A DIPLOMACIA ESTRANGEIRA NO RIO. CALEPPI E BALK-POLEFF – D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

D. João VI no Brasil – Oliveira Lima

CAPITULO XXI

A DIPLOMACIA
ESTRANGEIRA NO RIO. CALEPPI E BALK-POLEFF

A mudança da corte portuguesa para
o Rio de Janeiro implicara naturalmente a mudança do corpo diplomático
acreditado junto à mesma em Lisboa, e quando viessem mais tarde agentes para
junto da regência, como esteve algum tempo Canning, para o Brasil se trasladara
o melhor do interesse das questões agitadas e tratadas no meio particular e
sugestivo da política internacional.

Com a França e a Espanha as relações estavam de
começo cortadas, e ao se restabelecerem muito prontamente com a segunda dessas
nações por motivo da usurpação napoleônica em Madri, logo partiu para o
ultramar o representante do monarca legítimo, ou pelo menos da Junta que no
seu nome pretendia agir. O representante britânico se não demorara em
acompanhar em pessoa a trasladação, da qual pars magna fuit.696 Se
de resto tivesse o imperador Napoleão conseguido transformar o reino de
Portugal em departamentos franceses, aprisionando Dom João e a família de
Bragança, ao Brasil aportaria em vez de um ministro um procônsul, porque o
governo britânico ocuparia sem hesitar a América Portuguesa invocando a sua
própria segurança a zelar,697 segundo havia mesmo declarado.

O núncio, monsenhor Caleppi, tampouco
tardou, e como cardeal veio a morrer no Rio.698 O ministro russo,
conde de San Pahlen, é que só em 1812 chegou de Filadélfia na galera americana
Bingham: tinha sido transferido dos Estados Unidos. A estes havia que ajuntar
os representantes oficiosos (já não falando nos emissários secretos) dos
governos não reconhecidos de Buenos Aires e de Montevidéu, e depois os
representantes oficiais da França, Prússia, Áustria, Países-Baixos e Sardenha.

O Brasil passara a encerrar a razão de
ser da monarquia, e como tal tinha jus à primazia nas preocupações do pessoal
diretivo. No Congresso de
Viena, dos três assuntos ventilados com respeito a Portugal, dois, os essenciais — o tráfico negro e
o limite das Guianas ou o domínio exclusivo do Amazonas — interessavam o novo
reino, e só a menos importante posse de Olivença se relacionava com o reino
velho. A mais importante questão diplomática do reinado de Dom João VI — a incorporação da Cisplatina — foi exclusivamente uma questão
brasileira originada no tradicional
anelo pelo limite meridional do Prata.

O primeiro ensaio de solução deste problema de velha
data, o qual era
mais complexo do que podia à primeira vista parecer a um estadista recém-chegado da Europa,
apressado nas suas deliberações e fraco julgador por inexperiência dos
sentimentos coloniais, coubera, como sabemos, ao gênio irrequieto de D. Rodrigo de Souza
Coutinho, que, logo ao desembarcar e como se fosse a cousa mais simples do mundo, mandou propor às Províncias do rio da Prata
— supondo-as justamente avessas na sua orfandade à tutela francesa — colocá-las debaixo do
protetorado português,
com a guarda dos seus foros, a garantia do seu comércio e o abandono, por parte dos ingleses,
das passadas e todavia recentes pretensões de
conquista.

No caso de uma negativa, ameaçava o ministro do príncipe
regente que Portugal, de parceria com a Inglaterra, recorreria à guerra para
liquidar a
situação, que no mais alto grau lhe interessava pela extensão e natureza a dar à sua fronteira do
Sul, e pelas conseqüências que do statu quo poderiam advir com a
transformação do Brasil em cabeça da monarquia A Inglaterra, convém não
esquecer, ainda se não reconciliara com a Espanha diante do inimigo comum. Na
divisão do rio da Prata, Buenos Aires lhe pertenceria e Portugal ficaria com a Banda Oriental,
objeto das suas seculares e justas
ambições.

Quando
a Inglaterra mudou de posição na Europa e concomitar. mente alterou seus planos
ultramarinos, teve o gabinete do Rio que reduzir suas cobiças ao assencial. Foi então, por ocasião da missão Curado a Buenos Aires, que Linhares propôs abertamente a
proteção portuguesa sobre a margem
oriental do rio da Prata tão somente, provocando ainda. assim os protestos de Liniers junto à princesa do
Brasil, a qual lhe respondeu
transmitindo palavras amigáveis do regente, a quem ela e o Infante Dom Pedro Carlos, como representantes dos
Bourbons d’Espanha, fizeram apelo num memorial público.

Ficou já indicado
ser bem possível que, intrigante e ladina como era tivesse Dona Carlota entrado
num conchavo, a princípio, com D. Rodrigo, prometendo ceder Montevidéu ao marido, caso
obtivesse a realeza ou pelo menos a regência dos vice-reinados espanhóis,
posto que se reservando
mentalmente o direito dé não cumprir o acordo. Sua principal esperança estava então posta em sir Sidney Smith, seu recurso mesmo único enquanto se lhe não ofereceu o apoio mais seguro do próprio partido patriota
que nos seus inícios a considerou a hipótese emancipadora de mais fácil realização.

Nestas negociações platinas, as da primeira fase, o Rio figurou de principal cenário, não sendo contudo
de ordinário mais do que o refletor dos sucessos que decorriam em mais
grandioso palco. As questões externas, ou antes de repercussão externa, mais graves e
complicadas em que se achou então empenhado o governo português — as do tráfico, de Caiena e de Montevidéu — trataram-se pode
dizer-se que inteiramente na Europa, devendo
aliás ser julgadas tão européias quanto americanas.

