- AGRADECIMENTO
- Parte IV:
- A metodologia na metafísica
- INTRODUÇÃO GERAL
- DESOBSTRUINDO O CAMINHO
- CAPÍTULO 1
- A ANÁLISE DOS ANTIGOS
- E A ÁLGEBRA DOS MODERNOS
- 1.1 O método de análise dos geômetras gregos
- 1.2 A álgebra dos modernos
- 2.1 O método enquanto arte de resolver problemas
- 2.2 Exame do problema de Pappus
- 2.3 A denominação do método da Geometria
- 2.4 O método e a exposição da teoria geométrica
- 3.1 As primeiras quatro regras
- 3.2 A estrutura do método e sua aplicação
- 3.3 Aprendizagem e treinamento do método
- 3.4 A estrutura do saber e a estrutura do método
- 3.5 A teoria das questões e sua aplicação
- 3.6 Considerações finais
- O EXEMPLO DA EXPLICAÇÃO DO ARCO-ÍRIS
- CAPÍTULO 6
CONCLUSÃO
GERAL
DOS PROBLEMAS AO
SISTEMA
CONCLUSÃO
GERAL
DOS
PROBLEMAS AO SISTEMA
Depois
de traçado esse longo percurso em meio a paisagens e domínios territoriais
diversos, segue abaixo a retomada das principais teses propostas, juntamente
com observações sobre certas questões que permaneceram parcialmente
desenvolvidas ou indiretamente enunciadas. O objetivo é o de fornecer uma visão
definitiva e conclusiva sobre a problemática que orientou a presente investigação.
A primeira tese geral, apontada no início dessa pesquisa, consistiu em afirmar
que Descartes, em termos metodológicos, é um descendente dos geômetras gregos,
praticantes do método de análise, e, como tal, se coloca como integrante dessa
tradição na qual algebristas como Viète[1] também pretenderam fazer
parte. As referências diretas dos textos cartesianos, fornecidas principalmente
no início do capítulo primeiro (concernentes às Regras, ao Discurso e às Segundas respostas), bem como o exame de algumas expressões
empregadas nesse último texto são a indicação direta e literal dessa filiação.
Depois de um estudo sobre o método dos geômetras e, por extensão, o dos
algebristas, a investigação da produção científico-filosófica cartesiana e a
apresentação de ilustrações por ela fornecidas, alicerçadas pela reflexão que o
autor desenvolve principalmente nos textos ditos metodológicos (no caso,
basicamente as Regras), parecem prová-la clara e suficientemente.
Uma
observação central é preciso fazer nesse momento. Não basta reconhecer essa
filiação cartesiana em sua generalidade, como quase sempre se fez. Talvez mais
nocivo do que ignorar ou negar essa descendência seja mal compreendê-la
ou afirmá-la genericamente e sem precisão. Dizer que Descartes integra a
tradição dos geômetras gregos não significa colocá-lo como descendente de
Euclides, o autor dos Elementos, mas, pelo contrário, como defensor de
um estilo absolutamente distinto daquele que é empregado por essa obra. É fora
de propósito afirmar tout court que Descartes extraiu sua metodologia ou
se inspirou na “prática” dos geômetras (ou dos matemáticos em geral), sem
distinguir o procedimento heurístico do procedimento expositivo, ambos
empregados por eles, mas em dimensões distintas. Dessa forma, a ordem expressa
nos Elementos está nas antípodas da ordem metodológica cartesiana[2].
