveis, e sua última obra, o final do
próprio Zaratustra, de um lirismo impreciso, permitia a esperança de um acordo.
Esta era, pelo menos, a esperança de Stein, que, em maio de 1884, escrevia a
Nietzsche:
Como desejo que o
senhor venha a Bayreuth neste verão para ouvir Parsifal!… Quando penso
nesta obra, imagino uma forma de beleza pura, uma aventura espiritual
puramente humana, o desenvolvimento de um adolescente que se converte em
homem. Para mim não há no Parsifal o menor pseudo-cristianismo, e me
parece a menos tendenciosa das obras de Wagner. Expresso-lhe o meu desejo — com audácia e timidez ao mesmo tempo — não porque seja wagneriano,
mas porque desejo para o Parsifal um ouvinte como o senhor, e a um
espectador como o senhor, desejo o Parsifal.
Cosima Wagner não
errava em seu juízo. Conhecia o valor de Nietzsche. Carregando, como carregava
sobre si próprio o peso de uma herança esmagadora, obrigada a manter uma
glória e a continuar uma tradição, é lógico que lhe ocorresse que, atraindo de
novo aquele homem raro e singular, extenuado em solitários esforços, podia
ajudá-lo ao mesmo tempo em que se ajudava a si mesma. Teria sido ela quem
escolhera Heinrich von Stein como emissário e conciliador? Pelo menos, é de se
supor que conheceu de antemão e não desaprovou a tentativa do moço.
Se existia algum
wagneriano capaz de tal empresa, era seguramente este. Stein era o mais livre
dos discípulos. Não aceitava como religião definitiva o misticismo duvidoso que
o Parsifal propagara, e encerrava numa mesma tradição Schiller, Goethe
e Wagner, criadores de mitos, educadores de seu século e de sua raça. O
teatro de Bayreuth era para ele não a apoteose de uma obra, mas a
promessa e o instrumento de obras novas — o signo de uma tradição lírica.
Que se passou na
entrevista? Não é difícil imaginá-lo. Stein procurou cumprir sua delicada
missão, mas pouco falou. Nietzsche é que tomou a palavra e se fez ouvir. Que
disse ele? Talvez isto: ;
— Você admira Wagner?
Mas quem não o admira? Eu o conheci, venerei e escutei tanto como você, mais do
que você. Aprendi com ele não o estilo de sua arte, mas o estilo de sua vida: o
valor da iniciativa. Sei que me acusam de ingrato. Mas esta é uma palavra que
não entendo. Prossegui no meu trabalho. Sou, no melhor sentido da palavra, um
discípulo. Você freqüenta Bayreuth, e sabe quanto aquilo é agradável;
realmente, agradável demais. Wagner nos oferece o gozo de todas as lendas, de
todas as crenças do passado, germânicas, celtas, pagas e cristãs. Mas este
gozo é nefasto para um espírito que investiga. Aqui está a razão do meu afastamento.
E esta é a razão pela qual você deve se afastar. Entenda-me bem. Eu não
maldigo a arte nem a religião. Creio que voltará o tempo de uma e de outra.
Nenhum dos antigos valores será abandonado; todos reaparecerão, transfigurados,
sem dúvida mais poderosos, mais intensos, num mundo iluminado até ao fundo
pela ciência. Tudo o que, em meninos e adolescentes amamos; tudo o que
sustentou e exaltou a nossos pais — tudo tornaremos a encontrar.
Voltaremos a encontrar um lirismo e uma bondade, as virtudes mais sublimes e
também as mais humildes — cada uma em sua glória e em sua dignidade. Antes,
porém, é preciso concordar com a noite, é preciso renunciar e procurar… As
promessas são inauditas, mas eu me sinto fraco, à força de solidão. Ajude-me.
Fique, ou, pelo menos, volte aqui a seis mil pés acima de Bayreuth! (*).
Stein ouvia Nietzsche.
Seu diário deixa ver a crescente vivacidade de suas impressões: "24, VIII,
84, Sils-Maria. Passo a noite com Nietzsche. Espetáculo desolador. — 27. Sua
liberdade de espírito, sua palavra cheia de imagens; grande impressão. Neve e
vento de inverno. Dores de cabeça. À noite vejo-o sofrer. — 28. Ele não dormiu,
mas sente-se cheio de ardor, como um mocinho. Dia de sol, magnífico."