Não era por isso nulo o papel do corpo diplomático
acreditado no Brasil,
onde Chamberlain, o cônsul-geral que exerceu funções de encarregado de negócios entre a partida
de lord Strangford em 1816 e a chegada de Thornton em 1819, assim como depois da partida deste
para Lisboa, chegou
a exercer certa influência sobre o espírito do rei, o que queria dizer autoridade sobre o
ministério, a esse tempo quase que reduzido a Tho-maz Antônio Villa Nova Portugal.
Os fios da política internacional andavam ligados por forma que passavam por
todas as cortes, numa já palpável solidariedade dos interesses de cultura sob os ciúmes egoístas e as
desavenças particulares.

Para jogar em segurança de causa, era preciso possuir as
chaves da rede e
assim dominar o mecanismo completo: de contrário ficava-se a meio no caminho e atraía-se sobre si
o ridículo. Quando por exemplo, o governo português recorreu à venda de bens da coroa e de
conventos a suprimir,
vexado como andava com os atrasados devidos ao exército em opera-ções contra os franceses, o conde
do Funchal teve uma das suas: precisa-mente acabava ele de ser nomeado ministro dos negócios
estrangeiros e da guerra em substituição do irmão falecido, devendo todavia
permanecer algum
tempo mais na Inglaterra com o fim de ultimar os negócios pendentes da sua gestão. O êxito
pouco feliz da sua indubitável atividade acatou por comprometer a sua escolha para o gabinete.

Com relação à questão dos bens eclesiásticos, não vacilou Funchal em dirigir-se de Londres ao núncio
Caleppi, no Rio de Janeiro, para que Santa Sé consentisse na pretendida
alienação e forçada secularização, prometendo em troca, com toda a leviandade usual dos seus
planos a distância,
a demonstração do interesse britânico pela situação do Papado e pela causa dos católicos na
Irlanda e na Inglaterra, onde ainda não estavam emancipados, sendo seu principal adversário o
duque de Wellington, então em pleno
prestígio militar e político.699

Funchal não era homem com quem Caleppi se enganasse ao
ponto sobretudo de acreditar cegamente nas suas promessas, imaginosas mais do
que cavilosas. Havia entre os dois toda a distância que vai de um homem de muito espírito a um homem
de pouco espírito. O italiano — un madre compère como o chamava o
imperador Napoleão — fez sobre a duquesa de Abrantes, que era pessoalmente uma mulher de
espírito e na corte das Tulherias tinha visto desfilar o que de mais culto e
intelectual contava a Europa, a maior
impressão pela sua sutileza e instrução.

É verdade que monsenhor Caleppi, apesar dos seus 70
anos, se constituíra
o cavaliere servente da embaixatriz de França,700 cujo
testemunho poderia
portanto ser tachado de suspeito. Junot porém, escrevendo de Lisboa à mulher dois anos depois,
por ocasião da invasão, dizia ele próprio do representante pontifício que era com efeito um homem
de sumo espírito, ainda que o seu estado
habitual de finura e de astúcia acabasse por ser
enfadonho. O duque de Abrantes não sabia entretanto naquela data de
quanto era capaz esse mestre de ironia.

O
núncio estivera para embarcar na esquadra que transportou a corte para o Brasil, tendo chegado
Anadia, ministro da marinha, a expedir ordem para o receberem e acomodarem a bordo de uma das
naus. Não podendo, contudo, no último momento seguir viagem por doença,
verdadeira ou simulada, conservou-se em Lisboa durante boa parte do curto
proconsulado de
Junot, de quem não lograva obter o passaporte indispensável para embarcar com destino ao seu posto junto
ao regente de Portugal. O general só lhe queria facultar saída por terra, atravessando
Portugal já percorrido pelos regimentos ingleses e a Espanha em sangue, devastada pelos soldados
de Napoleão e anarquizada pelos
voluntários patriotas.

Caleppi esperou algum tempo uma oportunidade e achou por
fim meio de se
escapar, conta a duquesa de Abrantes que disfarçado em marujo. Seja ou
não exato este pormenor, o fato é que a 18 de abril de 1808 recebia Junot do núncio uma carta que o
enchia de espanto e que terminava pelas seguintes zombeteiras palavras:711
"Ainsi donc contrarie par mer; effrayé par terre; agite par les cris de ma conscience qui me
represente sans cesse le
Brésil comme le but de mes devoirs sacrés (et quel autre pourrai-je en avoir a soixante-dix ans,
infirme, et casse?) je n’ai plus qu’un seul parti a prendre, et V. E. n’en será pas surprise.
Penetre cependant jusqu’au der-nier moment par tous les sentiments de
delicatesse que je me suis imposé dans ma position bien épineuse, ce ne será pas a 1’Escadre anglaise que
je m’en irai. J’ai prefere un petit batiment muni par V. E. de ses passe-ports, sur lequel j’espere enfin pouvoir passer a
ma destination, et meriter par Ia cet eloge si flatteur dont V. E. même a honoré quelquefois mon attachement à Ia religion et au Saint-Pere."

No Rio de Janeiro moveu Caleppi forte oposição à cláusula do tratado de 1810 pelo qual ficava a
Inquisição suprimida no Brasil e se dava à Inglaterra o direito de construírem os seus súditos templos
reformistas, comprometendo-se o governo português a proteger a liberdade desse
culto e a
independência dos cemitérios protestantes, e comprometendo-se, por sua vez, os súditos britânicos a
não atacarem a religião do estado que os acolhia, nem a fazerem obra de propaganda evangélica.702

Conquanto estimadíssimo pelo príncipe regente, nada pôde o núncio
arrancar, em contrário àquela tolerância, da bonacheirona tenacidade de Dom João,703 o
qual era sustentado na sua liberal recusa pelo bispo do Rio de Janeiro, D.
José Caetano de Souza Coutinho.704 Já temos verificado no decorrer desta
história do seu reinado americano, que era Dom João VI homem para teimas, mais ainda
quando se sentia bem arrimado, porque a
firmeza na aplicação é que não correspondia nele à firmeza na opinião.

