ÉTICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES


ÉTICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Ricardo Ernesto Rose
Jornalista e Licenciado em Filosofia


O dia mais desperdiçado é aquele no qual não demos uma risada Chamfort – Máximas e Pensamentos



A maior parte da Europa medieval cristianizada só conheceu a moral cristã. O camponês,
o nobre, o religioso e o letrado; todos, de acordo com as particularidades de seu ambiente viviam alinhados com a moral da igreja católica. As diversas classes sociais tinham mais ou menos a mesma visão da moral, já que quase não tinham informações sobre outras culturas, religiões ou costumes.



Com os Grandes Descobrimentos no século XVI, a Europa cristã passa a tomar contato com outras culturas e outras religiões. Apenas uma mínima parcela da população européia efetivamente participou desta grande empreitada, mas a difusão da imprensa logo colaborou para que os relatórios de viagem ficassem conhecidos em todo o Velho Mundo. Uns dos primeiros depoimentos de viajantes que por aqui aportaram nos primeiros anos da colonização é o de Jean de Lery, religioso calvinista francês, que participou da expedição de Villegaignon, com o objetivo de fundar uma colônia francesa na atual baía da Guanabara. Descrevendo os indígenas, Lery relata:

“Coisa não menos estranha e difícil de crer para os que não os viram, é que andam todos, homens, mulheres e crianças; nus como ao saírem do ventre materno. Não só não ocultam nenhuma parte do corpo, mas ainda não dão o menor sinal de pudor ou vergonha.” (Lery, 1980).


Os relatos traziam descrições de paisagens, animais e costumes completamente desconhecidos da cultura européia. Em poucos anos, uma parcela considerável da elite letrada européia teve acesso a informações sobre outros povos, que viviam de uma maneira completamente diferente daquela considerada a única aprovada por Deus. Hans Staden, marinheiro alemão a serviço dos portugueses, preso pelos índios tupinambás no atual litorais norte de São Paulo, descreve costumes que para um leitor europeu da época pareceriam no mínimo muito estranhos:

“Quando chega o momento de se embriagarem, como é seu costume quando devoram alguma vítima, fazem de uma raiz uma bebida chamada Kawi; bebe-na toda e matam o prisioneiro” (Staden, 2007)


Na Europa, as informações vindas do Novo Mundo provocaram dois tipos de reação. Por um lado, o fortalecimento da visão de que o mundo cristão, seu modo de vida, sua religião (católica ou protestante) e sua moral são os únicos certos, os únicos aprovados por Deus. Os outros povos estariam todos errados, por isso poderiam ser mortos e sua cultura destruída, já que eram pecadores que findariam no inferno.



Esta foi a reação que grande parte da sociedade européia teve durante centenas de anos, eliminando os não-cristãos em diversas circunstâncias. A maneira como comerciantes e exploradores espanhóis, portugueses, franceses, ingleses e holandeses atuavam no Novo Mundo, refletia apenas a forma como as sociedades e os indivíduos que aqui viviam, do Canadá à Terra do Fogo, eram vistos pelos povos da Europa.



Por outro lado, os relatos sobre os povos encontrados pelos navegadores também tem o efeito contrário. Muitos europeus, mais instruídos, defendiam a idéia de que a cultura cristã européia não era a única válida e que outras culturas também dispunham de princípios morais e religiosos tão elevados quanto os dos europeus. Outros, mais perspicazes, negam o valor absoluto a qualquer cultura. De certa forma, diziam, ninguém nem cultura alguma têm razão absoluta e, dessa forma, não vale a pena matar-nos uns aos outros. O filósofo renascentista Michel de Montaigne, referindo-se aos indígenas encontrados no Brasil, escreve:

“Mas, voltando ao assunto, não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste, a religião é sempre a melhor, a administração excelente, e tudo mais perfeito.” (Montaigne, 1972).


A civilização ocidental evoluiu através de um contato constante com outras culturas e costumes morais. Mas foi somente a partir do século XVIII que a gradual separação entre Igreja e Estado -principalmente depois da Revolução Francesa -entre poder temporal e espiritual, vida religiosa e vida laica, permitiu o aparecimento de uma distinção entre a moral, válida em uma cultura específica, e a ética, estudo sobre os costumes das diversas sociedades. No Brasil, este processo só se completaria definitivamente em 1890, quando é decretada a separação entre o Estado e a Igreja.



Apesar de terem o mesmo sentido original, moral (de morale = costumes em latim) e ética (de ethos = costumes em grego) acabaram distinguindo-se ao longo dos tempos. A moral passou a ter uma conotação local, temporal, restrita a determinada cultura ou época; seria uma ética particularizada, adaptada as condições culturais de determinada sociedade. Por isso, o sociólogo Durkheim já escrevia no século XIX que cada sociedade tem a suamoral. A Ética, por seu lado, passou a representar certos princípios mais amplos, comuns aos diferentes períodos históricos e às civilizações.