O jovem emissário
partiu após três dias, muito emocionado pelas horas que acabava de passar.
Prometeu a Nietzsche encontrar-se com ele em Nice; pelo menos, assim o entendeu
Nietzsche, e teve a sensação de haver conseguido uma grande vitória. "Um
encontro como o nosso não pode deixar de ter grandes conseqüências — escreve a
Stein alguns dias após sua partida. —Pelo menos, podemos ficar seguros de uniu
coisa: que desde este momento, você pertence ao pequeno número daqueles cujo
destino, para o bem e para o mal, se encontra ligado ao meu destino."
Stein respondeu: "Os dias de Sils-Maria são para mim uma grande
recordação, um grave e solene instante da vida…" Mas não escreve:
"Sim, sou seu…" Fala, com prudência, de seus trabalhos e de sua
profissão, que o retém.
(*) Esta última
frase foi tirada de uma passagem de Ecce Homo. (N. do A.).
Achava-se o espírito
de Nietzsche bastante claro para perceber esta reserva? Não parece. Fazia
projetos maravilhosos e sonhava, de novo, com o claustro ideal. Escreve
à senhorita de Meysenbug propondo-lhe, com simplicidade, que fosse passar o
inverno em Nice, ao seu lado.
Em setembro desce para
Basiléia, e um acaso nos permite sondar os abismos de sua alma.
Overbeck vai visitá-lo
ao hotel. Nietzsche se encontra de cama, com enxaqueca e muito deprimido. No
entanto, fala, e a confusão de suas palavras inquieta o amigo. Nietzsche quer
iniciá-lo no mistério do Retorno Eterno: "Um dia voltaremos a nos
encontrar novamente: eu, outra vez doente como agora; você, como agora
surpreendido com as minhas palavras. .."
Seu rosto está mudado.
Fala em voz baixa e trêmula, como nos descrevera Lou Salomé. Overbeck ouve com
doçura, evita toda a discussão e se retira com mau pressentimento. Já não
voltaria a ver seu amigo até ao trágico encontro de Turim, no mês de
janeiro de 1889.
Frederico Nietzsche
apenas atravessou Basiléia. Sua irmã, que não o via desde os distúrbios do
outono passado, combinara com ele encontro em Zurich. Queria lhe anunciar o
seu casamento, realizado em segredo fazia já alguns meses.
E realmente, diz-lho.
Já não é a senhorita Nietzsche, mas sim a senhora Förster, que se prepara para
partir para o Paraguai com os colonos que seu marido dirige. Frederico Nietzsche
não discute nem a recrimina por um fato consumado; ao contrário, esforça-se por
ser amável pela última vez com sua irmã, já definitivamente perdida para ele.
"Encontrei meu
irmão em estado muito favorável — escreve Lisbeth — encantador e alegre.
Vivemos juntos oito dias, falando e rindo de tudo."
E descreve esses dias
que ela crê — ou finge crer — ditosos. Frederico Nietzsche vê na vitrina de uma
livraria as obras de um poeta popular e medíocre, Freiligrath, e na capa do
volume, estas palavras: 38a. Edição. "Este — exclama Nietzsche com
solenidade cômica — este é um verdadeiro poeta alemão: os alemães compram seus
versos!" E, sentindo-se também um bom alemão naquele dia, compra um
volume, lê-o e diverte-se muito com ele, Declama os pomposos hemistíquios:
Wüstenkõnig
ist der Lõwe,
Will er sem Gebiet durchstreifen…
(O leão é o rei dos desertos;
Deseja percorrer os seus domínios…)
Diverte-se
improvisando, sobre todos os gêneros de temas, versos à Freiligrath, e o hotel
de Zurich ressoa com suas risadas infantis.
— Que é que os faz rir
tanto? — pergunta um velho general aos dois irmãos. — Só de os ouvir, a gente
fica com vontade de rir também.
