Continued from: Finalidade do Mundo - Farias Brito - vol. 1 (antologia)

VII (¹)

Tais são as questões
de que me vou ocupar no presente trabalho. Tudo reduz-se a um só problema:
indagar se a natureza que é um todo orgânico, tende à realização de um fim, e
se este fim pode ser atingido pela inteligência humana. Esse problema, como é
fácil de ver, decompõe-se em inumeráveis questões particulares, cada uma das
quais deve ser estudada em separado e exige uma solução especial: mas todas
elas se prendem e obedecem ao mesmo plano de investigações,
como anéis sucessivos de uma só e mesma cadeia. Entre
esses problemas particulares, o mais importante aquele que, por
assim dizer, constitui a alma de tudo, é o é o seguinte: se na natureza cada
coisa ocupa um lugar definido e exerce uma função determinada, qual vem a ser o
lugar que ocupa, e qual vem a ser a função que exerce o homem, ou, em outros
termos: qua! é o papel que representa o homem no mundo? E sem que tenhamos
disto uma idéia ao mesmo tempo segura e precisa, não poderemos saber qual deve
ser nossa norma de conduta na sociedade, pelo que é só pela solução desse grave
problema que poderemos chegar à determinação dos verdadeiros princípios
reguladores da ação, sendo dado um fundamento durável à ciência do direito e do
dever. De modo que é preciso começar pela ciência da natureza, para terminar
pela ciência do homem: nem há outro meio para que se possa chegar à dedução de
que devemos estar satisfeitos com o mundo dado, não obstante as misérias a que estamos
sujeitos, senão no fato de que entramos como elementos na obra comum da
natureza, quando esta não pode deixar de tender à realização de um fim
grandioso.

(3) pp. 33-37

 

É certo que nada é mais
eloquente e nada se impõe de modo mais esmagador e terrível do que o contraste
que existe entre o nada de todas as grandezas humanas e a majestade infinita da
natureza. Mas tudo vem de longe, e nada do que é grande, começou grande. Por
isto devemos acreditar na elevação de nosso destino, nem outra coisa se pode
supor, quando tudo demonstra e se sente que há perfeita conformidade dos nossos
destinos para com o destino universal, pelo que a miséria, o sofrimento, a
morte, em uma palavra, todas as formas da dor, devem ser consideradas não como
o fim, mas como meios tendentes à realização do fim a que é destinada a
natureza humana. E como es.amos acostumados a ver que as coisas valem tanto
mais, quanto maiores são os esforços e sacrifícios com que são obtidas, a
consequência é que o destino da humanidade é tanto mais elevado quanto mais
profundos e mais dolorosos são os sofrimentos humanos, encontrando-se por esta
forma a legítima explicação da verdadeira significação do sofrimento e da dor,
e a única interpretação possível da verdadeira significação da morte.

Tal é a extensão e natureza
dos problemas que vou estudar. Resta agora considerar o método que adoto. Este
é mui simples, pelo que poucas palavras bastam.

Parto deste princípio: o
fundamento real, o critério último de toda a verdade é o testemunho direto da
consciência, de modo que para mim quando qualquer conhecimento estiver de
acordo com esse testemunho, é verdadeiro: quando em desacordo com ele, é falso. E é o que
não depende de prova, porque não se ignora que a consciência é o órgão mesmo do
conhecimento, sendo que nenhum conhecimento pode haver que não seja transmitido
por esse órgão, nem pede ser verdadeiro sem que esteja em conformidade com ele.
Isto poderia ser dito ainda mais claramente afirmando-se que fora dos limites
da consciência nenhum conhecimento é possível, sendo evidente que não podemos
conhecer uma coisa de que não temos ou não podemos ter representação na
consciência.

