Continued from: Raimundo de Farias Brito - textos inéditos e dispersos (antologia)

O MOMENTO MAIS FELIZ DE MINHA VIDA

Meu caro amigo:

Se
a pergunta que me faz, fosse formulada de modo vago, indeterminado, nestes
termos, por exemplo — quais os momentos mais felizes de sua vida? — não se
seria possível responder. E isto porque os nossos momentos de felicidade, os
meus, pelo menos, são em geral tão incertos, tão passageiros e instáveis, que
apenas passam, são logo esquecidos. De certo tenho tido os meus momentos
felizes. Todos os têm, ainda os mais desgraçados. Mas esses momentos são
rápidos e passam quase sem deixar lembrança. São como leves murmúrios numa
sinfonia em que predominam as notas fortes e ásperas. E o prazer e a dor em
geral se misturam nas nossas sensações como o "oxigênio e o azoto no ar
que respiramos, como a água e o álcool no vinho que bebemos".

É o que faz ao mesmo tempo amarga e deliciosa a vida. Por
tal modo que, por mais que nos seja trabalhosa a existência, em

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rigor não temos razão para queixas
e lamentações, porque, não raro, é nos momentos em que mais sofremos que nascem
as nossas melhores inspirações e as nossas mais altas esperanças, e era geral não
sabemos distinguir onde termina a dor e onde começa a alegria. E não será a
alegria, como pretendem alguns, um simples fato negativo, consistindo
unicamente no alívio que experimentamos pela cessação de uma dor?. . .

Todas as nossas alegrias são
sempre misturadas de amargura.

—    Sofres?… És feliz?.. . Quanta
gente não poderá dar a mesma resposta a qualquer uma destas perguntas, duas
vezes no mesmo dia? E quantos não se enganariam respondendo a qualquer delas

—    sim ou não: — É que nem sempre
temos consciência clara do que nos sucede e não sabemos muitas vezes se o que
nos aflige é um bem ou um mal. E é bem sabido que há dores que salvam, como há
alegrias que matam. Demais: todas as nossas impressões se confundem na massa
comum dos fatos de consciência. Tudo se vai aí escurecendo. E das dores mais
violentas, como das alegrias mais intensas, não nos resta depois de certo
tempo, senão uma vaga lembrança que gradativamente se vai enfraquecendo, e por
vezes de todo se apaga. É por isto talvez que vivemos sempre à cata de
sensações novas.. .

Não lhe poderia, pois, eu dar notícia dos momentos felizes
de minha existência. Já não os compreendo, já não os sinto, já não precipício e
vê escapar-se-lhe o único meio ou a única possibili-sei onde ficaram. São como
tintas que se apagaram num quadro que a todo instante se renova e sem cessar
muda de fisionomia.

Todavia,
como sua pergunta individualiza o caso e diz expressamente — qual o momento
mais feliz —, é-me permitido responder com toda precisão, porque tenho
realmente um memento que posso considerar o mais feliz de minha vida.

Devo
observar que minha vida é extremamente simples. Nada tenho de notável. Sou
verdadeiramente o que se pode chamar um homem sem história, porque nunca se
passaram comigo coisas extraordinárias. Nunca ocupei posição saliente. Nunca
exerci, nem pretendi exercer influência ou domínio sebre quem quer seja. Nunca
alcancei em cousa alguma vitórias ruidosas. Mas também nunca fui vencido. Nunca
tive assim a impressão da vitória, nem da derrota, — as duas cousas, ao que
penso, que mais abalam. Tenho, além disto, vivido, como homem de pensamento,
quase só. Deste modo nunca fui combatido, mas também nunca recebi nenhum
estímulo. E sinto-me só, às vezes, quando ferve em torno de mim o tumulto e me
cerca a multidão. Por isto sou triste. É que a tal ponto me acabruha o
sentimento da solidão que há ocasiões em que chego, por assim dizer, a perder a
consciência de mim mesmo.

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Tenho, não obstante, nos momentos
difíceis, uma resistência extraordinária. Neste ponto sinto que não sou comum.
Parece-me até que a coragem cresce em mim quando as dificuldades aumentam. E
quando o perigo chega ao último limite, já não me abala. Torno-me assim
insensível a toda a desgraça, revelando-se-me, em certas ocasiões, no fundo do
ser, energias que me surpreendem. É só 6 que percebo que existe em mim de
excepcional. Tudo o mais é comum, tudo o mais é banal; como comuns e banais são
as impressões que me causam os acontecimentos diários. Estas impressões passam
e logo se apagam. E deixam-me sempre indiferente e frio. Mas esse momento que
considero o mais feliz de minha vida deixou impressão funda que jamais poderá
apagar-se. E — coisa singular! — esse momento foi o mais feliz e foi também o
mais desgraçado de minha existência. Foi aquele em que mais sofri, ou, pelo
menos, aquele em que sofri a minha mais terrível decepção ou desengano.

