O Homem Medíocre (1913)
José Ingenieros (1877-1925)
Capítulo IV
i. homens e sombras. — ii. a domesticação dos medíocres. — iii. a vaidade. — iv. a dignidade
I — Homens e sombras
Desprovidos de azas e de penacho, os caracteres medíocres são incapazes de voar até um píncaro, ou de lutar contra um rebanho. Sua vida é uma perpétua cumplicidade com a vida alheia. São hósteis mercenários do primeiro homem firme que sabia colocá-lo sob seu jugo.
Atravessam o mundo cuidando da sua sombra, ignorando a sua personalidade. Nunca chegam a se individualizarem; ignoram o prazer de exclamar "eu sou!", em face dos demais. Não existem sozinhos. Sua amorfa estrutura os obriga a se apagarem numa raça, num povo, num partido, numa seita, num bando: sempre a fingir que são outros.
Escoaram todas as rotinas e prejuízos consolidados através de séculos. Medram assim. Seguem o caminho que menores resistências oferece, nadam a favor de toda corrente, e variam com elas; no seu rodar, águas abaixo, não há mérito, simples incapacidade de nadar águas acima. Crescem, porque sabem adaptar-se à hipocrisia social, como as lombrigas, às entranhas.
São refratárias a todo gesto digno; são hostis a isto. Conquistam "honras", e conseguem "dignidades", no plural; inevntaram o inconcebível plural da honra
e da dignidade, singulares e inflexíveis por definição. Vivem dos outros e para os outros: sombras de uma grei, sua existência é o acessório dos focos que o projetam. Carecem de luz, de arrojo, de fogo, de emoção. Tudo, neles, é emprestado.
Os caracteres excelentes ascendem à própria dignidade, nadando contra todas as correntes rebaixadoras, a cujo refluxo resistem com energia. É fácil distinguí-los, imediatamente, em face de outros, pois não se desvanecem nessa névoa moral em que aqueles se descoloram. Sua personalidade é toda brilho e aresta:
"Firmeza e luz, como cristal de rocha"
breves palavras que sintetizam a sua perfeita definição.
Teofrasto de La Bruyère não as escreveram melhor. Tais caracteres criaram a sua vida, e serviram um ideal, perseverando em sua rota, sentindo-se donos de seus atos, temperando-os para grandes esforços: seguros em suas crenças, leais a seus afetos, fiéis à sua palavra.
Nunca se obstinam no erro, não traem, nunca, a verdade. Ignoram o impudor da inconstância e a insolência da ingratidão. Vão contra os obstáculos, e enfrentam as dificuldades. São respeitosas na vitória e se dignificam na derrota: como se, para eles, a beleza estivesse na liça, e, não, no resultado. Sempre, invariavelmente, olham para o alto e para longe; por trás do atual fugitivo, divisam um Ideal tanto mais respeitável, quanto mais distante.
Estes optimates são poucos; cada um deles vive por um milhão. Possuem uma linha moral firme, que lhes serve de esqueleto ou de armadura. São alguém. Sua fisionomia é a deles, e não pode ser de ninguém mais. São inconfundíveis, capazes de imprimir seu selo indelével em mil iniciativas fecundas. São temidos pelos domesticados, como a chaga teme o cautério: sem adverti-los, entretanto, adoram-nos com o seu desdém. São os verdadeiros amos da sociedade, os que agridem o passado, e preparam o porvir, os que destroem e plasmam. São os atores do drama social, como energia inex-gotável.
Possuem o dom de resistir à rotina, e podem livrar-se de sua tirania niveladora.
Por causa deles, a Humanidade vive e progride.
São sempre excessivos; centuplicam as qualidades que os outros apenas possuem em germe. A hipertrotia üe uma idéia ou de uma paixão torna-os inaüaptaveis ao seu meio, exagerando a sua pujança; mas, para a sociedade, realizam uma íunção harmónica e vital. Sem eles, o progresso humano se imobilizaria, estacando como veleiro surpreendido, em alto mar, pela bonança. Com eles, somente com eles, é que se ocupa a história e a arte, interpretando-os como protótipo da Humanidade.
O homem que pensa com a sua própria cabeça, e a sombra que reflete os pensamentos alheios, parece pertencerem a mundos diferentes. Homens e sombras: diferem entre si, como o cristal e a argila.
O cristal tem uma forma preestabelecida pela sua própria composição química; cristaliza-se nela, ou não, conforme os casos; mas nunca tomará uma forma que não seja a própria. Vendo-os, sabemos o que é, inconfundivelmente.
De igual maneira, o homem superior é sempre um, em si, aparte dos demais. Se o clima lhe é propício, converte-se em núcleo de energias sociais, projetando sobre o meio os seus caracteres próprios, à guisa do cristal que, em uma solução saturada, provoca novas cristalizações semelhantes a si mesmo, criando formas
do seu próprio sistema geométrico. A argila, ao contrário, carace de forma própria, e toma a que lhe imprimem as circunstâncias exteriores, os seres que a manipulam, ou as coisas que a rodeiam; conserva o rastro de todos os sulcos e as pegadas de todos os dedos, como a cera, como qualquer pasta; será cúbica, esférica ou piramidal, conforme a modelação. Assim acontece com os caracteres medíocres: sensíveis às coerções do meio em que vivem, incapazes de servir uma fé ou uma paixão.
As crenças são o suporte do caráter; o homem que as possue, firmes e elevadas, tem caráter exelente. As sombras não crêem.
A personalidade está em perpétua evolução, e o caráter individual é o seu delicado instrumento; é preciso temperá-lo sem descanso, nas fontes da cultura e do amor.
O que herdamos, implica certa fatalidade, que a educação corrige e orienta.
