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Capítulo V(¹)

FILOSOFIA E CIÊNCIA

Do que fica dito resulta
como consequência geral que a filosofia é uma concepção do mundo, ou mais
precisamente, o conhecimento universal: — idéia, em relação à qual estão mais
ou menos de acordo todos os sistemas, mesmo os mais divergentes. Mas aqui
levanta-se uma grave dificuldade e vem a ser que o mundo não é, nem pode ser
conhecido em sua totalidade, que o que se conhece da natureza é quase nada em
vista de sua extensão infinita e obscuridade impenetrável, não podendo haver
dúvida sobre a impossibilidade presente e sem dúvida indefinida do conhecimento
universal. Assim, quando se diz que a filosofia é uma concepção do mundo,
lavra-se só por isto a sua sentença de morte, porque não se pode contestar que
o mundo excede os limites de nossa capacidade mental. O que resta é a ciência,
único género de conhecimento que resiste a esta formidável objeção. Daí as
vantagens da posição assumida pelo positivismo que, limitando todas as
investigações do espírito humano ao domínio exclusivo da ciência, confunde a
ciência com a filosofia, ou mais claramente, suprime a filosofia, para ficar
exclusivamente cem a ciência.

É a ocasião de submeter
esta matéria a um exame profundo e decisivo: e para evitar dificuldades e
obscuras delongas, ferindo logo a questão pela base, eu começo estabelecendo
desde já franca e decididamente o meu ponto de vista.

Penso assim: a ciência é o
conhecimento já feito, o conhecimento organizado e verificado: a filosofia é o
conhecimento em via de formação.

Com efeito, a natureza é o
grande e interminável problema do espírito humano. Nossa ignorância é como um
longo véu que a envolve: e como é quase nada o que sabemos das coisas, sucede
que tudo se apresenta com o caráter de mistério, sendo que, levantada a ponta
do véu com as primeiras noções que conseguimos adquirir, tão grande e tão maravilhosamente
opulenta se mostra a natureza, que parece que o mistério cresce.

(1) pp. 75-88

São bem conhecidas estas palavras de Sócrates: só sei que
nada sei.
E isto não significa outra coisa senão que é à proporção que
vamos aprendendo alguma coisa que chegamos a adquirir a consciência da
extensão infinita da natureza. Entretanto, com i tempo e através das
gerações que se sucedem alarga-se a esfera da consciência. Às primeiras noções
adquiridas na observação das fenómenos inumeráveis do cosmos, reúnem-se outras,
organizando-se todas em diversas ordens de conhecimento correspondentes às diversas
ordens de manifestações naturais. Os fatos são explicados e classificados: as
leis que presidem sua aparição e desenvolvimento são descobertas e definidas:
é determinada e compreendida a ordem de sua sucessão e coexistência. De
medo que ao lado do mundo que passa, que ninguém sabe de onde vem, nem
para onde vai, mas que nunca termina, forma-se no espírito do homem,
gradativamente, uma consciência que o representa. Mas esta representação
também obedece a íeis, desenvolve-se e cresce: e do mesmo modo que a natureza
não tem limites, também ela nunca poderá tornar-se definitiva e completa.
Depois está sujeita a erres, pode refletir falsamente a realidade – daí a
necessidade da verificação e da prova e é só depois de haver sido submetida a
essa prova e verificação, que qualquer ordem de conhecimento pode ser
apresentada como expressão da verdade. Os conhecimentos que vão sendo verificados,
conforme as analogias dos fenómenos que representam, vão sendo ao mesmo tempo
coordenados e classificados, organizando-se em corpo de doutrina: e é assim
que se origina a ciência, a qual, organizando-se e desenvolvendo-se, divide-se
em diversos ramos, conforme as diversas ordens de fenómenos observados.

Sempre que qualquer conhecimento chega
a ser verificado e organizado é ciência. Mas o espírito nunca se dá por
satisfeito: não se contenta com o conhecimento adquirido, quer continuar na sua
exploração da natureza, que aliás não fica diminuída em sua parte desconhecida
porque em alguns caracteres insignificantes chegou a revelar-se à consciência
humana. Nesta exploração do desconhecido é que está propriamente a função da
filosofia, de modo que a filosofia não é propriamente uma ciência, nem sequer
um dos ramos do conhecimento: é o princípio mesmo gerador do conhecimento: é a
inteligência em ação explorando a natureza e produzindo a ciência: em uma
palavra, é o próprio espírito humano em sua atividade permanente, indefinida.