Deste modo se me
falarem em luz, em peso, em calor, em qualquer destes fatos de que temos
experiência direta, eu compreendo o que me dizem e posso apresentar a respeito
a minha opinião e as minhas idéias, pois trata-se de fatos que podem ser
representados em minha consciência. Mas se me falarem de espírito como
substância simples podendo existir independentemente de órgãos sensoriais, de
fluido como intermediário entre a matéria e o espírito, de anjo no sentido
místico da Igreja, ou de outra qualquer entidade sobrenatural e supra-sensível
que exista fora da natureza e independentemente da natureza, eu nada disto
compreendo, porque nada disto pode ser conhecido por intermédio dos sentidos,
nem dos sentidos me vem coisa alguma que corresponda a estas idéias. Em uma
palavra: só admito o que está de acordo com as revelações da consciência, só
creio no que me é revelado pela consciência. Ora, a consciência traduz-se em
sensação e a sensação só me revela duas ordens de fenómenos: os fenómenos
objetivos (movimento, matéria), e os fenómenos subjetivos (sentimento, ação,
conhecimento). Quando, pois, qualquer fato me for indicado e eu tiver de
interpretá-lo, primeiro indagarei a que ordem de fenómenos pertence, verei se é
um fenómeno objetivo ou um fenómeno subjetivo: só depois passarei a estudá-lo,
classificando-o com os fatos já conhecidos cem que tiver maior número de
caracteres análogos. Se se tratar, porém, de alguma coisa que não possa ser
interpretada nem como fenómeno objetivo, isto é, como movimento, nem como
fenómeno subjetivo, isto é, como sentimento, ação ou conhecimento, nada direi,
sustentando que o que não se explica nem como fato objetivo, nem como fato
subjetivo, não pode ser conhecido, nem explicado, está fora dos limites da
consciência.

Objeto e sujeito — eis a
fórmula geral da natureza, a síntese do conhecimento. Mas antes de tudo cumpre
observar que para estudar qualquer fato, quer de ordem objetiva, quer de ordem
sub-jetiva, é preciso primeiramente determinar as categorias do conhecimento,
começando a filosofia por uma crítica da razão, no que não se pode deixar de
render homenagem à filosofia crítica, originada de Kant. Esta filosofia só
apresenta como categorias do conhecimento o espaço, o tempo e a causalidade,
tendo sido reduzidas a um só princípio, a causalidade, as .categorias da razão
estabelecidas por Kant, em número de doze. Mas estas categorias não são
suficientes, são verdadeiras, mas não bastam. São as categorias do conhecimento
objetivo, mas somente do conhecimento objetivo. Tratando-se do movimento, é uma
verdade, tudo se passa dentro do espaço e do tempo e se explica por meio da
causalidade: mas passando-se ao estudo dos fenómenos subjetivos, o espaço, o
tempo e a causalidade de nada servem, sendo inteiramente vã e absolutamente
ineficaz a tentativa dos representantes da intuição mecânica no sentido de
explicar esses fenómenos em função do movimento. Assim a escola crítica é
deficiente e incompleta, dá as categorias do conhecimento objetivo: tais são: o
espaço, o tempo e a causalidade. Outras, porém, são as categorias do
conhecimento relativo aos fenómenos subjetivos, e quanto a estas, no curso
deste trabalho ver-se-á que são o sentimento, o conhecimento, a ação.

 

 

 

 

 

PRIMEIRA PARTE

A FILOSOFIA COMO ATIVIDADE PERMANENTE DO-ESPÍRITO HUMANO

Capítulo I (¹)

A MORAL E A FILOSOFIA

As duas manifestações
fundamentais do espírito humano, na marcha geral da sociedade, são a política e
a filosofia. A política dá em resultado o direito: a filosofia dá em resultado
a moral: e o direito e a moral são as duas alavancas, os dois eixos centrais do
grande mecanismo social. Assim, quem tivesse em vista apresentar o plano de uma
concepção geral da sociedade, deveria abraçar, em seu conjunto, não somente a
ação da política, mas também a ação da filosofia, estudando, de um lado, o
corpo social propriamente dito, isto é, a máquina: e, de outro lado, as
produções do espírito, isto é, a força motora dessa máquina. Mas neste estudo
que para seu inteiro desenvolvimento demandaria não somente um conhecimento
completo do homem, mas também um conhecimento completo da natureza, o que mais
importaria esclarecer e precisar era isto: a questão política, isto é, o
problema do direito, e a questão filosófica, isto é, o problema da moral.

Eu não pretendo, nem
posso dedicar-me ao desenvolvimento desse vasto programa. Meu fim é mais
simples. O que quero é apenas apresentar algumas idéias em relação ao problema
filosófico, tendo principalmente em vista indagar se as novas tendências do
pensamento estão em harmonia com as necessidades do coração e do espírito.

