Continued from: Enfeites e adornos artísticos - História da Arte
* Gioconda — Museu do Louvre — Paris — França
LEONARDO DA VINCI -Resumo da biografia
LEONARDO DA VINCI — Pintor, escultor, naturalista, físico, músico e arquiteto italiano. Nasceu em Florença, a 15 de abril de 1452, e faleceu no Castelo de Cloux, França, em 2 de maio de 1519. A educação de Da Vinci decorreu em Florença de onde passou a Milão. Desempenhou várias atividades: pintor, arquiteto, músico, mestre-de-cerimô-nias, técnico em balística, etc. Dedicou-se aos engenhos de guerra, aos planos de irrigação artificial, com a mesma perfeição com que pintou a Última Ceia. Suas atividades são interrompidas pela invasão dos franceses ao norte da Itália. Uniu-se nesta ocasião a César Bórgia e finalmente partiu para Florença, onde iniciõiFMowa Lisa, a célebre La Gioconda. Quase no fim de sua vida agitada, aceitou a proteção dos invasores franceses na pessoa de Francisco I, retirando-se ao Castelo de Cloux. Deixou rico patrimônio cultural: La Gioconda; A Virgem de Santana; A Virgem das Roclias; A Adoração dos Reis Magos; Baco; A Batalha de Anchiari; São João Batista e mais uma dezena de obras-primas que ainda hoje são admiradas nos museus da Europa, além de afrescos, tratados sobre Física, Filosofia, Pintura, História Natural, etc. Inegavelmente foi um gênio poliédrico, pois que conseguiu se destacar em todos os campos da atividade humana. Para ele, bastava que um seu invento demonstrasse ser exato, abandonava-o para iniciar outra atividade. Desde o mais modesto invento até os mais arrojados, Leonardo da Vinci demonstrou sempre o seu gênio. Foi sem dúvida o precursor da aviação, pois seus estudos a respeito do vôo das grandes aves, serviram de base aos que se dedicaram ao levantamento no espaço do mais pesado do que o ar. Deixou também planos para a construção do helicóptero. Foi anatomista inexcedível, tendo sido o primeiro homem a dissecar cadáveres para o estudo completo da Osteología, Miologia e Artrologia. Combatido muitas vezes porque era um homem de idéias avançadíssi-mas para a época, foi cognominado de O Bruxo. Ainda hoje nos assombra a majestade desse gênio sem igual na história da Humanidade.
Vamos passar a resumir nossas pesquisas sobre a significação das cicatrizes e tatuagens dos povos primitivos. Esses desenhos representam, em parte, sinais de tribos. Como tais, podem ter, às vezes, uma significação religiosa, embora não possamos provar essa asserção por nenhum dos casos estudados. De outro lado — e é o caso mais freqüente – cicatrizes e tatuagens servem de ornamento. Nada nos induz à crença de que as marcas ornamentais sejam de origem mais recente que as sociais. Ao contrário, se uma das duas funções é anterior à outra, será certamente a estética. A necessidade do adorno é uma das mais antigas e poderosas no homem, existindo provavelmente antes da formação da tribo ou do clã. Em todo caso, a lenta transformação de cicatrizes ornamentais em marcas sociais parece-nos mais natural que a evolução regressiva delas para simples cicatrizes ornamentais. De resto, nada nos impede de acreditar em que os dois grupos se tenham desenvolvido independentemente.
Os botocudos e os fueguinos desconhecem a tatuagem e a escarificação. Entre os primeiros, porém, encontramos uma outra espécie de enfeite, aliás, muito difundida: os botoques, que se colocam nas orelhas e nos lábios e a que essa tribo deve seu nome. Aos oito anos, adornam-se as crianças com esse enfeite53. Primeiramente, abrem-se-lhes furos em forma de botoeira no lábio inferior e no lóbulo da orelha. Em seguida, colocam-se aí discos de madeira leve. Algum tempo depois, substituem-se esses discos por outros maiores, e assim por diante, até atingir discos de 4 dedos de diâmetro54. Sem dúvida, esses discos, que alcançam as dimensões indicadas somente entre os botocudos, representam em primeiro lugar marcas de tribo. Resta saber se os indígenas os consideram também adorno. Em todo caso, não é possível que o aspecto desse enfeite produza nos botocudos a impressão desagradável que causa aos europeus. De outra forma, não andariam certos nesse costume doloroso e pouco cômodo. Mas, talvez lhes tenha deixado de ser desagradável, em virtude do hábito. Ou talvez o inventaram originariamente para atemorizar os inimigos. Se as coisas se passaram desse modo, os botocudos a princípio não teriam considerado os botoques como adornos, no que se teriam transformado pouco a pouco, sobretudo pela influência de certas associações ligadas aos sinais de tribo. De outro lado, poderia atribuir-se-lhes um certo valor como sinais visíveis da coragem das pessoas que os usam. Nesse caso, seriam as incisões os verdadeiros enfeites e os discos serviriam apenas para dar maior relevo às feridas, sinais de coragem. Todas essas interpretações são admissíveis. O certo é que os botocudos muito se orgulham de seus discos, pelo menos tanto que o escárneo dos europeus não conseguiu desacreditá-los.
