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III

LITERATURA DOS ÁRABES

A poesia entre os árabes- — A antiga literatura do Iemen e de outras partes civilizadas da Arábia é-nos completamente desconhecida; suas obras mais recentes são posteriores à era cristã e pouco anteriores e Maomé, constando de poesias guerreiras em que se celebram as batalhas e o amor. Como os gregos das idades heróicas, os árabes gostavam que a música sonora de seus poetas louvasse suas façanhas.

Essas poesias exprimem-se freqüentemente por meio de imagens e símbolos, únicas formas acessíveis a povos primitivos que sentem vivamente e pensam pouco, diferindo muito das poesias bíblicas, das quais não têm nunca o tom profético nem o lirismo sanguinário e sombrio; suas descrições de batalhas em nada se parecem com os relatos de bárbaros morticínios, degolamentos, extermínios e perpétuas maldições de Jeová que enchem o Antigo Testamento.

A popularidade da poesia entre os árabes teve como resultado dar grande importância aos poetas, que assim excitavam conforme lhes parecia os ressentimentos, e cercavam de fama ou cobriam de vergonha uma tribo. Tão grande era

Fig. 219 — Inscrição ornamental' formada pela combinação de caracteres cúficos.

Fig. 219 — Inscrição ornamental’ formada pela combinação de caracteres cúficos.

a sua influência que no tempo de Maomé os coraixitas ofereceram ao poeta Al Acha cem camelos para que êle não divulgasse certos versos compostos em favor do Profeta.

O culto da poesia era tão desenvolvido entre os árabes, que muitos séculos antes de Maomé já haviam sido criados concursos literários, aos quais se apresentavam poetas vindos de todos os pontos da Arábia. Esses concursos celebravam-se na pequena cidade de Ukad, perto de Attaif, a três jornadas de Meca, e as obras dos vencedores eram inscritas em letras de ouro sobre telas preciosas, pendurando-se na Caba de Meca para serem legadas à posteridade.

A poesia desenvolveu-se especialmente no século anterior a Maomé, generalizando por toda a parte a linguagem depurada que usavam os poetas e contribuindo para se fundirem

numa única língua os diferentes dialetos falados em diversos pontos da Arábia.

Em virtude do costume de conservar na Caba as poesias mais notáveis, sete desses poemas, as mualakat, chegaram até nós, e são obras que descrevem as guerras da Arábia, a rude e selvagem natureza do deserto, as aventuras dos nômades, etc.

O extrato seguinte pertence ao poeta Tarafa, e dá uma idéia da vida à qual os filósofos mais cépticos pouco teriam de acrescentar:

"O homem que por meio de uma conduta generosa sustenta a nobreza de sua linhagem, logra abandonar sua alma à embriaguez dos prazeres enquanto goza a vida. Se a morte nos arrebatar amanhã, saberás então qual de nós dois terá de arrepender-se por não ter apagado hoje toda a sua sede. Nenhuma diferença consigo ver entre o sepulcro do avaro, estupidamente econômico de suas riquezas, e o do libertino que as prodigalizou em prazeres; ambos jazem sob um montão de pó, e os dois túmulos são cobertos por largas e grossas lousas.

"Para mim, a vida é um tesouro do qual cada noite que passa nos rouba certa quantidade, e um tesouro continuamente diminuído pelos dias e os tempos não tardará a esgotar-se- Sem dúvida acontece com os prazos que nos dá a morte para descarregar seu golpe decisivo, o mesmo que com a corda que retém o camelo num pasto, pois embora a morte conceda aos homens uma sombra de liberdade, deixando flutuar por alguns instantes a corda que nos tem seguros, nem por isso é menos certo que a ponta está em sua mão".

Colocarei agora diante destes pensamentos notáveis um canto de guerra que Palgrave recolheu no Nedjed, pois embora seja desconhecida a data em que foi composto, oferece todavia, como o anterior, uma idéia clara do modo de pensar de um guerreiro árabe:

"Eu disse à minha alma, um instante atemorizada à vista dos batalhões ameaçadores:

"— Que vergonha! Porque tens tanto medo?

"Embora empregasses todo o poder das tuas faculdades em prolongar por mais um dia que fosse a tua existência além dos limites fixados pelo destino, baldados seriam teus esforços.

Fig. 220 a 223 — Seio dos quadro primeiros califas, Abu-Bekr, Omar, Othman e Ali.

