Maquiavel: O espelho da Guerra – a virtù na visão renascentista de Maquiavel

O ESPELHO DA
GUERRA:


a virtù na visão renascentista de
Maquiavel



Mariano de Azevedo
Júnior *

RESUMO:

Este artigo pretende analisar o
conceito de virtù em O Príncipe de Maquiavel, tomando-a como
a capacidade do soberano no uso racional das armas próprias para a preservação
do Estado. Também se propõe a verificar a distinção entre as formulações do
conceito de virtus pelos humanistas e
segundo a radical visão maquiaveliana, ambas frutos da Renascença. Ainda
observaremos que os "espelhos de príncipes" escritos durante a
Renascença formaram-se em oposição à definição humanista de virtus, que visava à formação do homem
cívico e não do príncipe. Nesse sentido, reformulando o conceito de virtù, Maquiavel opôs o seu espelho de
príncipe tanto à concepção humanista como à idéia de virtus dos
outros autores dos espelhos, enfatizando a prática da guerra. Finalmente, buscaremos revelar a virtù associada à arte da guerra como a
própria definição de "príncipe prudente".

Palavras chaves: Príncipe, Maquiavel, virtù, Estado e Arte da guerra.

ABSTRACT:

This article intends to analyze the concept of virtù in The Prince by Maquiavel, taken as the sovereign’s rational capacity
in use of proper weapons on the preservation of his State. Also it is
considered to verify the distinction between the formularizations of virtus concept by humanists in the
beginning of century XV, and radical maquiavelian’s vision, both fruits of the
Renaissance. Still we will observe that the “mirrors of princes”, written in
Renaissance had formed in opposing to virtus definition by humanists, that aimed the formation of the civic man and not of
the prince. In this direction, reformulating the concept of virtù, Maquiavel opposed his mirror to
the conception humanist as to the idea of virtus by other mirror’s authors,
emphasizing the practical of war
. Finally, we will search to disclose virtù associated to the art of the war as the proper definition of "prudent
prince”.

Keywords: Prince, Maquiavel, virtù, State and Art of war.

A história humana, como afirmou um dos notáveis historiadores da Escola
dos Annales – Marc Bloch (1993) – é o
estudo do homem no contexto do seu tempo. Mas a nossa história dos homens em
sociedade nos leva a enxergar uma natureza belicosa existente no tempo e no
espaço, compreendida na própria existência humana. Uma história de guerras,
conquistas, derrotas e vitórias. Por essa razão, vale recuperar uma pergunta
central em O Príncipe de Maquiavel:
como reconhecer a força necessária capaz de manter um Estado? Eis uma questão
válida para refletir sobre o valor da guerra na conservação dos principados
liderados por homens de valores próprios e tidos como dignos da soberania.
Príncipes almejantes da glória e da arte de bem governar pela lei e pelas
armas. Homens espelhados na visão histórica, renascentista e política de
Maquiavel.

É no cenário da Renascença italiana que Nicolau Maquiavel escreve a sua
mais famosa obra, O Príncipe (1513),
na qual realiza uma análise política consistente sobre como deve agir um
soberano com prudência ou valor próprio (virtù)
para manter um governo já existente ou conquistar um novo. Destinando o seu
“espelho de príncipe”[1] a
Lourenço, “O Magnífico”[2],
Maquiavel constata que dois fatores são os sustentáculos garantidores da
estabilidade e segurança de um governo soberano: boas leis e boas armas. A
concepção da política maquiaveliana fundamenta-se no fato de que é impossível
existirem boas leis e boas armas se não houver um homem de Estado ousado e
viril, como um modelo a ser seguido. Daí o príncipe prudente ser esse exemplo
para os homens que o seguirão. Nessa perspectiva, pode-se notar que a política
em Maquiavel reflete o conflito moral quando do uso dos meios da força física,
objetivando fins inteiramente acima dos limites da ética puritana. Outro aspecto
fundamental é a riqueza em aprender com as “lições” do passado: seguir os
passos dos grandes homens no trato da guerra, ao se configurar o conflito com
outros blocos de poder. Para compreendermos esse aspecto importante da visão
maquiaveliana, é necessário que consideremos as influências intelectuais na
formação política do florentino.