Os homens estão predestinados a conservar sua linha própria entre as pressões coercitivas da sociedade; as sombras não têm resistência, adaptam-se facilmente, até se desfigurarem, domesticando-se.
O caráter expressa-se por atividade que constituem a conduta. Cada sêr humano tem aquele que corresponde às suas crenças: se é "firmeza e luz", como disse o poeta, a firmeza está nos sólidos fundamentos da sua cultura, e a luz, em sua elevação moral.
Os elementos intelectuais não bastam para determinar sua orientação; a do caráter depende tanto da consistência moral, como da cultura, ou mais ainda. Sem algum engenho, é impossível ascender pelos caminhos da virtude; sem alguma virtude, são inacessíveis os caminhos do engenho. Na ação, estão em consonância.
A força das crenças está em não serem puramente racionais; pensamos com o coração e com a cabeça.
Elas não implicam um conhecimento exato da realidade; são simples juízos a seu respeito, suscetíveis de correções e de substituições. São instrumentos atuais; cada crença é uma opinião contingente e provisória.
Todo juízo implica uma afirmação: o juízo negativo é uma crença, tal como o afirmativo. Toda negação é, em si mesma, afirmativa; negar é afirmar uma negação. A atitude é idêntica; crê-se o que se afirma, ou o que se nega. O contrário da afirmação não é negação, é a dúvida. Para afirmar ou negar, é preciso crer. Ser alguém, é crer intensamente: pensar é crer; amar é crer; odiar é crer; lutar é crer; viver é crer.
As crenças são os móveis de toda atividade humana. Não é preciso que sejam verdades: cremos com antecedência a todo raciocínio, e cada uma das novas noções é adquirida através de crenças já preíormadas. A dúvida deveria ser mais comum visto que, com ela, escasseiam os critérios de certeza lógica a primeira atitude, entretanto, é uma adesão ao que se apresenta à nossa experiência.
A maneira primitiva de pensar as coisas, consiste em nelas acreditar tais como as sentimos; as crianças, os selvagens, os ignorantes, os espíritos débeis, são acessíveis a todos os erros — brinquedos frívolos das pessoas, das coisas e das circunstâncias. Qualquer coisa pode desviar um baixel sem governo.
Essas crenças são como os cravos que penetram com um só golpe; as convicções firmes entram como os parafusos, pouco a pouco, à força de observação e de estudo. É mais laboriosa a sua aquisição; mas, enquanto que os escravos cedem ao primeiro impulso vigoroso, os parafusos resistem e mantém de pé a personalidade.
O engenho e a cultura corrigem as fáceis ilusões primitivas e as rotinas impostas pela sociedade ao indivíduo: a amplitude do saber permite aos homens a formação de idéias próprias. Viver arrastado pelas alheias, equivale a não viver. Os medíocres são obra dos outros, e estão em todas as partes; maneira de não ser ninguém, e de não estar em lugar algum.
Não se concebe um caráter sem unidade. Quando este falta, o homem é amorfo ou instável; vive assombrado, como fráe:il embarcação no oceano. Essa unidade deve ser efetiva no tempo; depende, em grande parte, da coordenação das crenças. Estas são forcas dina-mogêneas e ativas sintetizadoras da personalidade.
A história natural do pensamento humano só estuda crenças, não certezas. A espécie, as raças, as nações, os partidos, os grupos, são animados por necessidades materiais que as engendram, mais ou menos de acordo com a realidade, mas sempre determinantes da sua ação.
Crer é a forma natural de pensar para viver.
A unidade das crenças permite aos homens operar de acordo com o próprio passado: é um hábito de independência e a condição do homem livre no sentido relativo eme o determinismo consente. Seus atos são ágeis e retilíneos, podendo ser previstos em cada circunstância; seguem, sem vacilações, um caminho traçado: tudo concorre para aue eles guardem a sua dignidade e formem o seu ideal. Estão sempre prontos para o esforço, e o realizam sem esgares. Sentem-se livres, ainda quando maneiam as suas paixões. Querem ser independentes de tudo e de todos, sem que isso os impeça de ser tolerantes: eles não põem o preço da sua liberdade na submissão dos outros. Fazem sempre o que querem, porque só querem aquilo cuja realização suas forças permitem. Sabem polir a obra de seus educadores, e nunca julgam terminada a própria cultura. Dir-se-ia que eles mesmos se fizeram como são, vendo-os sublinar, em
todos os atos, o propósito de assumir a sua personalidade.
As crenças do Homem são profundas, radicadas em vasto saber; servem de leme seguro, para seguir por uma rota que êle conhece, e que não oculta aos outros; quando muda de rumo, é porque suas crenças se transformam por uma nova experiência, e ao calor das mais profundas meditações.
As crenças da Sombra são sulcos arados na água: qualquer vento os desvia; sua opinião é tornadiça como bandeirola, e suas mudanças obedecem as grosseiras solicitações de conveniências imediatas.
Os Homens evoluem com a variação das suas crenças, e podem transformá-las enquanto vão aprendendo; as Sombras acomodam as próprias crenças aos seus apetites, e pretendem encobrir a indignidade com o nome de evolução. Se dependesse delas, esta última palavra equivaleria a desequilíbrio, ou a falta de vergonha; muitas vezes, a traição.
Crenças firmes, conduta firme. Esse o critério para apreciar o caráter: as obras. Di-lo o poema bíblico: Judicáberis ex operibus vestris — sereis julgados por vossas obras.
Quantos há que parecem homens, e que só valem pelas posições alcançadas nas piaras mediocráticas! Vistos de perto, examinados em obras, são menos do que nada; valores negativos. Sombras.
II — A domesticação dos medíocres
Gil Blas de Santillana é uma sombra: sua vida inteira é um processo contínuo de domesticação social. Se alguma linha própria permitisse diferenciá-lo do seu rebanho, toda a esterqueira social se derramaria sobre
êle, para apagá-la, complicando a sua insegura unidade com uma cifra imensa.