Afirmações
genéricas sobre a fonte de inspiração da metodologia cartesiana, na verdade,
nos conduzem geralmente ao oposto do que ocorreu efetivamente com Descartes e
do que ele pretendeu expressar em relação ao seu método. Sendo os Elementos a obra matemática mais conhecida ao longo dos séculos, a representante
“oficial” do pensamento matemático antigo e do seu rigor demonstrativo, bem
como o testemunho claro do que é e de que é possível a ciência, a referência
imprecisa ao método de invenção que os geômetras utilizaram foi interpretada
como uma referência a esta obra. Grande parte dos intérpretes de Descartes, em
razão da distância que mantêm da temática, comprovada pela inexistência de
estudos que eles próprios deveriam ter feito e pela falta de referência aos
realizados pelos historiadores da matemática, parecem ter cometido esse
equívoco, a despeito de afirmações que, porventura, dizem o contrário. A
exemplo de Gueroult, cometem-no aqueles que tratam da noção de ordem
caracterizando-a, simultânea, concomitante e indistintamente, como concernente
ao procedimento de descoberta e como pertencente ao procedimento expositivo ou
justificacional.
A segunda tese apresentada no início do presente estudo diz respeito à universalidade
do método cartesiano. Essa tese foi também suficientemente provada, na medida
em que foram expostos casos ilustrativos de sua atuação em várias áreas do
conhecimento, a saber, na matemática, na física e na metafísica. A tese da
universalidade não implica que todos os textos do autor devam ser uma
ilustração da atuação do método ou que necessitem se adequar rigorosamente a
ele. Sua pertinência é sustentada por essas três razões complementares.
Primeiramente, o método é efetivamente “aplicado” a problemas das diferentes
áreas. Além disso, outros problemas, ainda que não ilustrem rigorosamente a
metodologia, são apresentados como seus resultados, tal como ocorre com os Ensaios físicos. Por fim, mesmo que não seja absolutamente necessário que toda verdade
seja decorrente da atuação do método (pois algumas delas podem resultar de uma
apreensão isolada e fora de um contexto investigativo, bem como a resolução de
alguns problemas pode decorrer “naturalmente” de outros já resolvidos), obras
que não foram examinadas no presente estudo e que tampouco são consideradas por
Descartes como exemplificações da fecundidade de seu método denunciam a
presença (ou a lembrança) do método analítico ou conservam resquícios de sua
atuação. Tal é o caso do Homem e da Terceira Parte dos Princípios.
Quanto
à primeira obra, como Descartes afirma no Discurso, não podendo tratar
do homem dentro do mesmo “estilo” que descrevera o mundo a partir da fábula de
sua criação por Deus (isto é, “demonstrando os efeitos pelas causas”, diz o
texto; para “conhecer os efeitos por suas causas” e para “ter demonstrações a priori, diz o Mundo (XI, 47, 24-28)), Descartes partiu de algo
dado, do “corpo de um homem inteiramente semelhante a um dos nossos” (isto é,
dos efeitos), para aí descobrir “de quais sementes e de que maneira a natureza
deve produzi-los” (suas causas) (VI, 45, 23-ss). Essa “ruptura” da ordem
dedutiva, como chama BEYSSADE (1996, p. 25), evidencia a presença do
procedimento analítico.
Na
Terceira Parte dos Princípios ocorre algo semelhante. Essa parte é composta
basicamente de duas seções: a primeira (arts. 4-41) faz a descrição dos
principais fenômenos do mundo visível (fenômenos celestes), enquanto a segunda
(arts. 42-157) explica tais fenômenos a partir de suas causas, conforme diz seu
artigo 4 e conforme a idéia de scientia perfectissima, expressa no
artigo 24 da Primeira Parte. O que importa notar aqui é a necessidade de
Descartes interromper esse ordenamento expositivo (desde os fundamentos
metafísicos), em razão do fato de que “os princípios que eu acima expliquei são
tão amplos que deles podemos deduzir muito mais coisas do que vemos no mundo, e
mesmo muito mais do que poderíamos percorrer pelo pensamento em todo o tempo de
nossa vida”, de sorte que é preciso, ainda que “aspiro explicar os efeitos por
suas causas, e não as causas por seus efeitos, (…) escolher, entre uma
infinidade de efeitos que podem ser deduzidos das mesmas causas, aqueles que
devemos principalmente nos esforçar de delas deduzir” (IX, 104-05; VIII,
82-83). Nesse sentido, apesar das dificuldades concernentes ao estatuto dessa
descrição (ou historia, diz o latim) feita pela primeira seção da
Terceira Parte[3], parece não haver dúvidas
sobre a “intenção” analítica que ela assume, na medida em que foi preciso, como
diz o Discurso, ir “ao encontro da causas pelos efeitos” (VI, 64, 21)[4].
