Continued from: A FILOSOFIA DOS PRÉ-SOCRÁTICOS - História da Filosofia na Antiguidade - Hirschberger

2 — MILÉSIOS E PITAGÓRICOS: MATÉRIA   E   FORMA

O berço da Filosofia grega foi a Jônia,
nas costas da Ásia-Menor. É Mileto, Éfeso, Clazomenas, Colofônia, Samos onde se
encontram a maior parte dos pré-socráticos, sendo por isso a Filosofia
pré-socrática chamada também jônica. Seu interesse capital está, como foi
muitas vezes assinalado, na questão da natureza; e costuma-se por isso designar
essa Filosofia como Filosofia da natureza. A consideração da natureza ocupa
aqui, de fato, o lugar primordial. Mais justo seria, po-rém, falar de
metafísica em lugar de Filosofia natural; pois o tema do fundamento primeiro e
dos elementos significa, em geral, o dos princípios do ser. O de que se trata é
de explicar a essência do ser como tal e não da simples verificação da matéria
última constitutiva dos corpos naturais.

A.   Os Milésios

Mileto abre
a série deles.   Pertencem-lhe os três primeiros pré-socráticos:  Tales,  Anaximandro e Anaxímenes.

a)    Tales
de Mileto (ca. 624-546).

A antigüidade o tem na conta de um dos
sete sábios; Aristóteles lhe
chama (Met. A, 3; 983 b 20) o pai da Filosofia; e Platão narra, a seu propósito, Teet. 174a) a história da
rapariga trácia, que dele se rira por que, abismado na consideração das coisas
supraterrenas, caiu num poço, tendo feito assim a má figura de, querendo
ministrar aos homens uma doutrina elevada, não ter sequer visto o que lhe
estava debaixo dos pés. Mau agouro para toda a raça dos filósofos? Mas êle não
era na verdade tão pouco prático. Dirigia em Mileto uma escola de náutica,
construiu um canal para desviar as águas do Halis e deu bons e aproveitáveis
conselhos políticos.

α) A água como "arché"
E a sua Filosofia? Aristóteles refere:
A maior parte dos que começaram a filosofar buscavam o princípio primeiro (αρχαι
principia)
no domínio da matéria. Estes princípios primeiros devem
constituir a essência (ουσια) própria das coisas;
deles elas nascem e para eles retornam. Eram-lhes, portanto, os
"elementos" (στοιχεια). Todo
ser individual seria, portanto, apenas uma manifestação (παθοζ)
deste ser propriamente primitivo. Quanto ao que fosse a "arché", eram
várias as explicações de cada pensador. Tales
atribuía o princípio de tudo à água (Met. A, 3). Por que precisamente a
água, já Aristóteles mesmo não o
sabia com segurança. Mas também isto não é muito importante.

β) "Sapiência". — O que constitui a obra meritória do milésio é, antes, o conceito do
fundamento primeiro de todo o ser, que êle foi o primeiro a estabelecer. Aristóteles disse que o objeto da
metafísica (Met. A, 2) está em se ocupar ela, não mais, como as ciências, com
partes do ser, mas com o ser como tal na sua generalidade; em buscar-lhe os
fundamentos primeiros; e ela assim se confina num terreno obscuro e  difícil
e expõe uma  ciência que não é buscada por meridional, onde deve ter
principalmente desenvolvido a sua atividade. Transferiu-se finalmente para
Metaponto, onde morreu em 496. Heráclito
o reconhece como "o mais sábio de todos os homens", chamando-lhe,
porém, "o pai das patranhas". Este duro apelativo talvez tenha-se
originado da oposição entre as respectivas cosmologias. O pai do princípio do
"fluxo de tudo" não dá lugar para um mundo de verdades eternas, como
é o reino dos números. Assim também, modernamente, Nietzsche apodou todo idealismo de "sublimada
pa-tranha". Platão, ao
contrário, testemunha: "Pitágoras mesmo
foi grandemente honrado, por causa de seu gênero de vida. B também os seus
sequazes, que ainda hoje falam do gênero de vida pitagórico, aparecem como
singulares entre os outros homens". (Rep. 600 b). Mais particularidades,
porém, ignoramos a respeito de Pitágoras.
Sua personalidade está envolta pela lenda. Parece nada haver escrito.
Mas reuniu em der-redor de si um grupo de homens, numa espécie de liga secreta
ou ordem, que se conservavam apegados às opiniões do mestre e as disseminavam
oralmente. A liga se apresentava como filosófico-científica e ético-religiosa,
com uma tonalidade fortemente ascética. Da conservação espiritual deste círculo
podemos, retrocedendo, concluir que Pitágoras
se movia na direção do dualismo órfico, aceitava a metempsicose órfica,
desenvolvia um interesse’ científico universal e deve ter tido uma pronunciada
natureza de chefe moral e político.