Já dissemos que os botoques não se encontram apenas entre os botocudos. O seu uso é muito generalizado entre os indígenas da’ América, estendendo-se mesmo até os esquimós55. Se entre eles as mulheres se tatuam, os homens contam com outra maneira, não menos dolorosa, de embelezar-se. Furam o lábio inferior abaixo dos cantos da boca e aí introduzem um pedaço de osso, marfim, pedra, vidro ou madeira. Esse objeto tem a forma de um botão de punho. Aumentam a ferida, que a princípio tem o diâmetro de um canudo de pena, até atingir uma largura de três quartos de polegada inglesa. Bancroft diz que provavelmente esse adorno tem origem religiosa, pois a operação é acompanhada de festa religiosa56. A esse propósito, não logramos encontrar informações mais precisas.
Entre os demais povos caçadores, as formas de adorno imóvel, de que acabamos de falar, são pouco representadas ou não o são sequer. Os fueguinos e os mincópios não levam adorno nem no lábio nem no nariz. Mas, os bosquimanos usam-no nas orelhas. Os australianos, pelo menos certas tribos perfuram o septo para introduzir um osso ou um pedaço de madeira que se substitui por duas penas nas ocasiões solenes57. As mulheres do Murray inferior levam no nariz uma pequena argola, talhada em osso de asa de bútio58. A perfuração do septo faz parte das cerimônias da iniciação. Os indígenas do Gippsland acreditavam que todos os que não levassem adorno no nariz seriam submetidos, no outro mundo, a uma pena infamante59. Os que pretendem a todo custo ver nessa crença uma prova do sentido místico-religioso atribuído pelos australianos ao mencionado enfeite, provavelmente não têm em mente a seguinte consideração: a ameaça de punições celestes poderia ter sido inventada para assustar os candidatos irascíveis, não permitindo, pois, concluir com segurança sobre a significação original desses bastonetes, "que se levam atualmente como adorno, assegurando a seu proprietário a estima dos homens e das mulheres"60.
O estudo do adorno imóvel nos ensina que o homem é capaz de vencer a sua covardia por amor da vaidade. O adorno móvel demonstrar-nos-á que o homem é capaz de maiores sacrifícios ainda e vencer até a própria preguiça, não somente colecionando todos os objetos possíveis que na sua opinião possam servir para seu embelezamento, mas também dando prova de um cuidado e uma paciência completamente em desacordo com seus hábitos, na fabricação de colares, braceletes e outros ornamentos. Pode dizer-se, sem exagero, que o homem primitivo usa no corpo todos os ornamentos de que pode apoderar-se e que adorna todas as partes do corpo susceptíveis de enfeite. Lippert, em sua "Histoire de la civilisa-tion", obrerva muito judiciosamente "que o princípio segundo o qual se escolhem as partes do corpo destinadas ao enfeite, é um princípio prático e que se faz abstração de qualquer consideração de ordem ideal". "Destinam-se a levar adorno, diz ele, todos os lugares que formam encolhimentos acima das partes ósseas e musculosas mais largas. Esses lugares são os seguintes: a testa e a fronte, com os ossos que formam saliência em baixo e o suporte formado pelo pavilhão da orelha, o pescoço e os ombros, os flancos e as ancas. Nas pernas, a região situada acima dos tornozelos. Nos braços, o bíceps, o punho e, em menor escala, os dedos. O homem primitivo serve-se de todas essas partes para seus ornamentos. Entretanto, a escolha não depende de razões estéticas, mas de considerações puramente práticas".