(1) pp. 42-47

 

A filosofia dá em resultado
a moral, do mesmo modo que a política dá em resultado o direito. Isto quer
dizer em outros termos e mais claramente que a filosofia é o princípio gerador
da moral, do mesmo modo que a política é o princípio gerador do direito, ou
ainda, que a moral é o fim da filosofia, do mesmo modo que o direito é o fim da
política. É certo que aqui tem-se em vista unicamente o fim prático, isto é, o
resultado da filosofia quanto, à influência que exerce sobre o" governo da
sociedade. Tomando, porém, em consideração somente a teoria, a função da
filosofia é, como veremos depois, criar a ciência. Mas disto o que resulta é
que a função da filosofia é dupla:
teoricamente, criar a ciência: praticamente, criar a moral.

Considerando por
enquanto somente o fim prático, não há dúvida que este é a moral. Com efeito a
moral é o conjunto dos princípios pelos quais deve o homem regular sua conduta.
De dois modos pode o homem proceder na sociedade: de conformidade com suas
convicções ou de conformidade com suas conveniências. Nem se compreende que
possa proceder de outro modo, a menos que não se ache em seu estado normal.
Pode-se, pois, estabelecer como regra que o grau da moralidade está na razão
inversa do sacrifício das convicções a conveniências. Assim aquele que nunca
sacrifica suas convicções a conveniências é um homem perfeito.

As vezes sucede que
as nossas convicções coincidem com as nossas conveniências. Neste caso o homem
é feliz, mas não tem grande mérito: falta aquilo que constitui o verdadeiro
merecimento: a luta, o esforço individual.

Temos, pois, uma regra
segura para julgar os atos humanos e sabemos como é que se deve proceder, tendo
em vista a moralidade. Tudo reduz-se a este único princípio: devemos proceder
sempre e em todas as coisas de conformidade com as nossas convicções. Mas as
nossas convicções variam e estamos a todo o instante sujeitos ao erro. Onde
poderemos neste caso encontrar convicções verdadeiras? Na filosofia. Daí a
idéia que defendo: a moral é o fim da filosofia.

Note-se que esta idéia não
é nova. Já Sócrates fazia da filosofia um sistema de moral. Seus discípulos
Platão e Aristóteles tornaram mais amplo o objeto da filosofia, e estendendo-a
a todos os ramos do conhecimento humano, elevaram-na à altura de uma concepção
geral do universo: mas em resultado deram mais vigor e mais força à moral
socrática. . .

Todos os sistemas
filosóficos, mesmo os mais opostos, se esforçam de estabelecer sobre bases
sólidas os princípios da moral.

A filosofia é, pois,
para todos os pensadores, uma concepção do universo: mas cada um deduz, dessa
concepção do universo, a norma de sua conduta, conforme o seu modo de compreender a
significação da natureza. De qualquer modo, porém, que compreendamos as coisas,
seja qual for a escola filosófica que tenhamos de adotar, o que não se poderá
contestar é que todas as concepções do universo, do passado, como da época
contemporânea, materialista ou estóica, dualista ou monista, todas elas se
propõem a um mesmo fim — a moral. E é preciso observar que a razão disto está
no objeto mesmo de que a filosofia se ocupa, porque a filosofia tem por objeto
o conhecimento do universo, o estudo da natureza, e é somente na compreensão da
verdadeira significação do universo, na concepção do fim a que se encaminha a
natureza em sua evolução indefinida, que se poderá encontrar o segredo dos
destinos humanos.

É, pois, somente na
filosofia, nas altas questões que envolvem a totalidade das coisas, e sobretudo
em face da majestade da natureza, que poderemos estudar os mistérios da
organização humana, elevando-nos à compreensão de nosso destino moral.

Capítulo III (¹)

A FILOSOFIA E SEU OBJETO

A filosofia,
considerada como uma das manifestações fundamentais do espírito humano, é mais
do que conhecimento abstrato, é força social, força viva, capaz de exercer
influência sobre a sociedade; e esta influência é real e decisiva, nem pode ser
contestada, pois é da filosofia que parte o princípio do sentimento moral. Mas
ela pode e deve ser considerada ainda debaixo de outro ponto de vista: pode e
deve ser considerada quanto à natureza das questões que se propõe estudar,
tendo-se em vista, além do mais, indagar ccmo deve ser compreendida e
classificada no conjunto dos conhecimentos humanos.

(1) pp. 51-57

 

É debaixo deste ponto
de vista que ela é, por via de regra, considerada nos tratados especiais; e
Spencer, entre os modernos, assim a considera quando, querendo determinar os seus limites, começa
fazendo um paralelo entre a tendência filosófica dos pensadores ingleses e a
tendência filosófica dos pensadores alemães. Ora, na Inglaterra predomina o
realismo: na Alemanha a concepção idealista do mundo. Os ingleses procuram
explicar todos os fenómenos psíquicos em função do movimento e da força; os
alemães reduzem a força e todos os fenómenos da natureza, a representações,
isto é, a modificações do espírito.