β) A liga antiga. — à liga fundada e dirigida ainda pelo
próprio Pitágoras, em Orotona,
nós lhe chamamos "a liga pitagórica antiga". Fazia parte dela o
célebre médico Alcmeão de Crotona, que já tinha reconhecido o cérebro como o
órgão psíquico central, bem como o astrônomo Filolau,
que já antes do começo dos tempos modernos sabia que a terra não está no
centro do mundo. Na segunda metade do século V, esta
liga, que manifestava uma assinalada estrutura espiritual aristocrática e
gozava de grande autoridade, foi destruída pelo partido democrático, mas logo a
seguir restaurada.

γ) A liga posterior, — Esta
liga pitagórica "tinha sua sede em Tarento onde subsistiu até ao fim do IV século. Aos membros dessa liga mais recente e só a eles se
refere Aristóteles, quando fala
dos "chamados pitagóricos" da Itália. Mas nela, de novo, se distinguiram
duas direções; de um lado, os "acusmáticos" ou
"pitagoristas" (
πυθαγορισται), que,
conservadores, só atendiam as
tradicionais regras de vida, seguiam–nas de modo estritamente ascético,
abstendo-se de carne, peixe, vinho e favas, não tomando banhos, nada concedendo
à cultura e às ciências e vivendo uma vida errante e mendicante. E de outro
lado, os "matemáticos", que cultivavam a antiga aristocracia
espiritual da primitiva liga e prezavam altamente a Filosofia e as ciências, em
particular a música, a matemática, a geometria, a astronomia e a medicina.  
Entre eles se contam  Arquitas  de
Tarento,   amigo  de  Platão,   Hicbtas 
de Siracusa, bem’ como os pitagóricos Ecfanto
e Heraclides Pôntico da
Antiga Academia; desses, os três últimos já ensinavam que a terra gira em torno
do próprio eixo.    Por Heraclides
Pôntico foi mais tarde influenciado, através de Estratão de Lâmpsaeo,  o peripatético Aristarco de  Samos,  que ensinava não somente o movimento de
rotação da terra, mas ainda o de translação na eclíptica, teoria que Seleuco de Selêucia (c. 150 a. C.), o
"Copérnico da antigüidade", fortaleceu então cientificamente.

b)    Gênero   de   vida   pitagórica

A fisionomia  espiritual  interna dos pitagóricos constitui
um gênero  de vida formalmente próprio   (βιοζ
πυθαγορειοζ). O fundo
deste estilo de vida é constituído pela doutrina de origem órfica, cia
transmigração das almas: a alma se origina de um outro mundo e, tendo pecado,
deve agora, jungida ao corpo, levar uma vida de expiação e errante, até chegar,
libertada do corpo e do sensível, ser de novo totalmente espírito. O corpo é o
sepulcro da alma (σωμα— σεμα).  
Importa então trilhar o caminho da purificação.   Este compreende: a ascese
(preceitos do jejum, do silêncio, exame de consciência à noite sobre os seus
atos diurnos bons e maus), o trabalho intelectual,  sobretudo Filosofia  e
matemática,  pelo qual o homem deve purificar-se dos  sentidos  e 
espiritualizar-se;  a cultura da música, menos pela sua capacidade de alegrar
do que pela formação harmônica que dá ao homem, pela sua harmonia e
regularidade; e a ginástica, que proporciona a ocasião de submeter o corpo â
disciplina do espírito.   Característico do estilo. de vida pitagórico é, 
além  disso,  o ideal da amizade e da irmandade entre todos os homens.   Também
resultado da cultura dos valores da alma e do espírito;  Tudo isso fala de uma
forte e ideal concepção de vida.