O rebanho lhe oferece infinitas vantagens. Não é para surpreender o fato de êle as aceitar, em troca de certas renúncias compatíveis com a sua renúncia moral. Não exige coisas inverossímeis; basta a sua condescendência passiva, sua alma de lacaio.
Enquanto os homens resistem às tentações, as sombras resvalam pelas vertentes; se alguma partícula de originalidade os embaraça, eliminam-na para se confundirem melhor com os outros. Parecem sólidas, e se abrandam; ásperas, e se suavisam; ariscas, e se amansam; calorosas, e se esfriam; resplandecentes, e se empanam; ardentes, e se pacificam; viris, e se feminizam; erguidas, e se achatam. Mil laços sórdidos as esperam, desde que tomam contacto com suas semelhantes; aprendem a medir as suas virtudes, e praticá-las com parcimônia. Cada afastamento custa-lhe um desengano, cada desvio vale uma desconfiança. Moldam seu coração aos prejuízos e sua inteligência, às rotinas: a domesticação facilita-lhe a luta pela vida.
A mediocracia teme o digno, e adora o lacaio. Gil Blas encanta-a: simboliza o homem prático que tira partido de toda situação, e que encontra proveito em toda vilania. Persegue Stockmann, o inimigo do povo, com o mesmo afã com que admira Gil Blas: recebe-o na gruta do bandoleiro, e o enaltece, qual favorito nas cortes. É um homem de cortiça; flutua. Foi salteador, rufião, ratoneiro, prestamista, assassino, estafador, fementido, ingrato, hipócrita, traidor, político: estes diferentes mergulhos na lama não o impedem de subir, e de outorgar sorrisos, estando ao seu comedouro. É perfeito no seu gênero. Seu segredo é simples: é um animal doméstico. Entra no mundo como criado, e continua sendo servil até a morte, em todas as circunstâncias e situações: nunca tem um gesto altivo, jamais acomete um obstáculo pela frente.
A boa linguagem clássica denominava "doméstico" a todo homem que servia. E era justo. O hábito da servidão traz, consigo, sentimentos de domesticidade, tanto nos cortezãos, como nos povos.
Fora necessário copiar por inteiro o eloqüente Discurso sobre o servilismo voluntário, escrito por La Boe-tie, em sua adolescência, e coberto de glória pelo elogio admirativo de Montaigne. Desde o seu tempo, milhares de páginas fustigam a subordinarão aos dogmatismos sociais, o acatamento incond;cional dos prejuízos admitidos, o respeito das hierarquias adventícias, a disciplina céea em face da imposição coletiva, a homenagem decidida a tudo o que representa a ordem vigente, a submissão sistemática à vontade dos poderosos: tudo o que reforça a domesticarão, e que tem, por conseqüência inevitável, o servilismo.
Os caracteres excelentes são indomesticáveis: têm seu norte posto no seu Ideal. Sua "firmeza" os sustenta; sua "luz" os guia. As sombras, ao contrário, degeneram.
A cera facilmente se liquefaz; o cristal nunca perde a sua aresta.
Os Medíocres encharcam a sua sombra, quando o meio os instiga; os superiores se enaltecem na mesma proporção em que o seu ambiente se rebaixa.
Nos momentos felizes, como na adversidade, amando e desprezando, entre risos e entre lágrimas, cada homem firme tem um modo peculiar de se comportar, modo que é a sua síntese: o seu caráter. As sombras não têm essa unidade de conduta que permite prever o gesto em todas as ocasiões.
Para Zenão, o estóico, o caráter é fonte de vida, e todas as ações partem dele. Está bem dito, mas é im-
preciso. Em suas definições, os moralistas não concordam com os psicólogos; aqueles catonizam, como pregadores, e estes descrevem, como naturalistas.
O caráter é uma síntese: é preciso insistir nisto. É um expoente de toda a personalidade, e não, de algum elemento isolado. Nos próprios filósofos, o caráter pareceria depender exclusivamente de condições intelectuais: erro inútil, porque sua conduta é o transunto de cem outros fatores.
Pensar é viver. Todo ideal humano implica uma associação sistemática da moral e da vontade, fazendo convergir ao seu objetivo os mais veementes anelos de perfeição.
O investigador de uma verdade se sobrepõe à sociedade em que vive: trabalha para esta, e pensa por todos, antecipando-se, contrariando suas rotinas. Tem uma personalidade social, adaptada para as funções que não pode exercer em uma ermida; mas os seus sentimentos sociais não lhe impõem cumplicidade com os menos límpidos. Em sua anastomóse com os outros, conserva livres coração e cérebro, mediante alguma coisa de próprio, que nunca se desorienta: aquele que pos-sue um caráter, não se domestica.
Gil Blas medra entre os homens, desde que a humanidade existe; protestaram contra êle os idealistas de todos os tempos. Os românticos, envoltos em sublime desdém, manifestaram-se contra os temperamentos servís; Musset, pela boca de Lorenzaccio, esvurma, com palavras indeléveis, a cobardia dos povos familiarizados com a servidão. E os individualistas não lhe ficam atrás, pois o seu vôo lírico mais alto foi atingido por Nietzsche; suas mais formosas páginas são um código de moía 1 anti-medíocre, uma exaltação de qualidades inconciliáveis com a disciplina social, O espírito gregário, por êle tão acerbamente fustigado, tem já, dissectores eloqüentíssimos, que exibem as solidárias cumplicidades com que os medrosos resistem às iniciativas dos audazes, agrupando-se em maneiras diversas, de acordo com os seus interesses de classe, hierarquia ou funções.