A presença essencial de termos como virtù e fortuna na filosofia política de
Maquiavel – que irão fundamentar toda a sua obra – só pode ser entendida no
contexto renascentista que fundamentou as tradições políticas e filosóficas
presentes na sociedade na qual estava inserido. Contudo, a gênese da visão
renascentista maquiaveliana tem a sua fundamentação centrada nos círculos
humanistas de Florença do início do século XV. Estes, por sua vez, foram
totalmente influenciados pelo trabalho de Petrarca no século precedente, quando
ele recuperou os valores existentes nas obras de Cícero, nas quais se encontram
as aplicações dos termos virtus e fortuna, voltados para a formação política
do indivíduo, do cidadão.

Os valores da República no Renascimento italiano.

Na antiga Roma, a deusa da sorte Fortuna,
adorada como filha do próprio Jupiter,
possuía a capacidade de prosperar a vida dos homens com tudo aquilo que todos
desejavam – glória, poder e honra –, desde que estes ousassem nos negócios,
fazendo uso das graças da deusa. No entanto, os homens (vir) de pouca virtude (virtutis),
ao invés de desfrutarem dos poderes ofertados pela deusa, iriam sucumbir diante
da incapacidade de se regozijar com o que a Fortuna tinha para agraciá-los. É nesse contexto cultural da antigüidade romana que
toda a eloqüência de Cícero, considerado o mestre da retórica, consegue
utilizar a concepção do vir virtutis (homem de virtudes viris) aplicada à política, dando sentido moral aos novos
significados definidores dos valores próprios e reais que um homem político e
eloqüente deveria possuir, e que Petrarca definiu como a meta para a educação
que devia formar o indivíduo da sua época. Educação essa que consolidou a
compreensão humanista como a formação ideal do indivíduo de atos virtuosos e
que tanto embasou as apologias à liberdade cívica republicana dos humanistas
florentinos da Renascença.

O trabalho de Petrarca ao recobrar os valores ciceronianos e inseri-los
na concepção humanista de modelo de educação e conduta, não se limitou a
adaptar tais valores às tradições existentes. Em vez disso, Petrarca recuperou
toda a concepção ciceroniana de virtus,
embasado na compreensão clássica que definia a retórica e a filosofia.[3] Foi essa recuperação total dos conceitos de virtus e fortuna que construiu a idéia de
uma educação direcionada para a formação da “virtude única” do homem: a idéia
do homem político, eloqüente, cívico e republicano. Em poucas palavras, a idéia
de virtus era a própria concepção do
homem de reais virtudes, ou seja, do homem de valor próprio. Como o próprio
Petrarca nos diz:

Somente quando soubermos
unir a sabedoria à eloqüência, quando formos capazes de gravar na alma e fazer
que nela calem fundos os mais agudos e ardentes ferrões do discurso, poderemos
ter a esperança de realizar a tarefa realmente vital da filosofia – a de
arrazoar de modo não somente a instruir nossos ouvintes sobre as virtudes, mas
também de instruí-los a praticar atos virtuosos. (apud. SKINNER, 1996, p. 104)

Todo o engenhoso trabalho de Petrarca durante o século XIV é responsável
pelo teor de instrução civil republicana dos humanistas de Florença do início
do século XV. Notáveis humanistas florentinos como Leon Battista Alberti,
Gianozzo Manetti e Matteo Palmieri, dentre outros, executaram a tarefa de
realizar uma intensa apologia à liberdade republicana de Florença,
principalmente após a guerra contra Milão.[4]

A guerra contra Milão fez crescer o enaltecimento da república florentina
pelos círculos humanistas, como sendo a terra agraciada pelos ares
republicanos. Contudo, levando em conta o período renascentista do humanismo
espelhado na recuperação das considerações políticas de Petrarca, os ares
republicanos respirados pelos humanistas florentinos são os desejos de reerguer
uma República semelhante à dos tempos romanos de Cícero. Portanto, não há
nenhuma novidade maior que venha a definir o humanismo civil da Florença do
início do século XV, assim como não poderíamos apontar a compreensão de virtus e fortuna como sendo frutos originais do pensamento político de
Maquiavel. Em suma, o que constatamos são as raízes em comum, surgidas no bojo
da Renascença italiana, dos valores do Regnum
Italicum
prescritos nas obras de Cícero e recuperados no humanismo cívico
precursor de Petrarca. O que devemos destacar são particularidades nas
observações e análises políticas que caracterizaram a distinção entre os
humanistas do início do século XV e a filosofia política de Nicolau Maquiavel.