Assim compreendidas as coisas
e definida por esta forma a filosofia, torna-se fácil mostrar a improcedência
do positivismo.

Não se nega o valor científico e alta capacidade intelectual do
fundador do sistema e eu mesmo sou o primeiro a reconhecer a grande importância
de Augusto Comte quando, fazendo a classificação das modernas escolas
filosóficas, coloco, de um lado, Augusto Comte e seus discípulos: de outro
lado, tudo o mais. Mas daí não se segue que seja aceitável seu ponto de vista:
ao contrário, o que é certo e facilmente se mostra submetendo a exame a própria
organização do espírito, é que ele é absolutamente inaceitável e mesmo só pode
explicar-se como uma das mais extraordinárias aberrações do espírito humano.

Nada é claro, nem positivo
no positivismo: nem sabe-se bem o que vem a ser metafísica, segundo a
compreendem os positivistas que, combatendo-a, começam por confundi-la com a
teologia. Mas é contra ela no modo comum de falar, que mais exaltados se
mostram, por tal modo que o que se entende por positivismo é justamente o
contrário da metafísica. Daí uma grande incerteza e uma extrema obscuridade nas
idéias fundamentais do positivismo, sendo que a única coisa a deduzir-se com
segurança é que a filosofia vem a ser para os positivistas a mesma coisa que a
ciência.

Daí vem que o positivismo
não é propriamente uma ciência, nem tampouco uma filosofia, mas o conjunto de
todas as ciências, o último grau do desenvolvimento intelectual, a ciência no
último ponto a que pode chegar completamente e definitivamente organizada. É
assim que começando pela matemática, termina pela sociologia, abrangendo a
ciência dos corpos brutos e a ciência dos corpos orgânicos, sendo que fora daí
não há nenhum conhecimento possível. Nisto está o vício fundamental do
positivismo, que tem a pretensão de querer fechar o ciclo da evolução universal
do pensamento, tornando inútil o esforço de quaisquer outros pensadores porque
Augusto Comte já explicou e resolveu tudo.

De tudo isto é fácil
de ver que nada resulta com segurança, nem é possível nesta ordem de
investigações fazer a coordenação regular dos fatos, nem tampouco deduzir as
leis que os regulam. Só uma coisa se torna patente em face destes grandes
problemas e destas grandes questões: é de um lado, a extensão ilimitada, a
grandeza infinita da natureza: e de outro lado, o nada da ciência que apenas
conhece o aspecto exterior dos fenómenos e isto mesmo em seus caracteres mais
simples e naquilo que, no estado atual das idéias, é permitido à consciência
perceber e compreender. Mas conquanto seja quase nulo e totalmente
insignificante o que se sabe do mundo, em todo caso o conhecimento que se pode
considerar como já tendo sido verificado e que pode ser aceito como estando
provado de modo a não poder mais sofrer contestação, foi coordenado e
classificado e constitui o que se chama ciência. Mas o espírito humano,
partindo mesmo do conhecimento adquirido, continua sempre e indefinidamente na
exploração do desconhecido: é uma sede que nunca se esgota: e é justamente
nesta exploração do desconhecido que consiste propriamente a filosofia. Daí o
ponto de vista que julgo de necessidade adotar, por ser o único verdadeiro: a
ciência é o conhecimento já feito, o conhecimento verificado e organizado; a
filosofia é o conhecimento em via de formação.

