ROBERT SOUTHEY – por Oliveira Lima

ROBERT SOUTHEY

por Oliveira Lima

Entre os escritores estrangeiros que para nós voltaram sua atenção e de nós se ocuparam desde que temos história, nenhum possui mais justificados títulos à admiração e gratidão nacionais do que Robert Southey, o bem conhecido autor, afora diversos outros trabalhos relativos a Portugal e à América do Sul, de uma História do Brasil, a mais conscienciosa, detalhada e exata antes da de Varnhagen, a mais literária, formosa e cativante mesmo depois da de Varnhagen. Circunstâncias particulares da sua vida fizeram-no também inclinar sua imaginação de poeta e dedicar seu talento de narrador, uma e outro solicitados por tão variados e atraentes assuntos, à descrição da atividade hispano-portuguêsa no continente europeu e nos outros continentes além dos mares — atividade de paladinos cristãos; de cavaleiros andantes da Cruz muito antes das descobertas, atividade de conquistadores impávidos, de pesquisadores do ouro logo" depois das descobertas: sendo igual o interesse com que êle celebra o Cid, Amadis de Gaula e Palmerim de Inglaterra, e Aguirre, Cabeza de Vaca e os bandeirantes paulistas.

Southey teve um tio domiciliado em Lisboa, o Reverendo Hill, o qual primeiro viera a Portugal com sua irmã mais velha, a tia de Southey, que quase o criou, Miss Tyler, uma solteirona de mau gênio em busca de boa saúde, e mais tarde aí se estabelecera como capelão da feitoria inglesa. Esse ilustrado ministro anglicano, de seu natural afeiçoado ao cultivo das letras, reunira por desfastio e curiosidade uma biblioteca rica em livros e sobretudo manuscritos relativos aos velhos e modernos fastos peninsulares, e o juvenil temperamento poético de Southey abrasou-se ao contacto de uma tal fogueira de fé, de entusiasmo e de cobiça, talvez a mais ardente e crepitante em que se há consumido a humanidade.

Quando Southey primeiro visitou Portugal, em 1795, tinha 21 anos e abandonara a contragosto a sua lua-de-mel, ficando em Inglaterra a gentil esposa, a que, por oposições de família, se unira quase clandestinamente e que por tantos anos seria sua carinhosa companheira. Pouco havia que deixara o Baliol de Oxford, renunciando aos estudos regulares pelas aventuras literárias. A sua vocação intelectual era irresistível e por assim dizer espontânea, porquanto tudo de preferência o fadara para a apatia incriadora de uma carreira liberal. Nem era por sorte um boêmio. Nascera em uma família de muitos membros e limitados recursos, família de eclesiásticos e de mercadores, honrando a igreja estabelecida e o balcão, cultivando a respeitabilidade, venerando a realeza e a Câmara dos Lordes, orgulhosa todavia da Câmara dos Comuns, e não menos da grandeza britânica, cujos fundamentos já se achavam bem lançados. Não é mesmo possível dizer-se que destas peias tradicionais se tivesse por completo emancipado o seu espírito, como um momento chegou a prometer, quando na mocidade a sua imaginação fogosa e o seu temperamento arisco o arrastaram malgré tout para as visões democráticas e para as quimeras igualitárias.

Southey podia ter, como teve, graça, humour, fantasia, originalidade de pensamentos, talento ou conforme êle modestamente se exprimiu numa de suas deliciosas cartas, cuja coleção forma a melhor parte das autobiografias, alertness of mind and quickness of apprehension (viveza de espírito e pronta percepção): tudo isso às carradas; podia ter, como teve, o fundo amor das coisas passadas e a intuição por vezes poética das futuras. No fundo, porém, havia em muitas ocasiões de curvar-se à influência do meio e da raça e de ser o burguês estreito e presumido da Bíblia e do Act of Set-tlements. Apesar de bom, compassivo e misericordioso nas suas relações e concepções, ao ponto de não raro se nos afigurar impregnado inconsciente e literariamente de catolicismo, um catolicismo largo e tolerante, nunca lhe seria dado medir com perfeita isenção e justiça, o heroísmo e a caridade dos evangelizadores jesuítas, e para a península e para a sua produção social americana, mau grado todo o entusiasmo despertado e expresso pela admirável defesa dos seus filhos contra as armas napoleónicas, olharia sempre com um carinho misturado de comiseração provocada pelo espetáculo do fanatismo beato e do obscurantismo depressor. O ambiente moral pesaria sobre êle com as suas idéias adquiridas, digamos logo o termo exato, com os seus prejuízos, e o pior resultado desta pressão das convenções e prevenções seria que o Poeta laureado não pôde revelar-se um grande poeta.

A fantasia de um grande poeta não conhece restrições, nem pautas, nem adaptações, além das intuitivas, aconselhadas pelo bom gosto instintivo que a acompanha. O seu corpo não conhece a fadiga, o seu espírito não conhece a saciedade. O conchego não parece entrar em harmonia com o seu estro. Dante contemplava Florença com o olhar saudoso do exilado; Camões compôs as suas estrofes errando sob diferentes céus da Ásia. Um e outro sofreram e gozaram mais do que o comum da humanidade. Um e outro experimentaram grandes mágoas e grandes prazeres; choraram com desusado amargor e amaram com infinito delírio. Por isso foram não só artistas da forma como mestres do sentimento.

A Southey foi suficiente, para tratar do tema peninsular com o seu calor habitual, divagar em espírito pelas terras, empapadas do sangue de mouros e cristãos, da Andaluzia, pelos campos, percorridos por missionários e mineradores, do Paraguai, pelas matas, em que se acoitavam e degolavam brasileiros e holandeses, do São Francisco. A sua forte imaginação literária evocava com paciência e recompunha sem aflição os cenário e os dramas. A impressão objetiva, por mais sugestiva, não se convertia em uma mórbida sensação subjetiva. Um Byron carecia de mais. Carecia de fazer reviver em si mesmo, reconstruí-las e, se possível, aguçá-las com o estímulo dos próprios lugares onde se tinham um dia manifestado, as sensações, senão das gerações desaparecidas, pelo menos dos grandes indivíduos, cuja psicologia êle ansiava por delinear. Carecia de sentir pulsar dentro do seu peito, em Veneza, a alma dolorida de Marino Faliero, em Sevilha, o coração empedernido de D. João

Tenório, cm Babilônia, a sensualidade bárbara de Sardanapalo.