O penteado, quando disposto em obediência a considerações estéticas, constitui a passagem do adorno imóvel ao móvel. Nem sempre, porém, os povos primitivos se submetem a influências estéticas na escolha de seu penteado. Se a arte de pentear se desenvolveu de modo fantástico entre os povos agricultores da África e Oceania, permaneceu, de outro lado, muito rudimentar entre os povos caçadores, alguns dos quais a ignoram inteiramente. Os fueguinos que deixam ao acaso sua cabeleira negra, cortam de tempos em tempos as mechas que lhes caem na testa. Trata-se, porém, de uma operação puramente prática. O penteado dos botocudos de ambos os sexos não encerra maior valor estético. Cortam e rapam, em volta da cabeça, uma faixa de cabelos da largura de três dedos, deixando apenas uma espécie de carapuça que cobre a região occipital. Ignoramos as razões dessa estranha cabeleira, que se encontra também entre os mincópios das ilhas Andamã, onde só os homens a adotam, estando longe de ser a moda seguida por todos. As mulheres, porém, rapam a cabeça toda, deixando duas faixas paralelas que vão do cimo do crânio à nuca61. Pode ser que esse penteado não passe de um símbolo da posição subordinada da mulher, pois a tonsura tem essa significação em muitos outros povos62. Poucos dos variados e numerosos penteados dos esquimós oferecem interesse estético63. Os das esquimós, entretanto, revelam claramente que devem antes de tudo agradar. A descrição de Boas pode aplicar-se a todas as tribos: "As mulheres arranjam seus penteados de dois modos. Fazem em primeiro lugar uma risca no meio. Reúnem os cabelos da parte posterior em uma mecha, formando saliência, ou dão-lhes nó. Aos lados, fazem tranças, que passam por cima das orelhas e são atadas ao nó da parte posterior da cabeça. Outra espécie de penteado consiste em pequenas tranças que vão um pouco além das orelhas. Um anel de bronze ou de marfim atados64.
A tonsura observa-se também entre os bosquimanos e freqüentemente entre as mulheres dessa raça. Ambos os sexos costumam untar os cabelos com uma mistura de ocre vermelho e gordura, de sorte que o crânio é, por assim dizer, coberto por uma casca quase sólida. Amiúde os homens esticam suas ralas mechas de cabelos — que no máximo atingem uma polegada inglesa de comprimento — atando-lhes caudas de lebres, plumas, botões de metal e outras coisas preciosas65. Deve confessar-se que os bosquimanos levaram o capricho do penteado tão longe quanto lhes foi possível.
Entretanto, não atingem a variedade que se verifica entre os australianos, cujos penteados constituem a obra-prima da arte capilar primitiva. As mulheres australianas deixam crescer desordenadamente os cabelos, da mesma forma que os fueguinos. Os tasmânios adotam a tonsura, mas os homens do continente australiano cuidam muito de seus penteados, sobretudo nas grandes ocasiões. Em toda a Austrália, empoam-se os cabelos com ocre vermelho, adorno que também estava muito em voga entre a população masculina da Tas-mânia. Às vezes usam tanto ocre vermelho e gordura na cabeça que os cabelos parecem uma pasta. Os habitantes do Queensland colocam cera nos cabelos, de modo que, ao sol, adquirem um brilho como se tivessem verniz60. Evidentemente, uma matéria tão bem preparada pode assumir formas muito artísticas. Nos anéis viscosos atam-se, pois, plumas, musgo, pinças de caranguejo e cobrem-nos com a plumagem branca dos cacatúas, ou, então, fazem com eles longos feixes, cada um dos quais adornado com um dente branco. Esses penteados assemelham–se bastante às obras-primas de Viti67. Adornam também a barba, a que prendem, às vezes, o rabo de um cão selvagem ou uma concha branca.
O adorno da cabeça "Kopf-putz") está tão estreitamente ligado ao penteado que em geral é impossível separá-los nitidamente. O estudo teórico de ve, pois, tender a separar exatamente o penteado, que é um adorno essencialmente imóvel, do enfeite da cabeça, que é móvel.