Um episódio diplomático desses tempos, altamente curioso
e quase desconhecido,
cômico por uns lados e violento noutros, foi o da virtual entrega dos passaportes, pelo
governo de Dom João VI, a
Balk-Poleff, ministro
russo acreditado junto à corte do Rio e especialmente investido do caráter de embaixador
extraordinário para a coroação do monarca português.

Segundo consta dos papéis
oficiais,705 a questão teve sua origem nas suscetibilidades da chancelaria
brasileira, justamente melindrada pela pouca pressa — aliás intencionalmente correspondida por
ocasião da resposta — com que, sob os pretextos de fazer muito calor e de estar
preparando as carruagens para a festa, o diplomata comunicou sua missão
temporá-ria e pediu
a audiência do estilo; e também pela forma descortês com que o mesmo diplomata reclamou a prisão
do seu cozinheiro e de um sapateiro, franceses ambos, de quem tinha queixas e que queria
textualmente por a pão o e a água. O conde da Barca deixou até por inteiro de
aquiescer a esse estranho pedido oficial e não só formulou, como executou a
propósito a ameaça de devolver
qualquer nota menos correta, o que sobremodo contrariou Balk-Podeff que, em despique disso e da falta de pronta
concessão da sua audiência, deixou de comparecer
(com o seu colega holandês Mollerus que lhe esposou o ressentimento, por motivo
dos laços de família que estreitamente uniam as respectivas cortes) às
recepções de grande gala de 7 e 25 de abril, nas quais, de pé sobre o trono e
rodeado da família real e dos grandes da corte, o rei recebia primeiro os
cumprimentos dos representantes estrangeiros em corpo e dava em seguida
beija-mão a todas as classes distintas do Estado.

Para bem acentuarem sua ausência,
que não justificavam, como o ministro americano a sua, por motivos de saúde, os
representantes russo e holandês assistiram naquelas datas a todo o espetáculo,
até meia-noite, no teatro de São João, proceder que assim lhes era exprobrado
pelo encarregado de negócios de França:706 "Enfin,
Monseigneur, quoique le sé-jour a Rio de Janeiro ne puisse étre agréable a
aucun ministre etranger, quoique même la Cour ne fasse pas de son côté la moindre des démarches auxquelles se prêtent naturellement les Cours d’Europe
pour accueillir les agents diplomatiques, je le repete ingénuement et sans la
moindre préven-tion ces deux messieurs ont commis une faute, ils ont manque de
bien-séance et de délicatesse dans le choix du temps et des moyens qu’ils ont
employé pour marquer leur froideur."

Balk-Poleff, chegado ao Rio de Janeiro em
outubro de 1816, era um diplomata do gênero desagradável. Maler, que sempre
usava de muita consideração pelos colegas, expunha sem rebuço ao seu governo o
que denominava "as inconseqüências e a irregularidade do comportamento
oficial e privado" daquele agente, que a todo momento se salientava pelos
seus sarcasmos e inconvenientes diatribes contra a terra e contra a gente, e
que tinha o sestro de não pagar aos criados nem aos fornecedores.

Foi este mau vezo que lhe atraiu o
indecente desaguizado — dissimulado por Maler na sua correspondência, por
julgá-lo "si fort au dessous de la dignité diplomatique" — com o seu
artista culinário e com o seu artista sapateiro,
remate de uma longa série de discussões, que subiam até a real presença,
entre credores que exigiam pagamentos da legação russa e o ministro que
solicitava a detenção dos que ousavam manifestar tal pretensão.

O intendente da Polícia e o ministro de
Estrangeiros a princípio quiseram satisfazer quanto possível o irascível
diplomata, mas cansaram-se de aturá-lo, e como tanto mais furioso se punha
Balk-Poleff quanto menos o escutavam, viu-se Dom João VI obrigado
a queixar-se em São Pe-tersburgo, por intermédio do seu ministro Saldanha da
Gama, do proceder excessivamente indiscreto do enviado imperial, cujas notas
originais para lá foram remetidas como prova da acusação.707Com um dos seus colegas pelo
menos, tornaram-se igualmente tensas, em tão curto espaço de tempo, as relações de
Balk-Poleff, o qual já nem falava com o encarregado de negócios da Inglaterra,
Chamberlain. Com
Maler, a sua civilidade parece ter sido no entanto constante, apesar das diferenças que tiveram.

O rompimento formal entre Balk-Poleff e a corte do Rio
deu-se a breve trecho
depois dos incidentes, mais ridículos que graves, que deixavam prever esse resultado. No dia
imediato ao da nota cáustica de Barca, solicitava o representante russo audiência para a entrega
da sua credencial de embaixador.708 A resposta, propositalmente retardada, foi de 5
de abril,709 quando a 25 de março chegara ao Rio a notícia do movimento revolucionário pernambucano; o qual fez
adiar a aclamação real (que só no ano imediato se efetuaria) e forneceu a Barca um excelente
pretexto para demorar
a audiência solene do embaixador. Tao leviano este que, para obtê-la, cometeu a imprudência e não
recuou ante a humilhação de valer-se confidencialmente junto a Dom João do
encarregado de negócios Vilal-ba, que ele
sabia ser desafeto do ministro de Estrangeiros.

