Os Lusíadas de Camões o gênero épico da Poesia – Curso de Literatura

Cônego Fernandes Pinheiro (1825 – 1876)

CURSO DE LITERATURA NACIONAL

 

LIÇÃO 
X

 

GÊNERO ÉPICO

 

Mais feliz do que muitas
outras, conta a literatura portu­guesa em seu século áureo um poema épico, cujo
mérito, mais ou menos apreciado, não pode ser posto em dúvida, ainda pelos mais
severos críticos. Antes de entrarmos na análise de tão majestoso monumento,
digamos duas palavras sobre a vida do seu
preclaro autor.

 

LUÍS
DE CAMÕES

 

Luís de Camões, oriundo de uma
nobre família da
Galiza, nasceu em Lisboa pelos fins do ano de 1524, ou nos
princípios do de 1525. Manifestando desde os mais verdes anos deci­dida
inclinação para as letras, foi por seus pais mandado à Universidade de Coimbra,
onde fez rápidos progressos nas línguas latina, espanhola e italiana, bem como
na história, geografia e astronomia. Onde porém mais se revelara o seu
portentoso talento fora na poesia, em que não tardou a distin­guir-se.
Terminados os seus estudos, regressou a Lisboa, cheio de esperanças que lhe
inspiravam seus conhecimentos e a no­meada que começava a ganhar. Bem acolhido
pela corte e principalmente pelas damas, compôs em sua cidade natal a maior
parte das suas
Rimas.


Não podia porém um fidalgo
português desses velhos tem­pos permanecer ocioso nas delicias de Cápua; assim
pois, alis­tou-se Camões entre os guerreiros que partiam para Ceuta, onde,
combatendo valentemente ao lado" de seu pai, perdeu o olho direito.
Persuadido de que semelhantes serviços lhe da­vam
jus a alguma remuneração,
dirigiu-se à corte a fim de requerê-la; nada havendo porém obtido, e tendo ao
contrário sido preso por haver em defesa de amigos ferido um criado do paço,
embarcou-se para a índia em 1553. No Oriente, onde tanta gente fazia fortuna, e
onde fácil era adquirir fama, não foi mais feliz o nosso poeta; tendo antes de
sofrer acerbos desgostos e injustas perseguições da parte dos que ali gover­navam.
Ao seu gênio satírico, que não poupava a escanda­losa conduta dos que longe da
pátria tornavam odioso o nome português, atribuem alguns biógrafos a guerra que
na índia experimentou Camões. Parece que o mais
venturoso tempo que passou nas regiões
da Aurora foi o que exerceu o cargo de Provedor Mor dos Defuntos e Ausentes da
cidade de Macau, onde escreveu seis cantos do seu poema, indo, segundo a tra­dição,
meditá-lo nessa poética gruta que saudosa lhe guarda o nome.

Findos porém dois anos de
serviço, foi preso para
Goa, por ordem de Francisco Barreto, que o nomeara para
aquele cargo, afim de prestar contas da sua administração. Naufragou na costa
de Camboja, na Cochinchina, onde se salvou a nado, apenas com o manuscrito do
seu poema. Chegado a
Goa, foi recolhido à cadeia, donde saiu logo, por se ter
justificado pe­rante o novo governador D.
Constantino de Bragança.

Para resumirmos diremos que,
saturado de
contrarieda­des e reduzido à extrema penúria, resolveu Camões, após de­zessete
anos de ausência, volver à pátria, internamente con­victo que seus longos
serviços militares e a glória que sobre Portugal ia espargir a sua epopéia
seriam ao fim
galardoados. Novas decepções porém o aguardavam nessa corte em que
reinava D. Sebastião, ou antes os jesuítas na pessoa do P. Luís Gonçalves da
Câmara,
confessor do moço monarca. Mes­quinha, senão ridícula pensão, foi, como esmola,
concedida ao rival de Virgílio, e seus derradeiros dias escoaram-se quase na
indigência. Em uma pobre casa da rua de
SanfAna, e não nas enxergas de um hospital, como por muito tempo se su­pôs,
expirou o grande homem a 10 de junho de 1580, um ano antes daquele em que no
sólio dos Afonsos se sentou o
sombrio e implacável filho de Carlos V, restando-lhe por única conso­lação o
morrer com a pátria. Tratemos agora do seu poema.

