Autor: Silvio Romero (Lagarto, 21 de abril de 1851 — 18 de junho de 1914) – História da Literatura Brasileira
Vol. III. Contribuições e estudos gerais para o exato conhecimento da literatura brasileira. Fonte: José Olympio / MEC.
Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820-1891). — Filho do Rio de Janeiro, nasceu em 1820, no mesmo ano de Macedo, e três anos antes de Gonçalves Dias e Dutra e Melo. Não se graduou em academia alguma; fez alguns estudos de Humanidades em sua cidade natal e meteu-se ainda moço no funcionalismo público, empregando-se na Secretaria do Ministério do Império.
Bem cedo jogou-se ao cultivo das letras e às lutas da imprensa.
É um dos brasileiros que mais escreveram e em esferas mais variadas.
Sua obra é uma das mais opulentas, e, em compensação, das mais confusas das produzidas neste país.
Daí certa dificuldade em bem tomar os traços fisionômicos e característicos do escritor.
Dividir é uma condição para bem compreender; devo praticá-lo com Joaquim Norberto. Sua vasta obra, parte publicada em livros, parte esparsa em jornais e revistas, pode sofrer a seguinte divisão: novela, teatro, poesia, crítica literária e história.
33. As Fatalidades da Dous Jovens, vol. 2.°, págs. 36 e segs. Rio de Janeiro, edição de 1874.
Será preciso juntar a isto a estatística; porque o primeiro trabalho que tivemos no gênero é devido à pena deste autor. Quero falar do Censo Geral do Império, escrito e organizado por Norberto Silva, na sua qualidade de empregado público. É produção de valor, merecedora de atenção e aqui desde já citada, por ser apta a dar uma das notas, um dos tons da fisionomia espiritual do notável fluminense: a paciência de esmiuçar, pesquisar, inquirir e verificar os detalhes.
Não é aí, porém, que vou fazer o centro da minha análise.
Das cinco regiões em que se manifestou a vida espiritual de Norberto, na esfera puramente literária, a novela e o teatro não são aquelas em que ele mais se distinguiu. Os poucos ensaios praticados por este lado devem ser considerados tentativas em gêneros para os quais o autor tinha pouquíssima aptidão. São produtos fracos, de leitura maçante, e hoje completamente esquecidos.
No conto e novela pouco mais publicou além do volume intitulado Romances e Novelas, aparecido em 1852 em Niterói, e d’0 Martírio de Tiradentes ou Frei José do Desterro, impresso trinta anos mais tarde, em 1882, no Rio de Janeiro. No teatro seus principais produtos são a tragédia Clitemnestra e o drama Amador Bueno. São obras de pequena monta, passos errados de um homem que procurava seu caminho. Tanto a tragédia, como o drama, são de 1843; desse tempo da puerícia do autor são também as narrativas reunidas no citado volume de 1852.
É na poesia, na história política e na história literária que mais acentuada se nos mostrará a feição do autor. Ainda nestas três esferas podem-se fazer divisões e reduções, tendentes a mostrar qual a especialidade em que foi ele mais eminente. Suponho que os seus maiores títulos estão nos trabalhos de história literária.
Ver-se-á, adiante. Por agora, e quanto antes, o poeta.
Na poesia a obra de Joaquim Norberto é das mais avultadas no Brasil. Sem falar de Clitemnestra, que é em verso, ele tem nada menos de cinco volumes de poesias: Modulações Poéticas, Dirceu de Marília, O Livro dos Meus Amores, Cantos Épicos, Flores Entre Espinhos, e possui espalhada em jornais e periódicos matéria para mais três ou quatro. A tanto deve montar o grande número de balatas, de canções americanas e doutras composições poéticas espalhadas por Norberto un peu partout. Já não falo nos grandes poemas que dizia possuir intitulados O Brasil e Os Palmares. Destes existem apenas fragmentos publicados; difícil se torna saber se os ultimou. Já não talo também nas promessas feitas pelo poeta de diversas coleções líricas sob a denominação de Novas Modulações Poéticas, Cancioneiro das Bandeiras ou Cantos Tradicionais dos Antigos Paulistas, e outras assim. Estas provavelmente nunca existiram. O escritor fluminense por certo trabalhou muito, um pouco demais talvez, mas foi também muito pródigo em promessas, e algumas delas irrealizáveis.