A ética, no entanto, é bastante difícil de ser definida. O filósofo G.E. Moore escreveu que "ética é a investigação geral sobre aquilo que é bom”. O Dicionário Oxford de Filosofia apresenta a ética como "o estudo dos conceitos envolvidos no raciocínio prático: o bem, a ação correta, o dever, a obrigação, a virtude, a liberdade, a racionalidade, a escolha". O Pequeno Vocabulário da Língua Filosófica não faz diferenciação nenhuma entre ética e moral, remetendo o leitor diretamente para o verbete “moral”. O filósofo contemporâneo Peter Singer escreve: "A ética existe em todas as sociedades humanas, e, talvez, mesmo entre nossos parentes não-humanos mais próximos. Nós abandonamos o pressuposto de que a ética é unicamente humana.”.



Herdamos aquilo que denominamos de ética muito provavelmente de nossos antepassados animais. Os biólogos e zoólogos vêem estudando o assunto há tempo, e fizeram diversas descobertas a respeito de um “comportamento ético” já nos animais. O que ocorre – e isso vem sendo confirmado também pela neurologia – é que muitas espécies de mamíferos tem uma espécie de “sistema de identificação” no cérebro, através do qual de certo modo “sentem” o sofrimento dos outros. Em uma experiência de laboratório relatada pelo zoólogo Frans de Waal, ratos passaram a apertar um pedal para receberem alimento. Todavia, ao mesmo tempo em que recebiam alimento, o equipamento infligia uma descarga elétrica em outro rato, provocando dor. Os cientistas verificaram com surpresa, que apesar da possibilidade de ser recompensado com alimento, o rato não apertou mais o pedal, evitando assim provocar dor em seus companheiros. A mesma experiência foi realizada com macacos. Os símios efetivamente ficaram vários dias sem comer, com medo de ferir o colega. Existem vários outros indícios que mostram que outros animais – ditos irracionais – também têm noções de equidade, conseguem perceber o sofrimento de seu semelhante e ficam tristes quando alguém do grupo desaparece. Seriam os princípios éticos, dos quais nos falam as religiões e as filosofias, o desenvolvimento deste “comportamento ético” que já trazemos conosco do passado, mas que só conseguimos desenvolver plenamente em uma cultura?



Aristóteles, em sua Ética a Nicômano escreve que “Outra crença que se harmoniza com nossa concepção é a de que o homem feliz vive e age bem, visto que definimos a felicidade como uma espécie de boa vida e boa ação” (Aristóteles, 2002). Este parece ser



o conceito de felicidade mais difundido em todas as civilizações: viver em paz consigo (uma boa vida), com os semelhantes e com os deuses (através da boa ação). Admitindo que seja este o melhor tipo de felicidade, nossa conduta ética deve ser de modo a nos propiciar tal tipo de situação. Todavia, para alcançar este tipo de felicidade devemos saber avaliar bem quais são as prioridades em nossa vida; as que nos levarão a “uma boa vida” através da “boa ação”.



A partir daí, a filosofia será o instrumento que utilizaremos para procedermos a uma verdadeira crítica dos objetivos de vida colocados para nós como prioritários pela sociedade. Serão eles importantes para alcançarmos o nosso objetivo (ou seja, a boa vida e a boa ação)? A ética terá esta função crítica. Seus parâmetros são: a “boa vida” -a paz conosco – e a “boa ação”; a paz com os semelhantes e o mundo.

Fontes consultadas:

  • Entrevista do filósofo Peter Singer na revista Época: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG74453-5856-421-1,00.html
  • Entrevista do zoólogo Frans de Waal para o site Comciência:
    www.comciencia.br/comciencia/?


    section=8&edicao=17&tipo=entrevista
  • Ética – Prof. José Roberto Goldim
    www.ufrgs.br/bioetica/eticahtm
  • Cuvillier, A, Petit Vocabulaire de la Langue Philosophique, Librairie Armand Colin: Paris, 1932, 111 pgs.
  • Blackburn, Simon, Dicionário Oxford de Filosofia, Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 1997, 436 pgs.
  • Aristóteles, Ética a Nicômano, Martin Claret: São Paulo, 2002, 239 pgs.
  • Chamfort, Sebástien-Roch, Máximas e Pensamentos, José Olympio Edit.: Rio de Janeiro, 2007, 82 pgs. -LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. – Disponível em

    http://www.ufrgs.br/proin/versao_1/viagem/index.html -Acesso em 10/09/08

  • STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. Martin Claret Editora: São Paulo, 2007, 202 pgs.

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