A verdade, porém, é
que Frederico Nietzsche não tinha grandes motivos para riso. Poderia, acaso,
pensar sem amargura nas trinta e oito edições de Freiligrath? Naqueles dias
mesmo ia à biblioteca de Zurich e percorria as coleções de revistas e jornais,
procurando nelas seu nome. Que não haveria dado para ver sua obra julgada por
um bom juiz, para ver seu pensamento refletido por um outro espírito! Desejo
vão:
"O céu aqui está
formoso, digno de Nice, e isto já dura há vários dias — escreve ele a Peter
Gast em setembro. — Minha irmã está comigo; é muito agradável fazer-se bem mutuamente,
quando faz tempo que não nos fazíamos senão dano… Tenho a cabeça repleta dos
mais extravagantes poemas que hajam em qualquer tempo freqüentado o cérebro de
um lírico. Recebi uma carta de Stein. Este ano me trouxe muitas coisas boas, e
Stein é um dos seus dons mais preciosos: um novo e sincero amigo.
Enfim, vivamos cheios
de esperança, ou, para nos expressarmos melhor, digamos, com o velho Keller:
Trinkt, o Augen, "was die Wimper hält Von dem goldnen Ueberfluss der
Welt! (Bebei, ó meus olhos, o que vossas pestanas encerram Do dourado excesso
do mundo!) Os dois irmãos partem de Zurich dirigindo-se, uma para Naumburg e o
outro para Nice. De passagem, Nietzsche faz alto em Mento. "O lugar é
magnífico — escreve, apenas instalado. — Já descobri oito passeios. Que
ninguém me venha visitar. Necessito desta absoluta tranqüilidade."
Que faz ele? Recordará
o projeto que fizera nos começos do verão: "seis anos de meditação e de
silêncio"? Não! A meditação longa e silenciosa supõe uma força
de vontade que ele não tem. Emocionado pela esperança de ter um amigo e pela
perda de uma irmã, não pode conter sua paciência lírica e, cedendo ao instinto,
improvisa cantos lieder, estâncias breves, epigramas. Quase todos os
poemas se encontram em suas últimas obras — versos ligeiros, dísticos mordazes,
insertos na segunda edição de La Gayá Scienza, grandiosos Cantos
Dionisíacos — foram terminados ou concebidos durante aquelas
semanas. E de novo pensa na obra ainda sem concluir, no Assim falava Zaratustra. "São inevitáveis uma quarta, uma quinta e uma sexta partes — escreve.—
De qualquer modo, é forçoso que conduza meu filho Zaratustra até sua morte bem-aventurada.
Realmente, ele não me dá sossego."
Outubro passou.
Nietzsche deixa Menton, onde se aflige com o grande número .de doentes, e
dirige-se para Nice.
Um imprevisto
companheiro logo se reúne a ele: Paulo Lanzky, um intelectual que fazia vida de
vagabundo, alemão por nascimento e florentino por gosto. Um acaso pusera em
suas mãos as obras de Nietzsche e ele as compreendera. Com o intuito de
conhecer o endereço do autor, escrevera ao editor Schmeitzner. "O senhor
Frederico Nietzsche vive solitário na Itália. Escreva-lhe para Gênova, Posta
Restante" — haviam-lhe respondido. Assim fizera, e o filósofo, sem dúvida
menos selvagem e solitário do que se dizia, respondera pronta e afàvelmente:
"Venha a Nice neste inverno, e falaremos…" Esta troca de cartas
dera-se durante o outono de 1883. Lanzky, que nó momento não se encontrava
livre, desculpou-se, mas em outubro de 1884, correu ao encontro marcado. Entrementes, tivera
ocasião de conhecer as duas últimas partes do Zaratustra, e publicado,
em um magazine de Leipzig e na Revista Européia de Florença, resenhas
muito inteligentes das ditas obras.
Na mesma manhã de sua
chegada, Lanzky foi bater à porta de Nietzsche, que lhe foi aberta por um
homem doce e sorridente.
— Also Sie sind
gekommenl — exclamou Nietzsche — (Ei-lo aqui, afinal!).
E agarrou-o por um
braço, desejoso de examinar detidamente aquele leitor dos seus livros.
— Bem, vamos ver que
tal é o senhor.
E fitou-o com aqueles
olhos antigamente tão formosos e que o eram ainda, uma ou outra vez, embora
empanados pelos prolongados sofrimentos.
Lanzky, que fora
apresentar suas homenagens a um temível profeta, assombrou-se de encontrar o
mais afável, mais simples e, em aparência, mais modesto dos professores alemães.
Os dois homens saíram
juntos. Lanzky confessou sua surpresa.