Onde foi, por exemplo, que Joaquim Norberto coligiu os Cantos Tradicionais dos antigos bandeirantes? Onde os encontrou? O autor era fácil nestas pequenas fraudes, capazes de iludir espíritos pouco perspicazes. Obedecendo a este sestro, deu as pretendidas respostas de Marília às liras de Gonzaga.
A mesma inspiração levou-o à insinuação de serem suas americanas cantos tradicionais dos nheengaçaras ou bardos do Brasil... Onde encontrou Norberto os nheengaçaras e os seus cantos?
Entretanto, o espírito desprevenido de algum europeu, ignorante de nossas cousas, poderá supor a existência real dos cantos dos bandeirantes e dos cantos dos nheengaçaras, puros brincos da imaginação do poeta.
Noto isto e lho censuro, porque, como já fiz ver, êle é um homem de merecimento, e a exatidão histórica é um dos seus fortes. Prossigamos. O poeta em Norberto mostra três aspectos principais: lirismo objetivista, lirismo erótico e certo gênero de composições que os alemães costumam designar sob a denominação de épico-líricas.
As Balatas, as Flores Entre Espinhos e os Cantos Épicos podem bem servir para testemunhar o talento do autor por esses três lados.
O lirismo das Balatas tem um certo espírito, um tom semipopular denunciador das boas intuições literárias do escritor. São quadros tradicionais e históricos, descritos numa tonalidade fácil e algum tanto pálida. Não têm calor, não comunicam entusiasmo, não dão febre, não despertam expansões. São poesias de crítico, feitas penosamente sob um plano assentado, num cânon determinado e preconcebido. As principais_s§o: A Morte da Filha, O Último Abraço, A Vítima da Saudade, O Monte do Bispo, O Mendigo, O Suicida, D. Maria Úrsula e O Canto do
34. Minerva Brasiliense, pág. 397.
Marinheiro. Aqui e ali aparecem algumas notas doces e amenas. Deste gênero são as da última balata citada — O Canto do Marinheiro. Aqui vai, como exemplificação do talento de Norberto, no que ele tinha de mais seleto:
"Nasci, como ave marinha,
Sobre estas ondas do mar;
Na triste minha barquinha
Cresci da onda ao embalar.
Na minha infância inocente
Por terras nuvens tomei,
E dessa ilusão contente
Mil vezes — Terra! — gritei.
Ao silvo da tempestade
As ondas via dançar,
Cheio de temeridade
Punha-me logo a rezar.
Amei a brisa, que asinha
Foi-me tormenta cruel;
Amei a onda marinha.
Foi-me qual onda infiel.
Amei depois uma estrela,
Que no céu via brilhar,
Ou, inda mais grata e bela,
Sobre as águas cintilar.
Na terra um dia encontrando
De meu amor lhe falei,
Porém à terra voltando
Em vão por ela busquei.
Mas ainda como estrela
No céu a vejo brilhar,
Ou, inda mais grata e bela,
Sobre as águas cintilar.
Na minha pátria inconstante,
No oceano, vou morrer,
Onde possa a minha amante
Sobre as águas vir me ver!.. ."3*
Era este o lirismo do poeta fluminense em seus momentos mais felizes. As balatas denunciam uma certa intuição da poesia popular; não que Norberto Silva a conhecesse praticamente, tivesse-a coligido e estudado com esmero. Era uma imitação, uma contrafação inconsciente; porém não despida de mérito. Em todo caso, é sempre uma poesia mais simples do que a de Magalhães e Porto Alegre, sem ter absolutamente o viço da de Gonçalves Dias.