A peça mais importante do adorno da cabeça das populações primitivas é o frontal, que todos os povos caçadores apresentam, com exceção dos esquimós. Nas ilhas Andamã encontramo-lo em sua forma mais primitiva, isto é, uma folha de panda enrolada. A fita de couro de algumas tribos australianas é também inteiramente primitiva. Entretanto, a maioria dessas tribos enfeita a testa com faixas trançadas muito artisticamente com fi bras de origem vegetal ou tendões de canguru, e que, pinta dos de ocre vermelho ou branco, constituem um adorno muito bonito68. Os bosquimanos e os fueguinos usam igualmente faixas de pele ou de tendões. Os botocudos fabricam cordões com bagas negras brilhantes c dentes de macaco. O frontal, que mais tarde se tornou o símbolo da dignidade real, presta desse modo serviços práticos ao homem primitivo: impede que os cabelos caiam sobre a testa e serve ainda para ocultar o boomerang, uma flecha ou qualquer outro pequeno objeto69. Mas, é utilizado principalmente como adorno ou suporte deste. Na Austrália, amiúde, aos frontais atam-se dois pequenos pendentes de dentes de canguru, que caem sobre as frontes, e atrás, prende-se a cauda de um cão selvagem70. As tribos da costa setentrional da Austrália aí penduram com freqüência um disco de concha branca que vem apoiar-se na testa. Mas, o frontal prende também a parte mais preciosa do adorno: algumas penas pretas de casoar, a poupa amarela da cacatua, os tufos de pêlos das orelhas de uso, as penas das asas de uma ave de rapina, ou as maravilhosas plumas de um pássaro-lira71. Freqüentemente, empregam-se também imitações de penas, isto é, pedaços de madeira talhados que, de longe, muito se parecem com penas. Segundo Mitchell, que visitou as tribos de River Bo-gan, o frontal transformou-se, em algumas tribos da Austrália central, numa espécie de rede pequena que cobria toda a cabeleira dos homens e que na frente apresentava um feixe de plumas de cacatua branca. A forma mais original que o adorno da cabeça dos australianos assumiu é o "Oogee", usado pelos homens do cabo York, na dança do corrobori72. O "Oogee" é uma espécie de gorro em forma de capacete, feito de tecido de algodão e pintado de ocre vermelho; sobre cada orelha pende um tufo de plumas amarelas e brancas de cacatua, na direção da orelha oposta. Brough Smyth acrescentou à descrição pormenorizada que faz desse adorno um desenho que mostra claramente serem os australianos perfeitamente capazes de revelar muita paciência e habilidade, desde que se trate de enfeitar-se.
Os bosquimanos servem-se do frontal quase da mesma maneira que os australianos: penduram nele tiras de couro que levam pedaços de ovo de avestruz a que atam plumas. Baines observou extravagantes adornos na cabeça de dois bosquimanos, um dos quais trazia na testa a cabeça de uma ave de rapina, e o outro, a de uma gralha73. Sempre os adornos da cabeça fazem-se às expensas dos pássaros. O príncipe de Wied menciona que os botocudos prendem nos cabelos, acima da testa, duas espécies de leques, feitos de plumas de um amarelo brilhante74. Os fueguinos entrelaçam plumas com muita habilidade em seus frontais e desse modo apresentam belas coroas75.
A parte do corpo humano mais apropriada para adornos é o pescoço, que quase sempre é ricamente ornado. Amiúde, é a sua única veste. Portanto, através do adorno do pescoço podemos melhor esclarecer as relações que existem entre o enfeite e a veste, nos povos primitivos.
A única roupa que os fueguinos usam para proteger-se do frio, da tempestade e da umidade, é uma pele que, presa ao pescoço, pende sobre as costas. Mas, usam-na somente nos ombros, quando faz muito mau tempo. Em compensação, rara vez observa-se um homem que não tenha cordões ou fitas em volta do pescoço. Impressiona o contraste entre a riqueza de seu adorno e a pobreza de sua propriedade. Em nossos museus existem colares de pele de foca, cordões com ossos enfiados, dentes e conchas de diversas espécies, objetos tecidos com tendões de guanaco, golas de penas. E todas essas "inúteis futilidades" fabricam-se com o mes mo cuidado que as armas, empregadas na obtenção do alimento cotidiano76.
A mesma observação impõe–se, se estudarmos os bosqui manos. Ao lado do seu "ka ross", que apenas usam quando faz frio, possuem verdadeiras cargas de ornamentos, correntes de pérolas, compradas ou roubadas de seus vizinhos, os cafres, cordões feitos de tendões e pintados de ocre vermelho, em que penduram conchas, dentes, unhas, cara pacas de tartarugas, cornos de antílope e outros objetos, que servem ou de recipientes para o tabaco e unguentos ou de amuletos, mas, na maioria, de adorno77.
Entre os mincópios, que ignoram inteiramente o vestuário, Man encontrou no mínimo doze espécies de cordões e fitas presos ao pescoço de pessoas de ambos os sexos. Encontram–se aí fitas de folhas torcidas, espécie de malhas finas, feitas de fibras vegetais, cordões com conchas marinhas e de água doce, grãos de paletuvio, corais vermelhos, ossos de tartaruga e de iguana. Empregam-se mesmo falanges humanas, e embora essas correntes de os-sículos sirvam em primeiro lugar para a feitiçaria, são usadas como adorno, como o demonstra o fato de serem ornadas muito elegantemente com diminutas conchas78.