— Mestre. .. —
disse.
— É o senhor o
primeiro que me chama assim! — exclamou Nietzsche sorrindo. Mas, como sabia
que era mestre, deixou-o continuar,
— Mestre, como se
adivinha pouco do senhor através dos seus livros! Explique-me…
— Não. Hoje, não. O
senhor não conhece Nice. Vou fazer-lhe as honras do seu mar, de suas montanhas
e dos seus passeios… Outro dia, se quiser, falaremos.
Só voltaram para casa
às seis da tarde, e Lanzky soube, pelo menos, que infatigável andarilho era o
seu profeta.
Organizaram sua vida
comum: Frederico Nietzsche tomava só, ai pelas seis e meia da manhã, uma
xícara de café que ele mesmo preparava; às oito, Lanzky batia-lhe à porta,
perguntava-lhe como passara a noite (freqüentemente dormia mal) e no que
empregara a manhã. Nietzsche começava quase todos os dias folheando os jornais
num salão público de leitura; em seguida, dirigia-se à praia, Lanzky reunia-se,
então, a ele, ou então respeitava o seu passeio solitário. Ambos tomavam a
primeira refeição na sua pensão. À tarde, passeavam juntos e à noite, Nietzsche
escrevia ou Lanzky lia para ele em voz alta, em geral um livro francês: as
cartas do abade Galiani, o Vermelho e Negro, A Cartuxa de Parmá ou Armancia, de Stendhal.
Mais de uma vez Lanzky
teve que se surpreender com a maneira de ser de Frederico Nietzsche. Aquele
solitário de mesa redonda construíra para si mesmo uma atitude fictícia, e
quase disfarçada, uma verdadeira arte de viver cortesmente sem revelar o
segredo de sua vida. Certo domingo, uma moça perguntou-lhe se estivera no
templo.
— Não. Hoje não
estive — respondeu amavelmente.
Lanzky admirou esta
resposta prudente. Frederico Nietzsche explicou-lhe: "Nem todas as
verdades são boas para todos. Eu ficaria desolado se tivesse perturbado os
pensamentos dessa moça. . ."
Às vezes,
divertia-se anunciando sua glória futura:
— Dentro de quarenta
anos serei ilustre na Europa — afirmava aos seus vizinhos de mesa.
— Empreste-nos seus
livros — pediam. E Nietzsche negava-se terminantemente.
— Meus livros não
devem ser lidos pelos primeiros que aparecem — explicava a Lanzky.
— Por que os manda
imprimir, então, Mestre?
E parece que a esta
razoável pergunta não se deu resposta alguma satisfatória.
Nietzsche, porém,
dissimulava até com o próprio Lanzky. Gostava de repetir e desenvolver diante
dele o seu velho sonho de uma sociedade de amigos, espécie de falanstério idealista,
semelhante àquele em que vivera Emerson. Levava-o freqüentemente até à
peninsulazinha de São João:
— Aqui — dizia ele
parafraseando uma frase pública — "aqui levantaremos nossas
cabanas"
Havia, até, escolhido
um grupo de pequenas "vilas" que lhe pareciam adequadas ao seu
desígnio. Que hóspedes aceitaria?
Esta questão
permanecia um tanto vaga, e o nome de Heinrich von Stein, o único amigo, o
único discípulo que ele ardentemente desejara, nunca foi pronunciado diante de
Lanzky.
Stein não anunciava a
sua chegada, nem dava sinal de vida. Qual seria, no momento, o seu estado de
ânimo? Ele fora a Sils-Maria para tentar a reconciliação dos dois mestres. Mas
um deles lhe dissera: é necessário escolher entre os dois. Talvez Stein tivesse
vacilado por um instante, mas regressara à sua Alemanha, tornara a ver Cosima
Wagner, e, pois que Nietzsche exigira que escolhesse, permanecia fiel a Wagner.
Nietzsche pressentiu a
nova deserção. Teve medo, e cedendo a um humilde e triste impulso, escreveu em
forma de poema um doloroso apelo que dirigiu ao moço:
Oh Lebens
Mittag! Feierliche Zeit!
Oh Sommergarten!
Unruhig Glück in Stehn und Spáhn und Warten!