No lirismo que chamei erótico duas faces se podem distinguir no autor fluminense: uma pessoal, estampada no Livro dos Meus Amores, e outra exterior e anedótica, nas Flores Entre Espinhos. É a erótica da pilhéria, a poetização de casos e contos de um sabor meio picante.
Alguns têm chiste. Dão bem todos a conhecer a índole bonacheirona, pacata e calma do escritor. Homem de estudo e de trabalho, é certo, não se afadigava, fugia de aborrecer-se e irritar-se; era alegre, bem-humorado, pales-trador; na conversação era cheio de anedotas e gaiatices.
Um otimista em suma. Sua poesia, ele não a tinha como um castigo, ou como uma doença; era antes um desenfado, uma sucursal do ócio e da preguiça. Era ele próprio quem dizia: "O que entendem por trabalhar? Assim perguntava Lord Byron e por si mesmo respondia, que compusera o seu lindo poema Lara naquele ano de galhofas, em noite que se recolhia de uma mascarada.
"Menor pretensão ainda devem ter estes insignificantes contos à vista do poema do bardo inglês.
"Não são, pois, frutos de trabalho, mas efêmeras produções de uma das variedades do ócio ou da preguiça a que muitos como eu se entregam por desenfado, a fim de não cair em verdadeiro spleen, e que não seriam levadas ao cabo se rapidamente, durante a sua gestão, acudisse à mente a idéia de que era uma aplicação séria em horas em que o espírito parece rebelar-se contra tanta servidão, pois que também ele tem o seu capricho. É como as primas-donas. Nem por outra cousa se deve entender a poesia.
"Arregimentar os poetas entre os homens que trabalham seria dar-lhes uma ocupação; mas dar-lhes uma ocupação que nada rendesse seria também uma das maiores ironias aos olhos do século das locomotivas, dos caminhos de ferro, do telégrafo elétrico, da fotografia, e talvez da navegação aérea, e que em vez de Apolo invoca Mercúrio."35
Em meio das ironias do poeta bem se divisa sua teoria da arte. Esta era para ele um desenfado, um brinco, um emprego doce da atividade.
35. Flores Entre Espinhos, contös poéticos, Rio de Janeiro, 1864.
Não era, ao contrário, e como pensam muitos, uma espécie de condenação que pesa sobre o espírito humano, alguma cousa de doloroso a que ele não se pode esquivar, uma imposição fatal a que não pode fugir. Eu bem sei o que se pode dizer pró e contra as duas teorias; porém não tenho obrigação de discuti-las agora.
Basta-me ponderar que o romantismo europeu e o brasileiro tiveram representantes das duas feições, que leva-vadas ao excesso, produziram verdadeiras extravagâncias.
Aqueles boêmios debochados e frívolos, de um lado, e aqueles mancebos tétricos, misantrópicos, candidatos ao túmulo, de outro lado, que aqui tivemos, foram nítidos exemplares das duas escolas entre nós. Gonçalves Dias, com todo o seu talento e com toda a sua gravidade, era um representante da teoria oposta à de Norberto. Patenteia-o bem este pedaço do prólogo dos Primeiros Cantos: "Com a vida isolada que vivo, gosto de afastar os olhos de sobre a nossa arena política para ler em minha alma, reduzindo à linguagem harmoniosa e cadente o pensamento que me vem de improviso, e as idéias que em mim desperta a vista de uma paisagem ou do oceano, o aspecto enfim da natureza. Casar assim o pensamento com o sentimento, o coração com o entendimento, a idéia com a paixão, colorir tudo isto com a imaginação, fundir tudo isto com a vida e com a natureza, purificar tudo com o sentimento da religião e da divindade, eis a Poesia, a Poesia grande e santa, a Poesia como eu a compreendo sem a poder definir, como eu a sinto sem a poder traduzir.
"O esforço, ainda vão, para chegar a tal resultado é sempre digno de louvor; talvez seja este o só merecimento deste volume. O Público o julgará; tanto melhor se ele o despreza, porque o autor interessa em acabar com essa vida desgraçada que se diz de poeta."