A recepção foi afinal marcada para 13 de maio,
aniversário do monarca,
quase dois meses portanto depois de pedida, e recebendo Balk-Poleff o respectivo aviso oficial na
véspera, às 2 horas da tarde. Às 3 dirigia ele uma nota ao conde da Barca,
pondo em relevo a coincidência da audiência e da festa de grande gala somente
"como um desejo de sua Majestade de emprestar maior realce a essa nova prova de amizade
escolhida por Sua Majestade
meu augustíssimo amo para comprazer-lhe", e de novo pedindo comunicação por escrito do
cerimonial e pragmática em uso na corte portuguesa para as recepções dos embaixadores extraordinários,
que bem antecipadamente
reclamara. “Autorisé par les ordres de ma cour de m’y conformer, je ne pourrai me
rendre á l’audience fixée qu’apres avoir obte-nu l’objet de ma demande."

Satisfação lhe foi neste ponto dada pelo conde da Barca, recebendo ele o cerimonial às 123/4
da noite. Na ocasião, porém, de dirigir-se para a audiência, que devia ter lugar
à 1 hora da tarde no Paço da cidade, viu-se o embaixador constrangido a
permanecer durante uma hora quase defronte do palácio, sem poder o seu coche romper a tropa
que formara no largo
‘ ‘e sem que pessoa alguma — escreve Maler — se ocupasse de facilitar-lhe uma passagem para que comparecesse a um tão solene
convite".

Furioso com tudo isso e achando na maneira adotada para a sua apresentação de credencial pretextos
bastantes de recriminação, endereçou Balk-Poleff, no dia 18, um protesto ao governo português
concebido em termos indignados710
e que motivou da parte de Barca uma resposta cortante e violenta, a qual traz a
data de 21 de maio.7"

É mister atentar nas datas. O protesto de 18 foi, ao
que diz o ministro, entregue na noite de 20, justamente quando Balk-Poleff era
recebido pelo monarca numa nova audiência, particular esta, que obtivera por
surpresa, comparecendo em São Cristóvão a pretexto de apresentar felicitações
pela notícia que se espalhara da conclusão da revolução pernambucana, de fato
para tentar alcançar de Dom João VI satisfação das
afrontas que recebera do conde da Barca — assim as qualificava numa longa
circular mandada no dia 19 de maio às legações estrangeiras no Rio de Janeiro.712

A resposta de Barca é do dia
imediato, 21, qualificando o protesto de "tão insólito, quanto ofensivo e
inesperado", sem qualquer alusão à entrevista de 20. A 22, porém, após
terem soberano e ministro conversado sobre o ocorrido, que Barca desconhecia ao
expedir a sua ríspida admoes-tação, uma nova nota punha inteira e abruptamente
termo à missão Balk-Poleff, negando-lhe de então em diante e por motivo do desacato
cometido admissão à regia presença.713

Nada mais restava ao impetuoso e
irreverente diplomata do que pedir seus passaportes, que lhe foram sem tardança
concedidos. A 24 o conde da Barca transmitia em circular ao corpo diplomático
acreditado no Rio cópia de toda a correspondência trocada.

O desacato em questão
consta circunstanciadamente do curioso ofício de Balk-Poleff ao seu chefe Capo
d’Istria, reproduzindo em forma dialogada a audiência real de 20 de maio.
Qualquer narração que desta entrevista se quisesse tentar, se não poderia
aproximar em verdade e chiste dessa conversação por assim dizer taquigrafada e
na qual se sente de um lado toda a ira contida pelo respeito à majestade, do
diplomata escarnecido e raivoso, e do outro lado toda a bonomia velhaca do
rei, esquivando-se, encolhendo-se, tergiversando, contemporizando, para no fim,
com uma só frase, assumir inesperadamente a responsabilidade da situação e
tornar impossível o prolongamento da conversa, deixando o interlocutor perplexo
e a descoberto.

Começa Balk-Poleff por informar que
expressou ao monarca a satisfação que seu Amo sem dúvida experimentaria ao
saber do restabelecimento da tranqüilidade nos Estados portugueses.

"El-rei — Não duvido do
interesse que toma vosso imperador por quanto me diz respeito, mas o boato que
correu é falso. O encarregado de anunciar qualquer boa nova segundo um sinal
convencionado, enganou-se tomando um navio inglês
pelo que se espera de Pernambuco; mas é um bom homem. Sabeis que a revolta dos
meus súditos me causou grande pesar?

Eu — Acredito, senhor. É
mister, porém, esperar que breve estará apaziguada a rebelião, contanto que
Vossa Majestade ao lado do gládio da justiça haja por bem empregar a clemência
que o caracteriza.

El-rei — Sim, sim, mas é preciso castigar. Como ides de saúde?

Eu — Graças à bela estação
que presentemente atravessa a capital de Vossa Majestade, até os enfermos
passariam bem.

El-rei — No entanto o clima da
Europa vale mais que o da América, hem! hem!

Eu — Sem dúvida, senhor, é
mais próprio para europeus, mas no meio de uma natureza como a do Brasil, com
melhoramentos, a capital de Vossa Majestade, que descansa sobre um terreno
úmido, tornar-se-ia saudável. Senhor, eu
penso que seria necessário resolver-se Vossa Majestade a tomar medidas para
povoar seus vastos estados com colonos europeus, em lugar destes negros
que são obstáculos mais do que meio de civilização. Ousei dar expressão em
termos gerais a semelhante voto no meu discurso.

El-rei (sorrindo) — Ainda
hoje entrou um navio trazendo 400 escravos. (Depois de uma pausa) Sabeis que
duas embarcações inglesas se dirigiam para Pernambuco com armas e pólvora? Que
pensais disso? uma delas foi levada para a Bahia, hem! hem!

Eu — Num país livre e
constitucional como a Inglaterra, é impossível impedir as especulações dos
particulares de qualquer gênero que sejam.