A moralidade reprovada de Maquiavel

Talvez afirmar que existam somente particularidades distintas entre a
compreensão da virtù de Maquiavel e a antiqua virtus humanista seja de
fato, um equívoco. Na verdade, há na visão política maquiaveliana uma
consistente diferença quanto aos caminhos que o homem de virtù deve trilhar para alcançar a glória. Nesse sentido, sem
perder de vista a raison d’Etat que
Maquiavel se propôs examinar em sua obra, é preciso, antes de qualquer coisa,
nos determos no conceito de virtus associado
à figura do príncipe de Estado, entendendo que a origem republicana de tal
conceito serviu para os objetivos cívicos de Petrarca e seus sucessores – que
desejavam formar cidadãos –, mas não para os fins últimos do Príncipe de Maquiavel. Além do mais,
também é necessário compreender que a glória almejada pelo príncipe está
relacionada com a questão central deste artigo, que se ocupa do significado da virtù maquiaveliana. Não obstante,
encontrar o real sentido da virtù nos
levará a entender a arte da guerra como uma virtude ulterior daqueles que
exerciam o ofício régio, e que (para Maquiavel) tornava o príncipe um indivíduo
de valor próprio e digno de se colocar acima dos demais.

Construir uma República florentina aos moldes da República romana da Antigüidade
também era um desejo de Maquiavel. Todavia, a “busca na história” de modelos
exemplares – característica típica do humanismo renascentista, que buscou na Política de Aristóteles a existência da
recorrência de fatos como a própria concepção de história – seria inútil se as
práticas dos homens do passado tivessem que ser compatíveis com os fins
apologéticos da moral vigente da sociedade cristã. Há, assim, entre o universo
intelectual de Maquiavel e o de outros pensadores que o precederam, um choque
de moralidades nessa dissensão humanista.

Na definição de homem renascentista de Buckhardt (1991), percebe-se o
mesmo propósito de alcançar a glória individual, semelhante ao conceito de
glória do príncipe em Maquiavel. Apesar disso, tal definição também se
configura na retomada dos soberanos pensados por outros autores de espelhos
para príncipes da época, bem como pelo vir
virtutis
cívico de Petrarca e seus sucessores. Embora essa preocupação do
homem renascentista com a glória individual seja condizente com as análises
sobre a busca dos príncipes pensados pelos autores dos espelhos, a política de
Maquiavel vai além das considerações de Estado na visão de Buckhardt (1991),
como ressalta Berlin (2002), a idéia de Estado é tida como uma obra de arte no
pensamento maquiaveliano (BERLIN, 2002). Para os humanistas cívicos, os atos
virtuosos aprendidos pelos homens de Estado poderiam definir o futuro da
república. No caso de Maquiavel, o que pode levar o príncipe a manter a sua
condição de soberano e a do seu principado é a sua prudência e coragem para
romper com a moral social vigente incapaz de mudar a natureza vaidosa,
mesquinha e egoísta dos homens. É justamente esta “questão de moral” que traduz
o que Berlin (2002) chamou de “a originalidade de Maquiavel”. E é esta
originalidade que iremos examinar a partir de agora, com o intuito de salientar
como a arte da guerra se configurou, conforme Maquiavel, como uma das virtudes
máximas a ser incorporada na formação devida de um príncipe prudente que pense
na prosperidade dos seus domínios, bem como na glória a ser alcançada graças
aos privilégios e favores da Fortuna submetida aos valores da virtù.

A virtù pagã: um espelho para o príncipe.