Os botocudos, que andam sempre nus, penduram no pescoço bonitas correntes do gênero das que lhes rodeiam a cabeça. Os cordões de plumas vermelhas de arara, que o príncipe de Wied viu num chefe de tribo, devem ser muito caras, razão de seu uso pouco generalizado79.
O adorno do pescoço, mais comum entre os australianos, cujas mulheres o adotam também, é um cordão de lã de sa-riguéia, no qual se enfiam pequenos pedaços de junco. Esse cordão, que às vezes mede cerca de trinta pés, rodeia várias vezes o pescoço e cai sobre o peito80. O adorno composto de dentes de canguru é menos comprido, mas igualmente executado com cuidado: é uma tira de pele de canguru, em que se fixam dentes desse animal. Cada dente se insere, pela sua raiz, num pequeno pedaço de couro, que, por sua vez, se ajusta perfeitamente à tira. Provavelmente é preciso muito tempo e cuidado para conseguir esses colares81. Os fabricantes do Queensland confeccionam cordões em que penduram alguns pedaços ovalados de conchas do nautilus. Os tasmânios trazem pequenas conchas esverdeadas, presas em cordões de fibras vegetais ou tendões de canguru.
A parte mais interessante do adorno primitivo é a que se refere às ancas, não em virtude de sua riqueza e de seu interesse artístico possíveis — aliás muito pobre — mas porque ocupa importante papel na famosa discussão relativa à origem do sentimento do pudor. Enquanto uns pretendiam que a existência de uma veste destinada a ocultar as partes sexuais — e essa veste não é senão o adorno das ancas, de que falamos, ou uma parte dele — só poderia explicar-se por um sentimento do pudor inato, outros diziam que esse sentimento não era a causa, mas sim a conseqüência do uso de uma peça destinada a cobrir as referidas partes. Não nos esqueçamos, entretanto, de que nosso intuito é estudar o próprio adorno dos quadris e não sua significação ou origem.
Em mais de um povo caçador, não encontramos o menor traço desse adorno. Os fueguinos não usam sequer uma cinta, menos ainda uma tanga em volta dos quadris. As regiões sexuais, em ambos os sexos, ficam a descoberto. "Ainda hoje, diz Ehrenreich, com referência aos botocudos, as tribos selvagens andam completamente nuas, na tribo Pancas; nem mesmo vi o conjunto de folhas que, segundo o príncipe de Wied, cobre as partes genitais"82. Nas ilhas Andamã, os homens usam um cinto estreito, feito de folhas de panda, ou um cordão de fibras vegetais. Mas, tanto um quanto outro não ocultam a região do púbis83. As mulheres, porém, ocultam-na sempre, envolvendo os quadris com várias cintas, uma das quais leva um avental de folhas. Em algumas tribos, as mulheres casadas trazem uma segunda cinta de folhas, de forma um pouco diversa. Mas, há uma
tribo cujas mulheres só usam em volta dos quadris um cordel muito delgado, do qual pendem fibras muito curtas, o que é evidentemente um adorno84. Os bosquimanos colocam em volta do corpo uma correia, com avental de couro em forma de triângulo, que passa entre as pernas, indo ligar-se atrás, na cinta. Se esse avental se destina a cobrir sua nudez, consegue fazê-lo de modo muito incompleto. As mulheres usam um avental de pele antílope ("antílope Euchore"), ornado com pérolas e cascas de ovo e cortado* em tiras; "mas essas tiras, diz Barrow, são tão pequenas e delgadas que nada ocultam, e, com efeito, as mulheres jovens ou velhas não têm absolutamente vergonha de sua nudez"85. As mais instrutivas formas desse adorno observam-se na Austrália. Os homens possuem em regra geral, uma cinta de pele ou de fibras vegetais, que não compreende geralmente nenhum enfeite, servindo provavelmente para fins práticos apenas86. Mas, com freqüência, usam uma segunda cinta, que muito se aprecia, por constituir um precioso adorno: é um cordão feito de cabelos humanos e que atinge, em algumas tribos, o comprimento considerável de 300 côvados87. Essas duas cintas cobrem de ordinário somente a região dos quadris. Em alguns casos apenas se fixa um apêndice na parte anterior da cinta — um ramo de folhas, um feixe de plumas de casoar, um tufo de pêlos de morcego grande, de esquilo, Uma cauda de dingo, etc. Esse apêndice pende sobre as partes genitais, não as ocultando, porém. Esses aventais só se colocam nas ocasiões solenes, sobretudo para a dança. "Quando os homens se preparam para o corrobori, diz Bulmer, atam compridas e estreitas correias de couro, atrás e adiante das cintas, mas, de ordinário, nada usam. O que levam nas danças não é veste, mas enfeite"88 O avental de tiras de pele, que se encontra em muitas tribos, é igualmente um adorno de festa. O avental de caudas de coelho branco, com que os Diyeris se enfeitam às vezes, também encerra evidentemente esse caráter89. Os únicos membros da sociedade australiana que sempre usam um avental, mesmo que homens e mulheres andem completamente nus, são as moças. Logo que se casam, abandonam o avental. As mulheres não se utilizam geralmente de nada que lhes oculte as ancas ou as partes genitais. Somente para as danças libertinas se adornam com uma cinta de plumas que atinge até perto dos joelhos90. Os tasmânios não se cobriam melhor que os australianos. Homens e mulheres apresentam uma cinta estreita, "mas com objetivos práticos apenas e não como vestuário ou enfeite"91.
