Lúcio Cornélio Sila – Plutarco – Vidas Paralelas

SUMÁRIO  DA  VIDA  DE  SILA

I. Família
e fortuna de Sila. II.
Sua inclinação pelos ditos
espirituosos e pelos bons pratos. III. Boco
entrega-lhe Jugurta. IV.
Diversas ações de Sila, quando
sob as ordens de Mário. V. Origem do ódio
entre Mário e Sila.    VI.    Sila é
nomeado pretor.VII.    
É     enviado     à    
Capadócia     na     qualidade     de     legado. VIII.     Predição
de sua futura grandeza. IX. Novos motivos
de inimizade entre Mário e Sila. X. Êxito deste na
Guerra dos Aliados. XI.
Sila atribui todos os seus
êxitos à sorte. XII.
Acontecimento que lhe augura a
autoridade soberana. XIII.
Irregularidade de seu caráter
e de sua conduta. XIV.
É nomeado cônsul. Seus
casamentos. XV. Começo da guerra civil. ‘ XVI. Presságios. XVII. Retrato de Sulpício. XVIII. Êle
faz com que se dê a Mário o comando, na guerra contra Mitrídates. XIX. Pretores ultrajados pelos soldados de Sila.
XX. Presságios que levam á Sila a seguir para
Roma. XXI. Embaixadores enviados a Sila pelo Senado. XXII. Êle entra na cidade. Mário foge. XXIII. Sila põe sua cabeça a prêmio. XXIV. Parte para a guerra contra Mitrídates. XXV. Situação dos negócios de Mitrídates. XXVI. Cerco de Atenas. XXVII. Sila manda retirar as riquezas do templo de Delfos. XXVIII. Comparação entre os antigos generais de
Roma com os do tempo de Sila. XXX. Retrato do
tirano Aristião. XXXI.
Ocupação e saque de Atenas. XXXII. Sila faz cessar a carnificina, ante os
rogos de Mídias e de Calí-fonte. XXXIII. O tirano
Aristião entrega-se. XXXIV.
Sila passa pela Beócia. XXXV. Desprezo demonstrado pelo inimigo ante o
número reduzido de suas tropas. XXXVI. Sila
apodera-se de uma posição vantajosa. Salva a cidade de Queronéia. XXXVII. Presságios que lhe anunciam êxitos. XXXVIII. Desaloja o inimigo da montanha de Túrio e
alcança completa vitória. XLIII. Exibe os troféus e manda celebrar jogos. XLIV.
Dorilau, general de Mitrídates, ataca-o na Tessália.    XLV.    Descrição do
rio Mélane. XLVI. Nova vitória alcançada por Sila. XLVII. Entrevista de Sila
com Arquelau. XLVTII. Sila faz as pazes com Arque-lau. XLIX. Os embaixadores de
Mitrídates recusam as condições ditadas por Sila. L. Encontro de Sila e
Mitrídates. LI. A paz é ratificada entre eles. LII. Sila arruina a Ásia Menor.
LIII. Apropria-se em Atenas das obras de Aristóteles e de Teofrasto. LIV. É
atacado de gota. LV. Sátiro encontrado junto de Apo-lônio. LVI. Presságios
favoráveis a Sila. Derrota o cônsul Norbano. LVII. Um escravo prediz-lhe êxito
na guerra. LVIII. Lúculo, capitão de Sila, derrota um exército muito superior
ao seu, em número. LIX. Sila trava batalha com o jovem Mário. LX. Alcança a
vitória. LXI. Telesino ameaça ocupar Roma. LXII. Sila ataca-o. LXIII. Reúne o
Senado e manda degolar seis mil homens. LXIV. Reflexões sobre a modificação
verificada nos costumes de Sila quando se tornou senhor da situação. LXV.
Horríveis proscrições ordenadas por Sila. LXVII. Manda matar doze mil homens em Preneste. LXVIII. Proclama-se ditador. LXIX. Renuncia à ditadura. LXX. Prediz a Pompeu a
guerra que teve logo depois contra Lépido. LXXI. Dedica o dízimo de seus bens a
Hércules. LXXII. Casa-se com Valéria. LXXIII. É atacado pela doença pedicular.
LXXIV. Exemplos de enfermidades semelhantes. LXXV. Sua morte. LXXVI. Seus
funerais.

 

Do ano 616 até o
ano 676 de Roma; 78 A. C.

