O BRASIL E OS ESTRANGEIROS

Oliveira Lima

O BRASIL E OS ESTRANGEIROS

O título desta conferência vos terá parecido à primeira vista um pouco paradoxal, ou pelo menos ambíguo. Os verdadeiros naturais do Brasil são os índios, nome geral dado aos habitantes do Novo Mundo e que ficou com uma recordação indelével de Cristóvão

Colombo, da sua crença na esfericidade da terra, cujas regiões orientais deviam, segundo êle, ser fatalmente alcançadas tomando pelo Ocidente. Estrangeiros, pelo contrário, são todos quantos desde os primeiros anos do século XVI pisaram o solo americano. Há entretanto diferença entre os que ocuparam estas terras abertas então à atividade do mundo civilizado, pelo direito da sua descoberta, mesmo na fé de bulas pontificais e de tratados diplomáticos, e os que logo se dispuseram a disputar a presa aos que primeiro a tinham segurado, e acabaram por contribuir pacífica e eficazmente ao desenvolvimento do país de que lhes não fora possível apoderarem-se à força. É destes últimos, do seu valor c da sua obra, que desejo dar-vos uma idéia.

Os portugueses, misturando-se com os índios, produziram uma raça igualmente valente e fundamentalmente empreendedora, à qual é sobretudo devida a conquista do interior do Brasil, tema este que não há muito escolhi para o de uma conferência na Real Sociedade Belga de Geografia de Bruxelas. O Brasil é, pois, a obra nacional — geográfica tanto quanto política — dos seus próprios filhos. Isto nos constitui uma tradição no passado e nos representa uma garantia para o futuro. Foram com efeito os bandeirantes, a saber, os aventureiros votados à pesquisa do ouro e dos escravos que recuaram nossas fronteiras, dilataram nosso império, e emprestaram ao Brasil essa maravilhosa uniformidade social que lhe é tão peculiar e que se destaca tão bem sobre o fundo constituído pela diversidade dos efeitos pitorescos e pelo variegado das três raças misturadas: branca, vermelha e negra.

Os que têm podido percorrer, pelo menos ao longo do litoral, o imenso país que é o Brasil, ou que abordaram sucessivamente pontos muito afastados do seu território, ficam todos impressionados pela semelhança dos aspectos que se lhes oferecem. A língua portuguesa ali é falada sem dialetos, sem denotar mesmo diferenças muito sensíveis de pronúncia. Além disso a circunstância de que os índios da costa falavam todos o tupi-guarani, denominada "língua–geral", e que as outras línguas indígenas pertenciam a tribos ou "nações" do interior, mais disseminadas, menos fortes c com as quais o contacto só veio a realizar-se mais tarde, fêz com que o idioma dos conquistadores oferecesse de Norte a Sul idênticos neologismos exóticos, cuja propriedade determinou a capitulação da intransigência clássica.

Por seu lado, a religião católica não há por assim dizer sofrido na sua integridade, nem outrora, com a propaganda dos calvinistas holandeses, quando a Companhia das índias no século XVII dominou durante um quarto de século uma vastíssima extensão da colônia portuguesa, nem hoje com a propaganda metodista ou batista, exercida cm completa liberdade pelos missionários americanos.

Os costumes, enfim, apresentam tão notável analogia que imediatamente se percebe que uma mesma sensibilidade vibra em toda a parte sob aquele céu admiravelmente estrelado, que são os mesmos instintos e as mesmas idéias que governam o desenvolvimento dessa sociedade ultramarina cuja colonização fundou a unidade social que a distingue, e preparou a união política que a história tinha querido roubar-lhe.

Desejo mostrar-vos esta noite o reverso da medalha, c comecemos por dizer que não é inferior à outra face. Não obstante o caráter nacional que acabei de apontar-vos, os estrangeiros desempenharam no Brasil papel importante ao lado da população de origem portuguesa: por vezes disputando-lhe o domínio do solo, o que constituía uma forma indireta de servi-la, se adotarmos o ponto de vista dos defensores da guerra, como sendo uma instituição que gera as mais nobres tendências c fortemente estimula o progresso humano; outras vezes ajudando mais diretamente e, na minha opinião, de modo menos arriscado c mais seguro a expansão material ou aperfeiçoamento moral do país.

Temos tido a boa fortuna de contar cópia destes últimos agentes de cultura. O Brasil é aliás a terra menos xenófoba, e não é por isso menos nacional, nem menos nacionalista. Não quero apenas dizer que possui o espírito patriótico: todos os países o têm c devem tê-lo. Mas há países que denotam mais que outros um feitio particular nos costumes ou nos pensamentos, e, penso que neste pormenor apesar das suas tendências cosmopolitas, cabe ao Brasil assaz e poder-se-ia até dizer muito cunho próprio. De todo tempo, entretanto, soubemos tirar vantagem do concurso estrangeiro, acolhendo sem hostilidade c com simpatia quem quer no-lo trouxesse, a menos que não viesse armado em guerra, como o ilustre marinheiro francês Duguay Trouin, que cm 1711 atacou c impôs resgate ao Rio de Janeiro, para vingar o fracasso da expedição do seu compatriota Leclere, o qual entendera estender até a América do Sul as rivalidades da guerra de Sucessão da Espanha.

Assim contamos estrangeiros entre nossos primeiros exploradores e entre nossos primeiros traficantes. Os Schctz, os poderosos banqueiros desta bela cidade de Antuérpia, onde hoje me convidou vossa amabilidade, possuíram no século XVI em São Paulo — encontrareis detalhes a respeito nas páginas dos interessantes anais da vossa Sociedade — uma das primeiras plantações de cana e fábricas de açúcar do Brasil. Estais vendo que o vosso instinto comercial sempre foi para vós um guia seguro, e que a operação financeira da "valorização", na qual vossa metrópole participou de modo tão ativo c tão feliz, tem raízes mais distantes.

