EMBU E SEUS FANTASMAS – lenda na igreja jesuíta

EMBU E SEUS FANTASMAS (Reportagens antigas)

Ainda lembro daquele fim de semana em que fui conhecer Embu, já no fim da Grande Guerra. No kilómetro 27 do estradão de Itapecerica, um caminho foge à esquerda e grimpa pelos penhascos. Ali há uma cachoeira de águas escuras que, saltando sobre as pedras, se fazem prateadas. Ao alto, uma tabuleta: "Fonte dos Jesuítas".

Espera-se fazer do vilarejo de Fernão Dias uma estação de repouso. A água da cachoeira reponta do outro lado do caminho e se despenha por uma escada de pedras, com queixume embalador. Mais alguns passos e diante do turista inexperiente aparece a primeira rua da localidade. É uma ladeira. Entardece. O sol bate de viés, as sombras se espicham no macadam. Cachorros dormem nas soleiras das portas. São raros os transeuntes.

Mas de um lado e outro da ladeira as janelas se animam: são as mulheres que desejam ver passar o Nenrod, o Brazza, o Rondon daquele "weekend". No Cartório de Paz há certo movimento. No Embu os rapazes e as moças se casam; é o modo mais corriqueiro de acontecer alguma coisa na localidade.

Galgo a ladeira sempre pelo lado da sombra, que o sol, mesmo em declínio, ainda é uma brasa. Vou subindo, vou subindo. De repente, desemboco no imenso largo cercado de muros velhos e de casinhas baixas. Ao centro, ergue-se a igreja de Nossa Senhora do Rosário, tendo ao lado a casa de residência dos padres. É toda branca, com quatro janelas. Ao centro, lá em cima, uma torre que mal parece torre, com um sino que mal parece sino. A porta do templo é de madeira com almofadas esculpidas. O sol alumia de lado, estendendo na praça sombras azuladas. No Embu os anjos esvoaçam ao alcance de nossas mãos, como passarinhos tontos.

A história mistura-se com a lenda. Torna-se difícil apartar uma da outra. A construção daquela igreja data do século XVI, no tempo e em que os colonos, não podendo levar as riquezas para a sepultura, deixavam-nas em testamento aos jesuítas, para que os santos clérigos rezassem centenas, milhares de missas por intenção de suas almas inocentes.

Embu era fazenda de Fernão Dias. No entanto, nos assentamentos da localidade, não é o nome dele que aparece mas o de sua esposa Catarina Camacho. Em 1624, o casal legou terras, gado e escravos ao Colégio Santo Inácio, de São Paulo. Já antes, tinham mandado para a Companhia de Jesus um filho: o inefável Malagueta. Na fazenda, existia uma capela. O padre Belchior de Fontes, mandado pelo Colégio para tomar posse da aldeia, procurou outro lugar mais afeiçoado e aí iniciou a construção desta igreja de Nossa Senhora do Rosário, base de um monumento histórico que foi levado a efeito em cinco etapas.

Mais tarde, o padre Manuel Fonseca, sucessor e biógrafo do padre Belchior de Fontes, acrescentou à igreja novas construções. E o edificio só ficou concluído, ao que parece, no fim do século XVIII.

Nunca foi convento; apenas uma igreja, tendo ao lado a casa da fazenda que servia de residência dos padres. Os jesuítas dedicaram aquelas terras à agricultura e ao pastoreio. Após a sua expulsão, ali foram encontradas algumas vacas. E, segundo acrescenta a lenda, na hora aflita da "botada", ou da "botada fora", como se dizia então, eles atiraram naquela lagoa próxima alguns potes de barro atestados de cunhetes de ouro. Desde esse tempo, muita gente tem procurado o sobredito tesouro no túmulo das águas escuras, mas só têm encontrado guarus. ..

O templo é vasto, escuro e frio como os que nos chegaram do passado. A nave era de chão batido, com bancos de madeira, mas eu a encontrei já bem melhorada. Há três altares, um central e dois laterais. Estes últimos são muito bonitos para o tempo, com as águias dos reis de Castela, trazidas para cá nos meados do século XVII. O preclaro Taunay acredita que esses dois altares pertenceram à Igreja do Colégio, em São Paulo, que pouco antes fora reconstruída. Da mesma procedência devem ser os dois leões e os quatro anjos de estilo barroco.

O edifício ao lado é de grossas paredes ladeando compridos corredores com portas em aberto para celas, naturalmente destinadas aos clérigos itinerantes. Mas a nota cara-terística do templo foi dada pelo padre Macaré, vigário colado dessa paróquia, que faleceu cego em 1840. Muitas das imagens que ali se encontram são de sua fábrica. E, com certeza, aquela vasta mesa de uma só prancha, esculpida, saiu das mãos inspiradas do curioso imaginário.

Durante muitos anos as coisas não correram muito bem para Embu. No tempo do bispo Dom Manuel, "era pároco desta aldeia Inácio Rodrigues Barbosa, natural deste bispado, de idade de sessenta anos, muito exemplar e virtuoso. Do trabalho dos índios e rendimentos da aldeia se lhe fêz côngrua anual de sessenta mil réis para sua sustentação e guisamentos; porém, há muita falência no pagamento esta limitada porção".