 

SILA – Plutarco Vidas Paralelas (Bioi Paralelloi)

Baseado na tradução em francês de Amyot, com notas de Clavier, Vauvilliers e Brotier.

Tradução brasileira de José Carlos Chaves. Fonte: Ed. das Américas

I. Lúcio
Cornélio Sila pertencia a uma família de patrícios, que em Roma constituem a
nobreza. Um de seus antepassados, chamado Rufino, chegou ao consulado (1), mas
tornou-se mais conhecido pela infâmia que o marcou do que pelo posto a que foi
elevado. Com efeito, foram encontradas em sua casa mais de dez libras de
baixela de prata, o que era naquele tempo proibido terminantemente pela lei: e
devido a esta contravenção, foi destituído do cargo de senador e proibido de
entrar no Senado. Depois desta ignomínia, seus descendentes viveram sempre na
obscuridade; e o próprio Sila recebeu de seu pai haveres bem modestos. Durante
a sua juventude morou em casa alheia, pagando aluguel módico; e isto deu
motivo a que fosse censurado mais tarde, quando chegou a uma opulência que,
segundo se dizia, não merecera. Um dia, de volta da guerra da África, êle
começou a vangloriar-se desmedidamente, o que levou uma personagem de grande
reputação a dizer-lhe: "E como poderíeis ser um homem de bem se, nada
tendo recebido de vosso pai, hoje possuis um fortuna imensa?" Embora não
houvesse mais, entre os romanos, aquela antiga severidade de conduta e a pureza
de costumes de seus antepassados, e o fato de terem eles, em seu declínio,
aberto o coração ao amor do luxo e da suntuosidade, consideravam merecedores
de igual censura tanto os que não conservavam a pobreza de seus pais quanto
aqueles que dissipavam a riqueza que haviam recebido. Quando, tendo
concentrado em suas mãos grandes poderes, fazia perecer tanta gente, um filho
de liberto, que, suspeito de haver dado asilo a um prescrito, ia ser, somente
por isso, atirado da rocha Tarpéia, relembrou-lhe que ambos tinham morado durante
muito tempo na mesma casa, da qual êle alugara a parte mais alta por dois mil
sestércios, e Sila a de baixo por três mil, mostrando-lhe assim que a diferença
de sua fortuna não era senão de mil sestércios, ou seja, duzentas e cinqüenta
dracmas.

 

(1)    No ano 464 de Roma.

 

II. O que
ficou dito acima é o que existe de escrito em relação à primeira condição de
Sila, com referência a bens. Quanto ao seu corpo e à sua fisionomia, pode-se
fazer um julgamento pelas estátuas que restam dele: seus olhos eram brilhantes
e ardentes; e a cor de seu rosto tornava seu olhar ainda mais terrível, Era
vermelho escuro, com manchas brancas, e dizem que seu nome veio de sua côr.

Um pândego de Atenas
compôs, sobre o seu rosto, este verso satírico:

Uma amor a salpicada de farinha, eis Sila.

Não constitui uma
impertinência recorrer a tais traços (1) para retratar um homem como Sila. Êle
era, ao que se diz, de um caráter tão libertino que, quando ainda muito jovem,
e pouco conhecido, passava os dias em companhia de bufões e farsantes, bebendo
e comendo, numa vida dissoluta. Mais tarde, depois de haver usurpado a
autoridade, êle mandava vir do teatro, à sua casa, cômicos e histriões
escolhidos entre os mais impudentes, e passava noites inteiras a beber, na sua
companhia, por fiando todos para ver quem dizia as melhores pilhérias; desse
modo, desonrava a sua idade e a dignidade de seu cargo e, ao mesmo tempo,
sacrificava assuntos mais merecedores de seu cuidado. Uma vez à mesa, não se
podia mais falar-lhe de questões sérias; e, embora em outros lugares se
mostrasse sempre ativo, grave e severo, tornava-se um homem completamente
diferente quando se punha em tal companhia, para beber e comer. Passava então a
viver na mais íntima familiaridade com estes comediantes, farsistas e dançarinos,
que dele conseguiam tudo o que queriam.

(1) Não é ao
caráter, mas à pessoa ou ao físico a que Plutarco se refere, ao dizer que deve
ser permitido usar de semelhantes traços, quando se procura descrever um homem
como Sila.