Capítulo VI

AINDA
FILOSOFIA E CIÊNCIA (¹)

A doutrina que fica
exposta quanto ao modo de compreender a ciência e a filosofia, é a única
verdadeira, e é a que se deduz da observação imparcial e rigorosa dos fatos.
Não depende de prova, porque é até certo ponto intuitiva e se impõe por sua
precisão e clareza. É ainda a que está de acordo com a significação etimológica
da palavra filosofia que, como se sabe, vem do grego e quer dizer amor da
ciência.
Ora, amor é princípio que gera, amor é força criadora: de onde se
vê que, segundo a significação etimológica da palavra, a filosofia é exatamente
o princípio que gera, a atividade que produz a sabedoria. Conhecidas, porém,
apenas as linhas gerais desta doutrina, resta acrescentar algumas observações
particulares no intuito de comprovar pela história do pensamento a verdade
percebida pela observação direta dos fatos mentais.

Não se encontra entre os
pensadores modernos quem sobre este assunto apresente estudos de modo a dar
prova de uma compreensão clara da questão. Mas não se segue daí que ela já não
tenha sido pressentida e mesmo proposta.

(i) pg. 88

Capítulo VII (¹)

METAFÍSICA NATURALISTA

O
que é a metafísica?

A definição mais perfeita é
a que menos se afasta da significação natural das palavras. É o que deve ter
sempre em consideração todo aquele que escreve: e em verdade nada é mais
condenável que a obscuridade, nada é mais prejudicial para a elucidação da
verdade que as divagações incongruentes e estéreis e sobretudo as combinações de
palavras vazias de sentido.

Nestas condições vejamos:
quando é que se diz que uma coisa é metafísica? Pense cada um como entender,
mas eu só chamo metafísico aquilo que excede a alçada da física, aquilo que não
pode ser explicado mecanicamente. Ora, de modo a poder ser percebido pela
consciência, de modo a poder ser considerado como objeto de conhecimento e de
estudo, só há uma ordem de fenómenos que não podem ser explicados
mecanicamente: são os fenómenos psíquicos.

Interrogue cada um a
própria consciência, consulte-se a história da filosofia em todos os tempos: é
esta a verdade das verdades. De modo que pode se afirmar sem nenhum receio de
contestação razoável que na natureza tudo é físico, exceto os fenómenos
psíquicos. É possível imaginar que haja em outros seres manifestações psíquicas
mais elevadas, muito mais elevadas, mesmo infinitamente mais elevadas do que as
que observamos no homem: porém, são sempre manifestações psíquicas. E fora do
que se passa no espaço e no tempo, isto é, fora do movimento; fora do que se
passa na consciência, isto é, fora do pensamento, não existe mais nada.

Só há, pois, na natureza
duas coisas: movimento e pensamento, nada mais. Ou pelo menos tudo o que se
conhece ou pode ser conhecido reduz-se a estes dois grandes fatos. Nestas
condições o objeto da metafísica fica determinado pela própria natureza das coisas.

Mas daí não se segue
que a filosofia seja somente a metafísica, nada mais. Ao contrário, o que a
análise exata das operações do espírito demonstra é isto: há a filosofia que é
o fenómeno fundamental da mentalidade, a filosofia que é, como já disse, o próprio
espírito humano em sua atividade permanente: a filosofia que é, por assim
dizer, um mundo em via de formação, ou mais precisamente, a nebulosa de que se
forma o mundo do pensamento; e da filosofia resultam gradativa e paralelamente
duas ordens de ciências em desenvolvimento indefinido: as ciências físicas, que
têm por objeto o movimento e todas as suas condições e modalidades, desde o
espaço e o tempo até as operações biológicas; e as ciências psíquicas ou a
metafísica propriamente dita, que tem por objeto os fenómenos de sentimento,
conhecimento e ação.

(i) pp. 101-109

 

É a metafísica assim
compreendida que eu chamo metafísica naturalista. E por que naturalista? Simplesmente
por isto: porque trata-se aqui de uma metafísica que não precisa era coisa
alguma de recorrer ao sobrenatural, de uma metafísica que se funda
exclusivamente nas revelações da consciência e que pode estabelecer-se sem que
por modo algum seja necessário ultrapassar a esfera da natureza. Ora, a
natureza tal como se manifesta à consciência, decompõe-se unicamente em duas
ordens de fenómenos: fenómenos objetivos, o movimento, a matéria, a força: e
fenómenos subjetivos, o sentimento, o conhecimento, a ação; mas se tanto uns
como outros nos são revelados pela consciência, e o que mais é, em condições
perfeitamente idênticas, pois que não se apresentam como duas coisas distintas,
mas simplesmente como as duas faces opostas mas inseparáveis de uma só e mesma coisa;
se assim é, como não pode ser contestado, não há razão para que somente os
fenómenos objetivos sejam considerados como naturais, devendo os outros, isto
é, os fenómenos subjetivos ou fenômenos de sentimento, conhecimento e ação, ser
considerados como estranhos à natureza.