Fig. 220 a 223 — Seio dos quadro primeiros califas, Abu-Bekr, Omar, Othman e Ali.

"Cercam-nos os vagalhões da morte e nossa vida no mundo não pode ser eterna. Os longos dias não são para o guerreiro uma vestimenta de honra, pois essa vestimenta só assenta bem aos corações fracos e covardes.

"A morte é o termo da vida: a ela vão dar todos os caminhos.

"Aquele que não tomba no campo de batalha, cai nas garras da doença e da decrepitude.

"A vida não é um benefício para o homem; a vida não é digna de seu amor porque a velhice logo o transforma num objeto inútil e desprezível".

A poesia continuou a ser cultivada enquanto durou a civilização árabe, mas, segundo parece, não remontou a maior altura que antes da época do Profeta. Todo o homem instruído, fôsse êle diplomata, astrônomo ou médico, era ao mesmo tempo poeta, e assim houve motivo para dizer que os árabes produziram sozinhos mais poesia que todos os demais povos do mundo juntos, sendo tão grande o seu carinho por ela que muitas vezes redigiram em verso livros de teologia, filosofia e até álgebra. A maioria de seus escritos são entremeados de trechos poéticos.

Atribuiu-se à influência dos poetas árabes de Espanha a origem das poesias espanholas e provençais, e embora esta opinião me pareça tão fundada quanto a anterior, seu desenvolvimento exigiria mais considerações do que as cabíveis aqui.

Contos e novelas. — Além da poesia, todos os gêneros de literatura como novelas de aventuras, de cavalaria e de amor, fizeram parte dos cultivados pelos árabes- Nessas obras trata-se perfuntóriamente de tudo o que concerne à psicologia dos personagens, mas õ que se referia às aventuras e episódios maravilhosos dava grande realce às produções. Aqueles extraordinários artistas embelezavam com sua incomparável imaginação tudo quanto tocavam1.

Os árabes foram os verdadeiros criadores dos livros de cavalaria, a cujo propósito diz Sedillot: "Na Espanha a imaginação dos poetas ocupava-se em fazer novelas e contos, pois

(1) A imaginação dos árabes e sua tendência para tudo embelezar manifesta-se nas coisas mais comuns, como vemos nas perífrases empregadas pelos vendedores das ruas de Damasco para atrair a atenção dos compradores. O vendedor de flores anuncia-as gritando: Amansa tua sogra, coisa aparentemente tão difícil no Oriente ccmo no Ocidente. O vendedor de agriões assegura que a velha que os comer ficará jovem no dia seguinte. Para anunciar que as amêndoas estão bem torradas, seu proprietário garante que os dentes não as podem quebrar. Uma simples torta é um manjar de andorinhas, e o figo é o fruto do Baal, etc.

os sectários de Maomé sempre foram grandes narradores; chegada a noite reuniam-se em suas tendas para ouvir alguma história maravilhosa, à qual se misturavam, como em Granada, a música e o canto. O romanceiro, composto de peças imitadas ou traduzidas do árabe, traça com exatidão as festas daquele tempo, os jogos de argola, as corridas de touros, as batalhas entre cristãos e mouros, as façanhas e danças dos cavaleiros, e aquela delicada e rebuscada galantaria que tão famosos tornou em toda a Europa os mouros de Espanha".

Entre os contos árabes mais conhecidos destacam-se os de Al-hariri, de Al-hamadani e dos autores das Mil e Uma Noites.

As Sessões de Al-hariri são famosas em todo o Oriente. Al-hariri nasceu em 1054 e morreu em 1131 em Bassora, apóster adquirido a reputação de ser um dos homens mais sábios do seu tempo. A Biblioteca Nacional de Paris e a do sr. Schefer possuem um formoso manuscrito ilustrado dessa obra.

Fig. 224 — Friso de uma taça árabe, formando inscrição pela deformaçuo da parte inferior dos personagens.

Fig. 224 — Friso de uma taça árabe, formando inscrição pela deformaçuo da parte inferior dos personagens.

 

Al-hamadani morreu em 1007, e adquiriu também grande celebridade nesse gênero de composições; sua memória era tão fenomenal que recitava um poema ouvido apenas uma vez. Era também famoso pela pureza da linguagem e pela elegância das palavras que empregava em suas improvisações.