O gênio errático de um contrasta assim com a equilibrada idiossincrasia do outro. A Byron horizonte algum bastava. Era um eterno descontente que, enjoado do cant britânico, tentava fartar a sede de seu lirismo voluptuoso e desordenado na velha Itália, na Grécia, mais velha ainda, por cuja liberdade morreria combatendo na flor dos anos, nas terras mais úmidas de sensualismo e mais recamadas de beleza, que mais de perlo falam aos sentidos e ao devaneio. Southcy desejou imenso, por um interesse histórico, residir em Portugal, viver à fresca sombra das árvores de Cintra, mas consolou-se da sua decepção com a paisagem docemente sombria do Cumberland, onde por quarenta longos anos morou perto de Keswick, compondo poesias, compulsando crônicas, percorrendo romanceiros, redigindo narrativas, traçando biografias, criticando livros e ainda derramando o excesso da sua extraordinária produção intelectual pela mais copiosa correspondência que um homem de letras há legado aos seus admiradores e à posteridade.1

Verdade é que nunca existiu mais completa organização literária. E o que mais impressiva a torna ainda, é que a sua feição mental, conquanto filha de um chamamento íntimo irresistível, de um pendor fatal de escritor nato, parecia antes voluntária e regrada do que impulsiva e febril, se bem que nela se encontrassem o ardor e o gosto da sua profissão levados ao derradeiro limite.

Não alimentai com relação a mim mais altas ambições do que eu próprio nutro [escrevia ele um dia ao seu amigo Wynn, que durante anos lhe serviu uma pensão anual de 160 libras c, quando subsecretário dos Negócios Estrangeiros, em 1807, o fêz pensionar pela Corte com 200 libras]. Acho-me na situação de vida em que Deus houve por bem colocar-me, para a qual nasci e na qual me vejo contente, nem é de supor que pudesse ter-me empenhado em outra tão utilmente, tão dignamente e tão afortunadamente.

Southey encarnou o tipo do verdadeiro homem de letras: devotado ao trabalho, pelo puro prazer do trabalho; sentindo os seus poemas, se bem que reflexamente; preparando longamente os seus escritos históricos, para tal fim revolvendo pilhas de documentos, impressos e manuscritos, e contudo não sendo um mero erudito, mas igualmente um artista dotado, além de séria cultura, de apurado gosto literário. Eu próprio tive nas minhas mãos as dezenas de livros de notas nos quais Southey metódica e infatigavelmente coligia o material para uma história dos portugueses na Europa, África e Ásia, que ficou em projeto, mau grado todo o caminho percorrido para sua realização, e que certamente seria o digno complemento da sua história dos portugueses na América. Não se pode trabalhar com mais consciência nem com melhor critério. Os autores estudados eram sempre os mais abalisados, os apontamentos colhidos os mais interessantes para ilustrarem os casos c explicarem a sua trama. Ninguém jamais se entregou à sua faina com mais crescido prazer nem com superior inteligência.

1 The Life and Correspondence o} the Late Robert Southey, London, 1850.

A incrível facilidade literária precoce e duradoura — o que menos vezes vai de acordo — de Southey foi salva da vulgaridade e da mediocridade por esse fervor de estudo que a distinguiu, e também (porque não bastaria a aplicação) pelo perfume penetrante de passado da sua obra, pela elevação da sua doutrina moral, pela generosidade da sua alma, pelo amor a um tempo místico e prático das coisas espirituais de que todo êle era saturado. E tanto assim é que, quando nele predominou a moderação — nunca a mediania dos ideais, subsistiram o entusiasmo e o ardor no afirmá-los e propagá-los.

Compreende-se sem dificuldade um Byron entusiasta e ardente em tudo, nas grandes como nas pequenas coisas: fascinavam-no a liberdade e a revolta, torturava-o a expressão do seu individualismo. Um Southey entusiasta e ardente é menos conhecido, mas o fato é que êle chamou invariavelmente a independência do pensamento e da ação, senão com a paixão e a parcela de desordem da sua juventude, pelo menos com a gravidade e o bom senso da virilidade, que o mandaram renunciar a utopias perigosas, sem contudo o converterem de um adorável beneditino leigo em um desprezível cortesão flexível.

Das suas ilusões juvenis, por mais que as contrariassem novas convicções pessoais e eflorcscências hereditárias, que vieram a combinar-se, ficou-lhe sempre o ressaibo através da sua vida inalterável c gloriosamente intelectual. Da sua alacridade juvenil permaneceu sempre a chama nas suas ulteriores e mais compostas afeições, adquiridas pela experiência e zeladas com o mesmo afinco e a mesma lealdade. Quando a tensão das guerras napoleónicas, o ódio do estrangeiro contra Bonaparte, o nativismo exaltado o eivaram de intransigência — mesmo porque ainda está mais perto de um jacobino do que de um autoritário — foi com a mesma animação que êle advogou, sob a capa dos princípios liberais e patrióticos, uma política de repressão, de medidas despóticas e violentas.

Faltou por certo a Southey, como poeta, o poder lírico de Byron, a mestria de Coleridge ou sequer a vibração de Wordsworth. Foi um poeta de segunda ordem, posto que fluente, correto e atraente. Tampouco foi um prosador insigne, se bem que tivesse sido um escritor terso, elegante e com idéias. Entretanto a obra poética de Southey é inseparável da transformação do gosto inglês na primeira metade do século XIX: sem ela a cadeia estaria privada de um elo. Igualmente a sua obra de prosador conserva um lugar distinto nos anais literários da língua como a de um historiador ilustrado e imaginoso, cheio de acerto na composição e de graça na narração, e de um crítico dotado de singeleza e agilidade de estilo e de geral imparcialidade nas apreciações, numa palavra de um escritor com um conjunto de qualidades que, amalgamadas, produzem um autor notável.

Southey — poeta possuiu a qualidade fundamental da emoção. Havia de resto nele tudo quanto a pôde estimular e aquecer, sem deixar atingir o ponto de ebulição em que a emoção se torna delírio e o arrebatamento rebelião. Havia nele em alto grau o amor da Natureza, que muito contribuía para o levar a preferir a vida intecastigo, no próprio dia seguinte ao da cerimônia que os unira, podem ser aquilatados das suas cartas aos amigos, datadas de Lisboa com a epígrafe seguinte: "From which God grant me a speedy deliverance".