c)    Metafísica    dos    pitagóricos

α) Número; peras e apeiron;
harmonia e cosmos.
— Na metafísica, ficaram famosos os pitagóricos pela sua
doutrina, de que o número é a arché de todas as coisas. Assim, o princípio do
ser já não é, como até aqui, a matéria, mas a forma. É o número que dá a forma,
e determina o indeterminado. Isto pelo menos é o que se pode concluir com
segurança da notícia de Aristóteles sobre
os pitagóricos (Met. A, 5), embora não seja de todo claro; pois, as suas teses
sobre os últimos elementos do número, o determinante (περαζ)
e o indeterminado (απειτον), indicam esse
sentido. Temos agora dois princípios — peras e apeiron. Mas o
mais importante é o peras, que faz o número ser tal, sendo então o
princípio donde os pitagóricos tiram a sua metafísica: "grande, perfeição
e causa de tudo, celeste como o fundamento último e o guia da vida humana,
participante de tudo, tal é a força do número… sem este, tudo é ilimitado,
obscuro e invisível" (44 B 11). Muito simples deve ter sido a observação
que conduziu a esse pensamento. Na música podia ver-se como os vários tons
conservam cada um uma determinada relação com o comprimento das cordas; e
sobretudo as harmonias dos tons se caracterizam por meio de relações fixas e
numéricas. Os números de vibrações da oitava se relacionam com o tom fundamental
como 2:1; os da quinta como 3:2; os da quarta como 4:3. Ousada e genial foi a
aplicação desta teoria ao ser em geral. "Segundo os pitagóricos",
informa Aristóteles (Met. A, 5;
986 a 3), "toda a abóbada celeste é harmonia e número". Esta teoria
foi o primeiro impulso, na história do espírito, para a questão sempre renovada
da harmonia das esferas.

β) O grande ano cósmico.
Grande importância tem o pensamento da harmonia, para a doutrina pitagórica do
grande ano cósmico. Consoante a ela, o processo cósmico não se realiza em linha
reta, mas se cumpre em grandes ciclos. Os astros e o sistema do mundo sempre e
de novo voltam ao seu lugar, e o relógio do mundo recomeça o seu curso, de
eternidade a eternidade. Esta eterna repetição de todas as coisas se reproduz
até nos mínimos detalhes. "Estarei de novo em pé, na vossa presença, com
um bastão a vos ensinar", refere-se tê-lo  dito Pitágoras.   A doutrina  da eterna  repetição cíclica de todas
as coisas levou a uma expressão culminante a idéia do cosmos. Mas ela se
estende também a outras esferas — à psicologia, à ética, à Filosofia do direito
e do Estado: "Os sábios ensinam que o céu e a terra, os deuses e a
comunidade dos homens se ajustam entre si, e a amizade e a ordem, e a medida e
a justiça; donde o darmos a tudo isto o nome de cosmos" (Platão, Gorg., 508 a). A base
porém da concepção do mundo é, para os pitagóricos, o número.

γ) O especificamente novo
Quão fecundo foi o princípio do número na história do espírito mostra-o o
desenvolvimento da moderna ciência da natureza, que cada vez mais vive do
número. "A descoberta pitagórica pertence aos mais fortes impulsos da
ciência humana… se, à estrutura matemática, como âmago do universo, se
atribui uma harmonia musical, então deve também a ordem inteligente da natureza
que nos circunda encontrar o seu fundamento em o núcleo matemático das leis da
natureza" (Hetsenberg). Mas
que as coisas sejam somente número, isso não o ensinavam os pitagóricos.
Notícias que atribuem à doutrina pitagórica serem as coisas número são de uma
expressão sucinta e não devem ser exageradas. Pois os pitagóricos punham, ao
lado do limitado, o ilimitado, na suposição de que, onde sempre há número e
forma, também deve haver numerado e matéria, se devem o número e a forma ter um
sentido.

Os pitagóricos significam um
necessário complemento em face dos Milêsios. Estes se referem sempre e somente
ao que constitui o fundamento comum de todas as coisas, sem compreenderem que
também o modo de ser peculiar de cada coisa deve receber a sua explicação. Não
devemos somente perguntar donde procederam as coisas, mas ainda o que foi
feito da matéria primitiva e como essa realidade se explica. A última questão
levaram-na em conta os pitagóricos, sem desprezar a primeira. Eles, pela
primeira vez, colocavam no seu lugar exato a forma, que estrutura a matéria.

d)   Bibliografia

E.  FRANK,   Plato  und‘   die
sogennanten Pythagoreer   
(Platão e os assim chamados pitagóricos 
(1923).   K. Kerényí, Pythagoras
und Orpheus  (Amsterdam 1939
),   K.  v.   FRIitZ, Pythagorean Politics in Southern Italy (N. Y.
1940). E. Schrödinger, Die
Natur und die Grie chen. Kosmos und Physik
(A Natureza e os Gregos. Cosmos
e Física) (1956). M. Timpanaro-Cardini, I Pitagorici.
Testimonianze
e fra-menti   (Firenze,
1958).

 

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