Aí estão os fatos. Resta saber agora como interpretá-los. Esses objetos que se penduram nas cintas, cordões, etc, destinam-se a ocultar ou a enfeitar as partes sexuais? A maioria dos historiadores da civilização afirma que servem para escondê-las. Schurtz, que escreveu o último livro sobre o vestuário, exprime muito energicamente essa convicção. Após haver citado diversos casos de ausência completa de qualquer espécie de vestuário, diz: "A melhor prova da existência geral do sentimento do pudor está na veste destinada a cobrir as partes sexuais, que não seria possível explicar-se por outras razões". Páginas adiante acrescenta mesmo categoricamente que "a origem do vestuário se deve unicamente ao sentimento do pudor"92.
Se realmente essa é a melhor prova da existência do sentimento do pudor, a ausência da veste prova o contrário. Acabamos de ver que os fueguinos e os botocudos andam completamente nus, sem distinção de sexos; que os homens mincó-pios jamais ocultam as partes genitais; e que na Austrália, homens e mulheres, com exceção das jovens, não usam avental93. Em outros termos, a veste destinada a cobrir a região do púbis não é, muito menos ainda, costume generalizado entre os povos primitivos. E a nudez não se observa aí como exceção temporária. Ao contrário, tudo o que sabemos acerca desses povos nos leva a crer que a nudez seja o estado normal, e o vestuário, a exceção. Na Austrália, só se colocam aventais em ocasiões solenes. Ordinariamente, limita-se a rodear os rins com uma cinta. O avental, a tanga, as folhas, etc. são quase em toda a parte adornos atados às cintas. Não são vestes, mas enfeites. Que necessidade teria o homem primitivo de ocultar suas partes genitais? Os animais não conhecem esse pudor. Por que haveria o homem de possuí-lo? Um filósofo ortodoxo responderia à nossa pergunta, dizendo que o sentimento do pudor é inato no homem. Mas, se esse filósofo está com a razão, que pensar de nossas crianças, que mostram seus órgãos genitais sem nenhuma vergonha e que não compreendem, antes de tudo, a razão de andarem protegidos? Todos quantos não possuem a modéstia que consiste em fiar-se mais nas palavras de outrem que nas próprias, devem sentir que essa inocência infantil abala a sua filosofia. A teoria, segundo a qual o sentimento do pudor seria inato no homem, parece–nos ter o mesmo direito à existência que uma teoria que afirmava ter o inglês a necessidade inata de levar chapéu de copa alta. Parece que antes de tudo se esquece de que não é absolutamente a mesma coisa mostrar a sua nudez, para um filósofo europeu ou para um guerreiro australiano. Wes-termarck fez interessantíssima observação a esse respeito. "Onde toda gente anda nu, a nudez é algo natural, pois o que vemos todos os dias não nos impressiona. Mas, desde o momento em que um ou outro, homem ou mulher, começou a usar uma franja de cores vivas, uma pluma de várias cores, um colar de pérolas, um punhado de folhas, um pedaço de tecido, uma concha brilhante, esse ato não podia escapar à atenção de seus companheiros e o mais pobre vestuário produzia o efeito do mais poderoso afrodisíaco que se possa encontrar"94. Se o sentimento do pudor inato inventou os objetos que servem para esconder os órgãos sexuais, enganou-se lamentavelmente. Porque, longe de afastar a atenção de tais órgãos, esses objetos, ao contrário, concentram os olhares sobre o que se oculta. Sem ‘dúvida, esse é o objetivo de todos os aventais, tangas e outros objetos dos povos primitivos. Compreendemos agora porque as mulheres australianas, que andam geralmente nuas, usam um avental de plumas, quando executam danças libertinas, evidentemente destinadas a despertar o sentimento sexual dos espectadores. Compreendemos também porque nas mesmas ocasiões os mincópios se cobrem com uma folha particularmente grande95. Folhas, aventais de plumas, etc, não provam a intenção de ocultar, mas antes o interesse em mostrar algo. Numa palavra, esses objetos não constituem, em seu significado primeiro — o mais importante — um vestuário, mas sim um adorno que serve, como a maior parte dos objetos análogos, para assegurar a quem o leva o favor do sexo contrário.