Os Lusíadas. — O portentoso gênio que já
havemos admi­rado em várias espécies de poesia deliberou dotar o seu país com
um monumento igual aos da
Ilíada e Eneida. Na mo­derna poesia ninguém o havia precedido; pois que
nem a
Divina
Comédia
de
Dante,
o Orlando furioso de Ariosto nem tão pouco a Itália libertada de Trissino lhe podiam servir
de norma, trilhando opostas veredas.

Com o nobre e patriótico
empenho de cantar os heróicos feitos dos seus compatriotas tomou Camões um
título cole­tivo para o seu poema apelidando-o de
Lusíadas. Convindo porém dar unidade ao plano,
buscando para isso um prota­gonista, achou-o na pessoa de Vasco da Gama,
incumbido por el-rei D. Manuel da gloriosa empresa de descortinar novos
horizontes ao gênio lusitano. Em torno de tão prestigioso nome grupou todos os
heróis da pátria, e, narrando uma via­gem ao Oriente, celebrizou os mais
memorandos feitos na­cionais.

Superando mil óbices escreveu
Camões o primeiro poema verdadeiramente épico que possuímos. Guardou, sempre
que lhe foi possível, os preceitos,
aristotélicos, e a crítica não lhe exprobra com justiça o haver desprezado
as clássicas unidades. A principal (a dicção) foi por ele
escrupulosamente obser­vada, jamais se
olvidando do fim a que se propunha. Habil­mente introduzidos, e com arte
ligados são os seus episódios, de que tão bem se serviu para contar a história
de seu país, tornando destarte o seu livro essencialmente nacional.

Por maior porém que sejam o
nosso respeito e admiração para com o
Homero Lusitano, não dissimularemos os defeitos
que julgamos descobrir em sua obra,
e a este número pertence sem dúvida a tibieza com que traça os seus
caracteres. Pouco interesse inspira o Gama, cuja ação é por demais secundária,
como ele próprio
no-lo diz:

Que ele não era mais que um
deligente Descobridor das terras
d’Orienté.

e cujo papel não é sempre o
que mais conviria a um herói, como v. g. na ocasião em que, vítima da negra
traição do Catual,

Escreve a seu irmão que lhe
mandasse A fazenda com que se regatasse.

Não é sempre bem guardada a
verossimilhança, tão neces-rária neste gênero de composições, como, por
exemplo, quando figura que os grandes feitos dos antigos portugueses se acha­vam
pintados nas bandeiras, onde só se representam as armas das nações, ou dos
príncipes, que as governam.

Seria muito para desejar que
Camões desse mais cor local a sua epopéia, e que conhecendo tão bem o Oriente
nos legasse maior número de pinturas da esplêndida natureza tropical, tirando
melhor partido dos ritos bramínicos e muçulmanos, assim como dos costumes dos
habitadores das margens gan-géticas.

Somos da opinião dos que
julgam imprópria da majestade épica as voluptuosas cenas da ilha dos Amores, e
desejára­mos que o poeta fosse nesse e em alguns outros lugares menos erótico.

Discordamos porém dos que o
acusam pela confusão do sagrado com o profano, da mitologia com o cristianismo.
Seria torná-lo responsável por um vício que em seu tempo passava por grande
beleza, e a que não puderam subtrair-se
Dante, Ariosto, e mais tarde Tasso e Milton.
Era então a mitologia considerada como
ornato que em nada prejudicava a fé religiosa dos poetas.
Perfeitamente desconhecido o mara­vilhoso cristão seria o seu emprego
considerado quase como uma profanação.