Ainda mais explícito é no prefácio dos Últimos Cantos: "Eis os meus últimos cantos, o meu último volume de poesias soltas, os últimos arpejos de uma lira, cujas cordas foram estalando, muitas aos balanços ásperos da desventura, e outras, talvez a maior parte, com as dores de um espírito enfermo, fictícias, mas nem por isso menos agudas, produzidas pela imaginação, como se a realidade já não fosse por si bastante penosa, ou que o espírito, afeito a certa dose de sofrimentos, se sobressaltasse de sentir menos pesada a costumada carga.
"No meio de rudes trabalhos, de ocupações estéreis, de cuidados pungentes, inquieto do presente, incerto do futuro, derramando um olhar cheio de lágrimas e saudades sobre o meu passado, percorri este primeiro estádio da minha vida literária. Desejar e sofrer, eis toda a minha vida neste período; e estes desejos imensos, indizíveis, e nunca satisfeitos, caprichosos como a imaginação, vagos como o oceano, e terríveis como a tempestade; e estes sofrimentos de todos os dias, de todos os instantes, obscuros, implacáveis, renascentes, ligados à minha existência, reconcentrados em minha alma, devorados comigo, umas vezes me deixaram sem força e sem coragem, e se reproduziram em pálidos reflexos do que eu sentia, ou me forçaram a procurar um alívio, uma distração no estudo, e a esquecer-me da realidade com as ficções do ideal."
Bem se compreenderá o significado destas citações; meu fito é fazer a história das idéias de preferência à simples apreciação estética.
Uma das conseqüências da teoria abraçada por Norberto Silva é requerer para os poetas o privilégio de serem sustentados, se possível for, pelo governo do Estado.
Daí as azedas queixas contra a indiferença deste. Ainda neste ponto é preciso ouvi-lo para bem compreendê-lo.
Lê-se no prefácio das Flores Entre Espinhos: "Ninguém entre nós compreendeu melhor do que o governo a missão do poeta.
"O ministro a quem aí se recomenda algum moço de imaginação ardente, capaz como Torquato Tasso de ter na cabeça meia dúzia de epopéias esplêndidas (Será verdade?), ou um teatro como Calderon e Lopez de La Vega (Lope de Vega), a primeira cousa que lhe faz é dar-lhe um emprego que o despoetize, que lhe petrifique a imaginação e o torne na maior e mais chilra prosa deste mundo e, ainda para mal dos seus pecados, sujeita-lhe a inspiração livre e ousada ao livro do ponto!
"Entrando para a repartição a que o destinam ele pode, antes de agarrar-se como um bicho-da-seda às folhas do orçamento, de que fará o seu triste nutrimento, bater na testa e dizer como André Chénier antes de entregar a cabeça ao gume triangular da ensangüentada guilhotina: — É pena, pois aqui havia alguma cousa!"
Vê-se bem que o poeta queixa-se do século positivo, materializado, americanizado, e queixa-se também do governo que não protege os poetas, não lhes garante o brilho do talento em ocupações adequadas e, quando muito, os brutaliza nas repartições públicas.
A censura é tão geralmente repetida pelos homens de letras neste país que se pode bem supor não haver aí de todo um simples capricho romântico.
O queixume é bem velho e não terá algum fundamento? Infelizmente tem-no e profundíssimo. Creio, porém, não ser um fenômeno peculiar ao século XIX; é antes alguma cousa de particular à nossa terra, onde quase tudo está ainda por fazer.
Nada neste país está organizado; tudo está à flor do solo, nada tem raízes; nós por enquanto não temos pátria.
Isto é ainda uma imensa feitoria, onde as indústrias, o comércio, as empresas, todas as fontes econômicas estão na mão dos estrangeiros.
A maioria dos nacionais tem de seu para viver a mendicidade, a praça na tropa de linha ou nas milícias urbanas e o miserando funcionalismo público.
Os homens de letras, que não se abrigam no funcionalismo, que vão viver das respectivas profissões, arrastam existência penosíssima.