Onde houve escravos e servos, foram plasmados caracteres servis. Vencido o homem, não n’o matavam; forçavam-no a trabalhar em proveito dos vencedores. Sujeito à escravidão, medroso em face do látego, o escravo se dobrava sob a carga, que ia gravando, em seu caráter a domesticidade. Alguns — diz a história — foram rebeldes, ou alcançaram dignidades: sua rebeldia foi sempre um gesto de animal faminto, e seu êxito foi o preço de cumplicidades nos vícios de seus amos. Chegados ao exercício de alguma autoridade, tornaram-se despóticos, desprovidos de idéias capazes de os deter diante da infâmia, como se quisessem, com seus abusos, esquecer a servidão sofrida anteriormente. Gil Blas foi o mais vil dos favoritos.
O tempo e o exercício adaptam o homem à vida servil. O hábito de se resignar, para medrar, cria recursos cada vez mais sólidos, automatismos que descoloram, para sempre, todo traça individual. O adulador Gil Blas mancha-se com estigmas que o tornam inconfundível com o homem digno. Embora emancipado, continua sendo lacaio, e deixa os baixos instintos à rédea solta.
O costume de obedecer engreda uma mentalidade doméstica. Quem nasce de servos, a traz no sangue,, como diz Aristóteles. Herda hábitos servis, e não encontra ambiente propício para a formação do seu caráter. As vidas iniciadas na servidão não adquirem dignidade.
Os antigos alimentavam o maior desprezo pelos filhos dos lacaios, reputando-os moralmente piores do que os adubos reduzidos ao jugo por dívidas, ou nas batalhas; supunham que herdavam a domesticidade dos pais, in-tensificando-a com a servidão ulterior. Eram desprezados por seus amos.
Isto se repete em todos os países que tiveram uma raça escrava inferior. É legítimo. É com humilhante desprezo que se costuma olhar para os mulatos e mestiços, descendentes de antigos escravos, em todas as nações de raça branca que aboliram a escravidão; seu afã, no sentido de dissimular a sua descendência servil, demonstra que reconhecem a indignidade hereditária condensada neles. Esse desprezo é natural. Assim como o antigo escravo se tornava vaidoso e insolente, ao ascender a qualquer posição, de onde era possível mandar, os mulatos e mestiços se orgulham, nas morganáticas medio cracias sul-americanas, captando funções e honrarias com que fartam os seus apetites acumulados em domesticida des seculares.
A classe cria desigualdades idênticas às da raça. Os servos foram tão domesticados, como os escravos; a revolução francesa deu liberdade política aos seus descendentes, mas não soube dar-lhes essa liberdade moral que é o impulso da dignidade.
O burguês enriquecido merece o desprezo do aristocrata, mais ainda do que o ódio do proletário, que é um aspirante à burguesia; não há chefe pior, do que o antigo assistente, nem amo pior, do que o antigo lacaio.
As aristocracias são lógicas, quando desdenham os adventícios: consideram-nos descendentes de criados enriquecidos, e supõem que herdaram a sua domesticidade, juntamente com as taleigas.
Essas inclinações servis, radicadas no próprio fundo da hereditariedade étnica ou social, são bem vistas nas mediocracias contemporâneas, que nivelam, politicamente o servo e o digno. Foi mudado o nome, mas o conteúdo subsiste: a domesticidade é corrente nas sociedades modernas.
Há muitas décadas que se praticou a abolição legal de escravidão ou de servilismo; certos países não se julgariam civilizados, se conservassem tal coisa em seus códigos. Isto, porém, não muda os costumes: o lacaio e o servo continuam existindo, por temperamento ou por falta de caráter. Não são propriedade de seus amos, mas buscam a tutela alheia, da mesma forma por que vão à querença os animais extraviados. Sua psicologia gregária não se modificou cem a declaração dos direitos do homem; a liberdade, a igualdade, a fraternidade, são ficções que os desvanecem, mas não os redimem.
Há inclinações que sobrevivem a todas as leis igualitárias, e fazem amar o jugo ou o látego. As leis não podem dar hombridade às sombras, nem caráter ao amorfo, nem dignidade ao envilecido, nem iniciativa aos imitadores, nem virtude ao honesto, nem intrepidez ao manso, nem afã de liberdade ao servil. Por isso, em plena democracia, os caracteres medíocres buscam naturalmente o seu baixo nível: domesticam-se.
Em certos indivíduos, sem caráter desde o ventre materno até o túmulo, a conduta não pode seguir normas constantes. São perigosos, porque o seu ontem não diz coisa alguma sobre o seu amanhã: operam à mercê dos impulsos acidentais, sempre aleatórios. Se possuem alguns elementos válidos, estão estes dispersos, incapazes de síntese; a menor sacudidela põe a flutuar os seus atavismos de selvagem e de primitivo, depositados nos sulcos mais profundos de sua personalidade. Suas imitações são frágeis e pouco enraizadas. Por isso são antisociais, incapazes de se elevarem à honesta condição de animais de rebanho.
A outros desgraçados, sem irreparáveis lacunas de temperamento, a sociedade amesquinha a educação. As grandes cidades estão cheias de crianças moralmente desamparadas, presas da miséria, sem lar, sem escola. Vivem acariciando o vício e colhendo a corrupção, sem o hábito da honestidade e sem o exemplo luminoso da virtude. Embotada a sua inteligência, e coibidas as suas melhores inclinações, têm a vontade errante, incapaz de se sobrepor às convergências fatais que pugnam no propósito de as afundar. E, se passam a sua infância sem cairem no charco, tropeçam depois, em novos obstáculos.