A terceira tese que se pretendeu desenvolver diz respeito à natureza da metodologia
cartesiana e à sua caracterização enquanto arte voltada à resolução de
problemas. Dentro dessa perspectiva, Descartes, a exemplo dos geômetras e algebristas,
concebe que a atividade de resolução de problemas constitui o cerne do processo
de produção de conhecimento, bem como expressa por excelência o modus
operandi da racionalidade humana. Entender a produção do conhecimento dessa
forma significa, em primeiro lugar, se opor a outras possíveis maneiras de
produção, dentre as quais se encontra a que pretende deduzir diretamente proposições
segundas e mais complexas de outras que têm uma posição mais elevada. Isso não significa
negar a existência de um possível ordenamento de proposições (ou um sistema),
seguido ou não de sua demonstração, mas deslocá-lo para a etapa subseqüente à
resolução das questões relativas ao mesmo domínio, afirmando-o como resultante,
em grande parte, do desdobramento das relações que as questões apresentam e
mantêm entre si. Conceber a entidade problema como básica e central é
também conceber que a dinamicidade de produção do conhecimento é caracterizada
pela estrutura interna que essa entidade apresenta, sem que ela se submeta a
algo alheio e externo, segundo regras (também alheias) garantidoras desse
processo[5], e sem que sua
preocupação fundamental seja com os passos dedutivos de uma proposição a outra.
A noção de problema encarna e retém a riqueza e a fecundidade necessárias para
a produção do conhecimento, na medida em que recupera e atualiza a idéia de
configuração (isto é, a de uma complexidade de objetos que mantêm
inter-relações e interdependências entre si) que se oferece “naturalmente” em
toda questão que se queira investigar, seja matemática, física, metafísica,
etc.
Isso
significa, primeiramente, que não se pode avançar no conhecimento exclusivamente
a partir do que é dado e conhecido (do evidente), mas é preciso, como ilustra
magnificamente a álgebra, pressupor uma equação – ou algo equivalente – entre o
conhecido e o desconhecido, onde este último está, de alguma forma, já
“determinado” e tem seu “lugar” assegurado, mas, mesmo assim, está ainda para
ser conhecido. A noção de problema é a encarnação dessa estrutura equacional
potencialmente dada, ainda que deva ser montada ou construída (de modo que ela,
efetivamente, é parte da solução e não dos dados iniciais). Dessa forma,
atuando sempre sobre um problema, o método de análise cartesiano, a exemplo do
método dos gregos, age diretamente sobre a configuração dada, que se supõe como
suficientemente completa, de sorte que, estando presentes e implicados entre si
o conhecido e o desconhecido, a causa e o efeito, tais elementos poderão ser determinados
reciprocamente e assumir seu devido lugar no ordenamento posterior dos passos
resolutivos da questão.