Se, como em todas as obras
humanas, contam-se defeitos nos
Lusíadas, por quantas belezas não são eles remidos? Quem melhor
do que Camões se serviu da poesia descritiva, essa pedra do toque do verdadeiro
talento? Com que graça, com que naturalidade, não
p’nta ele esses fogos-fátuos
chamados pelos navegantes
de santelmos! Como é magnífica a descri­ção
do fenômeno da
tromba marítima! Ouçamo-los:

Vi claramente visto o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo; Em tempo
de tormenta e vento esquivo, De tempestade
escura e
tr.’ste pranto: Nem’menos foi a todos excessivo Milagre, e
coisa certo
d’alto espanto, Ver as nuvens no mar com largo cano Sorver as
altas águas do Oceano.

Eu o vi certamente, e não
presumo Que a vista me enganava, levantar-se No ar um
vaporzinho e sutil fumo, E do vento
trazido, rodear-se. Daqui levado um cano ao pólo sumo Se via tão delgado que
enxergar-se Dos olhos facilmente não podia: Da matéria das nuvens parecia.

Ia-se
pouco a pouco acrescentando

E mais que um largo mastro se
engrossava:

Aqui se estreita, ali se alarga
quando

Os golpes grandes d’água em si
chupava.

Estava-se com as ondas ondeando;

Dele em cima uma nuvem se
espessava,

Fazendo-se maior, mais
carregada

Co’o cargo grande d’água em si
tomada.

Qual roxa sanguessuga se veria Nos beiços d’ailmária
que, imprudente Bebendo a recolheu na fonte fria, Farta com o sangue alheio a
sede ardente: Chupando mais e mais se engrossa e cria; Ali se enche e se alarga
grandemente: Tal a grande coluna enchendo aumenta A si, e a nuvem negra que a
sustenta.

Nota-se na última estância uma
das mais lindas parábolas de todo o poema; assim como o singular talento com
que soube realçar um objeto que à primeira vista parecia tão pouco poético.

« Quase todos os grandes
poetas consagraram sua musa a descrições das tempestades sobre o Oceano; nenhum
porém ainda igualou ao épico lusitano na veracidade e beleza dos seus quadros,
merecendo que
Chateaubriand denominasse os Lusíadas de primeiro poema marítimo. Quando pendente dos lábios
de
Veloso
ouvia a equipagem a narrativa das proezas dos
seus maiores surge a terrível
procela:

Mas nesse ponto assim prontos estando Eis o mestre, que
olhando os ares anda, O apito toca;
acodem despertando Os marinheiros duma e doutra banda: E
porque o vento vinha refrescando Os traquetes das gáveas tomar manda:
"Alerta (disse) estai, que o vento cresce Daquela nuvem negra que
aparece."

Não eram os traquetes bem
tomados, Quando dá grande e súbita
procela: "Amaina" disse o mestre a grande brados,
"Amaina" disse, "amaina a grande vela." Não esperam os
ventos indignados Que amainassem, mas juntos dando nela Em pedaços a fazem com
fíiído Que o mundo pareceu ser destruído.

*

O céu fere com gritos, nisto a
gente

Com súbito temor e desacordo,

Que no romper da vela a nau
pendente


 

Toma grã soma d’água pelo bordo.
"Alija" disse o mestre rijamente, "Alija tudo ao mar; não falte
acordo "Vão outros dar à bomba, não cessando; "À bomba, que nos
imos alagando."»

Correm logo os soldados animosos

A dar à bomba; e tanto que chegaram

Os balanços que os mares temerosos

Deram à nau, num bordo os derribaram:

Três marinheiros duros e forçosos

A manear o leme não bastaram;

Talhas lhe punham duma e doutra parte

Se aproveitar dos homens força e arte.

Os ventos eram tais que não
puderam

Mostrar mais força de ímpeto cruel

Se para derribar então vieram

A fortíssima torre de Babel;

Nos altíssimos mares que cresceram,

A pequena grandura dum batel

Mostra
a possante nau, que move espanto,

Vendo que se sustém nas ondas tanto.

A nau grande em que vai Paulo
da Gama, Quebrado leva o mastro pelo meio, Quase toda alagada; a gente chama
Aquele que a salvar o mundo veio. Não menos gritos vãos no ar derrama Toda a
nau de Coelho com receio, Conquanco teve o mestre tanto tento Que primeiro
amainou que desse o vento.