O trabalho, criando o hábito do esforço, seria a melhor escola do caráter; mas a sociedade ensina a odiá-lo, impondo-o precocemente, como uma ignomínia desagradável ou um envilecimento infame, sob a escravidão de jugos e de horários, executado por fome ou por avareza, até que o homem foge dele, como de um castigo; só poderá amá-lo, quando fôr uma ginástica espontânea de seus gostos e de suas aptidões.
Assim a sociedade completa a sua obra; os que não naufragaram pela educação malsã, dão contra o escolho do trabalho embrutecedor. Na complexa atividade moderna, as vontades claudicantes são toleradas; suas in-cogruências ficam ocultas, enquanto os atos se referem a vulgares automatismos da vida quotidiana; mas, quando uma circunstância nova os obriga a procurar uma solução, a personalidade se agita, ao acaso, e revela então os seus vícios intrínsecos.
Estes degenerados são indomesticáveis.
Os outros, como Gil Blas, carecem de orientação de sua própria conduta, e esquecem que o mais leve deslize pode ser o passo inicial no sentido de uma degradação completa. Ignoram que cada esforço de dignidade consolida a nossa firmeza; quanto mais perigosa é a verdade que hoje dizemos, tanto mais fácil será, amanhã pronunciar outras, em voz alta.
Nos mundos minados pela hipocrisia, tudo conspira contra as virtudes civis; os homens se corrompem mutuamente, imitam-se na fraude, estimulam-se no indecoroso, justificam-se reciprocamente.
Uma tíbia atmosfera entorpece àquele que cede pela primeira vez à tentação do injusto; as conseqüências da primeira falta podem ir até o infinito. Os medíocres não sabem evitá-la; inutilmente dispenderiam o esforço necessário para regressar ao bom caminho e emendar.
Para as sombras, não há rehabüitação possível; preferem excusar os desvios mais ou menos leves, sem advertir que é assim que se preparam os grandes. Todos os homens conhecem essas pequenas fraquezas, pois, de outro modo, seriam perfeitos, desde a sua origem; mas, enquanto pelos caracteres firmes, elas passam como um roçar que não deixa rastro, nos caracteres brandos aram um sulco por onde se facilita a reincidência. Esse é o caminho do envilecimento. Os virtuosos o ignoram: os honestos deixam-se tentar. Como para Gil Blas, o que lhes custa, é apenas a primeira queda; depois, continuam caindo como a água nas cascatas, a saltos, de pequenez em pequenez, de fraqueza em fraqueza, de curiosidade em curiosidade. Os remorsos da primeira culpa cedem à necessidade de ocultá-la com outra, diante das quais já não se amedrontam.
Seu caráter se decompõe, e eles se desviam, andam às cegas, tropeçam, praticam arremetidas, adotam expedientes, disfarçam suas intenções, ascendem por sendas tortuosas, buscam cúmplices destros para avançar na treva.
Depois dos primeiros passos hesitantes, caminham de pressa, até que as próprias raízes de sua moral se aniquilam. Assim resvalam pela pendente, aumentando a corte dos lacaios e dos parasitas; centenas de Gil Blas carcomem as bases da sociedade que pretendeu modelá-los à sua imagem e semelhança.
Os homens sem ideais são incapazes de resistir às solicitações de farturas materiais semeadas em seu caminho. Quando cedem às tentações, cevam-se, como feras que conhecem o sabor do sangue humano.
Pela circunstância de pensar sempre com a cabeça da sociedade, o domesticado é a escora mais segura de todos os conceitos políticos, religiosos, morais e sociais. Gil Blas está sempre com as mãos congestionadas, por ter aplaudido os ungidos, e com a arma afiada para agredir o rebelde que anuncia uma heresia. O panurgis-mo e a intolerância são as cores da fita do seu chapéu, para as quais exige o respeito de todos.
E é incalculável a soma de indivíduos domesticados que nos rodeiam. Cada funcionário tem um rebanho voraz, submisso aos seus caprichos, como os famintos, ao que os farta. Se fossem capazes de vergonha, os aduladores viveriam mais enrubecidos do que as papoulas; mas, longe disso, passeiam a sua domesticidade, e se sentem orgulhosos, exibindo com certo donaire, como a pantera que mostra as aveludadas manchas da sua pele.
A domesticação realiza-se de mil maneiras, tentando todos os apetites.
Nos limites da influência oficial, os meios de aclimação se multiplicam, principalmente nos países empestados pelo funcionalismo.
Os pobres de caráter não resistem; cedem a hipno tização. A perda da sua dignidade se inicia, quando lançam os olhos sobre a prebenda capaz de estremecer o seu estômago, ou de enevoar a sua vaidade, inclinan-se ante as mãos que hoje lhes outorgam os favores e as que, amanhã, manejarão a sua rédea.
Embora já não exista servidão legal, muitos indivíduos, livres da domesticidade obrigatória, acostumam-
se a ela, voluntariamente, por vocação implícita em sua fraqueza. Estão maculados desde o berço; mesmo não sofrendo necessidade de benefícios, são instintivamente servis. Há-os em todas as classes sociais. O preço da sua dignidade varia com a posição e se traduz em formas tão diferentes, como as pessoas que a vendem.
Estimulando Gil Blas, rebaixa-se o nível moral dos povos e das raças; estimular a canalhismo, não é tolerância. A cotação do mérito decai. A mansuetude silenciosa é preferida à dignidade altiva. A pele se encobre de maior número de enfeites. Quando a coluna vertebral é menos sólida, as boas maneiras são mais apreciadas, do que as boas ações.
Se o de Santillana se enluva para roubar, merece a admiração de todos; si Stockmann se despe, para salvar um náufrago, condenam-no por escândalo.
Nos povos domesticados, há sempre um momento em que a virtude parece ultrage aos costumes.
As sombras vivem com o anelo de castar os caracteres firmes, e de decapitar os pensadores alados, não lhes perdoando o luxo de serem servis e de possuírem cérebro.