Dentro
desse contexto, contrariamente à perspectiva proposicional, a perspectiva
problemática age sempre sobre um caso concreto, devidamente instanciado,
“figurado” e “visível”. Isso não significa uma oposição à generalidade de uma
investigação ou uma insubordinação de instâncias particulares aos princípios
gerais. Para os que partilham dessa visão, não há oposição entre geral e
particular e, portanto, não há preocupação com a passagem entre um e outro (nem
com a elaboração de uma teoria classificatória dos seres). Atuar sobre um
triângulo, sobre um pedaço de madeira em chamas ou sobre uma única gota d’água
é atuar sobre todo triângulo, sobre as propriedades da matéria de qualquer
corpo ou sobre todo arco-íris[6]. Nesses termos, o método
de análise necessita somente que a configuração seja acessível e passível de
manipulação; como tal, deve ser representada, figurada, posta diante do
investigador. Se não for o caso, é preciso que o analista a construa ou a
forneça a si mesmo, pois esse método se nutre da manipulação dos elementos do
complexo dado, a partir da qual a razão “vê” a imbricação entre os mesmos ou,
até, com outros de origem externa, desde que o próprio problema o exige. Mas,
nesse último caso, são exigências internas que determinam o que se aceita e as
formas de “comunicação” com o exterior[7]. Tal é o caso tanto para
a introdução de novos objetos por meio de construções auxiliares, por meio de
analogias e experiências ou pelo uso de expedientes aparentemente alheios ao
problema examinado, como também para a “chamada” de um ou outro princípio já
estabelecido. Mesmo o uso de hipóteses é plenamente legítimo, na medida em que
elas são sugeridas pela própria configuração dada e desde que não firam “princípios”
como o da homogeneidade dos objetos envolvidos e a teoria pressuposta. Assim,
uma hipótese é menos uma hipótese no sentido atual do termo do que o expediente
pelo qual é introduzido um objeto que explicite uma relação fundamental, de
forma semelhante como na geometria antiga, por construção, eram introduzidos
novos objetos, os quais, além de enriquecer a configuração inicial, propiciavam
a apreensão (a intuição) de uma relação que permanecia até então escondida. Da
mesma forma, a utilização de experiências (em física, basicamente) é um
expediente que tem a função de propiciar a captação de determinadas relações
fundamentais e de eliminar outras meramente aparentes ou irrelevantes.
Uma
outra característica do método de análise é a de que ele se apresenta como
agindo contra a corrente ou procedendo de trás para a frente, do fim para o
começo, do complexo para o simples, do efeito para a causa, enfim, de modo a
posteriori ou “como se fosse” a priori (sem ser rigorosamente)[8].
Essa é uma particularidade do método de análise, ou melhor, de sua etapa
analítica, na medida em que pretende descobrir os elementos principais ou
necessários (mais simples) para a resolução da questão. Ela está ligada à noção
de problema e à pressuposição que se faz de que ele está resolvido; ela se
liga, em outras palavras, à idéia de que o problema incorpora e começa com a
presença imediata do fenômeno; ela está ligada à tese de que os objetos ou
fenômenos são dados em sua complexidade, sem ainda evidenciar suas
inter-relações e dependências, da mesma forma que o sujeito, enquanto composto
de corpo e alma e munido de capacidades diversas. Enfim, a metodologia negocia
com o pressuposto de que a “realidade” é posta diante do investigador de forma
obscura e intrincada e que é sua tarefa agir sobre essa realidade e buscar sua
causa ou princípio explicativo[9].
Não
se pretendeu, entretanto, fornecer uma caracterização única do método nem
homogeneizar sua forma de atuação, a partir desses conceitos-chave. Mais
importante é reconhecer que ele pode receber configurações variadas, mas sempre
dentro do paradigma da resolução de problemas, ao mesmo tempo em que deve ser
contraposto ao procedimento simplesmente dedutivo, a partir de princípios ou de
verdades mais elevados. Desse modo, ele jamais procede rigorosamente das causas
para os efeitos, ele jamais é estritamente a priori.