Que vale aqui a profissão de médico, de engenheiro, de advogado, diante especialmente da pobreza geral e da já crescida concorrência estrangeira nas duas primeiras? Resta a profissão da imprensa, no jornal ou no livro.
Mas, qual foi aí o brasileiro que já viveu de uma ou outra cousa?
O escritor brasileiro passa pelas quatro fases seguintes de desilusão e abatimento, consignadas aqui como atenuantes à crítica:
l.a Por pouco que tenha praticado, conhece logo que a sua arte nada lhe rende: não há público para os seus produtos e o pauperismo medonho lá está no fundo de todas as suas tentativas. É a fase introdutória, a da inutilidade econômica do seu trabalho.
2.a Na falta de cotação no mercado para seus livros, ele procura os empregos públicos, ou, se é graduado, exercer a sua profissão, e como título apresenta seus escritos, suas obras impressas. Se em tal cai, está perdido: "O sujeitinho é literato, diz o governo, anda preocupado com literatices; não convém… Médico ou advogado poeta, diz o povo, não sabe medicina, não tem prática do foro; nada, não o consultem!" É a fase seguinte à inicial, é a da repulsa e abandono, como um ente quase inutilizado.
3.a Batido pelo lado prático da vida, raro é aquele que persiste. Logo nessa segunda fase abandona a mor parte o terreno. Se, porém, por qualquer circunstância, ou por energia íntima, o homem de letras continua, então tem que entrar no terceiro período do tormento. Todos se aborrecem com aquele importuno que teima em querer ter distinção, fama, glória, pelo seu talento e seu trabalho. É o período das descomposturas, dos ataques, das inimizades gratuitas e temíveis. Se o homem é espertalhão e tratou de acostar-se a um grupo, se formou em torno de si uma claque, inda poderá algum tempo agüentar-se na refrega, enganado pelos elogios dos amigos e camaradas, todos mais ou menos interessados, e cujo barulho é infantilmente tomado como a opinião geral do país… Se não fez assim, se por índole é arredio e não procurou quem lhe guardasse as costas, está irremediavelmente perdido; ninguém o salva do esquecimento ou de cousa ainda pior — o descrédito. É a fase do desengano completo, da tristeza íntima, por se haver perdido o tempo atrás de um sonho fantástico, a glória, numa pátria que não a quer, ou não a pode dar…
4.a Quase ninguém resiste à terceira provação. Se alguém, se algum desabusado, por excessiva confiança em si próprio, ou por demasiado aferro a suas convicções, teima em produzir só com o fim de fazer triunfar suas idéias, independentemente de qualquer compensação, neste último e extremo caso, ele terá de passar pela mais horrível provação por que pode passar um homem de lutas intelectuais: — a consciência da inutilidade de seus esforços !. ..
Tudo em pura perda!…
Ninguém se moveu, ninguém se convenceu! Tudo ficou como era dantes: os mesmos erros, as mesmas fatuidades, as mesmas injustiças… "Ora, este brasileiro querer ter razão, querer pugnar por doutrinas e princípios, ter a pretensão de fazer a crítica de nossa situação intelectual! Não é possível!…" É a linguagem geral.
"Quem foi que disse isto? onde está escrito? é em algum livro francês, ou alemão, ou inglês, ou mesmo português? Se é, bem; é aceitável… Se não, ora, F. que não seja parvo; ora, F., o filho de Sergipe, ou ali de Macaé, querendo ter idéias e saber das cousas!… Pedante!" É o modo geral do refletir de todos; é nas letras a manifestação da geral maledicência nacional, tão duramente descrita por Burmeister.
O leitor me perdoe este carregado quadro de diagnose pátria. Não veio a esmo, nem são declamações. São confissões sinceras, filhas da observação e da experiência de um homem que tem passado por todos aqueles estádios da malevolência brasileira, e que ama seu país, que anela por seu progresso. São um pedaço de autopsicologia nacional, que fornece um critério para a benevolência para com os nossos pobres escritores. Coitados! Lutam tanto e são tão maltratados! Mais indulgência com eles.
