6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eis o esquema que apresento – para dar
início ao fechamento dessa obra: a representação da Genealogia do Ócio. Tal
representação divide-se em dois planos distintos, com a linha da vida a separar
esses planos: de um lado o ócio afirmativo da vida, de outro o ócio que nega a
vida. Há, ainda, um terceiro plano, que é o plano do Lazer. Mas esse surge
posteriormente em nossa genealogia – surge já decadente, degenerado, pois não
tinha possibilidade de ser exercido como ócio. Surge a discussão do Lazer
enquanto categoria de tempo, ao que temos três respostas: a de Lafarque, a de
Russel e a de Nietzsche. Por fim, acontece a recuperação do ócio, através de
sua forma como experiência de lazer.
Mas mostrar que o ócio pode ser tido como
forma de experiência de lazer no cenário social atual foi apenas a tarefa menor
do primeiro capítulo dessa obra. A genealogia do ócio nos permitiu observar
toda a importância que o acesso a essa condição de vida possuiu ao longo dos
tempos – trata-se da própria história da valorização de determinadas virtudes
do ser-humano. Dentro dessa história, o que nos importa é notar o momento de
ruptura que o ócio teve com o surgimento da ética protestante aliada ao
espírito do capitalismo.
Tal momento representou a derrota do
valor do ócio renascentista, que mal chegou a se afirmar. A possibilidade que
tinha o ócio de novamente converter-se em valor que afirma a vida foi
destruída, findando-se o próprio ócio e surgindo a dimensão do lazer atrelado à
categoria de tempo. Um passo primordial na recuperação do valor do ócio
afirmativo da vida foi dado por Di Grazia, ao entender que o ócio é possível
enquanto experiência de lazer, sendo um agir conforme a vontade.
Porém, não é qualquer vontade que
caracteriza o ócio. E, num cenário em que existe um poderoso e ardil mecanismo
para inculcação da vontade de consumir – soberana para o sustento do sistema
capitalista de organização social -, é perigoso os caminhos que o ócio pode
trilhar ao apenas afirmar a atividade conforme a vontade, sem qualificar essa
vontade. E aqui surge a importância dessa proposta: o ócio enquanto vontade
para dignificar a existência humana, que é o “torna-te aquilo que tu és”. O
curioso é que essa proposta é o reatar histórico do valor de ócio renascentista
– afirmativo da vida -, que mal chegou a se constituir.
Mas porque tal valor é afirmativo da
vida? Porque o “torna-te aquilo que tu és” é considerado aqui como essência da
própria vida e, sendo assim, o ócio é uma atividade libertadora da escravidão
da humanidade, que são aquelas atividades que não levam à essência da vida.
Esclarecido qual o formato de ócio que se
pretende considerar, surge a proposta de uma educação pelo e para o ócio: a
(des)educação. Trata-se da educação do riso e do esquecimento, do conhecimento
e da história na medida certa para o “tornar-se quem se é”, dos mestres como
modelos e com a abolição da figura do professor. É educação que não se preocupa
somente com o trabalho e a cultura de massa: preocupa-se, sim, com a formação
de indivíduos de cultura elevada – com a formação equilibrada da personalidade,
conforme cada um é – culminando no desabrochar de alguns Super-Homens. É
educação sem currículo, sem sistematização do conhecimento, voltada para a
prática da vida – em que “os modos de vida inspiram maneiras de pensar e os
modos de pensar criam maneiras de viver” (DIAS, 1991, p. 32-33)[1].
Mas para chegar-se até essa
(des)educação, faz-se necessário a implantação de uma educação transitória: uma
proposta que coloque a educação atual no trilhar que ruma àquela primeira. Tal
educação inicia-se com a mudança de um princípio fundamental do formato da
educação que se encontra hoje: o princípio de que a educação deve ser para
todos. O princípio que colocamos no lugar deste é de que a educação deve ser
para quem quer conhecimento, sabedoria. Nesse novo cenário, o indivíduo não se
vê obrigado a buscar uma qualificação somente para seu trabalho – talvez num
primeiro momento isso seja ainda necessário, mas, gradualmente e paralelamente
ao aumento do acesso ao ócio de maneira global, tal qualificação irá perdendo
seu sentido. Essa educação transitória consiste em espaços utilizados para a
transmissão do conhecimento – ao qual se deu o nome de Institutos de Pesquisa
-, em diversos campos do conhecimento, mas um conhecimento no sentido da
“auto-reflexão crítica”[2].