Após um momento de silêncio,
roguei a Sua Majestade quisesse ouvir-me em particular, pelo que foi despedido
o criado e assim comecei:

Senhor, Vossa Majestade teve a prova da
satisfação que experimentei em cumprir um dever que só Lhe poderia ser
agradável, pois que meu augustíssimo amo só mo ditou para comprazer a Vossa
Majestade, que porventura ignora, porém, que se esqueceram com relação a mim
de muitas das formas usadas nessas espécies de embaixadas.

El-rei — Sim, fiquei muito
contente com a embaixada e com o vosso discurso. Escreva ao meu ministro.

Eu — Foi precisamente o que fiz,
mas com um vivíssimo pesar de rer sido forçado a protestar, sabendo bem que as
intenções de Vossa Ma-jestade não eram de que eu tivesse razão de queixar-me;
tanto mais quan-to Vossa Majestade em pessoa, falando com o cavalheiro Vilalba,
mani-festou que seria
inconveniente reunir a audiência ao embaixador e a função de grande gala.El-rei — Oh! sim, o
cavalheiro Vilalba falou-me muito de vos. Escreva ao meu ministro, hem! hem!

Eu — Não deixei de protestar, como
era do meu dever: além de que nenhumas precauções tinham sido tomadas para que
eu pudesse chegar ao palácio; fui assim obrigado a esperar uma hora no sol e no
pó.

El-rei — Estavam as tropas, hem! hem!

Eu — Precisamente, senhor.

El-rei — Lord Strangford passava
pelo meio delas; (sorrindo) eu tinha-lhe dado permissão para isso.

Eu — O respeito que se tem na
Europa a tropas formadas diante das janelas do seu soberano ter-me-ia vedado
romper a fileira dos soldados de Vossa Majestade.

El-rei — Hem! hem!714

Eu — É também com profundo
sentimento de mágoa que me vejo compelido a solicitar de Vossa Majestade uma
reparação como a pode e deve desejar aquele que tem a honra de representar seu
augusto aliado e amigo. O ministério de Vossa Majestade fez-me uma ofensa que
caráter representativo algum saberia suportar, não somente devolvendo-me uma
Nota por mim dirigida, como escrevendo-me uma em resposta cujo teor não me é
dado sofrer (Je ne suis pas fait pour entendre). Se Vossa Majestade me
dá licença, atrever-me-ia a ler-lhe a nota que me foi resti-tuída.

El-rei — Lede.

E com efeito li a nota cuja cópia
transmiti ao Sr. conde de Nesselro-de, ajuntando: Quanto à do ministro de Vossa
Majestade aqui a tenho selada para ser-lhe restituída como documento que não
acharia lugar em arquivo diplomático algum.

El-rei — Oh! mas tendes tanta
facilidade para as línguas? Compreen-deis o português.

Eu — Já tive a honra de assegurar
a Vossa Majestade que não sou feito para compreender o estilo da nota do seu
ministro, ainda que compreendesse a linguagem.

El-rei — Escrevei a respeito ao meu ministro.

Eu — Nada tenho que lhe escrever
sobre o assunto, e é sem comentário algum que lhe restituo sua nota para não
imitá-lo. De resto ela não seria digna de ser posta entre as mãos de um
soberano: quando muito pode ser deposta a seus pés. (Ao dizer isto,
efetivamente depus o invólucro aos pés do rei, e prossegui). Ela aí permanecerá
até que eu tenha a honra de despedir-me de Vossa Majestade. Ouso, ao mesmo
tempo, afirmar-vos.

Senhor, que é com verdadeiro
desgosto que me vejo forçado a implorar de Vossa Majestade satisfação contra
o.seu ministro, pois que.injúria tal não a poderia mesmo tragar um gentil-homem
russo, com maioria de razão um ministro.

El-rei sorria e repetia: hem! hem!

Eu — É com tanto mais dor que me
acho reduzido a semelhante extremidade, quanto não me seria lícito desempenhar
o encargo ulterior de apresentar outra credencial senão depois de Vossa
Majestade me haver concedido a justa reparação que lhe peço.

Passo aqui sob silêncio duas ou
três referências que se intercalaram de modo imprevisto no tema capital da
conversa: a questão de um tratado de comércio para substituir o caduco, ao que
respondi negativamente; a gravidez da rainha da Espanha e a continuação da sua
epilepsia, pelo que exprimi esperança de que talvez o parto de Sua Majestade
fizesse cessar a epilepsia (haut-mal); finalmente a beleza da infanta
menor, sobre que me havendo interpelado o rei entendi dever responder-lhe que a
infanta era mais um anjo, que uma mortal etc. etc.

Falando de sua filha a rainha de
Espanha, disse-me El-rei que esperava uma princesa da Europa, mas receava
muito que os acontecimentos de Pernambuco se convertessem num obstáculo à
partida da arquiduquesa, caso lá chegassem notícias dos mesmos antes do
embarque. Apenas podia responder lisonjeando as esperanças de Sua Majestade.
Quando de novo solicitei satisfação contra o conde da Barca. El-rei disse-me
sorrindo: Sabeis, porém, que os ministros não são mais do que os executores da
minha vontade.

Nunca duvidei
disso, Senhor, repliquei. É assim que os deseja o Corpo Diplomático residente
junto a Vossa Majestade, o qual entretanto não cessa de louvar Vossa Majestade
e abençoar seu destino por ter a dita de aproximar-se da sua pessoa, mas só pode
queixar-se do seu ministro com perfeita unanimidade. Eu próprio que presto
tributo às virtudes de moderação, de eqüidade e de clemência de Vossa
Majestade, traços que me tra-zem à lembrança os do meu augusto amo, Tão posso
supor que em qualquer dos atos do seu ministro de que me queixo, exista
parcela alguma àa vontade de Vossa Majestade, aliás incompatível com o que se
assemelha a um sistema que não poderia ser o de Vossa Majestade. Eis o título
que mais me autoriza a solicitar uma satisfação contra o seu ministro. El-rei
Já vos disse que a tereis.