Não vem aqui a propósito entrar em detalhes. E pouco importa saber o que foi que sofri. Isto é secundário. Imagine o meu amigo
alguém que foi condenado à morte e espera, impaciente e nervoso, o memento da
execução; ou que se acha à beira de um dade de salvação: alguém, por exemplo,
que é envolvido por um incêndio e vê invadida pelas chamas a única porta de saída.
Pois foi uma cousa pior que tudo isto o que se passou comigo. Era uma situação
desesperadora, angustiosa, terrível. . .

Não se apoderou, entretanto, de mim, o desânimo. Pelo
contrário: um poder estranho agitou-se em mim. E eu tudo poderia experimentar naquela ocasião, menos o sentimento do medo. E a necessidade que eu sentia era
a revolta.

A despeito de tudo, contive-me. Mas todo o meu ser se
contorcia numa reação tremenda. Eu sentia uma como impressão de aniquilamento,
como se tivesse sido estrangulado. Nesta situação tive febre. E veio como
consequência da febre fortíssimo delírio. Pois bem: esse delírio foi exatamente
o momento mais feliz de minha vida.

O que experimentei, o que eu via e sentia naquela situação
excepcional, não é possível descrever. Em primeiro lugar naquele estado eu era
inacessível a qualquer dor, como se tivesse passado por um processo de
anestesia geral. Depois nada me parecia impossível, como se eu tivesse feito a
aquisição de novos e estranhos poderes, de novas e estranhas aptidões. Eu tinha
a clara pecepção das cousas, mas sem que ficasse isto sob a dependência de
minha sensibilidade. Não é que eu tivesse perdido os meus sentidos: eu via e
ouvia, eu tinha todas as sensações a que estamos sujeitos. Mas em mim, naquela
ocasião, as sensações, quando as experimentava, eram já de natureza puramente
ideal: o que quer dizer que me davam a percepção das cousas, mas sem me fazerem
nada sofrer. Tudo isto me dava um bem-estar, uma alegria tal que dela eu não
poderia jamais fazer nenhuma ideia, senão sentindo-a. Minha inteligência,
entretanto, tornou-se mais viva; mas isto em proporção que a mim mesmo causava
espanto. Era uma cousa inexplicável. Cada ruído, cada som, cada movimento, o
mais leve murmúrio, a mais leve agitação que se passava em torno de mim, era
como uma linguagem que eu sabia interpretar e que me revelava o que há de mais
oculto nas cousas. Fatos obscuros de minha própria vida que eu nunca soubera
interpretar, apresentara-se-me ali com a máxima clareza. E eu li no meu
passado, como tive também a visão de fatos que depois se realizaram.

A
alegria que experimentei foi tão grande que fiquei como louco. Eu dizia, por
exemplo: — Esta pedra fala. — E a pedra, de fato, apesar de sua impenetrável
mudez, estava falando para mim. As pessoas presentes (e eram todos amigos) me
tomaram efetivamente por louco. Eu o compreendi claramente e senti que tinham
razão. Mas no fundo de minha consciência, eles é que se me apresentavam como
loucos, porque não tinham nenhuma noção do que se passava e não poderiam
compreender-me. E inspiravam-me a mais profunda piedade, como se fossem
realmente loucos.

Este delírio durou uma noite inteira e só terminou quando começava
a aparecer a luz do dia.

Tal
foi o momento mais feliz de minha vida. Foi também o mais cruel. E não desejo
que se reproduza. E quando penso no que se passou comigo naquela noite, o
sentimento que experimento, é ainda o de terror.

Tive a clara visão da morte. Esta se me afigurou o mais
desejável dos bens e a suprema vitória. E realmente assim é. E se não pensamos
assim, e em geral temos horror à morte, é porque não temos nenhuma noção de sua
significação e destino; ao mesmo tempo que um instinto desconhecido, mas
poderoso e invencível, nos impele a trabalhar com todo o esforço pela
conservação da vida.

 

 

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