Uma
observação é preciso fazer também quanto às etapas constituintes do método de
análise e à relação entre análise e síntese. Como se viu em várias ocasiões, o
método de análise dos gregos era, na verdade, um método de análise-e-síntese. A
exemplo do que diz Pappus, essa segunda atribuição é mais adequada em razão do
fato de que a etapa analítica do método jamais se encontra sozinha e sem a
etapa sintética, uma vez que as relações descobertas devem ser postas em “sua
ordem natural”, do antecedente para o conseqüente, para que o problema seja
efetivamente resolvido[10]. Ao contrário, a etapa
sintética poderia ser posta separadamente em qualquer ocasião e
independentemente do processo de descoberta; e foi o que efetivamente ocorreu
na maioria das obras dos antigos, até porque é um “processo natural” o
esquecimento do procedimento do descoberta. Seja como for, o que é importante
salientar aqui é que, para os geômetras, conforme atestam também os
historiadores da matemática, análise e síntese são duas etapas de um mesmo
método, sendo que à primeira cabe a função heurística e à segunda a função
demonstrativa, de sorte que está última é impreterivelmente conservada em
detrimento do “caráter volátil” da anterior. Como o segundo sentido de síntese
(representado pela estrutura dos Elementos) surgiu a partir ou como
prolongamento do primeiro, de maneira que falar do método dos geômetras (mos
geometricus) era se referir a essa obra, mas também em que termos a idade
moderna herdou essa ambigüidade ou prolongamento conceituais (e a de seus
correlatos latinos, as noções de resolutio e compositio) são
outras questões que não foram investigadas ao longo do presente estudo e não
serão examinadas aqui[11].
A
maneira pela qual se relacionam as duas etapas do método, em Descartes,
apresenta também certa instabilidade, bem como algumas similaridades para com o
que aconteceu com os gregos. As orientações mais gerais da perspectiva cartesiana
podem ser elencadas ao redor de alguns eixos básicos. Primeiramente, é preciso
reconhecer que o método de análise-e-síntese não tem uma estrutura fixa e imutável,
a qual deva ser respeitada a qualquer preço, como se fosse um receituário ou um
conjunto de procedimentos inflexíveis e que deveriam ser cumpridos à risca. O
que importa é sua capacidade de dar conta dos problemas examinados, contando
com a habilidade da mente e a destreza do investigador em cada caso, com a utilização
de instrumentos que podem auxiliar e melhorar a sua atuação, enfim, procedendo
à dispensa de algum procedimento em razão da comodidade, da obviedade e do fato
de que é importante também deixar aos outros a oportunidade de se exercitarem.
Isso não significa abandonar a perspectiva do método e as suas características,
mas somente colocá-lo como meio e não como fim, além do que, sendo também
decorrência da luz natural da razão humana, sua forma de atuação está
assegurada desde sempre. Nesse sentido, o próprio método é dinâmico e sofre alterações
de uma obra a outra, sem deixar de ser o mesmo.
Em
segundo lugar, quando se trata do método em Descartes, está se falando em
método de descoberta, o que significa dizer que a etapa analítica é seu núcleo
básico, enquanto a sintética é reduzida ao mínimo necessário, dependendo evidentemente
da natureza dos problemas tratados e do domínio a que pertencem, bem como do
estágio em que se encontra a investigação. Assim, o método pode se comportar de
forma distinta, por exemplo, na física e na matemática; ele pode se diferenciar
também no interior de uma mesma disciplina, desde o primeiro até o último caso
examinado. Algo desse gênero ocorre, por exemplo, na Geometria. Se, por
um lado, o problema de Pappus evidencia o método com as suas duas etapas, a
análise e a síntese (esta composta pela construção e pela demonstração), já no
início da obra, por outro, Descartes oferece um exemplo da etapa sintética sem
a demonstração, em razão de sua simplicidade. Mais adiante, depois de resolvido
aquele problema, o autor continua a omitir, em geral, a demonstração, desta vez
porque é da “mesma” natureza das dadas anteriormente. Paralelamente, a análise
e a construção passam a constituir o cerne do método, podendo inclusive se juntar,
formando um único bloco, onde montar a equação (construí-la algebricamente) e
construí-la geometricamente se tornam etapas que se sucedem ou se fundem entre
si. Finalmente, dependendo do objetivo do caso examinado ou do fato de casos semelhantes
já terem sido examinados, uma dentre elas pode mesmo nem constar ou ser
negligenciada.