Agora sobre as nuvens os subiam
As ondas de Netuno
furibundo; Agora a ver parece que desciam As íntimas entranhas do
profundo. Noto, Austro,
Bóreas, Aquilo queriam Arruinar a máquina do mundo; A noite
negra e feia se
alumia Co’os raios em que o pólo todo ardia.

As alciôneas aves triste canto
Junto da costa brava levantaram, Lembrando-se do seu passado pranto Que as
furiosas águas lhe causaram. Os delfins namorados entretanto Lá nas covas
marítimas entraram, Fugindo a tempestade e ventos duros, Que nem no fundo os
deixe estar seguros.

Nunca tão vivos raios fabricou
Contra a fera soberba dos gigantes, O grão ferreiro sórdido que obrou.


                         Do enteado as armas rutilantes;

Nem tanto o grão Tonante arremessou

Relâmpagos ao mundo fulminantes

No grão deiúvio, donde sós
viveram

Os dous que em gente as pedras
converteram.

Quantos montes então que derribaram As ondas que batiam denodadas! Quantas árvores velhas
arrancaram Do vento bravo as fúrias indignadas! ;     As forçosas
raízes não cuidaram

Que nunca para o céu fossem
usadas;

Nem as fundas areias que
podessem

Tanto os mares que em cima as
revolvessem.

Segue-se a deprecação do Gama,
implorando o celeste au-1 xílio, e finda com esta belíssima
estância:

Assi
dizendo os ventos que lutavam

Como
touros
indómitos bramando,

Mais e mais a tormenta acrescentavam

Pela miúda enxárcia assoviando;   ,

Relâmpagos medonhos não
cessavam,

Feros trovões que vêm
representando      ..   ..":••>

Cair o céu dos eixos sobre a
terra,

Consigo os elementos terem
guerra.

Apesar da malévola crítica e
das chocarrices de José Agostinho de Macedo, não deixa de ser considerada como
ri­quíssima a metamorfose do gigante
Adamastor, e o próprio Voltaire, que por mais de uma vez tão
injusto foi para com Camões, rendeu homenagem a este inimitável trecho dos
Lusíadas. Admiremos este medonho retrato
do gigante:

 

Não acabava quando uma figura
Se nos mostra no ar robusta e válida, De
desforme e grandíssima estatura, O rosto carregado, a barba
esquálida; Os olhos
encovados, e a postura Medonha e má, e a cor terrena e pálida,
Cheios de terra e crespos os.cabelos, A boca negra e os dentes amarelos.

Tão grande era de membros que
bem posso Certificar-se que este era o segundo De Rodes estranhíssimo colosso,
Que um dos sete milagreS" foi do mundo; Cum tom de voz nos fala horrendo e
grosso Que pareceu sair do mar profundo: Arrepiam-se as carnes e o cabelo A mim
e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo.

Não é menos notável pela sua
arrogância a fala de
Ada­mastor ameaçando terríveis desgraças aos audazes navegadores
que lhe devassavam os domínios:

Aqui espero tomar, se não me
engano, De quem me descobriu suma vingança; E não se acabará só nisto o dano De
vossa pertinace confiança; Antes em vossas naus
vereis cada ano (Se é verdade o que
meu juízo alcança) Naufrágios, perdições de toda a sorte, Que o menor mal de
todos seja a morte.

Procurando guardar a maior
imparcialidade em nossos juízos, diremos com franqueza que nos parece mal
cabida a narração dos amores de
Adamastor com a deusa Tétis, além de
censurável pela nímia voluptuosidade do quadro. De fato, onde está a
verossimilhança em contar o gigante, cujas iras tão bem descreve o poeta, seus
amores a um temerário que lhe invadia os términos e cuja frota quisera
submergir? Não se deixaria também Camões arrastar demasiadamente pelo fogo da
sua fantasia, olvidando-se da majestade épica? Vejamo-lo:

Já néscio, já da guerra desistindo, Uma noite de Dóris prometida Me aparece de longe o
gesto lindo Da branca Tétis única despida; Como doido corri de longe abrindo Os
braços
pêra aquela
que era vida Deste corpo, e começo os olhos belos A lhe beijar, as faces e os
cabelos.