Os tempos porém não se tinham ainda orientado para um mais franco cosmopolismo; a política da "porta aberta" não predominava, como hoje, e os Schetz tiveram que renunciar a seus primeiros interesses brasileiros, tão pouco à vontade vieram a sentir-se num meio que ao abundante colorido local se esforçava por unir o espírito local. E o espírito local começaria logicamente por afirmar-se na defesa, quer dizer na resistência à absorção estrangeira.

A exploração do Brasil no seu início registra dois nomes de alemães que se celebrizaram pelas suas aventuras e pelo rasto que deixaram dos seus feitos exóticos. Os alemães não esperaram portanto o século XIX, como freqüentemente se diz, para dar testemunho do seu espírito de empreendimento colonial. O primeiro desses dois pioneiros da expansão germânica na América do Sul foi Hans Staden por ocasião da defesa da feitoria de Igaraçu, em Per-infortúnios quase ao mesmo tempo que Jean de Lery descrevia em francês as desventuras da colônia de calvinistas de Genebra, mandados vir por Villegagnon quando se estabeleceu no ilhote da baía do Rio de Janeiro, donde os portugueses o foram desalojar para fundar nossa capital.

Começamos historicamente a travar conhecimento com este Hans Staden por ocasião da defesa da feitoria de Iguaçu, em Pernambuco, contra os índios, defesa em que êle tomou parte. Encontramo-lo algum tempo depois em São Vicente — ou São Paulo — náufrago da mais que melancólica expedição de um governador espanhol nomeado para o Rio da Prata. O lugar em que ia levantar-se a cidade de Santos — o segundo porto do Brasil de hoje — era então o ponto de reunião de uma pequena colônia cosmopolita. Aí se estabelecera primeiro que todos, com um muito primitivo engenho de açúcar hidráulico, Brás Cubas, o procurador do donatário. Hans Staden, o qual, tendo caído prisioneiro dos índios da vizinhança, correu sério risco de ser por eles devorado, refere-se a vários estrangeiros: os Venistes, os Schetzs, os Adorno de Gênova, com os quais se associara o senhor da capitania para fundar uma fábrica de açúcar, um engenho de água, como os que ainda se encontram em Pernambuco, posto que cedendo cada dia o passo às modernas usinas a vapor.

O açúcar foi a riqueza inicial do Brasil, a base da sua agricultura, a fonte de proventos pessoais que atraiu colonos, e de lucros públicos, permitindo satisfazer as despesas locais. Os estrangeiros acharam-se pois intimamente ligados aos primeiros dias da prosperidade brasileira, assim como se acham hoje ligados ao desenvolvimento dos recursos de todo gênero que oferece esse país, ao qual as dimensões e a riqueza asseguram o mais brilhante futuro — um futuro para cuja realização tanto contribuem os estrangeiros.

Uma vez cativo dos índios, Hans Staden escapou ao destino comum dos prisioneiros de tribos de canibais, graças à sua presença de espírito, a qual bem denuncia a disposição da sua raça para fazer carreira na expansão ultramarina. O processo usado foi o de lisonjear a vaidade do famoso cacique Cunhambebe, dizendo-lhe quão reputado era c temido pelos europeus — como poderia um selvagem resistir a semelhante adulação? — e protestando não pertencer à nação portuguesa, tão detestada pelos tupis que por toda a parte faziam aliança com os franceses, cujos navios no século XVI freqüentavam a costa brasileira para carregar a famosa madeira de tinturaria que deu seu nome atual à Terra de Santa Cruz.

Conta Stadcn no seu livro que os índios o puseram à prova, obrigando-o a atirar sobre os portugueses: ao que êle aquiesceu no intuito de salvar a vida, parecendo-lhe uma recusa, em tal conjuntura, um heroísmo inútil. E bom foi que vivesse, pois seu suplício nos teria privado de um capítulo deveras interessante das Viagens Aventurosas, se bem que os feitos de Hans Staden não tivessem sido tão ousados quanto os do seu patrício UIrico Shmidel, o qual lez por terra o percurso do Paraná a São Paulo, distância enorme que a estrada de ferro acaba apenas de vencer, na direção desse Paraguai que Cabeza de Vaca foi o primeiro a atingir através mil riscos e perigos, partindo do litoral brasileiro c que váiios outros exploradores, espanhóis e portugueses, após êle atingiram seguindo o mesmo caminho.

O momento era todo de explorações. A imensidade do continente ia-se revelando aos poucos aos que o tinham descoberto e tratavam de conquistá-lo e ocupá-lo. Somente a expansão dirigida da costa oriental para oeste não encontrava barreiras quase insuperáveis, como acontecia com a do outro lado, mercê dos Andes, cujos despenhadeiros e precipícios contribuíam tanto quanto as minas de prata para demorar a descida espanhola para as terras baixas. Nossos veios auríferos só muito mais tarde foram descobertos, no fim do século XVII, numa ocasião em que o Brasil já se achava quase constituído no seu aspecto atual com relação aos seus limites: a Amazônia nos pertencia ao Norte, tendo sido os invasores estrangeiros repelidos para as Guianas, c ao Sul fora galgado o Rio Paraná e reconhecido o Rio Paraguai, estando " vasto hinterland de Mato Grosso a ligar-se ao hinterland amazônico.

O perigo estrangeiro durou no Brasil dois séculos: digo perigo porque os estrangeiros não vinham então pela maior parte trabalhar diretamente por nosso progresso; vinham no intuito de se apropriar do país em seu benefício e cm benefício das suas nacionalidades. Os franceses foram os mais assíduos c os mais tenazes nos seus desígnios de conquista durante todo o século XVI. Vieram em seguida os ingleses, como corsários, agindo sem fim político, no seu próprio interesse individual. Finalmente os holandeses, sob a forma de uma companhia de comércio, conseguiram ocupar passageiramente a Bahia e fundar cm Pernambuco um domínio imperial.