As cartas por si somente não teriam estabelecido a reputação literária de Southey. Entre as numerosas impressões de viagem na Península, na segunda metade do século XVIII, figuram até essas entre as menos compreensivas e sugestivas. A par de enraizados preconceitos contra o Catolicismo, de resto comuns aos viajantes ingleses e que em Southey apenas aqui e alem são mitigados por uns laivos humorísticos, o que as Cartas porém revelam são as absorvente imaginação poética de Southey, o volume de elevados sentimentos que em sua alma surgiam diante das vicissitudes da vida e que na poesia encontravam a mais adequada expressão, e o poder descritivo da sua pena quando a movia o ritmo e a guiava a inspiração. O Portugal dos fins do século XVIII oferecia política e socialmente um espetáculo de índole mais a enrojar do que a incitar o estro de um poeta, mas a natureza peninsular — rica em contrastes na Galiza, sombria nas Astúrias, grandiosa em Leão, desolada em Castela, sorridente na Estremadura — é a mesma em todos os tempos e ninguém pode ser esquivo ao seu encanto.

Como apêndice às Cartas, Southey traduziu o famoso Papel de Estado em que o lúcido e tolerante espírito que foi D. Luís da Cunha compendiou para uso e edificação de Marco Antônio de Azeredo Coutinho, representante português em Londres, o estado do Reino e conquistas. Nessa por tantos títulos curiosa exposição, o espirituoso diplomata aconselhava muitas das medidas que foram um pouco mais tarde postas em prática por Pombal, por exemplo revelando para com os judeus a mais nobre caridade e para com os frades a mais justificada prevenção, e é aí também que aconselhava a transferência da Corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, apontando para o caráter americano que forçadamente tomara a realeza portuguesa, e para as muitas vantagens políticas, econômicas, comerciais e de todo gênero que se derivariam da criação do Império transatlântico. Não é desarrazoado supor que da leitura desse documento, que certamente pela sua inteligência e superioridade o feriu, especialmente no meio da degradação de que se via cercado, derivasse Southey o seu precoce interesse pelo Brasil, logo expresso em 1808 pela seguinte frase profética, motivada pelo fato do Governo Português ocultar com afã todas as informações relativas ao Brasil, possessão da qual estava completamente dependendo:

Um galho tão pesado não pode ficar por muito tempo ligado a um tronco tão podre. (So heavy a branch cannot Iong remain upon so rotten a trunk.)

Se a história da colônia o não tentou antes que a da metrópole, pelo menos a executou antes.4 Fazer a história de Portugal foi com efeito sua primeira idéia. A 22 de setembro de 1799 escrevia ao seu amigo Joseph Cottle, o editor das suas primícias literárias:

Ultimamente decidi-me a empreender uma grande obra histórica — a história de Portugal, [e como que antevendo o futuro, ajuntava:] mas para isto, e para outros muitos nobres planos, careço de ininterrupto lazer, de tempo todo meu, que não seja desperdiçado (fritteredaway) em pequenas ocupações periódicas. . .5

A John Rickman, um político e economista da sua maior afeição, escrevia a 9 de janeiro de 1800:

A poesia não me absorve por completo a atenção; a história da literatura espanhola e portuguesa é um assunto ao qual pretendo devotar trabalho e que pode fornecer muito assunto interessante… 6

Eram as conseqüências da sua primeira excursão à Península.

Esta ordem de impressões intelectuais, a necessidade de coligir materiais sitr place,7 a tentação do assunto, inexplorado em Inglaterra, e a doença — pois que o excesso do seu esforço mental e a variedade extrema da sua aplicação literária, solicitada por um maré magnum de projetos e esboços de trabalho, tinham produzido o que na bela linguagem do século XVIII êle chama uma sensibilidade enferma (a diseased sensibility) e nós chamaríamos com pompa científica neurastenia — decidiram-no a escolher Portugal para a mudança de ar que lhe aconselhavam e que igualmente requeria o verdor da sua atividade física, do seu gosto de locomoção, ansioso por uma grande viagem.

Corria o ano de 1800 e tinha Southey 26 anos quando, pela segunda vez, desembarcou em Portugal, com o saco identicamente carregado de poesias e planos de poemas, que atanazavam como demônios turbulentos os escorços de prosas ponderosas.

Desta vez levava consigo a mulher, e esta circunstância e pouco depois o seu restabelecimento fizeram-no ver a terra com olhos mais compadecidos, mesmo a breve trecho plenamente benignos. Saudou-a como uma velha conhecida; encontrou-lhe os mesmos defeitos, mas algumas qualidades também; escarneceu com mais indulgência das suas fraquezas religiosas e das suas misérias administrativas; tomou-lhe afeição e quase carinho. Era que para ela olhava agora com os olhos da alma, não com os do corpo somente; penetrava-a pelo estudo inteligente do seu passado, não a explicava apenas pela observação superficial do seu presente; aformoseava-a com o encanto das suas tradições históricas, não a deprimia com a condenação única, sem atenuantes, das suas mazelas.

4 Diz Southey numa das suas cartas que em 1800 se achava cm Lisboa um francês (?) escrevendo a história do Brasil, para isto dispondo dc excelente material e infatigável em seu trabalho. Esse francês não era seguramente Beauchamp, que nos anos depois plagiava descaradamente a História de Southey, inda por cima lhe lançando defeitos.

The Life and Correspondece of the Late Robert Southey, Vol. II,p. 25. 

The Life and Correspondence of,the Robert Southey, Vol II, p. 45

7. Já tenho ocupado meus ócios com a história de Portugual e o interesse que nisto encontro levar-me-á a visitar o campo d’Ourique, as margens do Mondego e a tumba de Inês. Os  negócios da índia são demasiados pa um episódio e precisam ser tratados separadamente. Os costumes e literatura do país deveriam acomparanhar a ordem cronológica dos acontecimentos. Hei de desalojar as aranhas da Necessidades e não ficará  livraria de convento que eu não vascoleje. (Carta a John May, de 18 de  fevereiro de 1800, The Life and Correspondence of the Late Robert Southey  Vol. II, p. 51.)

