DUAS VIAGENS E UMA CARTA

maio 29th, 2005 | Por | Categoria: Contos        

Nei Duclós

Lembrei de ti, mãe, quando vi Diários de Motocicleta, de Walter Salles. Tu que me protegeste quando cruzei o inverno da minha vida na fronteira com a Argentina, sofrendo ataques cíclicos de asma. Na mesma época em que eu delirava sem poder respirar alguém tinha cruzado o Amazonas a nado para impor-se aos limites da doença e tornar-se o Che. Foi também por isso que viajei 17 anos depois dessa cruzada de Ernesto e seu amigo Granado, mãe, quando me viste sujo e de mochila na tua porta. Foi para me curar, mãe, do sufoco de todas as fronteiras e por isso me atirei na água do meu destino.

PASSAGEM – Teu filho morreu naquela viagem, mãe, e sabias disso. Sabias e então colocavas a mão no rosto e apoiavas toda a tua imensa nostalgia, tu que adorava ler no inverno, embaixo de cobertores e sobre travesseiros enormes e macios, com teus óculos grossos, tuas duas pintas no rosto, teu olhar longínquo. O que chamam de rito de passagem é no fundo uma viagem à direção à morte. Não suportamos mais a casca e então conseguimos aquele amigo mais louco que nós, enchemos a motocicleta com nossas tralhas e partimos – só que partimos de caminhão, porque só os caminhões param na estrada para recolher os vagabundos, os poetas, os visionários, os meninos que querem crescer logo e por isso atiram-se à sua irresponsabilidade com a gana dos profetas. E viajamos rumo ao Rio, rumo ao Brasil. Lá, carregávamos como um duro fardo nossos grossos coturnos de milico (idéia do Marco Celso, esse louco), nossas blusas de lã, nossas campeiras, para ver pela primeira vez as montanhas azuis na face serena daquele entalhador do Nordeste que nos acolheu em Ipanema, em plena Farme de Amoedo, e que se chamava Zé Barbosa. Fomos em direção ao verão, pois era julho de 1969 e o frio estava de matar. Com o Che e seu amigo Granado não foi diferente. Eles saíram de suas cascas, da sua civilizada Buenos Aires, assim como saímos da Porto Alegre universitária que tinha explodido em 68. Não queríamos mais a faculdade, mãe, porque havia uma vida intensa lá fora e a gente precisava encontrar a vida que nos era negada pelo AI-5. Deixamos a faculdade, e quem trabalhava também deixou o emprego para trás. Chegamos sempre ao anoitecer, diante da luz sinistra das cidades e encontramos o drama do Brasil.

MILAGRE – Há algo de milagroso desse filme, mãe, que não ganhou nenhum prêmio em Cannes porque se opõe a toda a frescurada cinematográfica sintetizada pela presença desse imbecil do Quentin Tarantino na presidência do júri. É um filme sobre a América Latina onde não aparece, em nenhum momento, o Brasil. O Brasil é quem se debruça sobre essa América hispânica dividida, que não teve a nossa sorte de ficar unida. Somos, o país-continente, o sonho de todos esses revolucionários de língua espanhola na América, que queriam uma só nação e conseguiram uma infinidade de repúblicas. Esse filme é um presente do cinema brasileiro, mãe, uma homenagem aos nossos irmãos de território. Um abraço forte nos argentinos, que tanto implicamos mas que jamais deixaremos de amá-los, e por meio deles, abraçamos peruanos, chilenos, bolivianos, colombianos, venezuelanos. Basta ver em cena esses dois atores maravilhosos, Gael Bernal e Rodrigo de la Serna, contracenando com dezenas de talentos inigualáveis, mulheres, crianças, velhos, todos negros, mestiços, cheios de cicatrizes, belíssimos. O rosto de Granado, o verdadeiro, no final do filme, é ao desenho desta terra ancestral e sofrida. O Brasil se debruça sobre seus irmãos de fala espanhola e diz: somos iguais, hermanitos, somos vocês. Lembro de ti, mãe, reclamando dos tangos que tocavam em casa, pois lembravam tua juventude e não querias sofrer com as lembranças. Lembro quando punhas as mãos no ventre, na hora do almoço , e respondia em espanhol a pergunta que te faziam sobre o motivo de colocar tantos filhos no mundo. “Los saqué de acá” , dizias. Tirei todos daqui. Tiraste da tua vontade de povoar o mundo com a tua bondade.

SALVAÇÃO – Tu me pegando pela mão calçada afora, perguntando para as vizinhas se haveria um milagre para minha asma, já que todas os remédios que tinhas à disposição no Centro de Saúde, onde trabalhavas, não me curavam. Lembro daquela senhora sua amiga, que me trouxe um remédio espírita, à base de cachaça, e que eu só podia tomar uma colher de sopa por dia. Não sei se aquele remédio tão gostoso ajudou, mãe, só sei que ao conhecer o mar colocava areia molhada no peito para sarar. Mas sarei foi naquela viagem, mãe. A viagem que me jogou na verdade, na terra da poesia, a que componho para berrar em praça pública e que por tantos anos está assim, meio escondida. Mas basta eu lembrar do teu sorriso, mãe, do teu elogio diante de um poema feito pelo menino, para eu acreditar novamente que não nascemos em vão. Do outro lado do rio, está a nossa salvação. Temos que atravessar o rio a nado, sem barco perto, com as pessoas gritando para que a gente chegue salvo, como acontece naquela cena do filme do Walter Salles, mãe, esse cara que veio para nos mergulhar na arte verdadeira, a que chega para ficar. Digam o que disserem os resenhistas sem alma, de que o filme é isto ou aquilo. O filme é maravilhoso mãe. Tenho certeza que irias gostar.

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