A falta de virilidade é elogiada como um requinte, como acontece com os cavalos de passeio. A ignorância parece uma galanteria, como certas dúvidas elegantes que inquietam certos fanáticos sem ideais. Os méritos convertem-se em contrabando perigoso, obrigados a se desculparem, e a se ocultarem como se ofendessem por sua simples existência.
Quando o homem digno começa a despertar ciúmes, é grave o envilecimento coletivo; quando a dignidade parece absurda, e é coberta de ridículo, a dome6ticidade dos medíocres chegou aos seus extremos.
III — A vaidade
O homem é. A sombra parece. O homem coloca a sua honra no próprio mérito, e é o supremo juiz de si mesmo: ascende à dignidade. A sombra põe o seu na estima alheia, e renuncia a julgar-se: descende à vaidade.
Há uma moral de honra e outra de sua caricatura: ser ou parecer.
Quando um ideal de perfeição, impele a ser melhor, esse culto dos próprios méritos consolida, nos homens, a dignidade; quando o afã de parecer arrasta a todos os rebaixamentos, o culto da sombra inflama a vaidade.
As duas nascem do amor próprio; são irmãs, por sua origem, como Abel e Caim. São mais inimigas do que eles, e irreconciliáveis. São formas diferentes do amor próprio. Seguem caminhos divergentes. Uma floresce sobre o orgulho, ciúme escrupuloso, posto no respeito a si mesmo; a outra nasce da soberba, apetite de culminação em face dos demais.
O orgulho é uma arrogância originada por nobres motivos, e quer aquilatar o mérito; a soberba é uma desmedida presunção, e procura ampliar a sombra.
Os catecismos e os dicionários colaboraram na me-diocrização moral, subvertendo os termos que designam o exímio vulgar. Onde os padres da Igreja diziam su-perbia, como os antigos, fustigando-os, os pacóvios entenderam e traduziram orgulho, confundindo sentimentos diferentes. Daí, o equívoco de onde resultou a confusão da vaidade com a dignidade, que é a sua antítese, c a intenção de estabelecer igual preço para os homens e para as sombras, com prejuízo e desprezo dos primeiros.
Em sua forma embrionária, o amor próprio se revela como desejo de elogios, como temor de censuras; uma exagerada sensibilidade à opinião alheia. Para os
caracteres conformados com a rotina e com opiniões cor rentes, o desejo de brilhar em seu meio e o juízo que sugere ao pequeno grupo que os rodeia, são estímulos de ação. A simples circunstância de viverem arrebanhados, predispõe os indivíduos a buscar a aquiescência alheia; a estima própria é favorecida pelo contraste, ou pela comparação com os outros. Trata-se aqui de sentimento moral.
Mas os caminhos divergem. Nos dignos, o próprio juízo se antepõe à aprovação alheia; nos medíocres, postergam-se os méritos, e se cultiva a sombra. Os primeiros vivem para si mesmos; os segundos vegetam para os outros. Se o homem não vivesse em sociedade, o amor próprio seria dignidade em todos; vivendo em grupos, é dignidade apenas nos caracteres firmes.
Certas preocupações, reinantes nas mediocracias, exaltam os domesticados.
O brilho da glória sobre as frontes eleitas, deslumbra os ineptos, como a fartura do rico enciúma o miserável. O elogio do mérito é um estímulo para a sua simulação. Obcecados pelo êxito e incapazes de sonhar com a glória, muitos impotentes se envaidecem com méritos ilusórios e virtudes secretas que os outros não reconhecem; julgam-se atores da comédia humana; entram na vida construindo um cenário, grande ou pequeno, baixo ou culminante, sombrio ou luminoso; vivem com a perpétua preocupação do juízo alheio a respeito de sua sombra. Consomem a existência, ansiosos de se distinguirem na sua órbita, de interessar o seu mundo, de cativar a atenção dos outros, por qualquer meio e de qualquer forma. A diferença, se há, é puramente quantitativa, entre a vaidade do colegial que procura obter maior número de pontos nos exames, a do político que sonha ver-se aclamado ministro ou presidente, a do novelista que aspira edição de cem mil exemplares, e a do assassino que deseja ver o seu retrato nos jornais.
A exaltação do amor próprio, perigosa nos espíritos vulgares, é útil ao homem que serve um Ideal. Este cristaliza a exaltação em dignidade; aqueles a degeneram em vaidade. O êxito desvanece o tolo, nunca, o excelente. Esta antecipação da glória hipertrofia a personalidade dos homens superiores; é sua condição natural.
O atleta não tem, porventura, bíceps excessivos, até a deformidade?
A função faz o órgão. O "eu" é o órgão próprio da originalidade: absoluta no gênio. O que é absurdo num expoente de força. O músculo avantajado não é ridículo no atleta; é ridícula, entretanto, toda adiposidade excessiva, por monstruosa e inútil, como a vaidade do insignificante.
Certos homens de gênio, Sarmiento, por exemplo, teriam sido incompletos sem a sua megalomania.
Seu orgulho nunca excede a vaidade dos imbecis. A aparente diferença guarda proporção com o mérito. A um metro de distância e à primeira vista, ninguém vê o pé de uma formiga, mas todos percebem as garras de um leão; o mesmo acontece com o egoísmo ruidoso dos homens e a despercebida soberba das sombras. Não podem ser confundidos.
O vaidoso vive comparando-se com os que o rodeiam invejando toda excelência alheia, e carcomendo toda reputação que não pode igualar; o orgulhoso não se compara com os que julga inferiores, e põe seu olhar em tipos ideais de perfeição que estão muito alto, e in flamam o seu entusiasmo.