De
um modo semelhante, pôde-se perceber que, nas Regras, o método apresenta
as etapas como complementares e necessárias, tal como afirma a Regra V e
ilustra o caso da anaclástica. Entretanto, a duplicidade das etapas, já nessa
obra, não é tão inflexível assim, como poder-se-ia pensar à primeira vista. As
Regras XIII e XIV minimizam essa via de mão dupla (as etapas redutiva e
construtiva, como chama Garber) ao apresentar uma teoria das questões, a qual
prioriza a determinação das relações entre os componentes do problema em
detrimento da preocupação com a direção da investigação e com qualquer rigor
estético-formal. Assim, desde seus primeiros escritos, o que importa para Descartes
é dar conta, antes de tudo, do problema em exame.
No
caso da ciência física, contudo, a necessidade da etapa sintética é maior, em
razão do estatuto mesmo dessa ciência. Se comparada à metafísica e à matemática,
ela não é nem uma ciência primeira nem tampouco uma ciência que se ponha de
acordo com os sentidos. Ao contrário, mesmo sendo em certa medida tanto matemática
quanto metafísica, ela não é nem uma nem outra; paralelamente, apesar da
instabilidade dos sentidos, ela necessita da sensibilidade e do uso de experiências.
Metodologicamente, as intuições que o pedaço de madeira em chamas propiciou em
relação à estrutura da matéria ou as relacionadas ao fenômeno do arco-íris são
semelhantes às conquistadas nas Meditações. Epistemologicamente, não. Elas
exigem algo mais: uma teoria que as suporte, um procedimento dedutivo que as
garanta, a solidariedade e a partilha comum dos mesmos fundamentos por parte de
outros fenômenos físicos. Enfim, a física, muito mais do que as outras disciplinas,
exige uma estrutura que a suporte e que a ampare e, como tal, a síntese é
sempre bem-vinda para estabelecer a ligação entre um fenômeno particular e algo
mais geral e mais elevado.
É
por razões desse tipo que, no caso dos problemas dessa ciência, mesmo que
examinados em si mesmos e em sua particularidade, sua resolução não estará
estabelecida a menos que também estejam subordinados aos princípios gerais da
disciplina. Nessa perspectiva, o método paulatinamente deve responder cada vez
mais à exigências estruturais da disciplina, de sorte que não cabe a ele
resolver o problema isolada e exclusivamente, mas também submetê-lo à
organização sistemática e estrutural a que o conhecimento tende. Na verdade,
resolver um problema em física é também reconhecer sua submissão às leis mais
gerais, de sorte que a resolução de problemas tende a sugerir e a implicar o
sistema. Essa é a última tese desse estudo, ainda que mais sugerida e
indicada nas entrelinhas do que provada ao longo do seu percurso[12].
Dentro
dessa perspectiva, o método cartesiano não se restringe à sua atuação pontual e
restrita a um problema. Como já diziam as Regras, os problemas se
relacionam entre si, se reconduzem uns aos outros, se desdobram em outros e,
com isso, evidenciam uma estrutura de fundo comum. Pode-se mesmo dizer que eles
já nascem de uma perspectiva mais ampla, ainda que indeterminada, daquela que
revelam em sua imediatidade. Mesmo o método de análise dos gregos, como se viu,
foi concebido primitivamente como um procedimento de redução ou de recondução de
um problema a outro. Além disso, a própria síntese parece sofrer seu deslize
semântico e ter seu horizonte da abrangência ampliado em razão desse aspecto
presente no método de análise-e-síntese. Como poderia ela ultrapassar o nível
interno de um problema (enquanto etapa demonstrativa) para se tornar o procedimento
expositivo e ordenado de um conjunto de problemas (enfim, de uma disciplina em
si mesma), como ocorre nos próprios Elementos, se os problemas não estão
interligados e não foram mostradas as inter-relações que escondem?