Capítulo VIII (¹)

FILOSOFIA E POESIA

Se a filosofia é uma
concepção do mundo e como tal não é conhecimento feito, mas unicamente
conhecimento in fieri. segue-se que nada pede ser rigorosamente
estabelecido em seu domínio, porque sempre que qualquer ordem de conhecimento
chega a ser devido mente verificada, destaca-se da filosofia para ser
incorporada à ciência. Daí o caráter variável e incerto das construções
filosóficas, que tendem necessariamente a ser substituídas por outras que de
mais a mais se aproximem da verdade, a qual nunca poderá ser obtida inteira e
completa. Demais, à proporção que nosso conhecimento aumenta, tais riquezas e
tais mistérios nos revela a natureza, que ao pasmo sucede o pasmo, tornando-se
cada vez mais patente o contraste que existe entre o nada do que se sabe e o
imenso do que se ignora. De tudo isto resulta que a filosofia até certo ponto
participa dessa feição idealista e fantástica própria das obras artísticas,
razão pela qual já se tem dito que os filósofos são poetas que erraram sua
profissão.

(1) pp. 110-117

 

Há certamente muita
analogia entre a filosofia e a poesia: ambas nascem das mesmas fontes ocultas
do espírito; e demais, se a poesia é, como se sabe, a expressão mais completa
do sentimento do belo, acontece que a filosofia é o que há de mais belo no
mundo. Mas a filosofia vem de mais longe, prende-se a elementos mais profundos
na natureza e, debaixo de certo ponto de vista, compreende tudo, inclusive a
poesia.

Antes de tudo,
porém, é bom observar que quando falo em poesia, não me refiro propriamente à
linguagem metrificada. A poesia não é somente o verso, nem mesmo principalmente
o verso. Ao contrário, pode-se sustentar com muito fundamento que o verso vai
em decadência crescente e tende a desaparecer.

Não é, pois, do
verso, nem mesmo da poesia em sua acepção comum, mas da poesia em sua
significação mais ampla, que vou tratar, e assim compreendida, a poesia é
eterna, porque nasce da essência mesma da natureza.

A história é sem
dúvida uma série de lutas intelectuais e de lutas físicas ou económicas: mas é
também e ao mesmo tempo uma série de lutas emocionais; e a lágrima, o
sentimento, o entusiasmo, o amor, não deixam de exercer poderosa influência
sobre a vida e sobre os destinos do homem.

Dante, afogando-se em um oceano
de luz, depois de haver passado pelos sombrios horrores do inferno; Dante,
afagando a imaginação e inundando as profundezas d’alma com a deliciosa
perspectiva da felicidade celeste, depois de haver feito sentir os horrores do
inferno; Dante, dominado por uma só idéia que o inflamava, a idéia de Beatriz,
confundindo-se com a idéia mesma da humanidade; Dante, o profundo Dante, com
seu admirável poema, não foi um simples exercício de metrificação, o produto de
um longo e paciente trabalho, porém, os mais elevados paroxismos, os últimos
delírios, a profundeza, o transcendentalismo do amor. Quem foi que no meio das
grandes agitações da sociedade, entre a alegria e a tristeza, o prazer e a dor,
o sorriso e a lágrima, em face das grandes lutas da humanidade, tendo em vista
os incompreensíveis arcanos do coração e as produções admiráveis do pensamento,
alguma vez não sentiu-se poeta? Há momentos em que um só homem concentra em si
a totalidade das emoções que constituem a vida da humanidade: é quando uma
grande idéia revoluciona o seu ser.

Este prisma luminoso e
fantástico, misto de coração e de imaginação, misto de pensamento e de sonho
através do qual contemplamos o mundo é o que se chama propriamente poesia.

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