Nessa educação transitória é de extrema
importância que se coloque a tecnologia em seu devido lugar, ou seja, a serviço
de toda a humanidade. Ela poderia ter sido a responsável pela realização do
ideal Iluminista – a liberdade, conquistada através da igualdade de condições
de ócio/econômicas[3] –, mas
foi usada de forma contrária, acabando apenas por confirmar uma vez mais a
desigualdade de condições. Aqui a vontade de poder se efetivou como hegemonia
econômica de alguns, sinal de que existem diferentes condições de ócio, mas tão
melhor seria se o ócio fosse igual para todos! Isso porque me parece que em
igualdade de condições econômicas – ou seja, mesmas condições de óciolto a ma italista -icar o tempo de trabalho, aparece a
mecanizaçravos. – é que aparecerão múltiplos Super-Homens: justamente
porque num cenário assim, em que a igualdade econômica já está selada, a
vontade de potência pode ser exercida em outras facetas da cultura, como na
Arte e na Filosofia, por exemplo.
Dessa forma, a melhor educação possível é
aquela que permite o desabrochar dos questionamentos mais subjetivos por parte
de cada indivíduo e que facilita o máximo possível o acesso às respostas.
Porém, além disso, é aquela que ensina que não adianta o saber pelo mero saber,
é preciso saber degustar e experimentar esse saber, vivenciando-o. Ora, mas
essa é justamente a cabeça do filósofo. No entanto – afirma-se mais uma vez: a
melhor educação possível só existirá a partir do momento em que as diferenças
entre os indivíduos não sejam medidas pelas diferenças econômicas, mas sim
medidas pelas diferenças entre as avaliações que esses indivíduos fazem – que
são as manifestações das diferentes interpretações do mundo para cada um. Isso
porque a diferenciação econômica alça o mais pobre a uma condição de sub-vida,
sub-existência, já que ele terá menos condições de ócio que outros indivíduos mais
ricos – e é no ócio que ele “torna-se quem ele é”, dignificando sua existência.
Ora, se existem condições para que mais indivíduos tenham acesso ao ócio – e
aqui me refiro especificamente à tecnologia – é por certo que assim deve ser
feito: ao invés de debatermos sobre as mazelas sociais causadas pela
desigualdade econômica – essa indignidade de viver uma vida com pouco ou até
mesmo sem ócio -, debateremos sobre as questões existenciais propostas pela
filosofia e arriscaremos respostas através da arte, conforme nossas avaliações.
Portanto, antes de ter-se a melhor
educação possível, faz-se necessária uma educação que nos leve até lá. Uma
educação que se pretenda valorizadora do ócio, superadora do trabalho, que
coloque a tecnologia em seu derradeiro lugar, que substitua o poder político
pela igualdade de condições para o agir politicamente. Numa sociedade assim,
até Sêneca, que propõe o afastamento do agir político por causa da degeneração
do Estado – como mostrado no capítulo da Genealogia do Ócio –, até mesmo
ele agiria politicamente.
Observemos agora – com atenção – uma
árvore:
Figura 7 – Árvore.
A princípio uma árvore comum. Mas olhais
com mais atenção… Será que conseguíeis ver mais do que uma simples árvore?
Será que não são figuras humanas a brotar da árvore? Estranha figura: ao mesmo
tempo em que representa a natureza – em formato de árvore – representa também
interpretações humanas. Mas interpretações sobre o quê? Seriam essas
interpretações acerca da própria natureza? Se levarmos em consideração que os
rostos estão “brotando” da árvore, poderíamos inferir numa linguagem simbólica,
que sim: são rostos interpretativos da natureza. Mas será que pode representar
outra coisa com sua linguagem particular?