Nesse
contexto, ainda que não se possa dizer que as investigações cartesianas tenham
procedido linearmente dos problemas particulares para os princípios gerais da
física e, depois, em direção ao seu fundamento metafísico, há indícios de que a
reflexão metafísica, em sua versão final e definitiva, é muito mais a etapa final
do procedimento de descoberta cartesiano (visto em sua generalidade) do que de
partida, de modo que as Meditações sejam, ao mesmo tempo, a última etapa
do movimento regressivo e o início do movimento contrário. Seja como for – e
certamente não é tão simples assim –, é certo, porém, que, em se tratando de
descoberta – e o método cartesiano é um método de descoberta –, Descartes não
tem começado pelos seus fundamento e princípios. A “árvore da sabedoria” não
pode ter sido constituída conforme sua ordem “natural”.
[1] Isso não significa que ambos partilhem
necessariamente do mesmo “paradigma” matemático.
[2] Distinguir os Elementos das obras analíticas
dos geômetras antigos não significa afirmar que Euclides não conhecera nem
tenha praticado o método de análise. Ao contrário, obras suas como Os dados fazem parte do corpus analítico. Isso não significa tampouco que problemas
abordados nos Elementos não tenham sido resolvidos pelo procedimento
analítico. Os historiadores da matemática geralmente atribuem a Euclides a
função de ter recolhido e ordenado o material contido na obra, mas reconhecem
que boa parte do seu conteúdo tem sido fornecida por matemáticos que lhe
antecederam, os quais, certamente, utilizaram o procedimento analítico em
muitas de suas investigações. O próprio Aristóteles considerou a análise como
prática comum entre os geômetras.
[3] Sobre o tema, cf. ARAÚJO (1990), onde são discutidas
duas interpretações paradigmáticas, a de GUEROULT (1954; 1970) e a de LOPARIC
(1975; 1997).
[4] É interessante atentar também para a semelhança entre
os dois textos. Cf. o texto do Discurso: “cumpre que eu confesse também
que o poder da natureza é tão amplo e tão vasto e que esses princípios são tão
simples e tão gerais, que quase não notei um único efeito particular que eu já
não soubesse ser possível deduzi-lo daí de várias maneiras diferentes, e que a
minha maior dificuldade é comumente descobrir de qual dessas maneiras o referido
efeito depende” (VI, 64, 27-ss).
[5] As regras de inferência fornecidas pela lógica são o
suporte desse modelo de conhecimento.
[6] Essa é uma conseqüência da tese da homogeneidade dos
objetos de um domínio, apresentada pela Regra XIV.
[7] Talvez se pudesse mesmo estabelecer um paralelo entre
a auto-suficiência e independência do método, das operações do espírito e do
mundo frente a Deus, à sua providência e ao finalismo.
[8] Importa notar que o método de análise recupera
elementos e procedimentos utilizados de forma espontânea pelos homens, bem como
respeita a forma pela qual os “problemas” dados pela natureza e pelo mundo.
Assim, ARISTÓTELES, na Ética a Nicômaco (1112b, 20-ss), diz que a
deliberação imita a prática geométrica, mas, na verdade, poderia dizer Descartes,
ambas nascem de uma racionalidade comum. O mesmo ocorre com os problemas
físicos, tendo em conta que os fenômenos são doados pela natureza ao
investigador, e não é diferente o que acontece em outras disciplinas. Assim,
partir do problema resolvido é partir do fim para estabelecer os meios, é
partir do fenômeno para estabelecer suas causas, é partir do juízo e da verdade
para estabelecer sua possibilidade. Em outras palavras, é imaginar os dois extremos
da cadeia e preencher o vácuo existente entre eles, partindo principalmente do
fim, pois o começo, sendo “tão amplo e tão vasto”, não fornece direção alguma:
é como se, estando em algum local, alguém quisesse viajar, mas sem saber a direção
e o destino ou, como disse LEIBNIZ, nos Novos ensaios (IV, 2, 7), “seria
o mesmo que beber o mar”.