Não seria possível, pois, explicar a origem da cobertura das partes genitais pelo sentimento do pudor, que se explica, ao contrário, peio costume de esconder essas partes. A função que acabamos de atribuir aos adornos primitivos das partes genitais (Schams-chmuck) devia assegurar-lhe uma extensão geral. Se o uso de tais enfeites se acha muito limitado, entre os povos primitivos, amplia-se à medida que a civilização avança, sendo parte indispensável do vestuário de homens e mulheres. Só então se torna chocante e estranho ver os órgãos genitais descobertos, e tal infração aos costumes provoca em toda parte um sentimento de vergonha. Tal sentimento produz-se, com seus sintomas fisiológicos — rubor do rosto, inclinação da vista — em todos os casos em que o indivíduo tem consciência de haver enfrentado um costume, uma lei social. Efetivamente, nada mais é senão o instinto do animal ferido. As mulheres do Alasca envergonham-se de apresentar–se sem seu velho sinal de tribo, o botoque. "Às vezes, fazíamos–lhes tirar aqueles adornos dos lábios, diz Lapeyrousse, embora não sem resistência de sua parte. Demonstravam então o mesmo embaraço e faziam os mesmos gestos que uma européia que descobre os seus seios". Uma européia teria vergonha de andar pelas ruas com o seio à mostra, porque iria contrariar o costume estabelecido, mas não sente o menor pudor em apresentar os seus atrativos à luz intensa de um salão de baile, porque então age de acordo com os costumes. Pela mesma razão, a negra do Nilo mostra seus peitos e esconde cuidadosamente, sob um avental, a região do púbis. Entretanto, há ainda outro motivo, e muito poderoso, que se junta ao primeiro, para aumentar consideravelmente a aversão que se experimenta ao mostrar as partes genitais. Ocultá-las é, entre os povos primitivos, um meio de excitação sexual. Mas, à medida que o hábito de cobri-las se estabelece, a veste perde seu efeito afrodisíaco. "O que vemos todos os dias não nos impressiona". A conseqüência dessa mudança está em que agora a nudez é que excita. A civilização modificou desse modo o juízo formado sobre os diversos meios de provocar a excitação sexual. O homem primitivo não causava nenhum espanto a seus companheiros, quando escondia os órgãos genitais; o homem civilizado, ao contrá-iio, causaria espanto a toda gente se mostrasse a sua nudez. É que se verificou um grande progresso ético: a abstinência sexual converteu-se em virtude. Esse progresso, como todo progresso, é conseqüência de um avanço social, isto é, do estabelecimento e do desenvolvimento do princípio patriarcal que considera a mulher como propriedade e que pune toda infidelidade como uma infração aos direitos de propriedade do homem. A mulher que hoje colocasse à mostra suas partes genitais cometeria uma dupla infração das leis sociais; e, efetivamente, é na mulher que se desenvolveu mais fortemente o sentimento do pudor. E só muito lentamente se estendeu também aos homens. Contudo, ainda hoje se observa entre ambos os sexos uma diferença sensível a esse respeito. É, pois, por pudor que se ocultam certas partes do corpo, entre os povos civilizados. Entre os primitivos, assim se faz por outras razões, pois a veste entre estes não é senão um adorno. Razão por que estamos autorizados a estudá-la aqui.
Podemos ser muito breves no que respeita ao adorno dos membros. São seus enfeites os cordões ou fitas do gênero dos que se aplicam em volta do pescoço. Mas, nem todos os objetos que os primitivos usam nos membros são ornamentos. Os punhados de folhas, por exemplo, que os dançarinos australianos colocam nos tornozelos servem unicamente para aumentar o ruído. Certos braceletes servem de amuletos, como, por exemplo, as tiras de pele de esquilo voador, que os homens da tribo Yarra põem nos braços para torná-los fortes. As tiras de couro de que os bosquimanos revestem suas pernas são também antes destinadas a protegê-los contra os espinhos que a embelezá-los.