Oh! que não sei de nojo como o
conte! Que crendo ter nos braços quem amava, Abraçado me achei c’um duro monte
D’áspero mato, d’espessura brava; Estando Cum penedo fronte a fronte, Que eu
pelo rosto angélico apertava, Não fiquei homem, não, mas mudo e quedo, E junto
dum penedo outro penedo.

Não é por certo invejável pela
sua moralidade o papel que aqui representa a
ninfa Dóris, ao passo que digna se faz de
elogios a fidelidade
conjugal de Tétis.

Outro reparo que não podemos
deixar de fazer a este lindo episódio é o de haver nele introduzido Camões o
naufrágio de
Sepúlveda e os seus infelizes amores: o que poderosamente
contribui para tornar tíbia a fala de
Adamastor, que com tanta energia
começara. Além de que é este um episódio encerrado em outro episódio.

A aventura de D. Inês de Castro forma agradabilíssima diversão no meio das cenas
belicosas da história lusitana, que o Gama, à imitação de Ulisses e de
Enéias, conta ao rei de Melinde. E
posto que, como já dissemos, pareça este episódio imitado de um romance então
mui popular, e que se lê no
Cancioneiro de Rezende, soube Camões adorná-lo com as gra­ças da
sua fecunda imaginação. Enquanto houver quem fale, ou entenda, o idioma português,
serão justamente célebres estas belas estâncias:

Tais contra Inês os brutos matadores

No.colo d’alabastro que sustinha

As obras com que Amor matou
d’amores

Aquele que dep > s a fez
rainha.

As espadas banhando, e as
brancas flores

Que ela dos olhos seus regadas
tinha,

Se encarniçavam férvidos e
ircsos,

No futuro castigo não cuidosos.

Bem puderas, oh! sol, da vista destes Teus raios
apartar aquele dia, Como da
seva mesa de Tiestes Quando os filhos por mão de Atreu comia. Vós, oh! côncavos vales, que pudestes A voz extrema ouvir da boca
fria, O nome do seu Pedro que lhe
ouvistes Por muito grande espaço repetistes!

Assi como a bonina que cortada Antes de tempo foi,
cândida e bela, Sendo das mãos
lascivas maltratada Da menina que a trouxe na capela, O cheiro
traz perdido e a cor murchada; Tal está morta a pálida donzela, Secas do rosto
as rosas e perdida A branca e viva cor co’a doce vida.

Exprobramos a Camões de ser fraco na
pintura dos carac­teres, em que tanto primaram Homero e Tasso; é porém bri­lhante
excepção
o do
grande condestável D.
Nuno Álvares Pereira, cuja alccução antes da batalha de Aljubarrota é dos mais enérgicos trechos
de eloqüência militar, e cujo nobre proceder é o mais completo modelo do
verdadeiro patriota.

O sonho de D. Manuel não
conhece rival na literatura clássica pela majestade do estilo e sublime
concisão de idéias. A ninguém deixará de agradar esta bela prosopopéia:

  Eu sou o ilustre Ganges, que na terra Celeste tenho o
berço verdade ro: Esfoutro é o Indo Rei, que nesta serra

Que vês seu nascimento tem
primeiro. Custar
-te-emos contudo dura guerra; Mas insistindo tu por derradeiro,
Com não vistas vitórias sem receio A quantas gentes vês
porás o freio.

São justamente célebres as endechas do

… Velho d’aspeito venerando

Que ficava nas praias entre a
gente

o qual

Cum saber só d’experiencias feito

lamentava os perigos, os
naufrágios,
as porfiadas guerras a que lá nos reinos da Aurora se iam expor
esses afoitos lusitanos que no
Restelho se embarcavam; e que com a singular liberdade que lhe
asseguravam as
cãs perguntava à fama:

A que novos desastres
determinas De levar estes reinos e esta gente? Que perigos, que mortes lhe
destinas Debaixo
d’algum nome preeminente? Que promessas de reinos e de
minas
D’oiro que lhe farás tão facilmente? Que fama lhe prometerás? Que h’stór’as? Que triusfos, que palmas, que
vitórias?