A união de Portugal c da Espanha atraíra por essa época sobre as possessões portuguesas as cobiças c OS rancores dos inimigos da Espanha e determinara a aplicação ao Brasil da política colonial, bem espanhola, de exclusão dos estrangeiros, política que pela continuação, depois de novamente independente, Portugal continuou a praticar, como aliás por seu lado o fazia a Inglaterra de Cromwell.

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A ocupação holandesa trouxe ao Brasil, como governador-geral a soldo da Companhia das Índias Ocidentais, um príncipe da casa de Orange, o Conde João Maurício de Nassau Sicgen, espírito aberto, esclarecido e dotado de simpatia — concedendo facilmente sua simpatia c chamando a si simpatias — que merece ser contado entre os mais ilustres administradores do Novo Mundo.

Para Maurício de Nassau, e nisto se distinguia êle dc muitos chefes militares seus contemporâneos, a guerra era apenas um meio e não um fim. Uma vez estabelecido o domínio, mister era respeitar as crenças dos vencidos, poupar suas susceptibilidades, mitigar seus sofrimentos, por outras palavras, ganhar seus corações, tarefa a que se dedicou e na qual logrou completo êxito.

Se o príncipe houvesse permanecido em Pernambuco em vez de se agastar com os diretores da Companhia, cujas ‘idéias se orientavam por uma política bem diversa, o Brasil seria hoje mui provavelmente de metade holandês em vez de ter ficado integralmente português. É com muita razão que ainda hoje se diz na Holanda: vezuiind Braziel, o que quer dizer, se me não engano, Brasil perdido por desleixo.

Maurício de Nassau, que era ao mesmo tempo um guerreiro, um epicurista e um letrado, fêz-se acompanhar ao Brasil por sábios, artistas e escritores, cujas crônicas cm prosa e verso imortalizaram seus feitos; cujas pinturas, que hoje se encontram desde o palácio real de Hampton Court, na Inglaterra até o castelo real de Frede-riksborg, na Dinamarca, passando pela Real Biblioteca de Berlim, revelaram à Europa toda uma nova natureza, com suas paisagens exóticas, seus animais estranhos, suas plantas desconhecidas e suas gentes selvagens; cujos livros e tratados estabeleceram a base dos estudos científicos na América.

Foi com efeito a História Natural do Brasil por Piso e Mark-graf — um médico holandês e um naturalista alemão — da qual fizeram os Elzevir uma formosa edição, que despertou por este assunto, nos círculos estudiosos da Europa, uma paixão só satisfeita com a reabertura do país ao tráfico, à curiosidade e à indústria do estrangeiro, por ocasião da instalação no Rio de Janeiro da Corte portuguesa perseguida por Napoleão.

Piso e Markgraf foram os primeiros a estudar as condições do nosso clima, a fazer observações astronômicas no firmamento em que brilha o cruzeiro, a descrever os costumes animais e as singularidades vegetais do Novo Mundo. Chamaram a atenção dos naturalistas sobre um domínio tão vasto quanto opulento e abriram o caminho a todo o movimento científico relativo ao duplo continente desconhecido. As ciências naturais eram, então, bem mais cultivadas na Europa setentrional do que na Europa meridional, e teria sido preciso esperar dois séculos para ser o Brasil estudado sob este ponto-de-vista, se Maurício de Nassau não houvesse pensado nas coisas do espírito tanto quanto nas políticas e militares, e se não houvesse sonhado converter Mauritzstadt — nome holandês da cidade do Recife, capital de Pernambuco — num centro de cultura tanto quanto num centro de administração. Um observatório aí foi levantado, criados jardins e pátios de animais, só o tempo faltou para se ver ali funcionar uma tipografia já encomendada, e organizar uma universidade já concebida.

A valente campanha de independência, sustentada contra os holandeses pelos brasileiros, quase sem apoio por parte do seu antigo governo e até renegados pela metrópole, criou no Brasil o sentimento nacional, que o novo meio fizera despontar; mas atrasou consideravelmente o desenvolvimento propriamente intelectual do país, se é que o impulso dado pelo príncipe-governador se tivera podido manter consoante seus desígnios, pois é mister sempre contar, salvo bem entendido exceções que confirmam a regra, com a influência depressora do país inculto, de que sofriam a reação os primeiros colonos desarraigados da velha Europa refinada, c transportados para essas regiões longínquas c rudes em que a alma se sente solitária. Apenas as gerações que vão surgindo depois aninham a um tempo a ternura para com uma pátria que já é a sua c a energia precisa para se entregarem às tarefas intelectuais, mais exigentes dessa energia do que os apetites físicos, facilmente despertados e facilmente saciados.

Maurício de Nassau era de uma intelectualidade demasiado viva para que pudesse entorpecer-se aos calores tropicais. Sua curiosidade nunca se cansou durante os anos de sua residência em Pernambuco, em que o vemos construir castelos batavos, surpresos de ver refletidas suas empenas e tôrrezinhas nas águas de rios reluzentes de sol e não cm brumosos canais; presidindo a torneios de flamengos e espanhóis, os quais, debaixo dêsse céu clemente, transformavam em elegantes diversões seus sangrentos encontros europeus, c, entre duas justas, realizando pelas ninas uma conquista que tratava depois de radicar pela afeição e pelo reconhecimento.

Foi êle, contudo, o único a assim pensar e proceder: verdade é que era o único a elevar-se dentre a massa de aventureiros de todo gênero, aventureiros de gibão c chapéu de feltro ou de casacão e barrete, que a Companhia das Índias Ocidentais recrutava para a invasão, a evangelização e o tráfico, e que transportava nas suas naus, cuja divisa era que abaixo da linha equinoxial não havia pecados. Não queria isto dizer que ali se achasse o paraíso: o que Américo Vespúcio colocara em tais paragens não passava do paraíso terrestre. A significação era que havia liberdade de fazer quanto acima do equador vedava a consciência, a qual além adormecia sob o condão de uma fada poderosa chamada a riqueza.