III. Foi sem dúvida
destas companhias corruptas que lhe adveio a sua inclinação para a libertinagem,
bem como sua propensão para os vícios e os amores criminosos, que não
abandonaram nem mesmo na velhice. Amou, desde a juventude, o comediante
Metróbio, e conservou durante toda a vida essa paixão infame. Apaixonou-se
também por uma cortesã muito rica chamada Nicópolis, a quem o hábito de vê-lo e
a atração que sobre ela exerciam a sua juventude e beleza, inspiraram um grande
amor, de modo que, ao morrer, deixou-o como herdeiro. Recebeu também uma
herança de sua madrasta, que o estimava como se fosse seu próprio filho. Estas
duas sucessões proporcionaram-lhe uma grande riqueza. Foi mais tarde nomeado
questor de Mário, em seu primeiro consulado, acompanhando-o à África, a fim de
participar da guerra contra Jugurta. Logo após chegar ao acampamento, demonstrou
ser homem de grande coragem; e, tendo sabido aproveitar-se de uma circunstância
favorável, conquistou a amizade de Boco, rei dos númidas. Acolhera e tratara
com bondade embaixadores daquele príncipe que haviam conseguido escapar das
mãos de bandidos númidas, e, depois de oferecer-lhes presentes, deu-lhes uma
boa escolta, para protegê-los, no regresso a suas casas. O rei Boco odiava e
temia seu genro Jugurta, o qual, após ter sido vencido pelos romanos,
refugiou-se junto dele. Decidido  a  traí-lo,  mandou  chamar  Sila,  secretamente, pois preferia que seu genro fosse preso e entregue
aos romanos pelo questor, e não por suas próprias mãos Sila, depois de
comunicar o que ocorria a Mário (1), e de reunir um pequeno número de soldados,
para acompanhá-lo, foi expor-se a um grande perigo, confiando sua. pessoa a um
bárbaro, que não era leal nem para com seus mais próximos aliados, a fim de
apoderar-se de outro bárbaro.
Quando Boco viu um e outro ao alcance de suas mãos, e quando se viu forçado a
trair um dos dois, hesitou durante muito tempo entre as duas resoluções opostas;
finalmente, decidiu-se pela traição que havia planejado, primeiramente, e
entregou Jugurta às mãos de Sila.   

 

(1)    Isto  é  contado 
de  modo  um  pouco  diferente  na  Vida de Mário.

 

IV. Na
realidade, foi Mário quem conduziu este príncipe em triunfo, mas a inveja de
que era objeto o cônsul fez com que se atribuísse a Sila toda a glória do
aprisionamento de Jugurta. Mário ficou profundamente irritado, e para isso
concorreu a conduta de Sila. Naturalmente orgulhoso, e começando a adquirir
consideração após ter vivido obscuramente entre seus concidadãos, Sila foi
seduzido per este primeiro lampejo de glória. Tornou-se ambicioso, e, num excesso
de vaidade, mandou gravar aquela cena num anel que trazia sempre consigo e que
lhe servia de sinête. Na gravação via-se o rei Boco ao entregar Jugurta e Sila
recebendo-o.    Estas coisas desgostaram muito Mário, mas acreditando que Sila
não era ainda uma personagem suficientemente importante para justificar os seus
ciúmes, continuou a servisse dele na guerra. No segundo consulado, escolheu-o
para seu lugar-tenente; e, no terceiro, colocou sob suas ordens mil infantes.
Em todos os seus cargos, Sila alcançou grandes êxitos. Quando lugar-tenente de
Mário, aprisionou um general dos gauleses tectósagos, e quando comandava os
infantes agiu de tal maneira junto à grande e poderosa nação dos marsos, que os
persuadiu a se tornarem amigos e aliados dos romanos. Entretanto, tendo
percebido que Mário continuava secretamente seu inimigo, e que não lhe confiava
missões de importância e nem lhe proporcionava ocasiões para se assinalar,
prejudicando, ao contrário, sua carreira, êle se colocou do lado de Catulo,
que era companheiro de Mário no consulado.

V, Catulo era um homem de
bem, mas não muito inclinado às atividades bélicas, motivo por que confiava a
Sila todas as principais obrigações de seu cargo, permitindo-lhe, assim,
aumentar não somente seu poderio como sua reputação. Submeteu a maior parte
dos bárbaros que habitavam os Alpes; e como o exército romano estivesse
necessitando de víveres, Sila, encarregado por Catulo de obtê-los, fêz com que
chegassem em tal abundância que os soldados de Catulo, dispondo de quantidade
maior do  que a necessidade,  forneceram-nos ao exército de Mário. Este,
segundo escreveu o próprio Sila, aborreceu-se muito. Começou assim, tendo em
sua origem causas frívolas e pueris, o ódio entre ambos; mas, alimentado em
seguida pelas sedições e cimentado pelo sangue das guerras civis, resultou
finalmente na tirania e na derrocada total da República. Este exemplo
demonstra a sabedoria e o profundo conhecimento que tinha dos males políticos o
poeta Eurípides, ao recomendar (1) aos governantes que evitassem sobretudo a
ambição, por êle considerada como uma peste funesta e fatal àqueles que se dedicam
aos negócios públicos.