Quem escreve estas páginas, ao começar em sua puerícia literária seus primeiros estudos críticos, usava de certo rigor, oriundo da inexperiência.
Os anos e os amargos sofrimentos, que lhe infligiram, longe de o azedarem, o predispuseram para melhor compreender as inúmeras dificuldades que assaltam os escritores brasileiros. Quero falar daqueles que conquistaram palmo a palmo o seu terreno como perfeitos heróis. Não me refiro a vinte ou trinta filhotes da política onipotente, metidos nas letras de longe em longe por desenfado, e perpetuamente incensados pelos aduladores, que nunca faltam. Compreendo, pois, as queixas de Joaquim Norberto e faço justiça plena aos seus esforços.
Os estudos de história brasileira, quer a história propriamente dita, quer a história literária, faziam o fundo de seu pensamento, e começaram a preocupá-lo desde os seus mais verdes anos. Ele não começou pela poesia e passou depois para a história; não; enfrentou-as ao mesmo tempo. Daí o caráter de contos, lendas, tradições, de quase todas as suas produções poéticas.
Nas próprias Flores Entre Espinhos esse caráter é evidente.
O princípio do segundo conto poético, A Confissão, traz um quadro em miniatura do Rio de Janeiro no tempo de velho entrudo. É apto a dar segura idéia do espírito e das qualidades poéticas de J. Norberto. O final narra a história de uma jovem que confessara ao padre, cheia de lágrimas, ter morto um mico… Eis a transcrição do princípio:
"Sobre as asas da alegria,
Entre enganos ruidosos,
Entre vivas jubilosos,
Expirara o carnaval.
Oh! quanta moça faceira,
Que muito se divertira,
Morrer com pena não vira
Esse tríduo sem igual.
A rótula então perdera
Todo o sigilo, se abrindo,
E um rosto moreno e lindo
Livre e ousado se mostrou;
E mais de um braço certeiro
Achoti um alvo condigno,
Em que amável, benigno,
Os seus tiros empregou.
Oh como então era grato
Ver belo limão-de-cheiro
Num peito meigo, faceiro,
Espargir mimoso odor!
Era como doce beijo
Que, dos lábios se arrancando,
Lá ia ardente voando,
Que as asas lhe dava amor.
Outras vezes, mais ousado,
O amante penetrava
No lar que a moça habitava
Como uma pura Vestal;
E então, globos de cera,
Contra globos mais mimosos,
Dedos trêm’los… receosos…
Espremiam… menos mal!
Ainda sobre as calçadas,
Quais conchinhas de mil cores,
Ou quais despencadas flores,
Vê-se a cera dos limões:
Sinal de que o combate
Fora forte e vigoroso,
E de parte a parte honroso
Aos valentes foliões.
Mas agora? Eis a cidade
Toda satita e penitente;
Do Janeiro a boa gente
Se apressa a se confessar;
Molhos, banhos, mil engano
s Aos incautos impingira,
Porém, agora suspira
Nas igrejas a rezar…
Oh! era um povo devoto,
Cantado pelo poeta
Naquela lira seleta
Que o seu Rio engrandeceu;
Sim, S. Carlos fez no mundo
Celebrada esta cidade
Pela religiosidade
Que tinha… mas que perdeu.
Pela rua todo o povo
Em procissão caminhava,
E o sacro terço entoava
Ante o altar da mãe de Deus;
Quantas luzes nessas noites
Não refletiam de uns olhos
Que tinham setas a molhos
Para convencer a ateus!
Através das verdes rótulas
Brilhava muito semblante,
Com seu olhar penetrante,
Vendo a pia procissão;
Nas contas de seu rosário
As moças ali rezavam,
E se alguma vez pecavam,
Pecavam de coração!
Belo tempo! Quão depressa
Deixou a nossa cidade!
A nova sociedade
Tu — ai tudo! — reformou!
Tanta dança e patuscada
De nossa paterna gente,
Tanto folguedo inocente,
Tuda — ai tudo! — se acabou!