Não existe uma literatura holando-brasileira. As odes panegíricas do capelão de Maurício de Nassau, o erudito Plante, foram compostas em bela linguagem, após o regresso ao lar, com os pés aquecendo ao fogo da lareira e o cachimbo na boca; quanto ao cronista Barleaus, nunca saiu da Holanda e contentou-se com tornear em sonoros e enfáticos períodos latinos as informações que lhe tinham sido transmitidas.

Aliás, as melhores relações não são forçosamente obra dos que assistiram aos acontecimentos. Plante e Barlaeus contribuíram muito para a nossa história, descrevendo e exaltando o nosso passado, e nós nos orgulhamos muito dessas páginas, porquanto elas perpetuam a lembrança do restabelecimento, pelos esforços dos nossos antepassados, da unidade portuguesa, a qual foi a bem dizer o fundamento da grandeza nacional. Tão bem a perpetuam, melhor mesmo, pelo que diz respeito à graça humanista, do que os nossos historiadores da época, pobres monges mais nutridos de letras sacras do que de letras profanas.

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A produção intelectual do Brasil no período compreendido entre a partida dos últimos holandeses (1654) e a franca abertura do país à influência européia (1808) é sobretudo uma literatura de púlpito e de academias. Não houve Academia alguma dos Silenciosos — todos eram tagarelas —, mas existiu uma dos Esquecidos, e esquecidas ou quase se tornaram elas todas. A poesia mesmo foi pedante, entremeada de notas agressivamente satíricas, até que o ar vivo e estimulante que sopra sobre o planalto ondulado de Minas Gerais — a capitania do ouro c dos diamantes, sede da opulência e do luxo no decorrer do século XVIII — expulsasse as velhas fábulas e as sensaborias pastorais, e fizesse aparecer na sua bela nudez, sem os véus mitológicos em que dantes se envolviam, a ternura dos amantes e a exaltação dos patriotas.

Este século e meio de uma fraca literatura de transição, cuja última fase é a única a projetar luz, como a aurora do romantismo que a Europa ia buscar na inspiração popular de antes da Renascença, foi, como disse, empregado pelos brasileiros numa grande tarefa que consistiu em conquistar seu próprio país, quer dizer, a explorar o continente virgem até os limites possíveis da expansão da sua raça. Não era esta a única a ocupá-la, pois que os espanhóis por um lado tanto desceram de Panamá até a Terra do Fogo, ao longo das costas do Pacífico que por outro lado subiram até a Califórnia, como ocuparam a embocadura do Prata e serviram-se das suas águas para se aventurarem até o Paraguai, descendo mais ao norte dos altos da Cordilheira, até tocarem as margens do Madeira.

O imenso país que é o Brasil de hoje é o fruto dessa carreira obstinada atrás da miragem das minas — miragem que acabou por se tornar uma realidade —, a qual arrastava bandos inteiros através de floresta e campos, sobre as corredeiras e os escolhos dos rios. O poeta Batista Cepellos evocou esses Conquistadores em versos de que me permitirei citar-vos traduzida uma estrofe:

Le radeau poursuit sa route sur les flots.
Comme un lion tranquille, l’homme du Sertão
Promène au loin son regard jier et ébloui.
Ah! fleuve colossal, tu es encore trop petit
Pour son grand rêve de conquête qui d’un élan
Dédaigneux et puissant, comme un vaste étendard
Qui se déploie, embrasse cet infini d’émeraude.

O estabelecimento da Corte portuguesa no Rio de Janeiro marca uma nova época na vida da colônia brasileira. Datam de então sua elevação à dignidade de nação autônoma e sua organização para a existência independente. Os estrangeiros ali afluíram atraídos uns pelos negócios, outros pelo estudo. As ciências naturais tinham tomado na Europa um grande desenvolvimento sob a influência do racionalismo do século dos Enciclopedistas, quando a observação dos fenômenos físicos tratou de substituir a revelação e eram especialmente cultivados nessas universidades alemãs onde, dos povos de além-Reno, uns, como o prussiano, preparavam-se em silêncio, pela meditação e pela cultura intelectual para reconquistar a posição perdida e subtrair-se à sujeição a que os constrangera a mão poderosa de Napoleão, e outros, como o bávaro, se esforçavam por justificar a promoção real que lhes outorgara o Imperador senhor do mundo.

Os próprios almanaques publicavam descrições c vistas do Brasil e de outros países do Novo Mundo hispano-português, dando testemunho da curiosidade que suscitava ainda, após três séculos de exploração, esse continente quase misterioso cujas riquezas vegetais igualavam às minerais e cuja vida animal fervilhava em cada recanto, percorrendo toda a gama zoológica. O centro de cultura alemão não podia deixar de ser então o seu centro político: Viena, a capital imperial; e muitos sábios valeram-se do consórcio do Príncipe Real de Portugal e Brasil, que por sua própria iniciativa se ia tornar o primeiro soberano do Brasil independente, com uma arquiduquesa d’Áustria, acontecimento que naturalmente estreitou muito os laços entre as duas cortes c conseguintemente entre as duas nações.

A Arquiduquesa Leopoldina partiu como outrora Maurício de Nassau, escoltada por sábios c artistas: nada menos de duas missões científicas, uma austríaca outra bávara, às quais devemos o complemento dos esboços de Piso e de Markgraf, esboços essenciais, denunciando todos os contornos e a que não faltavam sequer as sombras, mas carecendo de ser rematados. Esta foi a obra dos grandes naturalistas que se chamavam entre outros: Spix, o zoólogo; Martins, o botânico; Natterer, o zoólogo; von Pelzern, o orni-tologista; Pohl, o botânico; von Eschwcgc, o geólogo e mineralogista.