 

(1)    Penícias, V. 554.

 

VI.
Sila, acreditando que a reputação por
êle adquirida através dos feitos de armas era suficiente para abrir-lhe o
caminho às honras civis na cidade de Roma, logo que regressou da guerra
procurou sondar as tendências do povo, e inscreveu-se entre os candidatos à
pretura. O seu nome, contudo, foi recusado, na votação popular, e êle atribuiu
a causa do malogro à populaça, dizendo que esta última classe dos cidadãos
conhecia suas ligações de amizade com o rei Boco, motivo pelo qual esperava
que, sendo nomeado edil antes de chegar à pretura, êle promoveria espetáculos
atraentes, com grandes e magníficas caçadas e combates de feras da África, e
assim escolheu outros pretores, na esperança de que êle pleitearia a
edilidade.   Mas parece que Sila ocultou a verdadeira causa desta recusa, e os
próprios fatos o provam; pois no ano seguinte, tendo conquistado os favores do
povo, em parte por cortejá-lo, em parte por dinheiro, foi nomeado pretor.
Quando já no exercícioi da pretura, um dia, êle disse, encolerizado, a César:
"Usarei contra vós os direitos de meu cargo". "Tendes
razão, respondeu-lhe César, rindo, em dizer vosso cargo; êle vos pertence realmente,
pois que o comprastes".

VIL
Expirado o período de sua pretura,
Sila foi enviado para a Capadócia. O pretexto aparente. desta expedição era
recolocar Ariobarzane no governo de seus Estados, mas o seu verdadeiro
objetivo era reprimir as audaciosas empresas de Mitrídates que se intrometia em
tudo, e que estava empenhado em dobrar a superfície de seu império. Sila não
levou tropas muito numerosas da Itália, mas foi auxiliado com muito zelo e
dedicação pelos aliados dos romanos naquela região, e pôde assim desba raiar
grande número de capadócios, e um corpo ainda mais numeroso de armênios que
tinham acorrido em seu socorro. Expulsou em seguida Górdio do trono da Capadócia e nele recolocou Ariobarzane. Depois deste feito, quando
se achava às margens do Eufrates, recebeu em seu acampamento um parta chamado
Orobazo, embaixador do rei Ârsaces, da Pártia.

VIII.   
Ora,   as   duas   nações   até  
então   não tinham mantido qualquer espécie de relações, e considerou-se como
uma indicação da grande sorte de Sila o fato de os partas terem enviado
embaixadores a êle, pela primeira vez, com o propósito de obter a aliança e a
amizade dos romanos. Conta-se que para a recepção do embaixador, mandou
preparar três cadeiras, uma para. Ariobarzane, outra para Orobazo, e a
terceira, no centro, para êle, e nela sentou-se para a audiência. O rei dos
partas mandou depois matar Orobazo, por ter consentido que se aviltasse desse
modo a sua dignidade. Sila foi louvado por algumas pessoas por ter tratado os
bárbaros com tal altivez; outras o censuraram, dizendo que sua atitude não
passara de uma arrogância insultante e de uma ambição despropositada. Conta-se
que um adivinho calcídico, que participara da recepção como membro da comitiva
de Orobazo, após observar atentamente Sila, e examinar demoradamente todos os
movimentos de seu corpo, todas as expressões de sua fisionomia e de seu
pensamento, aplicou as regras de sua arte ao que pudera apreender de seu
caráter, e disse que esse homem chegaria necessariamente ao mais alto grau de
poderio e grandeza. Manifestou ainda sua surpresa pelo fato de Sila
conformar-se em não ser desde então o primeiro do mundo.