Para Maquiavel, a necessidade de um governo forte – que saiba fazer uso
da força bruta –, se fazia urgente quando o Estado estava em desordem, metido
com a corrupção e a ganância destruidora dos homens de pouco valor. Para
exercer tal governo acima de todos os males provocados pela natureza humana, os
príncipes soberanos deveriam seguir uma conduta que se chocava com a concepção
tradicional de atos virtuosos, dignos de um homem de máxima excelência. No
mundo como Maquiavel o concebia, a forma de conduzir os homens não poderia mais
ser romântica como os antigos defendiam. Os desejos dos homens, segundo a
concepção maquiaveliana, seguem trilhas diferentes, uma vez que são guiados ora
pelo desejo de poder, ora pelo desejo de liberdade. Nesse intervalo, o príncipe
tem que saber também se mover usando sua dupla face de raposa e leão[5], equilibrando
sua imagem pública através da força de um exército, de leis civis severas, de
reconhecimento e títulos aos nobres e de melhorias das condições sociais de seu
povo.

A fundamentação da prática efetiva das ações dignas de um soberano para a
prosperidade de um principado novo estava na busca de tipos ideais de governos
estáveis existentes na história. Nisso, Maquiavel e os outros autores de
espelhos para príncipes estavam de acordo. O ponto da discordância é que, para
Maquiavel, não havia como seguir os passos de um César, Aníbal ou de um
Alexandre sem desprender-se dos ditames morais da sociedade cristã.
Desvincular-se de tal moralidade seria uma prática obrigatória que se imporia
em nome da prudência principesca. Daí decorre o choque entre moralidades. Mais
precisamente, entre duas moralidades: uma cristã e outra, pagã.

Isaiah Berlin (2002), analisando esse aspecto original e conflituoso da
política maquiaveliana, concebe os valores ideais da política, na perspectiva
de Maquiavel, como traços de uma moralidade pagã. Para Berlin, é válido afirmar
que

O que Maquiavel distingue
não são valores especificamente morais de valores especificamente políticos; o
que ele faz não é emancipar a política da ética ou da religião; (…) o que ele institui é algo que possui um
impacto ainda mais profundo – uma diferenciação entre dois ideais incompatíveis
de vida e, portanto, duas moralidades. Uma é a moralidade do mundo pagão: os
seus valores são a coragem, o vigor, a fortaleza na adversidade, a realização
pública, a ordem, a disciplina, a felicidade, a força, a justiça, sobretudo a
afirmação das reivindicações apropriadas de cada um e o conhecimento e o poder
necessários para assegurar que sejam satisfeitos, aquilo que, para um leitor da
Renascença, Péricles tinha visto concretizado na sua Atenas ideal. Lívio
encontrara na antiga República romana, aquilo cuja decadência e morte Tácito e
Juvenal lamentavam no seu tempo. Esses parecem a Maquiavel os melhores períodos
da humanidade e, humanista renascentista como ele é, deseja restaurá-los
(BERLIN, 2002, p. 314).

Objetivando uma restauração diferente para a Itália, tão fragmentada por
brigas derivadas da ambição de poder entre famílias tradicionais, é que
Maquiavel defenderá outros meios mais radicais de política mundana capaz de
romper com os valores cristãos. Berlin ainda nos fornece uma caracterização da
moralidade cristã, à qual se opunha o modelo de príncipe maquiaveliano de virtù:

(…) os ideais do cristianismo são a caridade, a
misericórdia, o sacrifício, o amor a Deus, o perdão aos inimigos, o desprezo
pelos bens deste mundo, a fé na vida depois da morte, a crença na salvação da
alma individual como algo de incomparável valor – mais elevado do que todo
objetivo social, político ou qualquer outro propósito terrestre, qualquer outra
consideração econômica, militar ou estética; na verdade, inteiramente
incomensurável em relação a qualquer um desses valores. Maquiavel estabelece
que, com homens que acreditam nesses ideais e os praticam, nenhuma comunidade
satisfatória, no seu sentido romano, pode ser em princípio construída (BERLIN,
2002, p. 314-15).