Não quero dizer que desculpasse o atraso de muitos costumes nem que aplaudisse a vileza de muitos corações, numa palavra que aquiescesse ao fanatismo e ao despotismo. Um inglês nunca se rende em matéria de opiniões, e Southey era inglês até à medula dos ossos, mormente depois que os horrores de 93 o desviaram da França revolucionária, e que ao jacobinismo, que o seduzira pela sua aparência estóica, êle compreendera faltar o assento moral.

Em seu espírito entrou todavia a predominar a tolerância do conhecimento sobre o sarcasmo da ignorância, até que a imobilizou a frialdade da simpatia reformista. O ferrenho protestante foi sempre teologicamente inexorável para as superstições católicas, equiparando o papismo à peste e ao fogo, mas o lado pitoresco daquelas superstições chegou a prendê-lo quando dantes exclusivamente o irritava. A saúde recuperada o fazia, como diz uma das suas cartas, projetar sobre tudo um raio de luz, e até desejar com toda a veemência do seu temperamento que o destino o localizasse e enraizasse no sul da Europa.

Como laranjas, figos c peras deliciosas, bebo vinho de Colares, que excelência fica entre Porto c Clarete — leio tudo quanto me cai ao alcance da mão — devaneio poema depois de poema, peça depois de peça — durmo uma sesta de duas horas, e sinto-me tão feliz como se a vida fosse um só dia eterno, sem ter a gente que se importar com o amanhã.8

A Coleridge escrevia com o mesmo entusiasmo:

de coração aqui viveria e morreria (I would gladly live and die here),

propondo-lhe o trocarem ambos a brumosa Inglaterra pelo Portugal banhado de sol.

8 Carta a C. W. Wynn, de 23 de julho de 1800. The Life and Correspondence of the Late Robert Southey, Vol. II, p. 98.

Intelectualmente sentia-se isolado: faltava-lhe convívio dos amigos, mas sentia-se cheio de vigor. Aprendera português, sem o que não poderia tirar proveito das suas investigações.

Falo a língua [comunicava ele a Rickman], não por certo gramaticalmente, porém fluentemente, e o português, quando articulado por uma voz familiar, me é quase tão inteligível quanto o inglês.

A História preocupava-o extraordinariamente e dela esperava derivar muito para o seu renome literário, que começava a cultivar com a vaidade peculiar ao metier de que os românticos estavam para dar dentro em pouco a edição ne varietur. No início ainda da sua carreira literária, antes mesmo de publicamente unir a poesia à prosa, já se imaginava, como historiador, igual a Robertson; como poeta, então, tinha a jactância de escrever que o seu poema Thalaba rivalizava com Orlando de Ariosto. . . apenas com a diferença que Thalaba continha "proporção maior de metal e menos escória".

 

Ao cabo de um ano regressava Southey para a nglaterra, acossado pela peste negra que reinava em Cadiz e Sevilha e ameaçava Lisboa pelos soldados do príncipe da Paz, cujo exército, rotas as hostilidades entre as duas nações peninsulares e estando a Espanha resguardada com o apoio da França consular, ameaçava a fronteira. A História de Portugal ficara esboçada e continuaria a ser ativada, dependente no entanto para sua final elaboração de futuras visitas e pesquisas que nunca se puderam realizar, se bem que a tarefa histórica primasse qualquer outra no conceito de Southey:

é mil vezes mais interessante do que as demais.

Não foi por certo culpa sua se não voltou mais às livrarias e arquivos de Lisboa. Portugal continuou a ser a sua terra de promissão. A vida, porém, empolgou-o na sua dura engrenagem, cresceu-lhe a família, os meios nunca se tornaram abundantes, tendo como única fonte o tinteiro, e para fazer face às contingências materiais, viu-se Southey perpetuamente condenado aos trabalhos forçados da literatura.

Justamente em 1801 dava o pobre homem de letras ingresso noutro período de incertezas sobre o seu futuro. Assim como previamente abandonara o estudo da Medicina, abandonava agora completamente o do Direito e hesitava entre seguir, como secretário particular, um embaixador nomeado para Constantinopla, entrar no serviço diplomático ou consular, ou ficar trabalhando em Keswick, ao lado de Coleridge, que aliás o desertaria por Londres. Se o apaixonava a existência independente do literato, atormentava-o a necessidade de ganhar bastante para ali poder manter-se. Os Lagos, contudo, o não fascinaram à primeira vista: desapontavam-no pelo contrário, posto que sua "sublimidade" o fosse aos poucos cativando, lamentando apenas que as montanhas em redor se não erguessem sob um céu mais ameno.

As montanhas pouco são, comparadas com Monchique; e quanto à beleza, toda a paisagem inglesa, porventura toda a paisagem do mundo, tem de ceder a palma a Cintra, minha residência do último verão.

O céu português banhava ainda a sua imaginação com toda a claridade que desce do seu azul transparente. Neste ponto a carta a Grosvenor Bedford, de 6 de setembro, é de todo expansiva:

Meus sonhos inclinam-se para Lisboa como lugar de descanso; sou deveras afeiçoado ao país e, por mais estranho que isto pareça, à gente. A de Lisboa é, como a das outras capitais todas, bastante velhaca (rogsush), mas a do campo achei-a hospitaleira e mesmo bondosa quando dela careci, embora lhe fosse absolutamente estranho. [E mencionando que o seu ideal seria o consulado de Lisboa, ajuntava:] Estes lagos parecem rios — mas oh! o Mondego c o Tejo! Estas montanhas são na verdade lindamente formadas e agrupadas — mas oh! o grande Monchique, e Cintra, o meu paraíso! — o céu na terra das minhas esperanças. Se jamais eu possuir uma casa em Cintra, não me concederá V. um ano da sua companhia para comer uvas, andar de burro e ser muito feliz? A verdade é, Grosvenor, que tenho residido demasiado no estrangeiro para poder viver feliz em Inglaterra — faltam-me as delícias do Sul — as frutas, os vinhos; falta-me o sol no firmamento, sobretudo tendo tido nestes dez dias uma limitada ração dos seus raios; e se o fluido nervoso é o fluido galvânico, e o galvânico elétrico c o elétrico luz condensada, por Deus! que efeito não devem estas feias escuras nuvens, grossas de chuva, exercer sobre um pobre ente nervoso, cujo cérebro acaba de estar por quinze meses num estado de incandescência (high ilumination).