IX. Após regressar a Roma,
Censorino acusou-o de peculato, por ter se apoderado e trazido de um reino
amigo e aliado dos romanos uma grande soma em dinheiro, infringindo, assim, as
leis; mas desistiu de sua acusação e a questão não foi levada à justiça.
Entrementes a inimizade entre Mário e Sila foi reavivada por uma nova
manifestação da ambição do rei Beco, o qual, para se insinuar cada vez mais nas
boas graças do povo romano e para agradar a Sila, ofereceu e dedicou ao templo
de Júpiter Capitolino vitórias de ouro acompanhadas de troféus e de uma
estátua, também de ouro, de Jugurta, que Beco entregara às mãos de Sila. Mário
ficou tão irritado que quis mandar retirar pela força essas imagens do templo.
Mas os amigos de Sila tomaram partido em seu favor; e esta pendência teria
provocado a mais violenta sedição que Roma jamais conhecera, se a guerra dos
aliados da Itália, havia muito tempo em estado latente, deflagrando
repentinamente, não tivesse vindo, por algum tempo, apaziguar os ânimos,

X. Nesta nova guerra, uma das
mais importantes que os romanos tiveram de sustentar, seja pela diversidade
dos acontecimentos, seja pela série de males que suportaram e pelos perigos a
que se expuseram, Mário nada pôde fazer de notável, e demonstrou, com o seu
exemplo, que a virtude militar, para se assinalar, necessita da força e do
vigor do corpo. Sila, ao contrário realizou memoráveis proezas, adquirindo a
reputação de grande general entre seu:; concidadãos; na opinião dos amigos, era
o maior cabo de guerra de seu tempo, e os inimigos o consideravam como o mais
afortunado dos generais.   Mas não procedeu como Timóteo, o ateniense, filho de
Conão, que, tendo os inimigos atribuído todos os seus êxitos à fortuna, e
representado esta deusa num quadro, colhendo as cidades para ele com uma rede,
enquanto dormia, irritou-se contra os autores desse quadro, que, dizia, o
privava de toda a glória alcançada com seus feitos. Um dia, de regresso de uma
expedição, na qual havia sido bem sucedido-, depois de haver prestado contas ao
povo e exposto tudo o que fizera em sua ausência, disse: "Atenienses, a
fortuna não teve nenhuma participação em tudo o que vos narrei". Os deuses
ficaram tão indignados com esta estulta ambição de Timóteo, que, para puni-lo,
não permitiram que nada mais fizesse de notável; e, como não conseguisse
sair-se bem de nenhum empreendimento, passou a ser odiado pelo povo, sendo
banido de Atenas.

XI. Sila, ao
contrário, não- somente ouvia com paciência aqueles que elogiavam sua
felicidade e os favores recebidos da fortuna, como atribuía êle próprio todas
as suas belas ações a essa deusa, pretendendo assim divinizá-las de certo
modo, não se sabendo se o fazia por vaidade ou se porque acreditasse realmente
que os deuses o guiavam em todas as suas empresas. Escreveu mesmo, em seus Comentários, que de suas ações, todas muito bem preparadas e meditadas, as executadas ao
acaso, de acordo com as circunstâncias e contrariando os planos traçados, eram
sempre as que apresentavam melhores resultados. Ao acrescentar que nascera mais
para a fortuna do que para a guerra, parece que reconhecia dever seus êxitos
mais à fortuna do que ao seu valor; êle desejava, enfim, depender em tudo da
fortuna, e considerava mesmo como um dos favores particulares da divindade a
união constante em que viveu com Metelo, que exerceu as mesmas funções do que
êle, e que foi depois seu sogro, Era um homem tão digno quanto êle, e, assim,
no lugar das dificuldades que receava ter de enfrentar, ao seu lado teve um
colaborador atencioso e moderado (1). XII. Além
disso, nos seus Comentários, dedicados a Lúcuío, aconselha a este a considerar
como absolutamente certo tudo aquilo que os deuses lhe revelassem ou
recomendassem em sonho, durante a noite. Conta que, quando foi enviado,
juntamente com o exército romano, à guerra dos Aliados, | terra abriu-se
subitamente perto de Laverne (2), e da grande fenda que se formou saiu um fogo
enorme, elevando-se no ar uma chama brilhante; os adivinhos, explicando este
prodígio, declararam que um bravo homem, de uma admirável beleza, após chegar à
mais alta autoridade, livraria Roma das desordens e perturbações de que era
teatro. Acrescentou que esse homem era êle próprio. Sila, pois que possuía
traços de notável beleza e seus cabelos eram loiros como o ouro; além disso-,
podia considerar-se homem valoroso após os grandes e belos feitos que lhe
haviam dado renome. Mas já falamos bastante sobre a confiança que êle tinha na
divindade.

