QUANDO FALTA LUZ
dez 18th, 2009 | Por Nei Duclós | Categoria: Contos, CrônicasNei Duclós
A cidade fica toda escura e a casa é invadida por mãos cegas em busca de fósforos. onde coloquei a vela? é a pergunta mais comum. Custa um pouco colocar ordem no mundo desconhecido que se instala com a escuridão completa que chega até o horizonte. Longe, atrás do monte, um clarão se vislumbra; mas para lá não fica o mar, o pampa? De onde vem a luminosidade? Será a esperança que se recolhe numa distância prudente, esperando que nós, os eternos pessimistas, possamos recuperar o que perdemos subitamente? Depois de xingarmos todas as estações de energia, todas as empresas que deveriam providenciar o que nos falta, depois de nos acostumar ao fato de que deveremos cruzar a madrugada sem poder ler um livro, ver o jogo, nos reunimos em silêncio na varanda para acumular nosso desconforto.
SURPRESA – As nuvens estão pesadas, prenunciando uma noite sem estrelas e uma lua oculta. Não perderemos muito, pois a fase é um passo além da minguante, quando a lua torta parece um pedaço de algo que foi arrancada com os dentes e jogada no cosmo sem dó. No abafo da nossa preocupação, eis que um risco de luz nos surpreende. Um vagalume! exclama alguém que estava de frente para a eternidade da noite. Há quanto tempo não vejo um? Eles estão sempre aí, nós é que não vemos devido às luz elétrica, observa outro. Vamos chegar perto do terreno baldio em frente, eles devem estar lá.
CORPO – É verdade. Coalhados como pequenos diamantes lapidados no fundo de uma cesta gigante, os vagalumes fazem sua assembléia perto do ninho dos quero-quero, os pássaros que expulsaram as corujas depois que a prefeitura multou o proprietário por não ter limpado o terreno. Raparam tudo e o resultado foi a ave sentinela se instalar, pois quero-quero é como o gaúcho: gosta de ver à distância, em território limpo, e anunciar quando chega alguém. Tu por aqui? Quando chegaste? E quando vais? Não te prenderam ainda? Mas engordaste, hem. O corpo humano é um acontecimento a ser punido nessa abertura sem fim permitida pelo descampado. Ninguém escapa do olho clínico num lugar feito para enxergar o inimigo. É por isso que a noite súbita, adensada pela falta de luz, ajuda a criar aquele ninho oculto, necessário para sobreviver. O que deslumbra é o rebanho de vagalumes voando em espiral diante de nosso rosto que fica imóvel para não assustar essas lanterninhas químicas, misteriosas por gerarem o que mais nos falta.
DESPERTAR – Levam um toco de vela para a varanda e a criança quer tocar na chama. Ela está feliz, sacudindo seu chocalho para fazer o ritmo necessário às canções que começam a brotar das gargantas. Cercada pelo escuro, seu rosto assustado aos poucos relaxa e já está sorrindo novamente, alimentando a algazarra. Mas a chama é um evento poderoso demais para ser deixado de lado. Ela pára de tocar seu instrumento e levanta um braço em direção ao fogo. Isso queima, não pode, avisam os adultos. Mas quem convence uma criança? Ela desperta o choro e só acalma quando fica bem em frente à vela acesa. As lágrimas ainda correm banhando seu novo sorriso diante de mais um acontecimento. Ela comenta tudo, com sua véspera de linguagem. Não tentem esconder a luz de quem desperta para a vida.
SOM – Não importa o black-out, há vagalumes. Não importa o horizonte incendiado, a chama está bem diante dos olhos. Não importa se a luz não voltará jamais. Temos nosso ritmo, que se manifesta junto com as canções eternas. A música está dentro de nós e em nenhum outro lugar. Basta puxar pela memória e tudo vem, aos jorros. Como podemos viver sem isso todos os dias? Como perdemos a pista da nossa sonoridade? A resposta vem quando a luz volta. Queremos ver quanto está o jogo. Perdemos o primeiro tempo, é o intervalo publicitário. Toca algo sofrível. Morre-se pelo ouvido. Tiramos o som da TV, ligamos o rádio. É pior.
SONHO – Sentimos então saudade da varanda escura, quando pudemos ver os vagalumes. A falta de energia é a nossa volta ao planeta Terra. Visita temporária, que acaba quando os carros novamente ousam ressuscitar, espantando os vagalumes reunidos em assembléia. O que há com os quero-quero? Por que não se insurgem contra essa traição? As aves do pampa estão recolhidas, atentas aos gaviões que espreitam em cima dos morros. Quando houver lua cheia novamente, será a guerra. É hora de fechar todas as janelas. E reinventar a penumbra, para que nossa alma aflore outra vez, ao som daquela canção que fala: a quietude é quase um sonho…
… e o silêncio nunca foi tão caro!
Pode-se estar numa caverna q a qq hora toca um celular!
Poucos são os lugares q restaram para ouvir a nossa alma.
Gostei muito do texto! Identifiquei-me com ele, principalmente, naquele apagão, do ano passado.
O senhor não precisa de estímulos para continuar! É um gênio! De qq maneira, é um privilégio ler os seus textos.
Sou a favor de criarmos um abaixo assinado para termos “outubro” de volta! Gostaria de te-lo em minha biblioteca.
Escreva para [email protected] que tenho uma surpresa boa para vc. Abs.
[…] QUANDO FALTA LUZ […]