Até agora, temo-nos descuidado inteiramente de um dos povos primitivos: os esquimós. Com efeito, é preciso dar-lhes um lugar à parte, porque, enquanto todos os outros povos caçadores cogitam mais de adornar-se que de vestir-se, os esquimós devem, antes de tudo, obter agasalhos para proteger-se contra o frio terrível das regiões que habitam. É verdade que, por esse motivo, não deixam de enfeitar-se, mas é nos impossível colocar seus adornos nas categorias que estabelecemos no presente capítulo. Entre os esquimós, não se trata de adorno do pescoço, dos quadris, ou dos braços, porque somente conhecem o adorno do vestuário. Ornam suas pelicas com tiras de pele de cores e penduram, no peito e nas costas, principalmente ao longo das costuras, franjas de couro, dentes, pérolas de osso ou de metal, pequenas campainhas de bronze, etc. Nesse assunto, as mulheres não levam a pior. Ao contrário, usam uma espécie de adorno nas ancas, ou seja, um prolongamento, em forma de cauda, dos panos da roupa que atinge os joelhos86. Essa separação do adorno entre ambos os sexos distingue os esquimós de todos os demais povos da mesma civilização.
Concluímos nossa descrição do adorno primitivo, sem haver dito uma só palavra acerca da transformação das modas. Os povos caçadores são os únicos que se não submeteram ao capricho da moda. É verdade que certas partes do adorno primitivo variam de ordinário. Mas, individualmente apenas. A pintura, em particular, depende do gosto pessoal de cada indivíduo. Contudo, a mudança da moda não consiste em divergências individuais, e sim numa geral transformação social. Mas, o adorno social, isto é, os ornamentos apresentados por todos os membros de uma tribo, que constituem a parte essencial do adorno primitivo, não mais se modifica, desde que adotado por um povo caçador. As descrições dos observadores mais antigos não diferem, pelo menos nas linhas essenciais, das feitas pelos mais recentes viajantes97. A moda rígida e constante, seguida pelos primitivos, forma um contraste surpreendente e profundo com o que ocorre com os povos civilizados. Veremos mais adiante que há relações muito estreitas entre a duração duma moda e a organização das diversas sociedades. Lancemos, porém, um olhar sobre o valor estético do adorno, antes de ocupar-nos de seu papel social.
O adorno dos povos caçadores só é brilhante no sentido próprio da palavra. Aos olhos do homem primitivo, o lustro, o brilho dá aos objetos mais valor ornamental que qualquer outra propriedade. O adorno principal dos fueguinos consiste em geral em um caco de garrafa; os bosquimanos sentem-se felizes ao encontrar um anel de ferro ou de cobre polido. Mas, os povos inferiores não dependem absolutamente dos vendedores de bugigangas dos povos superiores e se não dispõem de pedras finas e metais preciosos98, possuem, contudo, muitas coisas à sua disposição para satisfazer seu gosto. O mar lhes fornece conchas; a flora, frutos e espigas brilhantes; os animais, dentes, pelicas, plumas.
Já mencionamos o valor estético das cores empregadas pelos primitivos na pintura. Se quisermos agora apreciar o efeito produzido pela cor do adorno móvel, devemos ter em conta o matiz da pele a que se destina. Em nossos museus de etnografia, os objetos de adorno estão instalados em armários de fundo branco, amarelo ou escuro, o que, ao invés de nos permitir julgar o seu valor estético, em geral nos induz em erro99. Um colar australiano, formado por dentes brancos de canguru, não produz nenhum efeito sobre fundo claro. Basta, porém, contemplar esse mesmo colar sobre um fundo escuro, para compreender imediatamente porque agrada tanto aos australianos. Os povos de pele escura, sentem, em geral, especial predileção pelos adornos claros. Pela mesma razão, as raças de pele clara preferem os objetos escuros. Os bosquimanos amarelos, por exemplo, enfeitam-se com pérolas escuras que os cafres desprezam. Ademais, os caçadores escolhem para seu adorno móvel as mesmas cores que para as pinturas. Os australianos pintam suas cintas, colares e frontais de ocre vermelho, branco ou amarelo. Os bosquimanos e os fueguinos fazem o mesmo. Entre os bo-tocudos, as plumas vermelhas de arara — seu adorno mais precioso — são a insígnia dos chefes. Os demais levam no cabelo leques de plumas amarelas, que também se erguem acima da testa do caçador australiano. As cores frias raramente encontram-se no adorno primitivo. O azul é extremamente raro, e a cor verde dos esquimós e botocudos constitui uma exceção.
DA VINCI
A Virgem das Rochas — Museu do Louvre Paris — França