XIII, Sila era, aliás, muito desigual em toda a sua conduta,
e cheio de contradições. Às vezes, num lugar, tirava muito para si, e, em outro
dava ainda mais; cumulava certas pessoas de honrarias despropositadas e
insultava outras sem motivo; cortejava servilmente aqueles de quem
necessitava, e tratava duramente os que dele precisavam. Assim era o seu
caráter, de modo que não se sabia se era naturalmente arrogante e altivo, ou,
então, um vil bajulador. A sua conduta era igualmente desigual nas vinganças e
punições daqueles que o haviam ofendido. Condenava aos mais cruéis suplícios os
responsáveis por faltas as mais ligeiras, e suportava com calma as maiores
injustiças; perdoava facilmente ofensas que pareciam irremediáveis e punia os
menores erros com a morte a confiscação dos bens. Estas contradições poderiam
ser explicadas dizendo-se que, cruel e vingativo por natureza, êle ocultava,
com a razão, o seu ressentimento, quando o interêsse o exigia. Na guerra dos
Aliados, soldados por êle comandados mataram a pedradas e a bastonadas, um de
seus lugar-tenentes, chamado Albino, homem de reputação, que tinha sido pretor
(1) . Deixou que um crime tão grave passasse em silêncio e não puniu os
culpados; ao contrário, procurou dele tirar vantagem, dizendo qué seus soldados
se "mostrariam ainda mais obedientes e ardososos no decorrer da guerra, a
fim de que seu crime fosse reparado por atos de coragem. Não se incomodou mesmo
com ‘as censuras que lhe foram dirigidas; como já havia concebido o plano de
causar a ruína de Mário e de fazer nomear comandante das tropas que iam marchar
contra Mitrídates, pois que a guerra dos Aliados estava quase terminada, êle
agradava e lisonjeava, para poder alcançar seus objetivos, o exército que
comandava.

 

(1)
Sile Metelo foram c ônsules juntos
no ano de 674, sentiu já o primeiro ditador. Foi nesse ano que Cícero, com 27
anos pronunciou seu admirável discurso em defesa de Sexto RósoiQ Amerino.

(2)
Laverne era uma deusa venerada em
Roma pelos larl pios e impostores.      Ela tinha um bosque sagrado perto  da 
Via Salaria.   É, ao que parece, deste bosque, que se trata aqui.

 

XIV. De volta a Roma, foi
nomeado cônsul, juntamente com Quinto Pompeu, já aos cinqüenta anos de idade.
Casou, então, com uma mulher de casa ilustre, Cecília, filha de Metelo, que era
nessa época grande pontífice. Este casamento provocou da parte do povo canções
satíricas contra êle, e suscitou a indignação das principais personalidades, as
quais, segundo a observação de Tito Lívio, não acharam digno de tal mulher
aquele que lhes parecera digno para o consulado, Mas Cecília, não era a sua
primeira mulher: em sua juventude tinha tido’ outra, ília, que lhe deixara uma filha;
desposou depois Élia; e em seguida Célia, que repudiou como estéril, após tê-la
elogiado e cumulado de belos e ricos presentes. Entretanto, como se casou com
Metela poucos dias depois, acreditou-se que, para poder contrair este novo
casamento, acusara falsamente Célia de esterilidade. Seja como fôr, êle amou
Metela com constância, e teve para com ela as maiores atenções; e a tal ponto
que, tendo o povo romano pleiteado, um dia, a volta dos partidários de Mário
que haviam sido banidos, e vendo que Sila a isso se opunha, pôs-se a exigir em
altas vozes a presença de Metela, e implorou-lhe que servisse de mediadora. E,
ao que parece, a crueldade com que tratou os atenienses foi motivada apenas
pelo seu desejo de puni-los pelo fato de terem dirigido*, do alto de suas
muralhas, zombarias e facécias à sua mulher.

(1)    Valério Máximo diz que êle passara por todas as
honras.

 

XV. Mas isso ocorreu depois.
Sila, no entanto, para quem o consulado pouco representava em comparação com
aquilo que esperava do futuro, desejava ardentemente ser encarregado da
direçãoi da guerra contra Mitrídates. Tinha como concorrente Mário, a’ quem a
ambição ê o desejo de glória, paixões que jamais envelhecem, faziam esquecer a
fraqueza e o. cansaço resultantes das lides guerreiras e da idade avançada.
Obrigado, por esta razão, a renunciar às últimas expedições na Itália, êle
estava à procura, então, de guerras estrangeiras, além dos mares; e,
aproveitando-se da ausência de Sila, que tinha voltado ao seu acampamento, para acabar de resolver
certas questões, urdiu em Roma esta sedição funesta, que causou maiores males
aos romanos do que todas as guerras por eles sustentadas até então.