Vê-se claramente o
antagonismo profundo destas duas maneiras de filosofar. Entretanto, levado por
suas tendências conciliadoras, Spencer procura entre estas duas escolas opostas
um princípio que seja comum e possa ser apresentado como verdade incontestável
para ambas. Esse princípio existe: é a unidade. "Nem os ingleses, nem os
alemães", diz Spencer, "dão o nome de filosofia a um conhecimento
privado de um laço sistemático, a um conhecimento que não seja coordenado com
outro". É, pois, pela sistematização e coordenação que a filosofia se
caracteriza e isto não é senão a unidade na multiplicidade. Também "o
sábio ligado à mais ténue especialidade", acrescenta Spencer, "não
daria o epíteto de filosófico a um ensaio que, limitado exclusivamente aos
detalhes) não revelasse em seu autor o sentimento de que esses
detalhes levam a verdades mais largas".

Isto quanto aos modernos. E
se quisermos considerar os antigos, vê-se que exatamente a mesma coisa se
observa entre eles. Assim, desde que o homem se viu colocado no mundo, sentiu a
necessidade de conhecer a natureza das coisas de que se viu cercado. Mas a
princípio seus conhecimentos vacilantes e incertos, limitados ao que é
absolutamente indispensável para a prática mais grosseira da vida, não passavam
de um fetichismo rudimentar e inconsciente. É o que se observa ainda hoje entre
os selvagens. Mas pouco a pouco a experiência lhe foi revelando a verdadeira
significação das coisas, elevando-o por fim e instintivamente a um começo de
organização científica. Mas seus conhecimentos só puderam merecer propriamente
o nome de filosofia quando ele, baseando-se em suas experiências particulares,
ia por um lado estabelecendo um começo de ciência, ao mesmo tempo que formulava
uma explicação universal, unificada por um princípio geral capaz de estender-se
à totalidade das coisas.

Tales supôs encontrar esse
princípio na água; Anaxímenes, no ar; Heraclito, no fogo; e foram estes os
precursores do grande movimento intelectual que pode ser considerado como o
ponto de partida da civilização moderna. Por outro
lado, Xenófanes, partindo do fato de que — nada saí de nada — a que é preciso
acrescentar para completá-lo, que — nada pode voltar a nada — elevou-se à
concepção de um princípio absoluto, imutável e eterno, por meio do qual são
consideradas todas as coisas sob a lei da unidade. Esse princípio é imaterial:
não é limitado, nem ilimitado: não é móvel, nem imóvel: é Deus que, sendo o ser
perfeito, é único, perfeitamente semelhante e igual a si mesmo, notando-se que
não pode ser representado sob nenhuma forma humana. Entretanto, sendo todo ele
pensamento e todo ele sensação, sua forma é esférica.

Demócrito, pensador e sábio
profundo, célebre por suas viagens, partindo também do princípio — nada sai de
nada e nada pode voltar a nada — a que acrescentou esse outro — tudo o que
acontece tem sua razão e sua necessidade — chegou à consequência geral de que o
universo só se compõe de átomos e vácuo. O átomo existe: prova-o a
impossibilidade de conceber a divisão da matéria ao infinito. O tempo é eterno:
prova-o a impossibilidade de conceber-lhe um começo. Do mesmo modo o espaço é
infinito: prova-o a impossibilidade de conceber-lhe um limite. Os átomos
existem também em quantidade infinita e é da multidão dos átomos movendo-se no
espaço infinito e pelo tempo eterno que resultam todos os mundos.

Xenófanes é o
verdadeiro fundador do espiritualismo: Demócrito lançou as bases da concepção
materialista do mundo.

Daí, como entre os alemães
e os ingleses, duas correntes intelectuais inteiramente opostas. A filosofia de
Xenófanes veio a encontrar seus verdadeiros e definitivos organizadores em
Sócrates, Platão e Aristóteles, que deram começo ao importante papel que o
espiritualismo havia de representar na história. A de Demócrito foi consolidada
por Epicuro que preparou a futura vitória do materialismo. A primeira proclama
a doutrina da criação e da providência, a segunda continha já em gérmen os dois
grandes princípios da indestrutibilidade da matéria e da transformação e
equivalência das forças, que são a base da física moderna.

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