Depois de haver virulentamente estigmatizado a expedi­ção, o
bom velho, que representava o povo,
prorrompe nestes magoados queixumes:

Oh! maldito o primeiro que no mundo Nas ondas velas pôs em seco lenho! Digno da eterna
pena do profundo, Se é justa a justa
lei que sigo e tenho. Nunca juízo algum alto e profundo Nem cítara sonora, ou vivo engenho, Te por isso fama sem memoria; Mas contigo se
acabe o
nome e a glória!

Fecha o círculo
de tantas e
tão poéticas belezas o senten­cioso
epílogo
com que termina Camões o seu poema:

Não mais, Musa, não mais, que a lira tenho Destemperada e a
voz enrouquecida; E
não do canto, mais de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O
favor
com que mais se acende o engenho Não no a pátria, não, que está metida No
gosto
da
cobiça
e
da rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.


 

E não sei por que influxo do
destino Não tem um ledo orgulho e geral gosto, Que os ânimos levanta de
contino, A ter para trabalhos ledo o rosto. Por isso vós,
oh! rei, que por divino Conselho
estais no
régio só.io
posto, Olhai que sois (e vede as outras gentes) Senhor só de vassalos
excelentes!

Olhai que ledos vão por várias
vias, Quais
rompentes lesões e bravos touros, Dando os corpos a fomes e vigias, A ferro, fogo, a
setas e
pelouros, A quentes regiões, a plagas frias, A golpes de idolatras e de mouros, A
perigos incógnitos do mundo, A naufrágios, a peixes, ao profundo;

Por vos servir a tudo
aparelhados, De vós tão longe sempre obedientes, A quaisquer vossos ásperos
mandados, Sem dar resposta prontos e contentes; Só com saber que são de vós
olhados, Demônios infernais negros e ardentes, Cometerão
convosco e não duvido Que vencedor vos
façam e não vencido.

Favorecei-os logo e alegrai-os

Com a presença e leda humanidade;

De rigorosas leis desaliviai-os,

Que assim se abre caminho à santidade:

Os mais exprimentados levantai-os,

Se com a experiência tem bondade,

Para vosso conselho, pois que sabem

O
como, o quando e onde as
cousas cabem.

Todos favorecei em seus ofícios
Segundo têm das vidas o talento: Tenham religiosos exercícios De rogarem por vosso)
regimento, Com jejuns,
dicciplinás, pelos vícios Comuns; toda a ambição terão por vento;
Que o bom religioso verdadeiro Glória vã não pretende nem dinheiro.

Os cavaleiros tende em muita
estima Po’s com seu sangue intrépido e
fervente, Estendem não somente a lei de
cima, Mas inda vosso império
preeminente: Pois que aqueles que tão remoto
clima Vos vão servir com passo diligente, Dois inimigos vencem, uns os vivos E,
o que é mais, os trabalhos excessivos.


Fazei, senhor, que nunca
os admirados Alemães, galos, íta!os e ingleses. Possam dizer que são para
mandados Mais que para mandar os portugueses. Tomai conselhos só
d’exprimentados Que viram largos anos, largos meses, Que posto que em cientes
muito cabe, Mais em particular o experto sabe.

De Formião filósofo
elegante, Vereis como An bal escarnecia, Quando das artes bélicas diante De^
com larga voz tratava e lia. A disciplina militar prestante Não se aprende,
Senhor, na fantasia, Sonhando, imaginando, ou estudando Senão vendo, tratando e
pelejando.

Depois de haver com
respeitosa e franca linguagem dado ao monarca estes úteis e salutares
conselhos,
desculpa-se
por
este modo da liberdade como se exprimira:

Mas eu que falo
humilde, baxo e rude De vós não conhecido, nem sonhado? Da boca dos pequenos
se.! contudo Que o louvor sai às vezes acabado; Nem me falta na vida
honesto estudo, Com longa experiência misturado, Nem engenho, que aqui vereis
presente, Coisas que juntas se acham raramente.