Um emprego suficientemente remunerado ofereceu-se-lhe sob a forma do lugar de secretário particular do Chancellor of the Exchequer (Secretário do Tesouro) para a Irlanda, c Southey exerceu tais funções em Dublin c em Londres, mas somente por pouco mais de um ano. A vida oficial nunca ofereceria sérias atrações ao seu espírito loucamente amigo dos livros e do recolhimento, nem a política tampouco o seduziria. Mais tarde enjeitou sem hesitação uma cadeira na Câmara dos Comuns. Orgulhoso como era, e cônscio do seu valor, quiçá lhe agradassem os primeiros lugares — mas ao que tinha horror, de tanta repugnância, era a subir adulando e mentindo. A sua copiosa e atraente correspondência deixa-nos claramente ver a evolução do seu espírito operada sobre um fundo imutável de honestidade e de dignidade, a consistência dos seus gostos esclarecidos e dos seus ideais alevantados, e as mil ramificações da sua atividade mental, e da sua não menor atividade afetiva.

Depois de abandonar o emprego Southey fixou-se por algum tempo em Bristol, vacilante quanto ao seu futuro e mesmo quanto à sua residência — certo apenas de que precisava viver em paz, porque queria trabalhar como um mouro. Esse próprio tempo de incertezas foi, porém, com êle um tempo de produção poética febril, a qual englobava poemas orientais, celtas c outros, e de estudo não menos febril, o qual abrangia a velha história e a primitiva literatura castelhanas, a dominação dos árabes na Península, as lendas do Cid, a versão do Amadis de Gaula e a leitura dos outros livros peninsulares de cavalaria, o desenvolvimento do Monarquismo, especialmente da ordem dos Franciscanos, a obra dos Jesuítas, por que professava sincera bem que hostil admiração, e o vasto projeto de uma Biblioteca Britânica, à qual não fora alheia a magnífica compilação bibliográfica do abade de Seyer, Barbosa Machado.

A morte da sua então única filhinha, em 1803, fazendo-o mudar-se temporariamente para Keswick, onde Coleridge, seu con-cunhado, se achava então domiciliado, decidiu senão de seu destino, que já estava traçado pelas circunstâncias e pela deliberação, pelo menos do seu estabelecimento permanente.

Aí foi viver, isto é, trabalhar e morrer.

*

Já ficou ligeiramente indicado o motivo por que nunca saiu a lume a História de Portugal, a obra sobre a qual Southey — que se considerava melhor historiador do que poeta, proclamando não ter chegado como poeta àquilo a que visara e aspirara — dizia desejar descansar sua reputação literária. O assunto sabemos que o entusiasmava mais do que qualquer outro a que se dedicou, e tão completamente dele se assenhoreara que, segundo as suas próprias palavras, história alguma seria superior àquela pelo que diz respeito à pesquisa e variedade das fontes (ranger <>l materiais). Na sua aplicação chegara ao ponto de estudar o holandês a fim de, lendo os autores batavos, melhor poder tratar das lutas de portugueses e holandeses na Ásia.

Em julho de 1804 escrevia ter prontos três volumes in-quarto de 500 páginas cada um. Em agosto de 1805 comunicava a um correspondente estar a obra praticamente concluída, devendo ir para o prelo no decorrer do inverno, se o tio Hill estivesse em Inglaterra, pois que por seu intermédio aguardava dados e papéis que lhe pareciam indispensáveis. Foi esta falta sem dúvida a causa principal do adiamento e finalmente do malogro da publicação, também dificultada em sua conclusão por trabalhos de natureza mais urgente e sobretudo de ganho mais pronto. Repetidamente, declara Southey nas suas cartas ser-lhe necessário consultar em pessoa os arquivos portugueses.

Com semelhante preocupação preparou-se mesmo durante anos consecutivos para voltar a Lisboa, esforçando-se primeiro por ir com Sir John Moero e seu malfadado corpo de exército na qualidade de comissário ou de auditor das contas, c depois, por obter o consulado ali, o posto de secretário da legação ou qualquer comissão oficial, por exemplo a de recolher documentos e informações sobre essa América do Sul que o destino ia franquear às outras nações que não somente as suas metrópoles. Por fim, falhando todos os referidos projetos, decidiu-se Southey cm 1806 a ir, como simples particular, passar dois anos nas margens do Tejo, mas por esse tempo a tutela assumida por Napoleão sobre toda a Europa, resultante da vitória de Iena, tornou de súbito a situação dos ingleses arriscada, melhor dito, impossível em Portugal.

A invasão do Reino, a retirada dos Braganças, a forçada emigração dos súditos britânicos, o proconsulado grosseiro de Junot, a guerra peninsular que através das suas peripécias de anos conduziu Wellington a Waterloo foram outros tantos sucessivos empecilhos para a realização do plano favorito de Southey.

Em 1807, encontramo-lo resolvido a permanecer indefinidamente em Keswick, fundando sem idéias de alteração imediata a sua existência metódica, operosa e, mercê do trabalho, quase beatífica no seio da família e no recesso da sempre crescente biblioteca.

Era uma existência retirada do bulício da sociedade, mas em que se vinham refletir e vibrar todas as correntes do pensamento contemporâneo, ao mesmo tempo que as aspirações terrenas se concentravam exclusivamente num acréscimo do bem-estar material que permitisse o desafogado cultivo do maior renome literário do escritor. Bem tarde viria entretanto essa satisfação. Contava Southey 61 anos quando Sir Robert Peei lhe fêz outorgar uma pensão complementar de 500 libras. Quinhentas libras eram a independência, eram a segurança dos seus meios de subsistência, eram a alforria dos escritos feitos dia a dia para revistas e anuários, mas infelizmente já não chegavam a tempo para emprestar ao historiador a energia precisa para finalizar os seus trabalhos máximos, começados uns, como a Historia das Ordens Monásticas, quase concluídos outros, como a Historia de Portugal, da qual êle ainda participava em 1831, sete anos antes de morrer, acharem-se prontas três quartas partes, e na qual pensaria até a última.