 XVI. Os deuses tudo haviam anunciado por
diversos sinais e presságios. O fogo manifestou-se espontaneamente nas hastes
de madeira das lanças que sustentavam as insígnias, e somente foi extinto
depois de muito trabalho. Três corvos trouxeram para a cidade seus filhotes; e,
depois de os terem devorado na presença de toda a gente, levaram de volta os
restos para seus ninhos. Como alguns ratos tivessem roído jóias de ouro que se
achavam no interior de um templo, os guardas, com uma ratoeira apanharam um
dos animais; era uma rata, que estava prenhe, e que tivera cinco filhotes na
própria ratoeira, dos quais devorou três. Mas o sinal mais impresio-nante foi o
seguinte: num céu sereno e sem nuvens, ouviu-se o som de uma trombeta, tão
agudo e lúgubre que todos foram tomados de um grande medo. Os sábios adivinhos
da Toscana, interrogados, disseram que tão estranho prodígio anunciava uma nova
era que mudaria a face da terra. Com efeito, explicaram, oito raças de homens
deviam suceder-se, diferenciando-se umas das outras pelos seus costumes e medo
de vida, e a cada uma delas Deus prefixara determinada duração. Todas elas, no
entanto, tinham a sua existência limitada pelo período de um ano grande; e
quando uma raça completasse o seu curso, e outra estivesse prestes a iniciar o seu, o céu ou a terra o anunciariam,
através de qualquer sinal ou movimento extraordinário. Aqueles que se ocupam
com esta espécie de estudos, acrescentaram eles, e que os aprofundaram, sabem
quando nascem na terra homens inteiramente diferentes dos que os
precederam, com outros costumes e maneiras diversas de viver, e pelos quais os
deuses de certo modo se interessam. Dizem eles que, nesta renovação das raças,
ocorrem grandes mudanças; destas, uma das mais sensíveis é o aumento de
prestígio, numa raça, da arte de adivinhar. Todas as predições se cumprem. Os
deuses, com efeito, fazem com que os adivinhos dessa raça saibam, por meio de
sinais os mais evidentes e mais seguros, tudo o que está para acontecer. Nas
outras raças, tal ciência é geralmente desprezada, pelo fato de a maioria das
predições serem feitas precipitadamente, através de simples conjeturas, não
possuindo a adivinhação, para conhecer o futuro, senão de meios obscuros e
sinais quase sempre pouco perceptíveis. É o que narravam os sábios adivinhos da
Toscana, que eram lidos como os mais hábeis e mais instruídos. Entrementes, um
dia em que o Senado estava reunido no templo de Belona para discutir com os
adivinhos estes prodígios, um pássaro (1) entrou voando no recinto, tendo no
bico uma cigarra, que dividiu em duas partes, uma das quais deixou cair no
interior do templo, levando a outra para fora.     Diante do que ocorrera, os
adivinhos disseram que este prodígio os levava a recearem uma sedição entre os
lavradores da terra e o povo das cidades; pois este, seguindo o exemplo da
cigarra, não faz senão cantar enquanto que os agricultores vivem tranqüilamente
em suas propriedades.

(1)    Um pardal.

 

XVII. Mário
associou-se, assim, ao tribuno do povo Sulpício, que não era ultrapassado por
ninguém no que se refere à maldade e à perversidade; com efeito  não era
possível encontrar alguém que fosse pior do que ele, mas apenas perguntar em
gênero de maldade êle se excedia a si mesmo. Levava a tais extremos a
crueldade, a audácia e a cupidez, que não hesitava em cometer, aos olhos de
toda a gente, as ações mais infames e criminosas, desde que lhe trouxessem
alguma vantagem. Vendia publicamente . o direito de cidadania romana aos
libertos e aos estrangeiros, e recebia o dinheiro numa mesa armada na praça
pública. Mantinha junto de si três mil satélites, sempre armados, e um grande
número de jovens cavaleiros romanos, prontos a executar tudo o que lhes fosse
ordenado, e que eram por eles chamados o anti-Senado. Não obstante ter feito o
povo aprovar uma lei de acordo com a qual nenhum senador pedia tomar emprestado
ou dever mais de duas mil dracmas, êle próprio, ao morrer, deixou três milhões
de dracmas de dívidas.