Por isso o templo entrou em decadência, assim chegando . até os primeiros anos do nosso século. Entre as pessoas que se interessaram pela sua restauração, conta-se o saudoso Dr. Washington Luís que, para tal fim, adotou as primeiras medidas, aliás de pouca monta. O casarão que estava em ruinas continuou um pouco menos em ruinas. Só em 1939 a questão foi encarada de frente. O Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, tendo à sua frente em São Paulo a figura inesquecível de Mário de Andrade, arregaçou as mangas e restaurou de fato a igreja de Nossa Senhora do Rosário, assim como a casa contígua.

Quando lá estive, Embu era um centro de romaria de crentes, artistas e estudiosos. Os objetos de culto e demais antigüidades existentes foram reunidos num museu franqueado ao público. Lá se podem admirar peças assaz interessantes. Das imagens articuladas, de cabeça, braços e pernas móveis, à mesa esculpida numa prancha; do tambor indígena às velhas pinturas da igreja, escondidas nos nichos. E aquela cômoda de priscas eras a que bem se poderia chamar de vestiário, pois lá estão guardados os trajes que, dentro de piedoso ritual, os habitantes de Embu vão periodicamente vestir nas sagradas esculturas.

Nesses dias, há grandes festas. Os santos são lavados, penteados e vestidos, voltando logo para suas peanhas. A população se movimenta para essa solenidade tradicional. Lá chegam romeiros de pontos distantes do Estado. E, já agora, devido às facilidades do transporte e às noticias da imprensa e do rádio, de lugares ainda mais remotos. Uns pela fé, outros para "veer algo de nuevo".

Quando lá estive, depois da última Grande Guerra, o museu tinha como zelador o sr. Osvaldo de Sousa. Trata-se de um compositor popular que certo dia foi a Embu, para fixar as músicas folclóricas de suas festas. Chegou, gostou e ficou. Acabou por fixar residência na localidade, desempenhando com zelo as atribuições que lhe foram atribuídas.

Na viagem de regresso, o jornalista Nelson Mota contou-me algumas das lendas que se repetem em Embu, ou seja a velha aldeia de M’Boy. Disse-me êle:

— Está vendo aquelas casinhas velhas? Elas datam do tempo das bandeiras. Os índios, ao serem expulsos daqui, rogaram uma praga. E os pardieiros permanecem como estavam naquele dia. Não desabam, não viram tapera, mas não suportam moradores. Quem nelas se instala, ou foge ou acaba mal. Isso se dá com boa parte da vila. Como em São Miguel, em Carapicuiba, em Santo Amaro. Por isso é que tais localidades, tão próximas da Capital, ficam emboloradas, não progridem.

Em outros tempos, o Tinhoso, em carne e osso, andava por aí. Certo dia, o padre Belchior de Pontes, não podendo catequizar os índios por causa das suas tentações, perdeu a paciência. Mandou o santeiro esculpir a figura do Demo, de corpo inteiro. Vestiu-o de vermelho, engarfou-o no lombo de um burro. E, por seu lado, montou num cavalo. Ao escurecer sairam pelos caminhos. O Diabo na frente, o Padre atrás. O povo vendo aquilo, fêz o pelo-sinal. Seria que •o padre tinha ficado maluco?

Quando chegaram à porta de Nossa Senhora do Rosário, o Diabo virou gente. Saltou do burro, rinchavelhou, saracoteou no adro. E a molecada — pernas para que vos quero? — abriu o pala. .. Mas logo aconteceu que o Diabo se pôs a bater no padre. Este pediu socorro, em altos gritos. Então o povo de Embu ficou com pena dele e correu a salvá-lo. Deu combate ao Coisa Ruim. Lutou-se bravamente e ao cabo da batalha, Satanás foi vencido. Os mais valentes amarraram-no num mourão, cortaram-lhe o rabo, quebraram-lhe os chifres. De noite, fizeram uma fogueira e moquearam o Diabo. Por essa e outras partidas, êle nunca mais apareceu em Embu. Embu tornou-se terra feliz.

Mas, apezar de tudo, tem a procissão de Sexta-feira. Não é na Sexta-feira Maior nem na Sexta-feira Menor. E’ numa Sexta-Feira que a gente ainda não averiguou. Da igreja^ meia noite, sai uma procissão de esqueletos, carregando andores, resmungando cantochão. Ela atravessa a localidade, vai à água escura onde deve estar o tesouro atirado pelos jesuítas na hora aflita do "botada fora" e, depois, se recolhe ao cemitério da beira da estrada. Afirma-se que são os padres que atiraram as riquezas no poço; não poderão entrar no céu enquanto os potes de ouro lá estiverem, no fundo do poço.

E a Mãe d’Água? Em certas noites, ouve-se um estrondo no morro. A seguir uma bola de ouro, muito brilhante, faz o caminho do arco-irís e vai cair em outro morro, onde também há minas encantadas…

Afonso Schmidt

Fonte: Estórias e Lendas de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. Tomo I. Seleção de Alceu Maynard Araújo e Vasco José Taborda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962

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