Sem me demorar em detalhes, que vos pareceriam fora de lugar e tempo, dir-vos-ci que o legado científico de Natterer, enriqueceu o admirável Museu Imperial de História Natural de Viena, onde se acham as coleções reunidas durante suas longas viagens pelo interior do Brasil: — que os trabalhos de Eschwege sobre as minas não foram até hoje excedidos; — enfim, que o extraordinário empreendimento de Martins sobre a Flora Brasiliensis, a mais variada do mundo, foi concluído pelos sucessores depois de mais de meio século de labor, cujo resultado constitui um dos mais consideráveis monumentos do espírito humano.

O concurso europeu nessa época assumiu mesmo a forma de uma colônia de artistas de valor, contratados em Paris para fundarem nossa Escola de Belas-Artes e educarem o gosto nacional, dando-lhe um cunho superior. Tinha este’ grupo de instrutores artísticos por chefe o secretário perpétuo da Academia de Belas-Artes de Paris, Lebreton, a quem ligações bonapartistas muito ardentes tornaram suspeito ao governo dos Bourbons e que preferiu expatriar-se a arrostar-lhes a cólera. O desenvolvimento das artes no Brasil é devedor a esses professores de pintura, de escultura, de arquitetura e de gravura, de um impulso que ainda dura e que naturalmente recebeu desde logo a contribuição das vocações nacionais educadas em tal tradição adquirida.

Estais vendo, senhores, quanto deve o Brasil aos estrangeiros. Possuo os soberbos exemplares coloridos dos trabalhos de Spix sobre as aves, os macacos, os peixes, os reptis, os testáceos do Brasil, exemplares que pertenceram à biblioteca do príncipe de Metternich, recentemente vendida em leilão, e que tinham sido ofertados ao famoso homem de Estado. Êle foi quem recomendou os sábios austríacos c bávaros à benevolência esclarecida de Dom João VI — o monarca ao qual o Brasil deve a sua organização nacional — e que acompanhou até o porto de Liorne c a bordo da nau portuguesa, despachada para buscá-la, a desposada de Dom Pedro I. Eu o imagino, com seu sorriso irônico e seu olhar agudo que sondou a alma ambiciosa e plebéia de Napoleão, folheando aquelas magníficas ilustrações com a curiosidade de um profano que se interessa .por quanto diz respeito ao espírito, e não posso furtar-me a acreditar que semelhante interesse intelectual contribuiu em parte para a simpatia de que o Brasil constitucional — notai bem esta palavra "constitucional" — é devedor ao defensor por excelência dos princípios do absolutismo, ou se o preferido do paternalismo.

É verdade que, encarando sem animosidade a separação ocorrida entre o Brasil e a metrópole, c descobrindo argumentos favoráveis a respeito para memórias diplomáticas destinadas a percorrer as chancelarias, Metternich antes se preocupava com sustentar o único trono americano do que os direitos dos povos, o que entretanto não impede que achasse para nós desculpas que em outros não admitiu. É ainda um estrangeiro e dos mais afamados a quem devemos um serviço que não esquecemos, como tampouco esquecemos outros que nos foram prestados.

Os marinheiros brasileiros eram a poucos anos admitidos à Abadia de Westminster, a fim de saudarem o túmulo de Lorde Coch-rane^ e sobre êle depositarem uma coroa. Foi este célebre almirante inglês que passeou suas façanhas do oceano Pacífico ao Mar Egeu, ora servindo à Inglaterra contra os franceses, ora ao serviço do Chile contra os espanhóis, do Brasil contra os portugueses ou da Grécia contra os turcos, quem organizou nossa primeira esquadra e lhe fêz conhecer suas primeiras vitórias, obrigando a frota portuguêsa que defendia o porto da Bahia, a fazer-se de vela e persce guindo-a até vista das terras européias.

Foi graças à Marinha que a unidade do Brasil se pôde estabelecer no momento da sua independência. Se este instrumento houvesse faltado, a operação não poderia ter tido êxito, e de resto o país não mais faria do que seguir as tendências particularistas da sua história e da sua geografia, as quais lutavam contra as tendências unitárias da raça, da religião, da língua e das tradições comuns de povoamento, de resistência e de civilização.

O principal organizador do movimento de separação política no Império foi na verdade um brasileiro — José Bonifácio; o seu agente essencial, aquele que pela decisão da vontade realizou o que concebera a energia da inteligência, foi igualmente um nacional — o príncipe Dom Pedro, que passou a primeiro soberano da monarquia então fundada; mas um estrangeiro concorreu poderosamente para consolidar sua obra de construção social, cuja florescência atual é apenas a justa consequência dos esforços empregados.

Não faltam, entretanto, países onde haja cabido a estrangeiros o principal papel nos acontecimentos decisivos da sua evolução. Conheço e estimo muito um diplomata hispano-americano que, não tendo êle próprio nascido no país que se tornou sua pátria e havendo com isto sofrido, pois que o prejuízo nativista é dos mais enraizados, escreveu em desabafo um mui interessante e instrutivo volume sobre a contribuição dos estrangeiros para o desenvolvimento de países que não os seus.

O exemplo de Napoleão acode imensamente à memória. Foi com efeito este corso que até o momento de vir para a França se inspirava nos sentimentos do seu compatriota Paoli e detestava o invasor francês acampado na sua ilha, o homem que veio a representar no mais alto grau a glória militar e política da França e que, na definitiva legenda napoleónica, da qual nos falava outro dia em Bruxelas com tanto encanto o poeta Jean Richepin, encarnara a Revolução Francesa e os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade que foram o evangelho da democracia moderna.

Pensastes porventura algum dia em que a Inglaterra, o mais nacionalista dos países, cujo cosmopolitismo imperial só faz realçar o orgulho patriótico, deve a um francês, Simon de Montfort, a defesa, e a um holandês, Guilherme de Orange, a garantia das suas franquias constitucionais, das suas liberdades orgânicas, inseparáveis da sua existência? Haveis jamais refletido em que o Novo Mundo foi descoberto para a Espanha por um genovês, de que um escritor espanhol quis recentemente fazer um compatriota, para não ter que repartir sua glória? Já vos dissestes a vós mesmos que o mais perfeito dos líricos franceses, o poeta impecável dos Troféus, era cubano, e que Napoleão nunca foi celebrado com mais entusiasmo do que pelo alemão Henri Heine?