Como se verifica, nas análises de Berlin (2002) o ponto que distingue a
política de Maquiavel da concepção humanista de virtus não é a separação entre política e moral. Na verdade, o
florentino está retomando as atitudes de um homem virtuoso (espelhado nos
passos dos heróis da Antigüidade) praticadas em conformidade com uma moralidade
pagã. Algo que a Itália seiscentista,
bem como toda a Europa, já havia deixado no passado, restando apenas os
louvores da Renascença e o desejo humanista de restaurar tais virtudes em uma
época de corrupção e confusão política mescladas aos valores moralizantes da
cristandade. É importante notar que, embora a idéia humanista em geral louvasse
tais virtudes da Antigüidade, Maquiavel tornou-se polêmico e incompreendido
pela grande maioria dos homens do seu tempo, por estes não conceberem como
“virtudes dignas” as ações que foram recomendadas em sua obra. Obra que
valoriza a verdade efetiva das coisas, a prática dos modelos prudentes do
príncipe:

Porém, sendo meu intento
escrever algo útil para quem me ler, parece-me mais conveniente procurar a
verdade efetiva da coisa do que uma imaginação sobre ela. Muitos imaginaram
repúblicas e principados que jamais foram vistos e que nem se soube se
existiram na verdade, porque há tamanha distância entre como se vive e como se
deveria viver, que aquele que trocar o que se faz por aquilo que se deveria
fazer aprende antes sua ruína do que sua preservação; pois um homem que queira
fazer em todas as coisas profissão de bondade deve arruinar-se entre tantos que
não são bons. Daí ser necessário a um príncipe, se quiser manter-se, aprender a
poder não ser bom e a se valer ou não disto segundo a necessidade (MAQUIAVEL,
1996, p. 73).

Na concepção da virtù maquiaveliana como sendo a prática efetiva de uma conduta contrária à idéia de
virtude cristã, aflora uma arte na qual o príncipe deve ser plenamente versado.
Uma arte que é a virtude ulterior, aquela que está posta acima de todas as
outras; aquela que será a própria conservação do principado, por meio da qual
serão construídos todos os caminhos prósperos para se alcançar a glória: a arte
da guerra. Mas como fazer uma guerra com homens sem nenhum hábito para as armas?
Como esperar bons resultados com exércitos que só pensam em dinheiro? Que novo habitus e sentimentos instituir em uma
Itália com homens fascinados com o comércio, a riqueza e a luxúria? (VIROLI,
2002).

A
guerra malograda: o triunfo da cobiça sobre as virtudes do soldado.

A importância que Maquiavel dá à questão da guerra pode ser explicada
pelo contexto histórico no qual estavam envolvidas a sua Florença e a Itália.
Com a república florentina demolida pelo autoritarismo dos Medicis, agora sob o
domínio de Lourenço, “O Magnífico”, Maquiavel afasta-se da plataforma
republicana que tanto admirava e passa a explicitar em sua obra os desejos de
ver a Itália e principalmente Florença afastadas de toda a corrupção que as
atingia. E isso só seria viável com um governo forte e restaurador, mesmo que
este se consolidasse na autoridade máxima de um príncipe. Daí os motivos pelos
quais o príncipe de virtù deveria
usar de todos os meios possíveis para se colocar acima da decadente condição
dos homens que destruíam gradativamente qualquer tentativa de manter um governo
austero, autoritário e próspero.

É bem verdade que a Itália mudara seus gostos graças a novidades (em
decorrência da generalização do uso do dinheiro) que a Europa só conheceria
mais tarde. Este fenômeno econômico importante exerceu, decerto, influência na
realização de guerras. Jakob Buckhardt (1991) faz uma afirmação interessante
que podemos associar ao momento histórico vivido por Maquiavel ao discorrer
sobre as questões de guerra:

Entre os italianos, pelo
contrário, as tropas mercenárias, organizadas diferentemente, fizeram-se
predominantes antes do que em qualquer outra parte, assim como também o
desenvolvimento precoce de armas de fogo contribuiu para, de certa maneira,
democratizar a guerra, não apenas porque as mais sólidas cidadelas estremeciam
ante as bombardas, mas também porque a perícia do engenheiro, do fundidor de
armas e do artilheiro – adquirida por vias burguesas – assumiu o primeiro plano
(BUCKHARDT, 1991, p. 88).