Sim. Tal figura pode muito bem
representar o próprio Super-Homem que conhecemos aqui nessa obra. Se adotarmos
que a árvore – seu tronco e seus galhos secos – é a própria representação do
Super-Homem inicial, que considerou-se no início da Genealogia proposta; então
as rostos que brotam da árvore seriam novas faces do Super-Homem –
perspectivas, interpretações, todas diferentes de si, na medida em que cada uma
é feita por um sujeito diferente, por um comentador diferente. Isso mostra que,
ao olhar-se para a mesma coisa com outra pessoa, interpretações particulares
surgirão – importando, a partir daí, a comunicação dessas diferentes
interpretações. Não a tendência ao consenso, mas sim a tendência de levar cada
um ao questionamento de sua própria interpretação – resultando num embate de
forças entre várias vontades de poder, pois cada interpretação de cada sujeito
é “real” para si próprio.
Então, o tronco e os galhos secos da
árvore representaria: “Sua única virtude é a coragem. Dotado de extrema
valentia e capacidade de luta, o Super-Homem também consegue, motivado pela
auto-superação, ser o criador. Mas cria para quê? Para transvalorar os valores:
a substituição das tábuas de valores tradicionais por tábuas de valores novas –
e, além de novas: moldáveis, inconstantes, flexíveis, que se movimentam. Ele
existe para multiplicar e afirmar a vida: um eterno e inocente sim – inocente
tal qual uma criança, que antes foi leão e, antes ainda, camelo.[4]”
E a partir daí, cada rosto representaria
um comentador e sua interpretação acerca do Super-Homem, perfazendo outros
caminhos, abrindo novas perspectivas de quem é ele – e, também,
complementando-o.
1) Héber-Suffrin: coloca a “Morte de
Deus” como primeira etapa da transvaloração – primeira condição de existir para
o Super-Homem. Alçado à metafísica do eterno retorno, o Super-Homem agora
entende que “afirmar o eterno retorno é, ao mesmo tempo, fazer do físico objeto
do metafísico” (1991, p. 111).
2) Mauro Cardoso Simões: insere a questão
da valoração do corpo e da terra para o Super-Homem. O corpo como “mão da
vontade”, como “grande razão”, face à “pequena razão” que é o espírito. “Cumpre
agora engendrar uma nova concepção da humanidade, condição para a criação de
novos valores, em que o corpo seja prezado, e com ele a terra e a vida” (2003,
p. 73).
3) Alberto Onate: sua contribuição está
em reconhecer o sentido para o Super-Homem, constituindo-se na sua tarefa e no
próprio ócio: “para cumprir essa tarefa – ajudar cada um dos indivíduos a
tornar-se quem é – o humano deve converter-se em Super-Homem” (2004, p. 14,
adaptado). É conexão do ócio e do Super-Homem.
4) Paul Valadier: “O Super-Homem
nietzscheano não é o atleta da perfeita soberania sobre si, mas aquele que
chega a um domínio suficiente para ser criador; assim é o artista na posse de
seus meios, ou a criança” (2004, p. 6). A conexão do Super-Homem com a educação
pelo e para o ócio através da alegoria da criança, do jogo, da inocência.
5) José Amorim de Oliveira Júnior: esse
comentador faz vários questionamentos acerca do Super-Homem e da sua
existência, contribuindo nos seguintes assuntos:
– Os principais atributos do Super-Homem:
“autonomia e criação de seus próprios valores” (2004, p. 170).
– Como pensá-lo a partir da
auto-superação:
Se a essência da criação é a
superação incessante, o super-homem, sendo o indivíduo que se auto-supera
continuamente, constitui-se, também, como o tipo criador, posto não haver
superação sem criação (2004, p. 174).
Mas é exatamente o que já foi dito em
nosso tipo inicial: o super-homem consegue, motivado pela auto-superação, ser o
criador.
– Ele ocupa um lugar de destaque na
tipologia nietzscheana: Simões considera “a presença de dois elementos básicos
na tipologia nietzscheana: o fraco e forte” (2004, p. 111). Dentre os primeiros
– os fracos -, ele inclui o último homem, o homem superior, o décadent e
o escravo. Dentre os segundos – os fortes -, estão o senhor, o aristocrata, o
espírito livre e o super-homem. Sendo o super-homem um dos tipos considerados
fortes, ele ocupa sim um lugar de destaque na tipologia nietzscheana.