O velho mito que faz remontar a Enéias as origens da Roma imperial e papal, a qual subjugou o mundo antigo pelas armas e pela cultura e se impôs ao respeito do mundo moderno por toda a tradição política e religiosa que lhe é peculiar, resume bem esta participação necessária dos estrangeiros em toda grande empresa social. Deve isto certamente significar que tais diferenças entre nacionais e estrangeiros não residem na natureza, que são antes o produto das circunstâncias históricas e outras, que se calam e desaparecem para eventualmente permitirem à solidariedade humana o desprender-se e o afirmar-se.

Se o destino não concedeu a estrangeiros uma participação tão essencial nos destinos brasileiros, o país tendo sido descoberto, reconquistado aos holandeses, explorado em todas as direções, até assegurado contra as cobiças inimigas pelos seus nacionais, isto é, pelos portugueses, ou descendentes de portugueses — o Brasil é contudo devedor a vários estrangeiros de uma afeição que justifica em troca um vivo reconhecimento.

Poderíamos não experimentar gratidão para com Robert Sou-they, o poeta laureado inglês, aquele de quem Byron, seu inimigo literário, dizia que lhe desprezava os versos rasteiros, mas que lhe invejava a soberba aparência, a figura apolínea? Southey foi o nosso primeiro verdadeiro historiador, e sua História não envelheceu porque a anima o fogo do entusiasmo, que faz perpétua a juventude. Homem de letras até à medula, descreveu as viagens aventurosas, as conquistas arriscadas, as lutas sangrentas, não só na fé dos documentos extraídos dos arquivos portugueses, mas também com a ternura do artista por todas as belas manifestações da energia humana.

O assunto era-lhe grato ao coração tanto quanto ao espírito, e suas cartas, das quais foram publicados seis volumes, testemunham sua firme crença nos destinos da nacionalidade de que estudara os inícios e narrara o crescimento. Ele próprio escreveu que desejava, num futuro distante, vir a ser relembrado como o Heródoto desse mundo recém-nascido para a História, e seu novo voto será cumprido, pois que narrativa alguma do nosso passado revela mais encantos e encerra mais emoção do que a que nos legou Southey, numa língua a um tempo sóbria e imaginosa, como a sabem escrever os ingleses quando se propõem a fazer estilo.

A viagem de Ulrico Schmidel, por exemplo, a que aludi ao começar, encontra-se na História do Brasil daquele poeta, descrita nos termos precisos de uma exposição geográfica e ao mesmo tempo com uma tonalidade de ação dramática. Sente-se que o autor entremeou a leitura das relações ultramarinas com a do Roman-cero peninsular, e que as aventuras maravilhosas do Amadis de Gaula, do Palmeirim de Inglaterra e de outros heróis dos livros de cavalaria espanhóis e portugueses — esses livros que tanto escaldaram a imaginação de Dom Quixote — exaltaram sua fantasia lírica antes que o historiador se ocupasse das não menos admiráveis façanhas de outros heróis autênticos.

Semelhante associação dos dons do erudito e do artista é, como sabeis, necessária para que a obra literária seja sugestiva, e fecunda sua ação. O simples pesquisador pode corrigir datas errôneas e restabelecer a exatidão dos fatos, mas não deixa vestígio sobre a alma, insensível ao que não traduz o conteúdo moral. O poeta, por seu lado, deve sofrear sua imaginação e adaptá-la às realidades sob pena de ver sacrificada a Verdade ao Belo. O sopro poético é, no entanto, indispensável para animar a história — o que penso haver sido melhor compreendido pelos escritores de há um século, ou mesmo de há alguns séculos, do que pelos dos nossos dias, aos quais a fidelidade documental se afigura a condição fundamental senão por vezes exclusiva.

O gênio lírico não impediu contudo Victor Hugo de descrever melhor do que ninguém a batalha de Waterloo. Penso que muitos dentre vós partilharão esta opinião, pois que sua narração, sem possuir a riqueza de pormenores e a ciência de reconstrução da de Henry Houssaye, não deixa, por isso, de ser mais pungente e mais vibrante. O lirismo é freqüentemente o caminho mais fácil aberto à História.

Ferdinand Denis — outro escritor, francês este, ao qual devemos quase 70 anos de ininterrupta simpatia, pois que já se ocupava do Brasil em 1823 e ainda se ocupava dele pelos 89 — decantou a natureza dos trópicos antes de celebrar os feitos da história portuguesa e de apresentar aos leitores franceses as produções da poesia brasileira. As paisagens não foram, pois, para esse escritor, mais do que o ensejo de estudar os homens que se agitam em tal cenário, e as ações e a expressão literária que deles se derivam. Para isto remontou até as nascentes cavalheirescas ou populares de meia-idade, assimilando as lendas anônimas e as tradições fabulosas antes de chegar aos fatos provados e aos gestos pessoais.

Sabeis como Ferminand Denis começou a popularizar o Brasil na Europa, antes de escrever esse Brasil Pitoresco que ficará como um dos livros mais amenos e mais instrutivos sobre o nosso país? Redigindo a descrição do Rio de Janeiro para o primeiro panorama da nossa capital, obra de um dos Taunay, exposta em Paris pouco depois da Independência, de que foi continuação o panorama de Burford, aberto em 1828, em Leicester Square, cm Londres, e cujo último descendente, o panorama do pintor francês Dumoulin, vistes todos vós, o ano passado, na Exposição de Bruxelas.

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Os benefícios que um país fica devendo a estrangeiros como Southey e Ferdinand Denis são inestimáveis: nada os pode exceder. São depoimentos preciosos pela sua imparcialidade e pela sua superioridade moral, aduzidos ao processo que faz comparecer todas as nações perante o tribunal da civilização para responderem se bem mereceram ou não da cultura humana.