O orgulho, subsolo indispensável da dignidade, imprime, aos homens, certo belo gesto que as sombras censuram. Para isso, o babélico idioma dos vulgares emaranhou a significação do vocábulo, acabando por ignorar a gente se êle designa um vício ou uma virtude.
Tudo é relativo. Se há méritos, o orgulho é um direito: se não os há, trata-se de vaidade. O homem que afirma um ideal, e se aperfeiçoa no seu sentido, despreza com esse ato, a atmosfera inferior que o asfixia; é um sentimento natural, alicerçado por uma desigualdade efetiva e constante. Para os medíocres, seria mais grato não sofrer essa humilhante diferença; mas esquecem que eles são seus inimigos, constrangendo seu tronco robusto, com a hidra, ou azinho, para afogá-los no número infinito. O digno vê-se obrigado a zombar das mil rotinas que o servil adora sob o nome de princípios; o conflito é perpétuo.
A dignidade é um dique oposto pelo indivíduo à maré que o acossa. É o isolamento dos domesticados e o desprezo dos seus pastores, quase sempre escravos do próprio rebanho.
IV — A dignidade
Aquele que aspira aparecer, renuncia a ser. Bem poucos homens somam o engenho e a virtude, num total de dignidade: formam uma aristocracia natural, sempre exígua em face do número infinito dos espíritos obscuros. Credo supremo de todo idealismo, a dignidade é inequívoca, intangível, intransmutável. É síntese de todas as virtudes que nos aproximam do homem, e apagam as sombras: onde ela falta, não existe o sentimento da honra. E, assim como os povos sem dignidade são rebanhos, os indivíduos sem ela são escravos.
Os temperamentos adamantinos, — firmeza e luz — apartam-se de toda cumplicidade, desafiam a opinião alheia, se isto fôr necessário para salvar a própria, declinam todo bem mundano que requeira uma renúncia, entregam a própria vida, antes de trair os seus ideais.
Vão retos, sós, sem mesclar-se a facções, convertidos em protesto vivo contra todo acanalhamento ou servilismo.
As sombras vaidosas se mancomunam, para se desculparem no número, fugindo às íntimas sanções da conciencia; domesticada, são incapazes de gestos viris; falta-lhes coragem.
A dignidade implica valor moral. Os pusilânimes são impotentes, como os atordoados; uns refletem, quando convém agir, os outros agem, sem refletir. A insuficiência do esforço equivale à desorientação do impulso; o mérito das ações é medido pelo afã que requerem, e não pelos seus resultados. Sem coragem não há honra.
Todas as suas formas implicam dignidade e virtude. Com seu auxílio, os sábios acometem a exploracão do desconhecido: os moralistas minam as sórdidas fontes do mal: os ousados se arriscam para violar a altura e a extensão: os justos se acrisolam na sorte adversa; os firmes resistem à tentação, e os severos, ao vício; os mártires vão para a fogueira, por desmascarar uma hipocrisia; os santos morrem por um ideal.
Para aspirar a uma perfeição, é indispensável: "a coragem — sentenciou Lamartine — é a primeira das eloqüências é a eloqüência do caráter".
Nobre conceito! Aquele que aspira a ser águia, deve olhar para longe, e voar alto; aquele que se resigna a arrastar-se, como gusano, renuncia ao direito de protestar, se o esmagarem.
A debilidade e a ignorância favorecem a domesticação dos caracteres medíocres, adaptando-se à vida mansa; a coragem e a cultura exaltam a personalidade dos excelentes, engrinaldando-a com a dignidade.
O lacaio pede, o digno merece: aquele solicita, por favor, o que este espera, por mérito.
Ser digno significa não pedir o que se merece: nem aceitar o imerecido. Enquanto os servís sobem, por entre as malhas do favoritismo, os austeros ascendem pela escadaria das suas virtudes, ou então, por nenhuma.
A dignidade estimula toda perfeição do homem; a vaidade esporea qualquer êxito da sombra.
O digno escreveu um lema em seu brazão: o que tem por preço uma partícvua de honra, é caro.
O pão ensopado na adulação, que engorda o servil, envenena o digno. Este prefere perder um direito, a obter um favor; mil danos lhes serão mais leves, do que medrar indignamente. Qualquer ferida é transitória e pode doer uma hora; a mais leve domesticidade dará um remorso que durará toda a vida.
Quando o êxito não depende dos próprios méritos, basta-lhe conserva-se erguido, incólume, irrevogável na própria dignidade. Nas liças domésticas, a obstinada falta de razão sói triunfar do mérito sorridente; a pertinácia do indigno é proporcional ao seu engelhamento.
Os homens exemplares desdenham qualquer favor; julgam-se superiores ao que pode ser dado sem mérito. Preferem viver crucificados sobre o seu orgulho, a prosperar de rastros; desejariam que, ao morrer, o seu ideal os acompanhasse, vestido de branco, e sem manchas de rebaixamentos, como se fossem desposá-los mais além da morte.
Os caracteres dignos permanecem solitários, sem trazer na anca nenhu’a marca de ferro. São como gado levantino que focinha os tenros trevos da campina virgem, sem aceitar a fácil ração das mangedouras. Se a pradaria é árida, pouco importa; no oxigênio livre, êle aproveita mais do que em cevas copiosas, com a vantagem de que aquele é tomado, ao passo que estas são recebidas de alguém. Preferem estar sós, enquanto não podem estar com os seus iguais.
Toda flor englabada em um ramalhete, perde o seu perfume próprio. Obrigado a viver entre dissemelhantes, o digno se mantém alheio a toda estima inferior.
Descartes disse que passeava entre os homens, como se fosse entre árvores, e Bainville escreveu de Gautier:
"Era daqueles que, sob todos os regimes, são necessárias e invencivelmente livres; cumpria a sua obra com desdenhosa altivez, e com a firme resignação de um deus desterrado".