Der Freunde karr’ ich, Tag und Nacht bereit;
Wo bleibt ihr, Freunde? Kommt! s’ist zeít! s’ist zeití
Oh meio-dia da
vida, Momento Solene!
Oh jardim de verão!
Felicidade inquieta: aqui estou, à espreita, esperando!
Noite e dia vivo esperando o amigo;
Onde estais, amigos? Vinde! Já é tempo! Já é tempo!
Heinrich von Stein
viu-se obrigado a responder, e escreveu :
Querido senhor:
A um apelo como o
seu só convém uma resposta: Ir entregar-me inteiramente, dedicar, como à mais
nobre das tarefas, todo o meu tempo à inteligência das coisas novas que o
senhor tem para dizer. Isto me é vedado. Ocorreu-me, porém, uma idéia: Todos os
meses reúno em torno de mim dois amigos e leio com eles um artigo do
Wagner-Lexicon, tomando-o como texto e conversando com eles sobre o mesmo.
Estas conversações são cada vez mais elevadas e livres. Ultimamente,
encontramos esta definição da emoção estética: uma passagem para. o impessoal,
através da própria plenitude da personalidade. Creio que o senhor gostaria
destas conversações, e ocorreu-me a seguinte idéia: Não seria excelente que
Nietzsche nos enviasse de vez em quando um texto para as nossas palestras? Quererá o senhor comunicar-se
assim conosco? Não quereria ver em uma conversação assim a introdução, o início
de seu claustro ideal?
É á carta de um bom
aluno. Stein cita Wagner não sem certa intenção, naturalmente, e indica o texto
de suas meditações, essa enciclopédia wagneriana, súmula de uma teologia
ridícula e pueril. Nietzsche sentiu-se exasperado; de novo encontrava diante
dele, contra ele, esse adversário simulador de idéias e sedutor da juventude. Förster,
que lhe arrebatava a irmã, era um wagneriano, e eis que Heinrich von Stein lhe
recusa sua devoção por causa de Wagner. Somente à custa de um combate do qual
saíra ferido, ele pudera conquistar uma cruel liberdade. Escreveu a sua irmã:
"Que estúpida
carta me escreveu Stein e em resposta a que poesia! Sinto-me penosamente
afetado. Encontro-me novamente doente e novamente recorro ao antigo remédio (*)
Odeio a todos os homens que conheci, inclusive a mim mesmo. Durmo bem, mas ao
despertar tenho acessos de misantropia e rancor. E, no entanto, poucos homens
existem mais bem dispostos e mais benévolos do que eu."
Lanzky notou, sem
adivinhar a causa, a perturbação de Nietzsche. A crise foi muito forte, mas
apesar de tudo, ele não se deixou esmagar e trabalhou energicamente. Nestes
dias passeava a sós com mais freqüência do que à chegada de Lanzky, e este
via-o caminhar com passo incerto pelo Passeio dos Ingleses, ou pelos caminhos
da montanha, saltando, fazendo, às vezes, uma ou outra cabriola, e detendo-se
de repente para anotar a lápis algumas palavras. Que trabalho empreendia?
Lanzky ignorava-o.
Certa manhã de março,
em que Lanzky, como de costume, entrou no quartinho do filósofo, encontrou-o
deitado ainda, apesar do avançado da hora.
— Estou doente —
disse-lhe Nietzsche — acabo de dar é luz.
— Que está dizendo? —
murmurou Lanzky, muito inquieto.
— A quarta parte do Zaratustra está escrita.
Que nos diz esta
quarta parte? Surpreenderemos, afinal, algum progresso na obra, alguma precisão
de pensamento? Não. Lemos, apenas, um singular fragmento, um intermédio, como o
chama Nietzsche — um episódio na vida do seu herói; estranho episódio que
desconcertou a mais de um leitor. Talvez nos seja mais facilmente compreensível
se pensarmos na decepção que acabava de atingir a vida de Nietzsche.
Os "homens
superiores" sobem até Zaratustra e surpreendem-no na solidão de sua
montanha: um velho papa, um velho historiador, um velho rei, seres
desventurados, que sofrem
(*) O cloral. (N.
do A.)
por seu envilecimento
e que vão pedir socorro ao sábio cuja força pressentem. — Pensemos em Stein,
naquele distinto jovem extenuado pela atmosfera de Bayreuth: não foi assim que
ele subiu até Nietzsche?