Quando um historiador como Southcy ensina à Europa que o sentimento de fidelidade à pátria originária inflamou o coração dos brasileiros contra a ocupação holandesa e lhes inspirou o valor com que puseram em desbarato, após três combates formais, as tropas aguerridas que tinham sido transportadas dos Países Baixos para assegurar o domínio estrangeiro; quando o erudito Ferdinand Denis ensina a essa mesma Europa que o verdadeiro instinto da natureza apontava nas letras brasileiras ao mesmo tempo que sugeria a Bernardin de Saint-Pierre o carinho posto em evocar o meio onde Paulo e Virgínia se confessavam seu amor, e também que o individualismo romântico expelia das montanhas mineiras os fantasmas clássicos quando sua sombra ainda se projetava sobre as letras francesas: — ambos afirmam ao mundo que os mesmos impulsos morais agem entre vós e entre nós, e que somos na verdade os representantes c os continuadores dessa civilização européia que é a mais substancial e a mais levantada que se há jamais conhecido. A informação é porventura interessante para vós, mas é sobretudo importante para nós, e não é demasiado pagá-la com todo o nosso reconhecimento.

Sob este aspecto somos aliás singularmente afortunados, pois que não nos têm faltado, nem no passado, nem no presente, amigos dedicados desta espécie. A lista seria em extremo longa, e assaz fastidiosa para os que não conhecem a contribuição particular de cada um para a propaganda brasileira, cuja biblioteca aumenta diariamente. Temos igualmente tido nossos detratores: um Major Scháffer, que, por volta de 1825, quis inundar-nos de vagabundos e de réus de justiça com o rótulo de colonos laboriosos, e que não podia sofrer sem impaciência que se levantassem obstáculos ao seu comerciozinho de imigrantes; um Biard, pintor que, enfastiado, longe da sua margem esquerda do Sena, repetiu no Brasil suas troças de atelier e se proclamou vítima de um mundo de horríveis bicha-rocos, desde os mosquitos até os lacraus, que lhe fizeram inchar as carnes e ao mesmo tempo a imaginação; um Charles Expilly, o qual julgou mais rendosa a nota melodramática amenizada por incidentes licenciosos e se permitiu monstruosidades literárias que vos não repetirei.

Estes estão esquecidos ou quase. É preciso ser um bibliómano como eu, colecionando todos os livros sobre um dado assunto, para ter a curiosidade de folhear suas obras. E pode dizer-se que o instinto popular, quero dizer o bom senso geral, uma vez mais teve razão. Para que fazer reviver hoje essas páginas odientas ou zombeteiras tornadas afinal insípidas porque todo o fel ou o cs-cárneo se evaporou delas, quando faltam livros sérios, belos livros, com os quais se tem sempre encanto e proveito em travar conhecimentos?

Temos por exemplo, com suas observações políticas e sociais tão avisadas, as viagens do botânico Augusto de St. Hilaire, cujo nome de família é garantia por si bastante de probidade literária e de competência científica. Temos a excelente descrição das terras altas do Brasil — The Highlands of Brasil feita por um dos mais notáveis viajantes ingleses do século passado, homem de uma coragem a toda a prova, de uma atividade intelectual infatigável e de uma extraordinária franqueza, Sir Richard Burton, a quem tanto sorriam as manifestações poéticas quanto as belas paisagens. Temos as páginas sempre jovens, porque seu valor não diminuiu, do naturalista Bates sobre o Amazonas. Temos a obra sem grandes pretensões, mas tão cheia de simpatia, de Ribeyrolles, esse proscrito de 2 de dezembro, que foi refugiar-se c morrer entre nós, e sobre cujo túmulo se gravaram os versos consagrados à sua memória pelo seu amigo Victor Hugo. Haveria, assim, centenares de obras a citar c de autores a evocar.. .

Deparamos naturalmente com períodos em que tal literatura é mais abundante. Já vos disse que, no começo do século XIX, os naturalistas alemães se precipitaram sobre o Brasil, campo até então cerrado à sua curiosidade, excitada pelos trabalhos dos seus predecessores do século XVII. Por essa mesma época pululam os livros ingleses sobre o Brasil. O inglês é um viajante muito pessoal e que gosta de comunicar suas impressões de viagem. Num domínio novo, razão demais para que assim aconteça, e o fato é que os residentes daquela nacionalidade não pouparam seus lazeres de escritores. Se é possível reconstruir-se hoje em todos os seus detalhes desaparecidos c pitorescos a vida social no Sul, bem como no centro e no Norte do Brasil, devemo-lo a três negociantes ingleses, John Luccock, John Mawe e Henry Koster — um do Rio de Janeiro, outro de Minas Gerais e o terceiro de Pernambuco, os quais deixaram livros dos mais cheios de informações c dos menos parciais acerca do Brasil contemporâneo do bom rei Dom João VI.

Para escrever livros interessantes não é indispensável possuir preocupações literárias. O estilo amolda-se sempre às exigências do pensamento, quer dizer que se forma sempre debaixo da sua influência, e penso que foi Renan, um dos mais perfeitos estilistas franceses, que notou, a propósito de Claude Bernard, que se escreve sempre bem quando se tem o que dizer. Aqueles negociantes, com sua visão rasteira e com seu bom senso — pois que passou em julgado que os comerciantes possuem todos este último invejável predicado — legaram-nos numa pintura bem viva e mais atraente do que poderia tê-la composto um literato de ofício, o qual não tivesse tido como eles tantas coisas para contar. Ora, conheceis bem a importância do detalhe, visto e vivido, na obra histórica. Sem êle a figuração pode ter eloqüência, mas carecerá de sugestão.