Tropas mercenárias. Eis o maior problema a ser solucionado pelo príncipe
de virtù, segundo Maquiavel, em meio
aos descaminhos da guerra que colocaram toda a Itália em um estado caótico.
Nesse sentido, voltamos a frisar que a visão humanista e renascentista de
Maquiavel percorreu todo o passado glorioso dos heróis da Antigüidade clássica,
buscando neles os valores a serem cultivados pelos homens do seu tempo; mas,
notadamente, pelo príncipe que deseja alcançar os lauréis das glórias da Fortuna pela prática da guerra.

Quanto ao exercício da
mente, deve o príncipe ler as histórias e refletir sobre as ações dos homens
excelentes, ver como se comportaram em guerras, examinar as causas das vitórias
e derrotas a fim de poder escapar destas e imitar aquelas. Mas, sobretudo, deve
agir como antes agiram alguns homens excelentes que se espelharam no exemplo de
outros que, antes deles, haviam sido louvados e glorificados, e cujos gestos e
ações procuraram ter sempre em mente; é o caso de Alexandre Magno, que imitava
Aquiles; de Cesare, que imitava Alexandre, e de Cipião, que imitava Ciro
(MAQUIAVEL, 1996, p. 71).

Para Maquiavel, não havia outra maneira de se estabelecer a ordem e
prosperar um Estado sem ser pela força das armas. Como já afirmamos no início
deste artigo, de nada valem as boas leis para governar os súditos, se antes
destas não existir o forte suporte das devidas armas, pois “um príncipe não deve ter outro objetivo, nem pensamento, nem tomar
como arte sua coisa alguma que não seja a guerra, sua ordem e disciplina,
porque esta é a única arte que compete a quem comanda”
(MAQUIAVEL, 1996, p.
69).

Fazer uso das boas armas exige prudência na prática da violência visando
ao equilíbrio do Estado. A natureza bélica do Estado moderno parecia ser
imprescindível para a sobrevivência dos domínios do príncipe, segundo o
florentino. Para ele, a constituição de um exército profissional e nacional era
o sustentáculo maior para vencer a decadente natureza humana susceptível a
corrupções, roubos, mentiras e ambições irresponsáveis. Natureza nociva que o
príncipe deveria combater como bom exemplo de homem de virtù. Para isso, ele deveria evitar cometer o pior erro no qual um
soberano poderia cair, qual seja, constituir suas forças armadas com soldados,
guerreiros que são incapazes de lutar pela fidelidade, pelo respeito e pelo
valor patriótico de sua terra, uma vez que só ambicionam o salário que lhes é
ofertado.

Quem tem o seu Estado
baseado em armas mercenárias jamais estará seguro e tranqüilo, porque elas são
desunidas, ambiciosas, indisciplinadas, infiéis, valentes entre amigos e
covardes entre inimigos, sem temor a Deus nem probidade para com os homens. O
príncipe apenas terá adiada a sua derrota pelo tempo que for adiado o ataque,
sendo espoliado por eles na paz e pelos inimigos na guerra. A razão disto é que
não tem outra paixão nem razão que as mantenha em campo senão um pequeno soldo,
que todavia não é suficiente para motivá-las a morrer por ti [pelo príncipe].
Querem muito ser teus soldados enquanto não há guerra; mas, durante a guerra, querem
fugir ou ir embora. (…) O resultado [da utilização de tropas mercenárias] foi
a Itália ter sido invadida por Carlos, pilhada por Luís, violentada por
Fernando e vilipendiada pelos suíços (MAQUIAVEL, 1996, p. 57-8 e 62).