O homem digno ignora as cobardias que dormem nos fundos dos caracteres servis; não sabe desarticular a sua cerviz. Seu respeito para com o mérito o obriga a desacatar toda sombra que carece dele, a agredi-la, se ameaça; a castigá-la, se fere. Quando a multidão que destrói os seus anelos, é anódina, e não tem adversários para ferir de frente, o digno se refugia em si mesmo, se entrincheira em seus ideais, e cala, temendo perturbar, com as suas palavras, as sombras que escutam. E até que mude o clima, como é fatal na alternativa das estações, espera, ancorado em seu orgulho, como se este fosse o porto natural e mais seguro para a sua dignidade.
Vive com a obsessão de não depender de pessoa al guma; sabe que, sem independência material, a honra está exposta a mil ciladas, e, para adquiri-la, suporta os mais rudes trabalhos, cujo fruto será a sua liberdade no porvir.
Todo parasita é um lacaio; todo mendigo é um domesticado. O faminto pode ser um rebelde; não é nunca um homem livre. A miséria é a inimiga poderosa da dignidade: esmigalha os caracteres vacilantes, e incuba os piores servilismos. Aquele que atravessou dignamente o período da pobreza, é um heróico exemplar da caráter.
O pobre não pode viver a sua vida, por serem tan-os compromissos da sua indigência; redimir-se da miséria, é começar a viver. Todos os homens altivos vivem sonhando com uma modesta independência material; a miséria é a mordaça que trava a língua, e paraliza o coração. É preciso fugir às suas garras, para poder eleger o ideal mais alto, o trabalho mais agradável, a mulher mais santa, os amigos mais leais, os horizontes mais rizonhos, o isolamento mais tranqünlo.
A pobreza impõe o arrolamento social; o indivíduo se inscreve em um grêmio, mais ou menos jornaleiro, mais ou menos funcionário, contraindo dívidas, e sofrendo pressões denigrativas, que o impelem à domesticidade.
Os estoicos ensinavem os segredos da dignidade: contentar-se com o que tem, restringindo as próprias necessidades. Um homem livre não espera nada de outros, nem precisa pedir. A felicidade que o dinheiro dá, está em não ser obrigado a pensar nele: por ignorar este preceito, o avaro não é livre, nem feliz.
Os bens que temos, são a base da nosso independência: os bens que desejamos, são o anes da corrente que nos liga à escravidão. A fortuna aumenta a liberdade dos espíritos cultos, e torna vergonhoso o ridículo dos papalvos. É suprema a indignidade dos que adulam tendo fortuna: esta os redimiria de todas as domesticidades, se não fossem escravos da vaidade.
Os únicos bens intangíveis são aqueles que se acumulam no cérebro e no coração; quando estes faltam, nenhum tesouro os substitui.
Os orgulhosos têm o culto da sua dignidade; querem possui-la imaculada, livre de remorsos, sem franquezas que a envileçam ou rebaixem. Por ela, sacrificam, bens, honrarias, êxitos: tudo o que é próprio ao crescimento da sua sombra. Para conservar a estima de si mesmos, não vacilam em afrontar a opinião dos mansos, e investir contra os seus preconceitos passam por indisciplinados ou perigosos, entre os que inutilmente tentam malear a sua altivez. São raros, nas mediocra-cias, cuja chatice moral os expõe à misantropia; têm certo ar de desdém, certo ar aristocrático, que desagrada os vaidosos mais culminantes, pois os humilha e envergonha.
"Inflexíveis e tenazes, porque trazem no coração uma fé sem dúvida, uma convicção que não trepida, uma energia indómita que não cede, nem teme coisa alguma, costumam manifestar asperezas articantes para como os homens amorfos. Em alguns casos, podem ser al-1 mistas, ou porque são cristãos, na mais alta acepção do vocábulo, ou porque são profundamente afetivos: apre-Bentam, então, um dos caracteres mais sublimes, mais esplendidamente belos, que tanto honram a natureza humana. São os santos da honra, os poetas da dignidade. Sendo heróis, perdoam as cobardias dos outros; sempre vitoriosos em face de si mesmo, compadecem-se dos que, na batalha da vida, semeiam, feita em pedaços, a sua própria dignidade. Se a estatística nos pudesse dizer o número dos homens que possuem este caráter, em cada nação, essa cifra bastaria, por si só, melhor do que qualquer outra, para nos indicar o valor moral de um povo".
A dignidade, afã de autonomia, leva a reduzir a dependência de outros à medida do indispensável, sempre enorme.
La Bruyère, que viveu como intruso, na demosticida-de cortezã do seu século, soube medir o altíssimo preceito que encabeça o Manual, de Epíteto, a ponto de se apropriar dele textualmente, sem diminuir, com isso, a sua própria glória:
"Se faire valoir par de choses que ne dependent point des autres, mais de soi seul, ou renoncer à se faire valoir".
Esta máxima lhe parece inestimável e de recursos infinitos na vida, útil para os virtuosos e para os que têm engenho, tesouro intrínseco dos caracteres excelentes; é, entretanto, proscrita dos mundos onde reina a mediocridade, "pois desterraria das Cortes as tretas, as maledicências, os maus ofícios, a baixeza, a adulação, as intrigas".
As nações não se encheriam de servis domesticados, sinão de varões excelentes que legariam, aos seus filhos, menos vaidades e mais nobres exemplos. Amando os próprios méritos, mais ainda do que a própria prosperidade indecorosa, cresceria o amor à virtude, o desejo da glória, o culto dos ideais de perfeição incessante: na admiração pelos gênios, pelos santos e pelos heróis.
Essa dignificação moral dos homens assinalaria, na história, o ocaso das sombras.
Fonte: Livraria Paratodos, 1953
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