– O Super-Homem é um télos a ser
alcançado: eis a afirmação de Zaratustra: “o que há de grande, no homem, é ser
ponte, e não meta” (NIETZSCHE, 2003, p. 38). Dessa forma, enquanto meta do
homem, o super-homem é sim um télos. Porém, Simões invoca a presença de
dois autores – Türcke e Ansell-Pearson – que afirmam que Nietzsche fica preso à
lógica do ideal. Nessa polêmica, optou-se – nessa obra – por posicionar-se à
favor da interpretação que diz que o Super-Homem é um télos a ser
alcançado – visto que senão a Educação pelo e para o ócio que culmina na
existência do Super-Homem seria algo vazio.
– O Super-Homem não deve ser uma meta
para todos: o que fortalece essa interpretação são dois fatores: (a) o da
coexistência do super-homem numa multiplicidade de tipos e (b) ele ser fruto da
vontade humana – é preciso querer tornar-se Super-homem para assim vir-a-ser.
– Ele é fruto da vontade humana: o fator
(b) citado acima é a resposta que aponta para essa afirmação.
Eis, pois o Super-Homem: uma árvore cheia
de facetas! Infinitas são as facetas do Super-Homem, porque ele é o próprio
devir vivo – ele nunca é, ele está sempre “vindo-a-ser”.
7 EPÍLOGO
Caríssimo mestre Salomão,
Lá pelos idos de nosso primeiro encontro
– era ainda final do último verão -, tu me pedistes para arrolar, de maneira
esquemática, clara e concisa cada um dos conceitos-chave dessa obra. É certo
que àquela época eu tinha mais perguntas do que respostas, e que os conceitos
ainda estavam – em grande medida – encobertos de uma nebulosa, o que dificultou
o acesso às respostas. Não que hoje seja diferente – eu ainda tenho mais
perguntas do que respostas -, mas pelo menos parte da nebulosa foi desfeita.
Como julgo ser do teu desejo libertar-te dessa nebulosa também, eis que, nessa
carta, faço o que foi pedido. Peço-te, no entanto, que não se importe com a
demora no atendimento de teu pedido: agradeçamos, pois, à vida – que nos
permitiu vivos até esse momento de esclarecimento.
·
Genealogia: método que aponta
quem fez as transvalorações de um determinado valor em questão, sendo esse
momento a ruptura de seu valor;
·
Ócio: conceito variável ao
longo da genealogia. Ao final, conclui-se que é atividade conforme a vontade,
mas não de qualquer vontade, sim daquela no sentido de “tornar-se quem se é”,
dignificar a existência do humano;
·
Educação: relações sociais de
aprender-ensinar-e-aprender;
·
“Torna-te aquilo que tu és”:
busca essencial do ser-humano, que dignifica sua existência, que é o sentido
proposto – aqui nessa obra – para o ócio conforme a vontade, que é caminho para
a conversão no Super-Homem;
·
Educação de transição: é a
educação que leva à (des)educação. Seu princípio é a educação para quem quer,
não para todos de forma coagida. Visa a maximização do ócio – através da
tecnologia -, sendo uma educação com o sentido da “auto-reflexão crítica” dos
indivíduos;
·
(Des)educação: ou educação
pelo e para o ócio. É uma educação assistemática, difusa, espontânea, baseada
no ensino dos grandes mestres naturalmente nas relações sociais de aprender-ensinar-e-aprender;.
·
Super-Homem: é o criador, por
excelência. Através de sua coragem e auto-superação, ele é o humano que
consegue tornar-se quem ele é – afirmando assim a própria existência. É télos
da educação pelo e para o ócio – a (des)educação;
·
Vontade de poder/potência:
querer vir-a-ser mais forte. O vir-a-ser aqui é o próprio corpo onde se
manifesta a vontade de poder/potência; pois ali é tudo potência, força, poder,
nada é absolutamente. É a auto-superação criativa.
[1] Conforme página 90 do Capítulo quarto dessa obra.
[2] Conforme página 104 do Capítulo quarto dessa obra.
[3] A relação entre “ócio” e “economia” exposta aqui, justifica-se porque o
conceito de economia considerado é o exposto por Domenico de Masi: “A economia
é, a partir de sua própria definição, a disciplina especializada no incremento
do ócio, propondo-se a estudar os métodos para alcançar o máximo de resultados
com o mínimo de esforço” (2001, p. 12).
[4] Conforme página 110 do Capítulo quinto da presente obra.4