O Visconde de Jequitinhonha r)
Francisco Ge — Acaiabá de Montezuma — eis o nome que adotou Francisco Gomes Brandão de Montezuma (Visconde de Jequitinhonha), sugestionado pelo nativismo que reinava naquela época.
Era um homem de estatura alta, pardo escuro, calvo, olhos vivos, mesmo 2) cintilantes, que denunciavam a vivacidade de seu espírito, a fronte altiva, magro. Todo o seu físico indicava um homem superior, que com efeito era.
O Visconde de Jequitinhonha era filho da Bahia, que naquele tempo não se contentava somente em dar boas mangas, mas produzia grandes homens.
Jequitinhonha, porém, era águia, e por isso desprendeu o vôo a Coimbra, onde fêz seus estudos com grande brilho; sendo depois deputado à Constituinte brasileira, que foi dissolvida à fôrça por Dom Pedro I, foi deportado, não para Cucuí [1]), pois nesse tempo ainda não havia tal invenção, mas para a Europa, de onde veio para ministro da justiça da regência.
No govêrno não foi feliz. Os tempos eram muito agitados e a calúnia, se não o queimou, tisnou-o sôbre um negócio do tráfico de negros.
Montezuma foi senador pela Bahia, depois de ter sido levado à coroa [2]) três vêzes.
Sôbre êste fato vou contar o que se passou entre êle e o imperador.
O Visconde morava em uma magnífica casa com grande chácara, no Rio Comprido, na rua chamada hoje Malvino Reis; a casa ainda existe muito estragada, mas a-pesar-disso, mostra ter sido uma bela residência.
O imperador ouvia falar muito da residência do Visconde, “e uma vez, indo êle ao paço, lhe disse: “Senhor Visconde, tenho ouvi/ do falar muito de sua residência; dizem que é uma bela vivenda!”
Montezuma, com o desembaraço que lhe era habitual, disse)- lhe: “Vá Vossa Majestade almoçar lá e poderá ver que, se não é digna de receber a Vossa Majestade, é, entretanto, confortável pará um homem como eu.”
O imperador aceitou o convite e no dia por êle marcado, foi almoçar na casa do Visconde.
Na mesa o imperador, no correr da palestra, perguntou « Montezuma:
— O senhor é fatalista?
— Sem dúvida. E tenho motivos para o ser.
— Quais são?
— Olhe, senhor, disse o Visconde, à primeira vez que met nome veio a Vossa Majestade, para senador, ao voltar do sertãc da Bahia, onde fui pleitear a eleição, num sítio próximo à capital, o cavalo em que montava, tropicou e eu caí. Pela segunda vez. deu-se o mesmo fato, e Vossa Majestade desta vez não escolheu o meu nome. Pela terceira vez deram-se as mesmas ocorrências e Vossa Majestade me escolheu.
— Mas onde está a fatalidade? perguntou-he o imperador.
— E’ que Vossa Majestade havia de me escolher, quer quisesse, quer não.
Era um remoque *) que o Visconde atirava ao imperador, pois êle sabia que devia a sua escolha para senador ao marquês de Paraná, presidente do conselho de então, que nessa ocasião dominava o imperador e que só com muito esforço pôde conseguir essa nomeação.
O Visconde de Jequitinhonha amava o ruído ao redor de seu nome e tinha como máxima: “No Brasil, antes injuriado que esquecido.” Porisso, quando não se falava dêle, escrevia êle mesmo artigos anônimos pelos jornais, em que se faziam acusações e se levantavam aleivosias2) contra sua pessoa.
No dia seguinte o Visconde respondia rebatendo as acusações e desprezando as injúrias; indo à “Petalógica” 3) onde se reuniam os homens salientes da política, era recebido com demonstrações de estima, e comprazia-se com a discussão que sôbre o assunto se travava.
Era um orador de efeito e de grande folêgo.
Oposicionista tremendo, êle só valia por uma legião. Mas era espírito que se comprazia com as contradições; o que o levara muitas vêzes a proceder à feição da maledicência e da inveja, que explicava de modo aviltante o seu procedimento.
Assim conta-se que, quando em uma sessão do senado trovejava em formidável discurso contra o gabinete Paraná 4), êste lhe escreveu um bilhete, em que lhe fazia propostas vantajosas, o qix- lêz o Visconde perorar em favor do ministério, atirando para cs seus inimigos, o que havia dito antes.
Mas no dia seguinte ao favor, tornava para a oposição, o que fêz o marquês de Paraná exlamar: “êste prêto não se vende
aluga-se”
E’ possível que aquêle estadista em ocasião de mau humor e cedendo à irritação do seu caráter, tivesse lançado semelhante injúria, mas duvido que ela encerre a verdade.
Montezuma, que sacrificava o mais sagrado dos princípios a um bom dito, sacrificaria também a sua reputação por um momento de ímpeto, mas era incapaz de uma baixeza, de uma vilania.
Tinha muitos inimigos, criados pela mordacidade de sua palavra e pelo esplendor de seu talento, aumentados pelos “engrossa- dores” do imperador, a quem êle causticava com os seus ditos.
Morreu bastante velho, mas com o espírito novo e lúcido.
Não se deixou apodrecer em vida como muitos outros.
Suetônio.[3])
[1] O autor faz alusão às deportações, no govêrno de Floriano Peixoto, de políticos para Cucuí, pôrto militar na margem esquerda do alto
Rio Negro, est. do Amazonas.
[2] Na monarquia, o imperador escolhia o senador dentre os três candidatos mais votados, e cujos nomes lhe eram apresentados em lista, cha
mada tríplice.
[3] Suetônio — pseudônimo sob o qual se ocultou o escritor Dr. Antônio Ferreira Viana, filho do ilustre rio-grandense Conselheiro Ferreira Viana, notável jurisconsulto que ocupou lugar saliente no parlamento e no jornalismo no tempo do segundo império.
Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.
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