A sofreguidão literária perduraria nele além do vigor animal, perseguindo-o a febre de produção quando, na Tebaida do Cumber-land, passava a sentimental, romântica c quimérica a própria saudade de Lisboa, cuja imagem luminosa tanto lhe sorrira sempre e cuja realidade tanto cobiçara rever antes que se lhe desfolhassem as melhores esperanças de ser, como êle escrevia, adotado algum dia (ao estar encerrado o reinado da influência clerical) na literatura portuguesa, pela qual experimentava verdadeiro e zeloso amor, e na qual era tão versado quanto na do seu próprio país.9

A afeição de Southey pela Península Ibérica, apesar ou porque eram as raízes todas literárias, excedia a de qualquer outro inglês, abrangendo antiguidades, língua, arte e habitantes, e o ódio ferrenho que êle sempre alimentou contra Bonaparte desenvolveu-se especialmente, atingindo a fase aguda, depois da usurpação francesa do trono dos Bourbons e da passagem armada dos Pirinéus.

*

Por um lado, a maior abundância dos documentos recolhidos em Portugal pelo tio sobre a porção americana do Império Lusitano, e por outro a ida do Príncipe Regente D. João para o Rio de Janeiro, despertando na Inglaterra os primeiros rumores da trasladação da Corte de Lisboa para o Brasil uma viva curiosidade no tocante à possessão escolhida para residência real, e cuja história, geografia, costumes e produções eram outras tantas fábulas ou, na melhor hipótese, careciam de divulgação e de veracidade, determinaram Southey a ultimar logo a que devia ser a parte final da sua projetada obra histórica. Assim foi compilada e editada a História do Brasil, então da maior atualidade e de imediato interesse.

Não foi contudo um mero motivo de especulação mercantil o que fêz levar logo a cabo essa empresa. Southey nunca agia mecanicamente ou sórdidamente. Qualquer assunto a que se entregasse tinha o condão de empolgá-lo; por isso era que o escolhia, e sempre o tratava com empenho e mesmo com amor. À História do Brasil estendeu parte da sua larga simpatia intelectual, a qual ia desde os hábitos do mundo animal até as cooperativas e quejandas idéias filantrópico-sociais, nascidas dos inícios do regimem industrial na primeira metade do século XIX, a época do Fourierismo, do Saintsimonismo, e de outras generosas utopias que podem ser classificadas sob a categoria do romantismo do socialismo.

9 Carta a Grosvenor Bedford de 5 The Life and Correspondence of the Late Robert Southey, Vol. II, p. 80. de maio de 1807.

Posto considerasse a nossa história deveras interessante em si, Southey a não julgava assim aos olhos dos outros e pensava com modéstia, que neste caso se pode chamar alheia, que o valor de uma História do Brasil realmente não ia muito além do círculo dos nacionais, poucos encantos devendo possuir para europeus. Ficou até surpreendido, conforme escreveu ao tio Hill (a quem a obra é justiceiramente dedicada) que, publicado o primeiro volume, os amigos o tivessem achado atraente; aspirava, porém, a ser o Heródoto da nova nacionalidade que via esboçar-se, e nenhuma dúvida tinha da sorte que no futuro caberia ao seu empreendimento, do favor com que mais para diante seria olhado aquilo que então julgava o seu Opus ma jus.

 

 

O terceiro e último volume [escrevia] do meu Opus Majus será publicado dentro de dois ou três anos; está-se imprimindo o índice. Que efeito produzirá? Escutar as sinceras conjecturas de um autor experimentado poderá contribuir para moderar as esperanças de um autor juvenil. Pois nenhum efeito, para assim dizer. O meu volume mudar-se-á quietamente da casa dos editores para as estantes de um certo número de sociedades de leitura e para as de um certo número de livrarias particulares, suficientes entre estas e aquelas para pagarem as despesas da publicação. Algumas vinte pessoas na Inglaterra e uma meia dúzia em Portugal e Brasil o lerão com avidez e deleite. Talvez umas cinquenta o comprarão por causa do assunto e perguntarão umas às outras se tiveram tempo para percorrê-lo.

Entre os que me conhecem e me estimam, alguns desejariam que tivesse empregado o tempo que aquele livro representa para mim em escrever poemas; e entre os que não me conhecem, alguns se espantarão de que na maturidade do meu espírito e no estio da minha reputação eu houvesse dedicado tão grande parte da vida a uma obra que não poderia de modo algum tornar-se popular nem render. Eis tudo? Não, Chauncey Town-shend, não é tudo. Seria faltar à sinceridade que vos devo esconder que minha obra, daqui a longos tempos, se encontrará entre as que não são destinadas a perecer; que mo assegurará o ser relembrado em outros países que não o meu; que será lida no coração da América do Sul e transmitirá aos brasileiros, quando eles se tiverem tornado uma nação poderosa, muito da sua história que de outra forma haveria desaparecido, ficando para eles o que para a Europa é a obra de Heródoto.

Concordareis comigo num ponto pelo menos — que não corro risco-de sofrer desapontamento. Mas também concordareis em que ninguém merecerá ou obterá o aplauso das eras vindouras que fôr demasiado solícito em obter o da sua própria era. Deus vos abençoe.10

A História do Brasil constituira-se Opus Majus na falta da outra História, bem vezes mais sugestiva que a da colônia, mas que, apesar dos materiais amontoados, se viu, gradualmente, abandonada pela preferência forçadamente dada a trabalhos de mais urgência e de maior proveito. Os materiais não podiam escassear: a questão era serem completos ou abrangerem o essencial.

10 Carta a C. H. Townshend, de Keswick de 20 de julho de 1819, The Life and Correspondence of the Late Robert Southey. Vol. IV. p. 353.

Quem quer que examinar minhas coleções de apontamentos para esta (Book of lhe Church) e minhas outras obras históricas — e sem dúvida serão elas um dia analisadas — descobrirá que cu sempre tive por costume preparar muito mais materiais do que hei para elas usado. 11

11 Carta a John May, de Kcswichk, 7 de março de 1824, The Life and Correspondence of the Late Robert Southey, Vol. V, p. 171.

Deixou no entanto sobre Portugal um livro de história, a narração da guerra peninsular, feita em três grossos volumes in-quarto, exatamente com a História do Brasil. A êle se refere o seguinte trecho de uma carta sua:

Nada sei sobre a venda do meu livro; Murray nada me escreveu desde que êle apareceu.