Retomando o invólucro deposto aos pés do rei,
retirei-me saudando segundo a etiqueta."

Refere em seguida Balk-Poleff que o "sufrágio unânime" por ele obtido sobre o objeto e estilo
do seu protesto comparado com a nota do conde da Barca, mostra suficientemente
"de quel côté est la justice de la cause et la regularité des formes et
convenances", ao mesmo tempo que convence pelo que toca à maneira usada
na corte do Rio com o corpo diplomático.

Vale a pena, para complemento do
incidente e melhor compreensão do meio diplomático do momento, buscar na
correspondência de Maler o efeito produzido entre os agentes estrangeiros no
Brasil pelo extraordinário episódio. Maler, concordando com o processo
progressivo, indo da advertência à devolução da nota, que Balk-Poleff dizia ser
para casos tais o diplomático, não se furta a aplaudir o primeiro protesto do
representante russo, contra a restituição da nota relativa às suas reclamações
particulares, considerando-o "rédigé dans le vrai esprit qui doit guider
tout indi-vidu appellé a remplir de si hautes fonctions", e como um
testemunho autêntico de que o embaixador soubera perfeitamente "concilier
les égards qui sont dus á S. M. T. F. avec la dignité du caractere
répresentatif dont il était investi par S. M. 1’empereur Alexandre".715

A 22 de maio transmitiu o
encarregado de negócios francês ao duque de Richelieu o resumo de uma
entrevista solicitada por Balk-Poleff e na qual este lhe narrou miudamente
todas as suas queixas do conde da Barca, para que delas pudesse ser informada
a corte francesa. Foi aí que Maler, pretextando não querer fiar-se tão
completamente em sua memória

— 
"quand d’apres Ia nature de ces Communications, un seul mot changé,
ajouté ou omis devait occasionner une erreur sensible et une faute grave"

— 
lhe sugeriu a idéia de uma circular que Balk-Poleff disse de resto estar
já redigindo. A resposta a essa circular, quando para ela houve ensejo, não
satisfez no entanto muito o embaixador russo que a desejaria ainda mais formal
e abundante, ao que Maler se excusou conquanto reconhecesse serem-lhe comuns as
recriminações contra o modo por que a chancelaria do Rio tratava os diplomatas
estrangeiros.716

Nas ulteriores informações que prestou ao
seu governo, censurou asperamente o agente francês a demora sofrida por
Balk-Poleff em plena rua no dia da entrega da credencial, e quanto à resposta
de Barca ao protesto a tal respeito, achava injustos os qualificativos empregados
pelo ministro, quer aplicados ao caso, quer considerados em geral.717

De fato todos os diplomatas, Maler e
Chamberlain como o ministro russo, nutriam disposições pouco benévolas para com
o governo português, antes o aborrecendo sem exceção, no que traduziam
fielmente os sentimentos dos seus respectivos governos. Assim apreciado, o
incidente Balk Poleff
recebe a expressão do mau humor reflexo, latente e geral desse meio todo especial, sentimento devido
a uma multiplicidade de causas. A ocupação de Montevidéu sobretudo indispusera
com a corte do Rio os gabinetes europeus que não queriam, após tão longo período de guerras quanto
o napoleônico, abrir ou ver abrirem-se novas lutas como a que se ensaiava entre Portugal e Espanha; se
tinham desgostado todos com a recusa de Dom João de transportar-se novamente para a Europa, e se
mostravam assim já
ligeiramente ciumentos da importância que poderia alcançar o Novo Mundo, com suas novas
nacionalidades e dinastias tradicionais, seu progresso importado e seus recursos naturais. As
metáforas do abade Pradt são o sintoma literário desse estado d’alma em que pouco inclinados se deveriam os governos fortes
manifestar para favorecerem aspirações im-perialistas de potências menores e particularmente de
potências americanas.

As questões de etiqueta, que tão grande papel desempenham na vida diplomática, contribuíam também
muito para o mau humor dos agentes acreditados no Rio de Janeiro, que uniformemente se
queixavam das faltas de atenção de que eram vítimas da parte do governo, sem
se recordarem das
suas próprias culpas, porventura mais graves e de que era responsável o seu comum esnobismo. O
embaixador extraordinário da Áustria, conde de Eltz, esse a quem o rei, aliás sem entusiasmo
algum e após exigir dele
uma memória sobre o assunto, emprestou 60 contos com que prover aos seus gastos e aos das duas
fragatas do acompanhamento da princesa real e salvar-se das garras dos agiotas, nem uma só festa
dera em honra da
corte onde fora especialmente acreditado numa tão faustosa ocasião. Nas expressões de Maler, o
embaixador Eltz vivia incógnito, deitando-se com as galinhas, não visitando nem recebendo
pessoa alguma, de sorte que a sua comitiva era convidada para as reuniões e que ao chefe o punham de lado, como se não existisse.718

Por vezes mesmo as desatenções oficiais contra que
clamavam os diplomatas,
não passavam de meras ninharias. Maler fazia para Paris quase um negócio de estado do fato de
Bezerra assinar 24 de junho uma circular relativa ao adiamento da função de grande gala pelo santo
do nome do rei, quando só a 25 foi feita
a comunicação oficial da sua entrada para o gabinete. Un
homme inconnu
chama-o indignado o cônsul-encarregado de negócios,
ajuntando: "Je trouve, Monseigneur, que le debut de Mr. Bezerra dans son
lit n’est pas brillant, mais comme je ne connais la politique chinoise moderne
que par l’ambassade de lord Amherst, je trouve tou-jours la copie bien
au dessous de l’original."