A ausência, que Maquiavel aponta na figura do soldado mercenário, dos
valores necessários para alcançar as reais virtudes de um “homem de guerra”, na
verdade é uma decorrência da sua observação e da sua preocupação com a Itália
de final do século XV e início do XVI, mergulhada em corrupção e ganância por
riquezas. Se nos remetermos a outras partes da Europa, iremos notar que essa
ambição capaz de corromper os homens, à qual Maquiavel se refere, também
coexiste com a situação italiana. Contudo, se compararmos a realidade da Itália
com as análises da França da mesma época – final do século XV –, veremos, como
bem nos diz Johan Huizinga (1978), que “no
fim da Idade Média as condições do poder alteraram-se pelo acréscimo da
circulação da moeda e o limitado campo aberto a quem quer que desejasse
satisfazer a sua ambição de amontoar riqueza”
(HUIZINGA, 1978, p. 28).

Embora já tenhamos mencionado que a Itália vivenciou alguns fenômenos que
a Europa só conheceria mais tarde, este “acréscimo da circulação da moeda” já
existia desde muito antes na Itália. Ora, cidades como Gênova, Florença e
Veneza contribuíram para a ganância de “amontoar riquezas” quando se dispuseram
a exercer atividades comerciais voltadas para o fornecimento de transportes,
mantimentos e armas para soldados vindos de diferentes partes do continente.
Tal fato foi considerado “caótico”, segundo a visão humanista do século XV, e
até mesmo pelos “humanistas cívicos” de início do Quatrocentos dos círculos
florentinos, que fizeram apologia do
comércio como prioridade para uma república livre. A questão era que os homens
ricos destas cidades comerciais, ao se dedicarem plenamente ao comércio,
estavam, efetivamente, incentivando a prática mercenária na Itália. Ao mesmo
tempo, diminuíam o contingente de “braços armados” necessários para a formação
de um exército próprio (VIROLI, 2002).

Essa intensa circulação monetária mantinha crescente a arregimentação de
soldados mercenários na região. E, advertia Maquiavel, enquanto as cidades não
fossem defendidas por seus próprios homens, os homens de alhures não o poderiam
fazer com tanto empenho, porque o seu único motivo para lutar por uma pátria
que não seja a sua é a quantidade de moedas que lhes eram dadas. Era-lhes
indiferente a soberania da pátria. Em poucas palavras, para os humanistas da
Renascença, e sobretudo para Maquiavel, não há governo forte, seja república ou
principado, se os seus homens não se obstinarem a defendê-lo.

Caminhos da guerra. Eram eles que o príncipe deveria sempre tomar,
segundo Maquiavel. Sintetizando o que foi visto até aqui, a própria formação da virtù está associada à virtude máxima
da guerra. Enquanto outros autores de espelhos para príncipes de todo o período
renascentista glorificavam os homens excelentes do passado, contemplando os
seus feitos heróicos e invejando-os por terem vivido em épocas gloriosas,
Maquiavel ousou aconselhar que o príncipe descesse do degrau da contemplação e
pusesse os feitos de tais homens em nobre prática: a arte da guerra. Para
Maquiavel, se a Itália estava inundada pela corrupção e esfacelada pela má
conduta na guerra, não havia outra solução senão a restauração da ordem e da
prosperidade através da força das armas submetidas aos valores do príncipe.
Este seria o maior exemplo do domínio da virtù sobre a Fortuna.

A virtù se construiria na arte
de bem guerrear, passando por cima de valores ineficazes em uma sociedade onde
os homens não conheciam mais o significado de “valor próprio”. Contudo, se
fazia necessário que o príncipe tivesse uma disposição flexível em beneficio da
conservação dos seus domínios (SKINNER, 1996). Para Maquiavel, a ação do
príncipe de virtù deveria buscar de
todas as formas trilhar os caminhos reprovados pela moral cristã, ao invés de
sonhar com os lauréis do reino dos céus e esperar as ruínas do reino dos homens
na Terra. Sendo assim, não haveria outra maneira de obter as glórias da Fortuna sem antes subjugá-la, pondo em
prática uma virtù de guerra, que, no
limite, é a própria visão do curso da história dos homens como uma real
convivência conflituosa. Uma história que, para Maquiavel, constituía-se em uma
história de guerras entre as glórias do passado e os fracassos da sua época.