Duas opiniões apenas chegaram-me a respeito, além das dos amigos — uma na missiva de cortesia do Sr. Littleton, membro do Parlamento por Slaffordshire, e outra numa carta do ci-devant Grand Parleur que Rickman me enviou. Certamente nada podia ser mais lisonjeiro do que o que êle diz — que é uma história tucidideana (como as de Tucídides) que duraria tanto quanto nosso país e nossa língua. Devo contudo confessar que não encontro qualquer outra semelhança afora a que o título sugere; se bem que sempre me desvaneci de que minha outra obra histórica — sobre o Brasil — poderia em mais de um ponto ser comparada com Heródoto, ficando daqui por diante na mesma relação com a história daquela vasta porção do Novo Mundo, em que a história dele permanece com relação à do Velho Mundo.12

O filho e biógrafo, se biografia se pode chamar à compilação da correspondência de Southey, mormente sem a preceder da designação auto, não deixa de apontar para a fundação, em 1808, da Quarterly Review como tendo sido a principal causa da demora e do final malogro da publicação da História de Portugal. Southey esteve associado desde o primeiro dia com essa revista trimestral, criada em oposição à Edinburgh Review, cujo pendor pela paz e inclinações liberais estimulavam o zelo adverso dos partidários da guerra implacável contra o despotismo sem limites da França e a invasão estranhamente simultânea, nos países estrangeiros, das idéias jacobinas. Seu colaborador se manteve até quase o momento em que desapareceu dentre os vivos.

Pobre como sempre foi, até que a generosidade oficial o tornou remediado, vivendo dia a dia do produto da sua pasmosa atividade literária, não lhe era dado desdenhar os lucros imediatos, e as contribuições para publicações periódicas no gênero daquela revista, resultavam infinitamente melhor retribuídas do que quaisquer poemas ou estudos históricos cuja composição mais agradaria à sua maneira intelectual. Êle próprio descreve sua existência, segundo lha talharam as circunstâncias:

E assim desliza minha vida; pequenas ocupações, acotovelando e empurrando para os lados empreendimentos mais dignos e mais vastos, e a necessidade de granjear recursos para a subsistência cotidiana impedindo-me de executar metade daquilo que eu poderia fazer e teria feito para as outras gerações. E não obstante, como é muito superior isso a advogar causas, tomar o pulso a doentes, ou trabalhar numa repartição pública; ou ainda ser bispo com todas as preocupações seculares que um bispado traz consigo, sem falar nas suas mais sérias responsabilidades.13

 

12 Carta a Gresvenor C. Bedford de The Life and Correspondence of the Late Robert Southey. Keswick, 27 de Janeiro de 1823.

Verdade é que o publicista tomou gosto pelas questões do dia. Southey de si mesmo dizia que era "tolerante com as pessoas e intolerante com as opiniões." e com efeito tinha a virtude agressiva, e servida por um grande talento de polemista. As suas controvérsias com Lorde Byron — para citar somente as mais célebres — provam quão vigorosa e direta era essa combatividade, a qual de preferência se exibia literariamente, porquanto, apesar de sentir muito as afeições como as desafeições, de ser tão sinceramente amigo como cordialmente inimigo, o seu trato de natural amável e carinhoso impedia-o no geral de converter uma conversação em discussão.

Seria também muito por enfado, por altanaria, por soberba — a perdoável soberba do homem de talento — que costumava dominar-se e disfarçar perante estranhos os seus sentimentos; porque ocasionalmente, no seio da família ou no meio dos íntimos, não se dava ao trabalho de refrear sua energia, física e moralmente ativa sem interrupção, e patenteava toda a delicadeza da sua sensibilidade e toda a robustez da sua têmpera espiritual. Nesses momentos, Southey, o manso rato de biblioteca, indignava-se, rugia, enternacia-se, tonitruava, produzia instintivamente gozando-os êle próprio sem que por faceirice os procurasse, seus melhores efeitos de voz, de gesto e de atitude. Fazia então realçar toda a sua elegância nativa, a sua esbelteza apolínca, o seu semblante forte, os seus olhos faiscantes, os seus cabelos encaracolados, que tudo levava ao desespero o poeta coxo e enfezado do Childe Harold, o qual escrevia cheio de despeito, após ter feito o conhecimento do poeta de Roderick, que de bom grado se sujeitava a assinar os seus versos em troca de sua cabeça e espáduas.

O melhor do talento do polemista do Southey residia no seu estilo incisivo, quente, vibrante, por êle posto ao serviço de muitas idéias nobres e de algumas estreitas, como a da imoralidade da literatura que fosse mais impregnada de sentimento do que de pensamento, e a do vírus da negação contaminando toda a franqueza da interpretação bíblica e toda a autoridade papal, a Igreja Romana assim como as seitas dissidentes do Protestantismo, numa palavra tudo quanto não fosse a Igreja estabelecida, a Igreja Anglicana, da qual Southey se tornou cada vez mais uma espécie de ministro leigo, apaixonadamente interessado nos assuntos da sua economia e penetrado, em matéria religiosa, de um reacionarismo compungido.

Nos nossos países latinos êle seria apodado de clerical de casaca. Nem admira que os liberais à porfia o acusassem de traidor e vendido, quando viam esse antigo republicano, esse visionário da igualdade das condições humanas, esse quase demagogo, combater com toda a veemência da sua linguagem a mínima extensão do sufrágio popular, a mínima alteração nas congruas e dízimos eclesiásticos, a mínima revogação das incapacidades políticas.

13 Carta a Mrs. Hodson de Keswick, Correspondence of the Late Robert Southey,

Muito embora generoso e altruísta, ao ponto de se interessar vivamente por um projeto de aclimatação dos béguinages flamengos, no intuito um tanto ousado de criar irmãs da caridade protestantes, mirava Southey de esguelha todos os problemas políticos, religiosos e sociais, surgidos da Revolução ou desenvolvidos com o século XIX, como a reforma eleitoral, a emancipação dos católicos, a propagação do Metodismo, a própria disseminação do pauperismo determinada pela aparição de uma maior indústria, baseada na mudança das condições do trabalho, que de manual se elevou a mecânico. Considerava-os outros tantos obstáculos erguidos contra a manutenção do status quo, temperado pela benevolência, em que pareceu cristalizar-se o seu ideal de civilização e progresso.

Para defender semelhante ideal foi-lhe a Quarterly Review utilíssima. Foi a sua tribuna, o seu instrumento de educação moral sob capa de crítica literária, e tanto o julgava bastante que recusou num dado momento, em 1817, a direção do Times com o ordenado anual de duas mil libras e uma porcentagem nos lucros, posição que lhe foi posta ao alcance.