O juízo que,
pessoalmente, Maler e sem dúvida os seus colegas formavam de Balk-Poleff era contudo
de natureza a contrariar toda a sua intencional parcialidade na defesa das regalia*s e
vaidades diplomáticas.719 "Je n’ay jamais voulu me lier avec Mr. de Balk malgré
ses avances, — escrevia
Maler. — J’ay cru devoir m’en tenir avec lui a de simples devoirs de politesse car je voyais dans
nos caracteres trop peu d’analogie." E noutra ocasião admite sem ambages que "Mr. de
Balk n’avait rien fait perso-nellement qui put lui mériter un accueil empressé, il avait debute
avec im-prudence,
avec légereté et avec beaucoup d’indiscretion."

O incidente — affaire désagréable en tout sens, segundo
o caracteriza a linguagem diplomática do tempo — deriva sua gravidade e
interesse da forma
que assumiu, pois que no fundo todo ele se cifra numa rixa entre o ministro de
Estrangeiros, contra quem Balk-Poleff, Vilalba e Molle-rus tinham organizado um
triunvirato,
e o representante russo. À desavença conservou-se alheio o rei até o momento em
que o diplomata quis inabilmente
insistir em lançar as culpas todas sobre o ministro e destacar a pessoa do soberano,
declaradamente para exaltá-la, numa irresponsabilidade quase insultuosa pois
que implicava da parte do monarca ignorância dos negócios públicos em andamento, e a admissão de
abusos de grave caráter
internacional a que se não estendia plenamente sua autoridade, da qual era ele muito cioso.
Apenas num regime constitucional é lícito responsabilizar o ministro e isolar o rei. Contra
Balk-Poleff pessoalmente, Dom João nada tinha até então ou nada queria aparentar, tanto que acolheu perfeitamente a intervenção
bastante descabida e desgraciosa do encarregado de negócios da Espanha na
questão, e não se mostrou ressentido com as primeiras incorreções do embaixador
extraordinário, que as foi, porém,
acumulando.

"Le roi naturellement bon — escrevia Maler a Richelieu, — se preta sans violence à accorder ce
qu’on lui demandait,720 il a avoué même qu’il était venu en ville un
jour dans Ia croyance que les ordres avait été donnes en conséquence, mais le
comte da Barca avait oublié de les faire expédier; et c’est que la tactique de
celui-ci était moins conciliante; il a cherché a retarder la reception de Mr. de
Balk pour se donner le temps de recevoir une réponse aux plaintes que dés le mois d’Octobre il
avait adressées á Petersbourg,
et pour peu qu’il eüt vu le moindre jour au bon accueil de ses plaintes, il se croyait
assez en force pour ne le point admettre. Cepen-dant le 11 mai ayant reçu les
ordres du roi, Mr. da Barca envoya chercher Mr. Swertchkoff, Conseiller de
légation russe, jeune homme que frequen-tait três intimement sa maison, et qui par cela même
n’est pas bien vu de Mr. de Balk, et il le chargea de demander a celui-ci si
Paudience pouvait lui
convenir dans Ia journée du 13. Mr. de Balk reçut aussi mal le messa-ger que le message, crut le
regarder comme non avenu, et en a fait. plus tard un des articles de sa protestation."721

Barca queria visivelmente desvencilhar-se de um
personagem antipático
e importuno e tratou-o em várias ocasiões com menos caso, quando, por exemplo, só à última hora e à
instância reiterada do diplomata, lhe remeteu o indispensável cerimonial solicitado quase dois
meses antes. Na ocorrência
do faustíssimo 13 de maio lhe não cabe, entretanto, ao ministro de Estrangeiros, culpa
proposital, dela o isentando o próprio Maler.722 À recepção do embaixador, que se
seguiu à audiência real — na qual se refere que Balk-Poleff falou muito respeitosamente à
rainha, de cabeça descoberta
— é que nenhuma das pessoas gradas da corte compareceu, nem mandou sequer um cartão.

Esta circunstância indica assaz a hostilidade que contra o diplomata
havia, acirrada decerto pelo conde da Barca e a que ainda continuava naturalmente
de algum modo alheio o rei. A prova disto está em que na audiência particular de São
Cristóvão, na noite de 20, o monarca não fez alusão ao forte desagrado de que foi expressão a
nota de 21 (o que ainda se pode explicar por não haver tido até àquela hora conhecimento do protesto
de Balk-Poleff dirigido a 18 e recebido, pelo que se disse, no próprio dia 20, à noite) e não tomou
mesmo a princípio muito ao trágico o famoso desacato de que Barca tirou tão grande
partido. O positivo é que o rei Dom João recebeu, logo em seguida ao embaixador, uma
pessoa tão de sua
privança como João Paulo Bezerra, "et Mr. Bezerra dit que d’aprés ce que le roi lui a témoigné il
ne paraissait pas être três satisfait de Mr. Balk, mais qu’il ne paraissait pas non plus aussi
offensé qu’il l’a manifeste".

