O SOPRO IMORTAL

maio 31st, 2005 | Por | Categoria: Redação sem Máscara        

Nei Duclós

O SOPRO IMORTAL

O texto é uma criatura que precisa ter fôlego para sobreviver ao criador. O barro das palavras não é suficiente. É preciso soprar nele uma alma imortal. Feito o verbo do Criador, que a partir do mundo concreto, as consoantes, animou pelas vogais o próprio desdobramento, à sua imagem e semelhança. A divindade entrou no perigoso jogo da invenção porque gostou do que tinha feito. Sua extrema bondade decidiu dar a luz a quem estava fora dele. Assim também a literatura. Não basta reproduzir o próprio poder numa infinidade de linhas. É preciso que em cada uma delas alguma coisa viva se mexa, e é essa animação que mantém acesa a chama que permanece. Escreva para o momento em que você não estiver mais sobre a terra e usufrua desse milagre que salta diante dos olhos como uma alegoria. Não há amor maior do que descobrir no que você escreve o rastro de uma estrela em formação.

ARTHUR – A crônica sofre do mal da nossa época, que é insistir no presente, ou melhor, nas ilusões do tempo. Os autores procuram o supérfluo, determinados a não cansar os leitores com o brilho misterioso no alto da montanha. Perda de tempo. Na hora em que você termina o artigo, ele já se torna antigo, e quando vai para a publicação, chega morto ao público. Como tudo já foi escrito, ninguém mais se abala com a mínima provocação, a não ser que você encarne um espírito maior e vista a túnica de Merlin. Lá estão os adolescentes tentando tirar a espada da pedra.

Um deles será o escolhido. Quando Arthur consegue repetir três vezes o gesto impossível, Merlin sabe que chegou a hora. Fique de tocaia na hidra que se mexe no fundo da gruta. Ela tem mil cabeças e um milhão de olhos. Mas sobre isso que parece um monstro existe apenas areia. Sua opção pode ser o uso de um pouco de poeira para fazer funcionar a clepsidra. Mas há outro caminho, não isento de sacrifício. Você entona a voz de trovão e fala para os arbustos. O vento debocha das suas intenções. Mas de repente surge a salsa ardente e você vislumbra o eco da passagem dos centauros. Tudo besteira, dirão, não há verbo se a linguagem está em ruínas. Quem é você para contrariar os desígnios do Mal?

Mas você tem uma arma secreta: sabe que vai morrer. Por isso joga o cântaro sobre o grão fino do deserto e atira-se ao pequeno monturo que consegue reunir. Quando tudo parece esvair em seus dedos, recite a frase mágica. E, como o Criador, descubra a vogal sem nome, aquele grito dado por Deus quando viu-se cara a cara com o espelho. Lá nascerá a sua fonte. Mas não se atire nela. Dê de beber aos beduínos sedentos. Eles azeitarão as armas em tua defesa.

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