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II

FILOSOFIA DOS ÁRABES

Quando os árabes entraram no terreno da civilização, sua filosofia limitava-se àquelas noções de psicologia prática, produto da experiência, que nos ensinam nos livros, embora sejam as únicas de que geralmente se faz uso na vida.

Os gregos, que foram seus primeiros mestres em diversas ciências, foram-no também em filosofia, e as obras de Aristóte-

Fig. 218 - inscrigães da capa de um antigo Corão (Ebers).

Fig. 218 – inscrigães da capa de um antigo Corão (Ebers).

les, Tales, Empédocles, Heráclito, Sócrates, Epicuro e todos os autores da escola de Alexandria logo passaram ao idioma árabe.

Mas se bem que em todas as ciências susceptíveis de comprovação experimental, os árabes não tardassem a exceder seus mestres, em filosofia adiantaram pouco em virtude dela se não prestar a esses trabalhos comprobatórios.

Embora os filósofos fossem muito apreciados nas universidades, eram mal reputados entre as massas, e para evitar que suas doutrinas as sublevassem os califas viram-se freqüentemente obrigados a desterrá-los por certo tempo.

Contudo a oposição popular não deixava de ter bons fundamentos, pois os filósofos haviam terminado por repelir a maioria dos preceitos do islamismo, admitindo apenas os dogmas fundamentais como a unidade de Deus e a missão de Maomé. Em vez de se limitarem a expor suas idéias diante das pessoas ilustradas, ensinavam-nas publicamente com grande escândalo dos crentes.

Verdadeiramente pertencem aos árabes as primeiras manifestações do que nos tempos modernos foi chamado de livre pensamento. Apesar da grande reserva que os filósofos se viam obrigados a guardar em seus livros, não podiam deixar de expor neles, com freqüência, reflexões que indicam bastante cepticismo. Vemos por exemplo Alul-Alá-it-Tannuki, que vivia no século X, assegurar que no mundo há duas classes de gente: "os que possuem talento e carecem de religião, e os que, possuindo religião, carecem quase por completo de talento".

A fim de ficarem em paz com as massas, os filósofos árabes resolveram separar a religião da ciência, como formalmente o demonstra o célebre Algazali, que ensinava em Bagdad no século XI.

"As verdades consagradas pela razão — diz êle, -— não são as únicas, pois existem outras das quais o nosso entendimento é incapaz de dar-se conta, sendo-nos portanto forçoso aceitá-las embora não possamos deduzi-las logicamente de princípios conhecidos. Nada existe que não seja razoável, ad-

mitindo que sobre a esfera da nossa razão há outra esfera, a da manifestação divina; e se ignoramos por completo seus direitos e leis, basta para admiti-la que o entendimento possa aceitar a probabilidade de sua existência".

O filósofo árabe mais conhecido e mais influente da Europa foi o famoso Averroes, o qual, embora geralmente tido por simples comentador de Aristóteles, parece mostrar em seus comentários ter ido por vezes muito mais longe que seu mestre. Com efeito, não poucos pontos de suas doutrinas fariam ainda hoje boa figura. Se Averroes não foi um livre pensador no sentido que agora se empresta a esta frase, pode dizer-se que falou de muitas coisas de modo bastante livre. As passagens seguintes sobre a imortalidade da alma e as bases da moral, que extraio- do sr. Renan, darão idéia de sua grande independência.

"Segundo Averroes, o intelecto universal é incorruptível e separável do corpo, e o intelecto pessoal perecível, morrendo com o corpo.

"Ensinava a negação da imortalidade e da ressurreição, bem como a doutrina de que os homens não devem esperar outra recompensa além da que obtenham aqui na terra com sua própria perfeição.

"A distinção dos indivíduos nasce da matéria, sendo a forma, ao contrário, comum a todos; e como o que produz a permanência é a forma e não a matéria, a forma dá nome aos objetos, e por isso um machado sem corte não é um machado, e sim um ferro. Só por abuso se pode chamar homem a um cadáver. Desse modo, como pluralidade o indivíduo desaparece, mas como representante de um tipo, isto é, no conceito de membro de uma espécie, é imortal. –

"Além disso a alma individual nada percebe sem a imaginação, e assim como os sentidos só ficam impressionados em presença dos objetos, assim também a alma pensa apenas diante da imagem; daí resulta que o pensamento individual não é eterno, pois se o fosse as imagens também o seriam, e que, embora incorruptível em si mesmo, o intelecto é corruptível por sua maneira de trabalhar.

A respeito dos mitos populares sobre a outra vida, Aver roes não esconde a aversão que lhe inspiram. "Entre as ficções perigosas — diz êle, — devem figurar as que apenas consideram a virtude como um meio de alcançar a felicidade. A virtude assim considerada não tem valor nem mérito algum, pois se o homem se abstém de ser voluptuoso o faz guiado pela esperança de obter ampla recompensa por essa abstenção, e portanto o árabe não vai em busca da morte senão para evitar maiores males, e se o judeu respeita os bens do próximo é unicamente com o intuito de adquirir o dobro. Semelhantes fábulas apenas servem para falsear o espírito do povo, sobretudo das crianças, sem qualquer vantagem para os tornar melhores. Conheço homens de perfeita moralidade que repelem todas essas tolices, sem que por isso sua virtude seja inferior à dos que as admitem".

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