Zaratustra admite em volta
de si aqueles "homens superiores"; por amor deles reprime o seu
humor selvagem, fá-los sentar em sua gruta, compadece-se de suas inquietações,
ouve–os e fala-lhes. — Pensemos em Nietzsche: não foi assim que ele recebeu
Heinrich von Stein?
Zaratustra, cuja alma
é, no fundo, menos rude do que devia ser, deixa-se seduzir pelo mórbido
encanto, pela delicadeza dos "homens superiores"; sente compaixão,
esquece que sua miséria é irremediável e cede ao prazer de esperar. Serão,
afinal, estes "homens superiores" os amigos que ele espera? —
Pensemos em Nietzsche: não esperou certa ajuda de Stein?
Zaratustra deixa seus
hospedes a sós por alguns momentos e se interna sozinho na montanha. Logo
regressa à gruta e que vê? Todos os "homens superiores" de joelhos
diante de um asno ao qual adoram. Ê o velho papa diz missa diante do novo
ídolo. — Pensemos em Stein: Não foi em semelhante posição que o surpreendeu
Nietzsche, interpretando com seus dois amigos uma bíblia wagneriana?
Zaratustra expulsa
seus hóspedes: ele deseja obreiros novos para um mundo novo. Encontrá-los-á? Ao
menos, chama-os:
Filhos meus, raça
de meu sangue puro, minha formosa raça nova; que é o que retém meus filhos em
suas ilhas?
Não será já tempo,
tempo demais — ao teu ouvido eu o
murmuro, bom espírito das tempestades — para que voltem, por fim para
junto de seu pai? Não saberão, acaso, que meus cabelos embranquecem enquanto
espero?
Vai, vai, espírito
das tempestades, indomável e bondoso! Abandona as gargantas da tua montanha,
precipita-te sobre os mares, e antes que chegue a noite, bendiz aos meus
filhos.
Leva-lhes a bênção
de minha alegria, a bênção desta coroa de rosas bem-aventuradas! Deixa cair
estas rosas sobre as suas ilhas e que ali fiquem como um signo que
interroga: De onde pode vir tal felicidade?
Finalmente,
perguntarão: "Vive ainda nosso pai Zaratustra? Como? É verdade que ainda
vive nosso pai Zaratustra? Nosso velho pai Zaratustra ama ainda a seus
filhos?"
O vento sopra, o
vento sopra, a lua resplandece.
Oh! meus filhos
longínquos, longínquos! Por que não estais aqui junto de vosso pai? O vento
sopra; nenhuma nuvem cruza o céu; o mundo dorme… Oh felicidade! Oh
felicidade!
Frederico Nietzsche
não conservou esta página na sua obra; talvez tenha sentido vergonha de uma
confissão tão triste e tão clara.
A quarta parte
de Zaratustra não encontrou editor. Schmeitzner, que poucos meses antes
havia dito a Nietzsche que o público não quer ler os seus aforismos",
escreveu-lhe, sem mais rodeios, que o público queria ignorar seu Zaratustra.
Nietzsche fez, de
início, algumas tentativas, que o humilharam sem o menor resultado, mas logo
adotou um partido mais altivo: pagou com seu dinheiro a impressão do manuscrito,
cuja tiragem limitou a quarenta exemplares. Para dizer a verdade, seus amigos não eram
tantos. Procurando muito, encontrou sete destinatários, dos quais nenhum era
realmente digno. Quem foram esses sete? Vamos presumir, se é possível:
Sua irmã, (da qual não
cessava de se queixar); a senhorita de Meysenbug, (que não entendia coisa
alguma de seus livros); Overbeck, (amigo certo, leitor inteligente, mas reservado);
Burckhardt, o historiador de Basiléia, (este respondia sempre aos obséquios de
Nietzsche, mas era tão polido que não se descobria o que ele pensava); Peter
Gast, (o discípulo fiel, a quem, talvez Nietzsche considerasse demasiado
obediente e fiel); Lanzky, (bom camarada daquele inverno); Rohde, (que apenas
conseguia dissimular o tédio que lhe causava estas leituras forçadas).
Tais foram,
presumimos, os que receberam — embora nem todos se dessem ao trabalho de a ler
— esta quarta e última parte, este intermédio que termina mas não acaba
o Assim falava Zaratustra.
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