[9] Na metafísica (nas Meditações), partimos do
fato (efeito) de que emitimos juízos e descobrimos que o juízo (o pensamento, a
dúvida) é algo que supõe uma causa produtora, o ser pensante. Por sua vez, a
experiência dessa percepção evidente exige uma reavaliação daquelas razões que
suspenderam a legitimidade de todo juízo, de sorte que é possível chegar à
demonstração da existência de Deus (causa anterior). Até aqui, o procedimento é
claramente do efeito para a causa, do complexo para o simples; e, como o efeito
é inegável (dado que não podemos recusar a afirmação de que julgamos senão
julgando), podemos assumir o efeito como “se fosse” causa e nos perguntar o que
dele se segue. Assim, o método analítico imita o procedimento dedutivo, ao
mesmo tempo em que é ascendente. É ascendente, na medida em que se pergunta de
onde provém ou onde se fundamenta o efeito, mas pode ser dito ser dedutivo,
pois a causa é derivada das considerações feitas sobre o efeito. Depois da
conquista de Deus, o procedimento se altera, uma vez que não há mais como
retroceder para além de Deus. Nesse sentido, as últimas meditações resolvem os
problemas restantes, consideram as pendências e extraem as conseqüências das
garantias dadas por Deus, de forma a estender a veracidade em toda a sua
amplitude. Em si mesmas, entretanto, elas mantêm a característica de examinar a
complexidade dada, tendo em vista que cada uma apresenta seu próprio problema a
ser examinado. A Meditação Quarta, por exemplo, ao considerar o problema do
erro (efeito), determina a sua causa e inocenta a Deus. Em resumo, a “intenção”
do método de análise é proceder a partir do complexo e do efeito em busca do
simples e da causa, até terem-nos encontrado, mas sempre guiada pela
problemática dada, enfim, pela perspectiva da resolução de problemas. Algo
semelhante ocorre na matemática e na física. No Mundo, por exemplo,
Descartes vai de um fenômeno à estrutura e às leis do universo, da luz ao mundo.
[10] Com efeito, diz PAPPUS (1982, p. 477; para a citação
completa, cf. cap. 1): os matemáticos que têm o propósito de “adquirir a
capacidade de resolver problemas” devem proceder “pelo método de análise e
síntese”. Poderiam ocorrer, contudo, casos em que, sendo óbvia, a síntese
poderia ser dispensada.
[11] Os conceitos de análise e de síntese não têm um
sentido unívoco mesmo para os gregos. Conforme aponta GILBERT (1960, p. 32-33),
no segundo e terceiro séculos de nossa era (portanto, já antes de Pappus), a
linguagem geométrica havia penetrado no interior do discurso filosófico de
diferentes escolas, misturando linguagens de áreas distintas e multiplicando o
sentido dos termos que aqui estão em questão. GILBERT (p. 32, n. 47) cita o
texto de Alexandre de Afrodísias, em cujo comentário sobre Aristóteles trata do
termo “análise” e inclui o seu significado geométrico entre mais oito outros
sentidos diferentes. Outros autores, como Albinus (contemporâneo de Galeno),
situam-na, por sua vez, como uma das partes da dialética, sendo a síntese a
etapa contrária. Assim, a análise pode significar, como diz GULLEY (1983, p.
20), tanto uma análise filosófica (de inspiração platônica), silogística ou
geométrica. Concomitantemente, o termo “síntese” é definido de forma que pode
ser aproximado à demonstração aristotélica ou a dos Elementos, mas
também, como faz Galeno, é atribuído ao processo descrito por Sócrates no
Fedro, como parte da dialética juntamente com a divisão. Essa multiplicidade de
sentidos ultrapassa os tempos até o século XVI, quando filósofos e cientistas
recuperam o seu sentido geométrico, a exemplo do que aconteceu com matemáticos
árabes alguns séculos antes.
[12] Como sustenta GAUKROGER (1989, p. 114-115), o método
em física tem claramente uma função resolutiva e outra de integração.