Ao abordar a virtù maquiaveliana, constatamos que um verdadeiro príncipe
prudente e corajoso que visa ao bem estar de seu Estado deveria construir um
novo espelho que garantisse a estabilidade e a paz políticas necessárias à vida
humana. Em outras palavras, entender a importância da arte da guerra, associada
à prudência do príncipe, é entender que a virtù de guerra serve para afastar os inimigos externos e manter a coesão interna.
Esta é a maior novidade na visão renascentista de Maquiavel, em relação às
tradições humanistas de sua época. Mas, considerando que a natureza humana nem
sempre é boa, nem sempre é má, pode-se afirmar que fazer guerra exige
responsabilidade. E isso só é possível com a convicção de que depois da guerra
virá a paz esperada. Por isso tudo, analisando O Príncipe, podemos afirmar que não há outra realidade tão afeita
aos homens de real valor do que a realidade bélica. Realidade violenta, porém,
para a mordaz visão maquiaveliana da sociedade, uma constatação ditada pela
prudência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERLIN, Isaiah. A originalidade
de Maquiavel. In: Estudos sobre a
Humanidade: uma antologia de ensaios
. São Paulo: Companhia das Letras,
2002. p. 299-348.

BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: o caráter natural do poder régio – França e
Inglaterra
. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

BUCKHARDT, Jacob C. A Cultura do Renascimento na Itália: um
ensaio
. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

HUIZINGA, Johan. O Declínio da Idade Média. São Paulo:
Verbo – editora da Universidade de São Paulo, 1978.

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes,
1996.

SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno.
São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

VIROLI, Mauricio. O Sorriso de
Nicolau:
História de Maquiavel.
São Paulo: Estação Liberdade, 2002.


* Acadêmico
de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e bolsista
do Programa de Educação Tutorial em Ciências Sociais (PETCIS) – SESu / MEC. E-mail:[email protected]

[1] Os
“espelhos de príncipes” (neste trabalho, fazemos menção aos espelhos
direcionados a príncipes escritos no período da Renascença tardia, ou seja, a
partir do final do século XV) foram obras categorizadas em um gênero literário
renascentista com o fim de constituir verdadeiros manuais de conduta para
aqueles que exerciam o ofício régio. No caso de Maquiavel, observaremos , na
parte central deste artigo, algumas particularidades na sua visão política.

[2] Lourenço, “O Magnífico”, era neto de Cosme de Medici, ambos membros da família
Medici que exercia poder sobre Florença e sobre a Itália. Em 1494, com a ajuda
das tropas espanholas, os Medici retomam o poder e destituem a República
florentina, que tem o seu final definitivo em 1512. A partir de então, Lourenço
de Medici passa a ser o Signori de
Florença.

[3] A
mais importante redescoberta dos valores clássicos de virtus e fortuna por
Petrarca talvez tenha se dado nas intensas análises das “Disputações Tusculanas”
de Cícero, principalmente sobre o que Petrarca revelou sobre a meta para a
educação. Para mais detalhes, ver: SKINNER, Quentin. A recuperação dos valores
clássicos. In: As Fundações do
Pensamento Político Moderno
. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.
105-109.

[4] Após
dominar toda a Lombardia e ter conquistado Verona, Vicença e Pádua, o duque de
Milão Giangaleazzo Visconti cercou Florença, planejando um ataque. Antes que a
cidade resistisse, o duque morreu repentinamente de febre, deixando o ducado
para o seu filho Filippo Maria Visconti, que se empenhou em executar os planos
do pai. Com a anexação de Gênova ao ducado de Milão, Filippo declarou guerra à
Florença, que antecipou uma reação, resultando em uma guerra que durou de
aproximadamente 1423 até 1454. Esta cessou com vitória de Florença, após a
intervenção diplomática de Cosme de Medici, que exigiu o reconhecimento de
Milão à República independente florentina.

[5] Na
filosofia política de Maquiavel, o príncipe soberano deve saber se comportar ora
como raposa, ora como leão. As alegorias são feitas no sentido de associar
habilidade e esperteza sorrateira à raposa e força e nobreza ao leão. Essa
passagem evidencia a flexibilidade que o príncipe deve possuir, colocando-se
entre os atos nobres e os vícios dos homens, se a necessidade para manter a sua
condição assim exigir.

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