De todas as obras dos narradores árabes, a mais conhecida é sem dúvida o maravilhoso livro das Mil e Uma Noites-A origem desta coletânea tem sido muito discutida, e quase

se dá hoje por provado que se compõe ds trabalhos procedentes de épocas muito diversas, alguns anteriores ao século X, como indica a menção feita por Al-massudi em seu livro as Pradarias de Ouro, composto naquele tempo. Embora as Mil e Uma Noites contenham relatos tirados dos hindus e dos persas, a maioria foram compostos desde o século XIII ao XV por vários árabes do Egito. O sr. Weil, professor de línguas orientais em Heidelberg, diz no prólogo da edição alemã que publicou das Mil e Uma Noites, acompanhando o texto oriental, que sem a menor dúvida quase todos esses contos são árabes, e muito diferentes dos de origem hindu e persa que figuravam na coletânea conhecida sob o mesmo título nos primeiros séculos do islamismo.

Apesar de seus visíveis defeitos esse livro é um dos mais surpreendentes que ainda se escreveram, e além disso sua leitura é tão instrutiva como interessante, pois nos dá notícias exatas acerca dos costumes, sentimentos e idéias dos árabes em várias épocas.

A este respeito, a história que serve de preambulo à obra é muito curiosa e lança uma luz viva sobre a psicologia íntima dos orientais, quanto à parte impulsiva de seu caráter, sua opinião sobre as mulheres, etc. Os contos e lendas de um povo constituem um manancial de provas que a história desdenhou por muito tempo, mas cuja importância já se começa a reconhecer, e no estudo de uma população muito curiosa que pudemos observar nos montes Tatras, a análise dos cantos populares e das lendas forneceu-nos as mais preciosas notícias para reconstituir a psicologia dos antepassados de um povo cuja história nunca foi escrita.

Fábíãas e provérbios. — As fábulas apólogos e provérbios gozavam de muito favor entre os orientais, por serem um gênero de literatura que fala claramente ao espírito e se fixa com facilidade na memória, ao passo que os raciocínios abstratos fatigam e se esquecem logo.

O mais célebre fabulista é o lendário Lukman, de quem Maomé fala no Corão como um modelo de cordura. Alguns autores dão-no por contemporâneo de Davi e até de Abraão, embora outros suponham tratar-se de um personagem diferente, posterior a Maomé. Mas a semelhança de seus apólogos com os de Esopo parece indicar que eles foram tomados deste autor, ou pelo menos que ambos têm a mesma procedência.

Fig. 225 — Inscrição árabe moderna, tirada de uma casa de Damasco pelo autor.

Fig. 225 — Inscrição árabe moderna, tirada de uma casa de Damasco pelo autor.

Os provérbios árabes são numerosíssimos. A Espanha e o resto da Europa tiraram deles muitos dos que possuem, sendo de origem muçulmana a maioria dos que constituem a caudal inesgotável da sabedoria de Sancho Pança.

A fim de dar uma idéia dos provérbios dos árabes, citarei alguns, tirados de um trabalho de Piesse:

"A vida sob a asa de uma mosca vale mais que o sonho do cemitério.

‘Aproveitai a mocidade, porque a vida não passa de um instante.

"Acaba esta noite com teus desgostos, porque não sabes o que te acontecerá amanhã.

"Se falares com um ferreiro te mancharás de ferrugem, e se com um perfumista te impregnarás de olores aromáticos.

"O amor se apaixonaria até por um pedaço de pau.

"Aquele que se casa com mulher formosa, por sua formosura, sairá com as mãos na cabeça; o que se casa com mulher rica, pela riqueza, mostra ser cobiçoso; só o que se casa com mulher sensata pode realmente dizer que se casou.

"Se fordes queridos pelas mulheres, quantas portas se vos abrirão! mas se vos detestarem, enredar-vos-ão em teias de aranha como entre paredes de ferro

"Uma posição mediana e a tranqüilidade valem mais que a opulência e os cuidados.

"Em boca fechada não entram moscas.

"A prudência vale a metade da vida, e dizem até que vale a vida inteira.

‘O rato não pode engendrar outra coisa que não seja um rato.

"O arbusto que dá a rosa, dá também os espinhos.

"Aconselha-te sobre o que te faça chorar, e não sobre o que te faça rir.

"Agir com oportunidade é triunfar.