Para servir-vos, braço
às armas feito;

Para cantar-vos, mente às Musas dada:

Só me falece ser a vós
aceito,

De quem virtude deve
ser prezada;

Se me isto o céu
concede, e o vosso peito

Digna empresa tomar de
ser cantada,

Como a pressaga mente
vaticina

Olhando a vossa
inclinação divina:

Oii fazendo que mais
que a de Medusa A v’sta vossa tem o monte Atlante, Ou rompendo nos campos
d’Ampelusa Os muros de Marrocos e Trudante: A minha já estimada e leda Musa,
Fico que em todo o mundo de vós cante, De sorte que Alexandre em vós se veja
Sem à dita d’Aqu.’les ter inveja.

Malogradas foram as
esperanças do grande poeta; porque, partindo para a infeliz jornada da África,
não o escolheu D. Sebastião para cantor dos heróicos feitos que aí esperava
praticar; e sim a Diogo Bernardes, cujo estro não era por forma
alguma épico.

Colige-se do luminoso trabalho
de
Mendo
Trigoso,
apre­sentado à Academia Real das Ciências de Lisboa, e
inserto no tomo VIII das suas Memórias, que a primeira edição dos Lusíadas viu a luz em 1572, havendo o
autor obtido privilégio para a sua impressão por alvará de 1571. Como quase
sempre acontece, havendo escapado muitos erros tipográficos nessa primeira
edição e desejando por outro lado o poeta aprovei­tar-se dos conselhos da
crítica, pediu
vénia para dar a lume uma segunda edição correta, e quiçá
aumentada; não lhe permitiram porém os censores, aos quais haviam escandalizado
algumas liberdades poéticas, o que obrigou o seu livreiro a
contrafazer a primeira edição publicando
outra no mesmo formato, com a mesma data, e com o favor das mesmas licenças.

É esta que passa pela mais
autêntica das edições; pois que pôde Camões corrigi-la, sendo feita sob as suas
imediatas vistas.

A edição de 1584, publicada
alguns anos depois da morte do autor, foi infelizmente mutilada pela cruel e
fanática cen­sura daqueles de quem tudo então dependia em Portugal.

Reduz Trigoso a duas classes
as alterações feitas ao texto primitivo dos
Lusíadas, a saber: religiosas e
políticas. Assim, pois, suprimiram, ou adulteraram todos os lugares em que
Camões falava dos deuses do paganismo, fazendo-o por essas mudanças dizer
absurdos, impróprios da sua vasta erudição. Sirva de exemplo este belo trecho
do canto I:

Em luzentes assentos marchetados

De oiro e de perólas mais abaixo
estavam

Os outros deuses todos
assentados,

cujo último
verso foi assim corrigido:

Os outros ídolos todos
assentados!

que exprime um contrassenso de
que certamente seria incapaz o poeta.

                                    Nem
menos grosseiras são as emendas políticas. Havendo Camões tratado
d’arrenegados os irmãos de Nuno Álvares, que abraçaram o
partido castelhano, os Jesuítas, que monopoli­zavam a instrução pública,
julgaram
lisonjear a D. Filipe II, que pelo direito da força e da astúcia dominava em Portugal,
substituindo esta passagem:

Os Pereiras também arrenegados Morrem arrenegando cs céus e os fados

por
estes péssimos versos:

Os Pereiras que também são
rebelados, Finalmente são aqui desbaratados.

 Longo seria o inventário das
profanações cometidas por mãos
sacrílegas contra o majestoso monumento a
que chama­mos
Lusíadas, até que os doutos cuidassem em vingar a ultraja da memória de Camões.
Dentre esses beneméritos das letras avantajou-se D.
José Maria de Souza Botelho,
conhecido por
morgado de Mateus, de cuja edição nos servimos para este trabalho.

Fonte: editora Cátedra – MEC – 1978

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