A razão não seria somente essa. Para assumir a redação do grande órgão britânico, por mais que o seduzisse a perspectiva do papel de inspirador da opinião pública, por mais que para assumir tal encargo o arrastassem as graves preocupações de um momento histórico quase angustioso para a Inglaterra, far-se-ia mister deixar o remanso do Keswick, com sua paisagem selvática, a que se afeiçoara em extremo; abandonar a existência exclusivamente, ciosamente literária, com o encanto das reconstruções históricas a arquitetar e a ambição de utilizar para elas um enorme material de trabalho acumulado em tantos anos; sobretudo renunciar a sua bem-amada independência, de vontade e de espírito, que em moço o afastou de ser clérigo, depois o dissuadiria de ser~r5è7nbro do Parlamento, e constantemente o fêz viver satisfeito com sua sorte, julgando-se felicíssimo neste mundo, mau grado os desgostos e as desilusões, e com maior alegria e confiança ainda esperando pela revelação do outro.

Inútil será repetir aqui o que outros demonstraram cabalmente: que as acusações de que Southey foi alvo eram puras invenções, malícias caluniosas. Thackeray disse com razão que consolava deparar-se com um gentleman do seu quilate nos tempos em que era rei da Grã-Bretanha um cínico e devasso como Jorge IV. Democrata ou conservador, quase jacobino ou tóri, admirador de Sieyès e Barnaye ou inimigo figadal de Napoleão, o escritor foi sempre, inalteravelmente, sincero. Sua pena nunca obedeceu a motivos indignos, mas invariavelmente às suas próprias, cândidas sugestões. Ninguém jamais escreveu — conforme êle se prezava de haver de todo tempo escrito — more faithfully from his heart. Por fim, mesmo, somente compunha para dar vasão ao seu coração. O Romantismo anunciou-se nele pelas duas feições capitais, externa uma ou de aparência, íntima a outra ou de substância: a forte vaidade que o distinguiu, e a completa sobreposição das obras subjetivas às objetivas. Depararemos com tal caráter se passarmos em rápida revista os mais importantes trabalhos dos seus cinqüenta anos: Southey tinha 64 quando faleceu.

*

O Doctor, livro em que persiste e vibra a nota literária tocada por Swift e Sterne e tornada inseparável da literatura ^nglêsa, foi por assim dizer o testamento da sua ironia, a última repercussão daquela petulância e garrulice da sua adolescência e juventude, qualidades que da sua correspondência se depreende claramente terem gradualmente cedido o passo à gravidade e emoção, as quais mais aguda tornaram ainda a sua sensibilidade, levando-a ao extremo da gama. Um fato, sobretudo, a morte em 1816 do seu filho Herbert, esperançosa criança de dez anos, companheiro e enlevo do pai, fê-lo passar na sua frase da jovial mocidade para o merencório declínio: Southey tinha 42 anos, quando o feriu semelhante golpe.

A já mencionada História da Guerra Peninsular foi o escoadouro, refletidamente escolhido, do seu ódio a Bonaparte, constituindo uma série de variações sobre um motivo da política externa que tivera o condão de apaixoná-lo e que com efeito ressoava em todo o mundo. A invasão da Península Ibérica e a usurpação do trono da Espanha principalmente atiçaram aquele rancor e provocaram o seu jingoísmo. Porque Southey foi um jingo, um precursor com mais seiva de Rudyard Kipling, com todos os característicos da profissão.

O Pilgrimage a Waterloo foi a sua ode bélica, o seu tributo ao exército vitorioso, que êle estremecia e queria grande, triunfante e intangível. O nacionalismo vibrou a última estocada no seu liberalismo político. Aquele mesmo espírito que condenara com virulência a cruzada monárquica contra a França revolucionária, por isso enaltecendo Fox e injuriando Pitt, acabou reclamando a exterminação de Napoleão como inimigo da humanidade, exatamente como os jingões de ontem reclamavam a exterminação dos bôeres como inimigos do povo britânico. Num cérebro inglês as idéias de humanidade e Grã-Bretanha localizam-se na mesma célula.

O poemeto Tale of Paraguay foi uma manifestação mais daquilo que apelidei o catolicismo literário de Southey, fundado em parte no reconhecimento da perseverante, posto que não desinteressada luta dos jesuítas contra a escravização dos índios, à qual sua agudeza histórica remotamente atribuía com razão a destruição da Ordem.

Southey foi em todo caso um verdadeiro crente. Sua religião era básica, vinha-lhe da alma, não dos sentidos.

Poderíamos mesmo chamá-lo devoto, observando todavia que êle não sacrificou sua independência espiritual nem abdicou sua liberdade moral, jurando detestar a beatice (bigotry) e encontrar joio entre o trigo da Igreja estabelecida. Na mocidade seus princípios religiosos tinham sido — já o sabemos e êle mesmo o confessa — abalados pela influência mais que tudo de Gibbon, o autor do famoso Decline and Fali of the Roman Empire e inteligência eivada de ceticismo. Nesse tempo Southey estudou com afinco Epíteto e praticou o estoicismo como uma doutrina igual senão superior ao Cristianismo.

À sua conversão não foi, porém, estranha, por paradoxal que isto pareça, a residência na Península com o espetáculo, antes repelente na superfície, de intolerante fé religiosa que ali lavrava. Era que Southey sabia discernir, ver o bom envolto no mau — espécie de penetração para exercer a qual é preciso ser-se dotado de uma bondade ingênita, além de natural perspicácia. Impressionou-o assim, conquanto a achasse muito decadente, a beleza da instituição monástica, tanto que, em sua opinião, a Reforma deveria de preferência ter modificado a haver abolido as ordens religiosas que floresciam na Grã-Bretanha.

Achava-as excelentes fundações pervertidas, sim, pelas imperfeições humanas, mas que ainda praticavam muitos benefícios, pois que a pobreza e a morte não poderiam ser suportadas, com resignação, sem religião. E de todas as religiões é certamente a católica — êle o proclamava, o autor da História do Brasil — a mais consoladora, e portanto a mais eficaz.

 

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

LINK: The Life and Correspondence of Robert Southey. (Google Books).

 

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