XVIIL Este homem, lançado por Mário sobre o povo como se
fosse uma fera furiosa, provocou em todos os setores da administração a maior
confusão e desordem, e recorreu às armas e à violência para conseguir a
aprovação de numerosas leis perniciosas, entre as quais a que atribuía a Mário
a direção da guerra contra Mitrídates. Os cônsules, para reprimir tais atos de
violência, suspenderam o funcionamento de todos os tribunais e sustaram todos
os negócios públicos. Um dia em que estes magistrados realizavam uma
assembléia pública, diante do templo de Castor e Pólux, Sulpício para ali
enviou tropas formadas pelos seus satélites e matou várias pessoas na própria
praça, entre as quais o jovem Pompeu, filho do cônsul do mesmo nome; e este,
apesar de suas funções, só conseguiu escapar da morte por ter fugido. Sila,
perseguido até à casa de Mário, onde se refugiara, foi obrigado a prometer que,
ao deixar seu refúgio, iria revogar publicamente, a ordem por êle dada no
sentido de ser suspenso o funcionamento da justiça e dos negócios públicos.
Esta submissão permitiu a Sila conservar o seu consulado, o que não aconteceu a
Pompeu, a quem Sulpício afastou de suas funções. Limitou-se este a privar Sila
da direção da guerra contra Mitrídates, transferindo-a para Mário. Enviou logo
em seguida oficiais a Nola, para tomarem conta do exército de Sila que ali se
achava, e trazê-lo para Mário. Mas Sila havia sido prevenido a tempo, e tinha
seguido para seu acampamento, onde os soldados, cientificados do que se passava,
lapidaram os oficiais e Mário. Este, por sua vez, mandou matar em Roma os
amigos de Sila, cujas casas foram saqueadas. Não se via então senão gente
mudando de lugar de residência; com efeito, numerosas pessoas fugiam da cidade
para o campo e outras do campo para a cidade.

XIX.       O Senado, não
gozando mais de nenhuma liberdade de ação, executava sem oposição as ordens de
Mário e de Sulpício. Quando se soube que Sila marchava na direção de Roma, os
senadores enviaram ao seu encontro dois pretores, Bruto e Servílio, a fim de
proibi-lo de prosseguir em seu caminho.
Como eles dirigiram a palavra a Sila com muita altivez e audácia, os soldados,
amotinando-se, quiseram matá-lo; mas contiveram-se e limitaram-se a
quebrar-lhes os machados e os feixes de varas que eram conduzidos à sua frente,
a rasgar os seus trajes de púrpura e a mandá-los de volta após cumulá-los de
ultrajes e vitupérios. Quando foram vistos regressar tristes e taciturnos,
despojados de todos os sinais e insígnias de sua dignidade de pretores, e que
se verificou serem as piores possíveis as notícias que traziam, chegou-se à
conclusão de que a sedição ia deflagrar com violência, e que era irremediável.

XX,       Mário
e seus seguidores começaram logo  reunir provisões, recorrendo à força é a se
preparar para a defesa. Sila partiu de Nola com seu colega Pompeu, à frente de
seis legiões completas, que não aspiravam a outra coisa senão marchar
rapidamente sobre Roma,    Mas deteve-se e permaneceu algum tempo hesitante; não sabia que decisão tomar e pôs-se
a considerar o grande perigo a que se expunha. Mandou, finalmente, que se
fizesse um sacrifício; e o adivinho Postúmio, após examinar os sinais e
presságios, estendeu suas duas mãos a Sila, e pediu-lhe que as amarrasse e o
conservasse prisioneiro até depois da batalha, oferecendo sua vida para o
último sacrifício, no caso de o empreendimento não ser seguido de um rápido
êxito. Na noite seguinte, ao que se conta, apareceu, em sonho, a Sila, uma
deusa, muito venerada pelos romanos (1), cujo culto lhes foi ensinado pelos
capadócios, não sei se a Lua, Minerva ou talvez Belona, a qual, dele se
aproximando, pôs-lhe na mão um raio e ordenou-lhe que fulminasse seus inimigos,
que foram per ela enumerados, uns após outros. Todos os que fossem atingidos
pelo raio cairiam diante dele e morreriam incontinenti, desaparecendo.
Encorajado por essa visão, ele a narrou a seu colega, no dia seguinte, e, sem
perda de tempo, marchou com seu exército na direção de Roma.

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