"Há três qualidades que valem por trinta: a formosura, a piedade e a discrição no amor.

"Há duas criaturas que nunca se consideram fartas: o sábio e o rico".

História. — Numerosos foram os historiadores árabes, pois Hadji Kalfa em sua biblioteca oriental cita 1200. Como todos os historiadores da Idade Média, imitados nisto por muitos autores modernos, carecem geralmente de espírito crítico; e se digo geralmente, é por existirem poucos, entre êle Ibn Khaldun que possuíram no mais alto grau esta qualidade magistral.

Um dos mais antigos historiadores muçulmanos é Ta-bari, que em fins do século IX compôs uma crônica universal abrangendo desde o princípio do mundo até ao ano 914

da nossa era- Um dos mais famosos é Almassudi, que viveu no século X, e escreveu diversos livros históricos como a História Contemporânea, as Pradarias de Ouro, etc. "Ao folhear suas obras — diz Quatremère, — fica-se espantado de vê-lo escrever sobre tantas matérias, resolvendo tantas questões importantes e difíceis; sua erudição era imensa para o tempo em que viveu, e êle não apenas lera e meditara os livros concernentes aos árabes como chegara até a abarcar em suas vastas investigações a história dos gregos, dos romanos e de todas as nações orientais antigas e modernas".

Fig. 22G — Inscrição árabe moderna, tirada de uma casa de Damasco

Fig. 22G Inscrição árabe moderna, tirada de uma casa de Damasco pelo autor.

 

Os historiadores árabes compuseram muitas histórias universais, cumprindo citar a de Abul-Faradj, morto em 1286.

Ibn Khaldun, nascido em 1332, é o historiador dotado de senso crítico de que falamos há pouco, sendo autor de uma História dos berberes que se inicia expondo excelentes princípios de crítica histórica e foi traduzida para o francês.

Almakrisi, contemporâneo do anterior, compôs uma história do Egito que ainda hoje é a maior autoridade no que respeita a esse país. Esta obra devia fazer parte de uma crônica geral que compreenderia oitenta volumes.

Annuairi, que morreu no Egito em 1331, compôs uma grande Enciclopédia Histórica.

Fig. 227 — Fragmento de inscrição de um cofre persa incrustado de nácar (coleção Schefer), segundo fotografia do autor.

Fig. 227 — Fragmento de inscrição de um cofre persa incrustado de nácar (coleção Schefer), segundo fotografia do autor.

Abulfida, soberano de Hamah, morto em 1331, é conhecido ao mesmo tempo como historiador, geógrafo e guerreiro, e escreveu uma história do gênero humano útil de consultar em tudo o que se refere ao Oriente.

Os árabes também possuiram grande número de biógrafos, sendo a biografia mais conhecida a intitulada Biblioteca Oriental de Hadji Kalfa, morto em 1658, que contém 18 500 indicações de obras orientais, juntamente com o nome de cada autor e uma nota biográfica de todos.

Retórica e eloqüência. — Como os autores árabes davam grande importância à forma de seus escritos, redigiram muitas obras de gramática e retórica, e só na biblioteca do Escoriai, apenas representando um minúsculo resto da literatura árabe de Espanha, e que por casualidade se salvou da destruição, Casiri encontrou mais de 300 volumes sobre retórica. Essas obras não foram traduzidas, e creio que seria de pouco interesse fazê-lo, pois para julgar uma literatura é necessário estudar as obras do povo e não seus tratados de gramática Além disso, os livros de gramática e retórica não passam de derivado das obras literárias. O estudo da gramática e da retórica servirá para polir o estilo, mas nunca para o formar.

Também não podemos julgar da eloqüência dos árabes por seus tratados de gramática e retórica, pois fora do ensino das universidades eles só deviam conhecer a eloqüência religiosa, já que outra não consentia o seu regime político. Embora a eloqüência sagrada seja todo poderosa sobre as massas orientais, não chegou até nós nenhum dos discursos que produziu.

O resumo que aí fica deve apenas considerar-se um breve extrato do sumário da história da literatura dos árabes. Todavia, talvez tenha bastado para dar uma idéia da importância e variedade de seus trabalhos literários, única coisa a que, poderia aspirar uma obra tão condensada como a nossa.

arte árabe abstrata

Tradução de Augusto Souza. Fonte: Paraná Cultural ltda


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