Estes estrangeiros — Henry Koster principalmente, que veio para Pernambuco a fim de restabelecer sua débil saúde de homem atacado do pulmão, quase sarou nesse meio tropical e só muito mais tarde veio a sucumbir ao mal, e como Henry Koster tantos outros — falaram do Brasil com a ternura comovida que empregaria um filho da terra: o que prova quanto são convencionais esses sentimentos que separaram os povos, senão as raças.

Fala-se muito embora em "instinto" patriótico: é tão imaginário quanto a famosa "voz do sangue", de que se inspiraram numerosos melodramas antes de resvalar nas inepcias da farsa teatral. Um filho de alemão ou de francês, nascido no Brasil, é tão brasileiro quanto um filho de português, e como seria diversamente se seus próprios pais se deixam pela maior parte prender à terra de adoção por uma tão real afeição? O contrasste torna-se mais frisante quando o tipo físico é mantido em virtude da lei de hereditariedade, envolvendo um novo espírito onde entram mesmo os aspectos menos importantes e até os defeitos que possui cada variedade humana.

Existirão aliás raças puras no planeta, ou não será a humanidade antes uma mistura de raças? Sabeis todos que os franceses que representam em sumo grau a cultura latina têm mais sangue germânico nas veias do que sangue romano, e que as invasões bárbaras de além Reno, sobretudo as dos francos, se sobrepuseram à população gaulesa, a ponto de restabelecerem em seu proveito a unidade perdida da Gália, refeita por Clodoveu e mais tarde por Carlos Magno. Sabeis todos que os visigodos, suevos e vândalos, e por outro lado os mouros, distinguiram sobre a população celtibérica de modo a aí perpetuarem indefinitivamente o tipo moreno da Arábia e o tipo louro da Escandinávia.

Não insistirei de resto em questões etnogênicas conhecidas. O que especialmente chamou nossa atenção foram exemplos individuais dos laços que unem o Brasil aos estrangeiros, laços tão sólidos que estrangeiros, quero dizer indivíduos nascidos sob outro céu arrostaram por nossa defesa os perigos das batalhas, prontos a derramarem seu sangue por uma causa que não era a dos seus compatriotas, e que tais indivíduos estavam longe de ser vulgares mercenários dispostos a alugar seus serviços ao primeiro que aparecesse. Havia no seu modo de proceder motivos mais ou menos elevados, mas outros do que o interesse pecuniário.

Assim é que o nosso maior marinheiro, o Almirante Barroso, que ganhou a célebre batalha naval- de Riachuelo, era português de nascimento e aderiu à causa do Brasil independente. Tivemos igualmente, na nossa Marinha e no nosso Exército, franceses como Leverger, que Dom Pedro fêz Barão de Melgaço; como Labatut, que servira em França com o imperador; como de Beaurepaire Rohan, portador de um nome ilustre na aristocracia; ingleses como Grenfell e Taylor, que permaneceram até ao fim ao serviço do Brasil.

Só vos citei casos históricos, alguns homens que se destacam dentre a grande massa dos colonos europeus à qual todo o país de além-mar deve seu desenvolvimento c sua civilização. Não posso, entretanto, esquecê-la, essa multidão anônima, esse mar de estrangeiros que desde o começo, desde o descobrimento, mas sobretudo durante o século XLX, veio rebentar nas praias do Novo Mundo e cujo estabelecimento fêz a grandeza de países como os Estados Unidos e o Brasil, onde seu número é legião.

Foram esses milhões de homens de todas as raças e de todas as procedências impelidos primeiro pela sede ardente e doentia do ouro, da conquista territorial e da supremacia religiosa, em seguida por essas mesmas preocupações sob aspectos menos violentos e mais sãos, enfim pela única ambição utilitária assumindo uma forma moral, que transformaram as regiões selvagens da América, onde tantas rudes lutas se travaram, num campo pacífico de progresso e de labor humano, a ponto tal que não mais se pode compreender o mundo sem a América.

O que teria sido do excedente da população européia, excedente todo relativo, dependente essencialmente das condições físicas e econômicas de cada país, sem esse escoadouro de atividades, sem essa escola de energia destinada a educar vontades e a oferecer a uma população ameaçada pela miséria e pela fome extensões imensas e todas por assim dizer férteis, pois que o Novo Mundo não comporta os grandes desertos do Velho, não possui nem Saara nem Gobi? Imaginai a Europa, onde a concorrência é tão encarniçada, com sua população atual e, mais os 140 milhões de americanos, a saber, de europeus transportados para a América, e seus descendentes!

Esta união bem combinada de esforços de origens diversas prova, pois, perfeitamente, o que afirmei: que a solidariedade humana, apesar dos desmentidos cruéis que lhe são infligidos, não é uma vã palavra, uma fórmula para uso de ágapes e de congressos internacionais, e que as distinções e mesmo as diferenças entre as nações não são obra senão das circunstâncias acidentais, históricas, geográficas ou políticas.

Se os filhos de uma nacionalidade podem trabalhar pela grandeza de outra com tamanha dedicação; se os nacionais de um país podem fundir-se numa massa estrangeira e não mais se desligarem; se a convergência dos sentimentos provenientes de pontos afastados e mesmo opostos pode conduzir a semelhante harmonia — é que o voto dos pacifistas não é uma quimera irrealizável e que o sonho da fraternidade universal não é uma demência. É quando muito uma utopia, e a utopia já foi definida uma verdade prematura.

O exemplo do Brasil serve para demonstrar que o concurso dos estrangeiros pode ajudar vantajosamente, e de fato ajuda sempre poderosamente o desenvolvimento nacional, e que a contribuição de ordem social que cada um deles pessoalmente representa não é senão a visão fragmentária do espetáculo que o futuro provavelmente nos reserva, a saber, a combinação, a solidariedade — repitamos a palavra, que por haver sido mais usada não perdeu seu valor nem sua significação — dos esforços de todos os povos para um fito comum e para um estado, estranho tão-sòmente às ambições e às injustiças mantidas pelas rivalidades presentes.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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