Se Bezerra não falava assim por oposição a Barca, teve este, ao que se vê, artes para persuadir o
monarca de que a oportunidade era excelente de livrar-se a corte do Rio do incômodo
e atrevido diplomata, por um mo dus faciendi corrente, mas que Maler entendeu todavia assim criticar:
"Qu’il ne soit
permis en terminant ce rapport d’avancer mon opinion par-ticuliére. La cour de Russie
avait fait un três mauvais choix, en nommant Mr. de Balk a des fonctions pour lesquelles il n’a
pas la moindre bonne disposition.
En voulant patienter et y mettre Pesprit de conciliation tou-jours convenable rien n’était
plus aisé que de le faire reppeller, et três cer-tainement S. M. I. n’aurait pu
s’y refuser; au lieu de cela Mr. le comte de
la Barca s’est emporté mal a propôs et a encore eu Ia maladresse de présenter lui même ce démélé par ses
Communications, sous Ia face la moins favorable,
de maniére qu’ayant raison dans le fond, S. M. I. et les autres cours pourront bien n’avoir pas a se louer des formes, et certes je le
repete, c’est être
assez malladroit avec un adversaire tel que Mr. de Balk."723

O que mais notável parece é que Barca, um mês antes de
morrer, doente como
já estava,724 tivesse tido ainda energia para tanto. Da questão nada resultou; a corte russa
apreciou no seu justo valor o conflito levantado pelo seu agente e bem correspondido pelo ministro
português. O último eco
do incidente encontrava-se no ofício de Maler de 24 de junho, em que comunica ter-se Balk-Poleff
decidido a partir por aquele paquete, o que quer dizer que teve de esperar um mês no Rio de Janeiro.
Ao pedido que fez ao encarregado de negócios da França de um passaporte para si
e sua comitiva
respondeu Maler com a remessa do passaporte para ele só, por haver sabido que o desastrado
diplomata ia partir acompanhado de um homem
"perdu de reputation et criblé de dettes".

Mal se houve pois com esse embaixador e todavia Dom João
VI, como era natural, tomava muito
ao sério a categoria da representação diplomática na sua corte e folgava em extremo com ver
embaixadores ao seu lado. A Inglaterra não lhe queria dar esse gosto enquanto a
corte não regressasse
para Lisboa, mas à França, depois da volta de Luxemburgo, tanto empenho mostrou o rei que a 9
de novembro de 1819 era nomeado embaixador no Brasil o general marquês de Saint-Simon, o
qual, segundo o
ministro de Estrangeiros Dessolles participava ao seu colega da Marinha barão Portal, devia seguir em navio de guerra.

Uma das razões, e não a menor, da deliberação francesa foi que, devendo-se renovar em 1820 o
tratado anglo-luso de 1810, que os Estados Unidos guerreavam de fora e dentro da praça Palmela
atacava, o ensejo parecia
azado para obterem outras nações algumas das vantagens comerciais exclusivamente atribuídas aos ingleses.

Outra razão importante foi que, parecendo destinada a vencer a rebelião das colônias espanholas,
não seria desarrazoado ir tomando posição e, sem dar propriamente mostras disto muito evidentes,
estabelecer um posto
de observação donde eventualmente se pudesse entrar em relações com aqueles países emancipados. Em
casos tais é mister madrugar. Saint-Simon escreveu a propósito um memorandum725 em que
lembrava que por se não haver prestado no Ocidente a atenção devida às primeiras agressões contra
a Polônia, ficara irremediavelmente comprometido o equilíbrio da Eu ropa, tão laboriosamente preparado no tratado de
Westfalia.

A América hispano-portuguesa constituía para a França, que estava sendo tão manufatureira quanto
agrícola, um mercado de muito futuro mas força era, na opinião do embaixador nomeado, começar
por lutar contra a
preponderância assumida pelos ingleses, cuja interesseira amizade não parecia
natural que Dom João VI pensasse em suportar indefinidamente, uma vez
exauridas pelos próprios ingleses as províncias européias da monarquia e
assente o trono no Novo Mundo, virgem de semelhantes tutelas, outras que as das
suas metrópoles no regime colonial, e podendo dispensar-lhes a utilidade.
Saint-Simon não compartilhava neste ponto da idéia do ministro americano
Sumter, de uma diplomacia menos complicada, que tinha o rei por amigo
cordialíssimo da política britânica.

Em tudo isto era a idéia íntima
de Saint-Simon mostrar a necessidade de rivalizar em brilho a sua embaixada
com a legação inglesa e assim obter maior ajuda de custo. Pensava ele, segundo
manifestava, em levar móveis de luxo para assim expor ao comércio brasileiro o
estado da indústria francesa, e fazer-se acompanhar de oficiais práticos e
inteligentes do antigo exército que percorressem o Brasil e organizassem uma
relação topográfica, geodésica, zoológica, botânica etc.

Pondo de lado as ilusões destes
planos, Saint-Simon enganava-se de longe no tocante às possibilidades do
segundo por parte do governo do Rio, que lhe oporia a mais formal recusa. Mais
ou menos por esse tempo, a 17 de junho de 1818, respondia Thomaz Antônio à
reiterada solicitação de Maler, de uma nova portaria autorizando o naturalista
Saint-Hilaire a viajar mais no interior do Brasil, que apesar das proibições
estabelecidas por inconvenientes ocorridos e derivados da comunicação
estrangeira com as capitanias do Pará, Rio Negro e Mato Grosso, permissão era
concedida, atendendo-se ao bom comportamento anterior de Saint-Hilaire, para
percorrer as províncias do Espírito Santo, São Paulo, Goiás e São Pedro do Sul,
mas não a de Mato Grosso.726

Com grande pesar de Dom João VI, Saint-Simon não chegou afinal na divisão naval francesa
entrada a 18 de agosto de 1820, que o devia transportar, nem veio jamais ao
Brasil, mercê das suas exigências de dinheiro, conquanto tivesse até mandado
tomar casa no Rio pelo conde de Gestas, que devia ter sido o seu secretário e ficara
no Rio, avulso, desde o tempo da primeira embaixada. Tampouco alcançou a
capital brasileira o embaixador nomeado em lugar de Saint-Simon, Hyde de
Neuville; este porém por motivo do regresso da corte para Lisboa, onde foi
residir e onde desempenhou papel conspícuo nos acontecimentos políticos que
amargaram os últimos anos de Dom João VI.

 

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