Já ia a Quaresma em meio,
E a cidade penitente
Lá corria diligente
Do templo a desobrigar;
Ia pela madrugada,
Antes que as trevas fugissem,
A esperar que se abrissem
As portas de par em par."36
Não é uma poesia muito elevada esta; em gênero algum Norberto ultrapassou a média.
É o que lhe aconteceu no gênero épico-lírico, onde é talvez inferior. Falta-lhe força na inventiva e brilho no estilo.
36. Flores Entre Espinhos, págs. 11 e seguintes.
Nas balatas aparece às vezes certa naturalidade e nos contos poéticos certa graça apreciáveis.
Nos Cantos Épicos reina quase sempre inegável prosaísmo. Bem quisera escondê-lo; porém não posso. Os Cantos Épicos são umas narrativas em versos brancos sobre alguns fatos históricos.
O autor publicou seis num pequeno volume em 1861; são os seguintes: A Cabeça do Mártir, A Coroa de Fogo, O Ipiranga, A Visão do Proscrito, A Festa do Cruzeiro, Os Guararapes.
O primeiro refere-se à cabeça de Tiradentes que fora colocada num poste em Vila Rica e recolhida alta noite por piedosas mãos; o segundo trata do martírio de Antônio José nas fogueiras da Inquisição; o terceiro é relativo ao brado de nossa Independência por Pedro I; o quarto é atinente a Napoleão em Santa Helena; o quinto é sobre a criação da Ordem do Cruzeiro entre nós; o último é referente à célebre batalha ganha pelos pernambucanos sobre os holandeses.
Norberto publicou um sétimo sob o título O Berço Livre dedicado à promulgação da lei de 28 de setembro de 1871.37
As intenções foram boas; a execução deixou sempre a desejar. A literatura brasileira possui alguns espécimens no gênero de subido valor. Nós não temos vigor épico, talento dramático e grande chiste cômico.
Em compensação temos volubilidades e ternuras líricas. O calor lírico, junto em algumas almas a certos ímpetos varonis, tem dado, de longe em longe, algumas produções, que se podem chamar épico-líricas, de grande merecimento.
Cinco poetas especialmente, uns pertencentes à escola condoreira, outros verdadeiros antecessores dela, foram os mestres reconhecidos deste gênero de cantos: José Bonifácio, com O Redivivo e o Primus Inter Pares; Pedro Luís, com Tiradentes, Nunes Machado, Terribilis Dea e Os Voluntários da Morte; Luís Delfino, com as Solemnia Verba; Tobias Barreto, com À Vista do Recife, Os Voluntários Pernambucanos, Os Leões do Norte, A Capitulação, Montevidéu, À Polônia; Castro Alves, com O Navio Negreiro, as Vozes d’África e Pedro Ivo. Por todas estas poesias corre um calor, uma vida, uma seiva de entusiasmo, que prende e eletriza. Não se tem tempo de pensar nos seus defeitos; a fúria poética nos domina. A aqueles cantos típicos podem-se juntar Napoleão em Waterloo de Magalhães, nosso conhecido já, e O Festim de Baltasar de Elzeário Pinto, olvidado poeta sergipano.
37. A Festa Literária por Ocasião de Fundar-se na Capital do Império a Associação do3 Homens de Letras do Brasil, Rio de Janeiro, 1883, pag. 125.
Outras existirão talvez por aí; aquelas são as mais notáveis. Os portugueses tiveram um poeta, mais conhecido por seus romances e dramas, que foi um feliz cultor do gênero épico-lírico. Quero falar de Mendes Leal, com o Ave Cesar, O Pavilhão Negro e principalmente com A Cruz e o Crescente. É o principal antecessor do condo-reirismo em nossa língua, sistema de poesia imitado de Vítor Hugo, que produziu entre nós muita cousa boa e muita cousa ruim.
Joaquim Norberto não teve jamais o vigor de qualquer dos poetas citados. Seus Cantos Épicos são inferiores às suas próprias poesias líricas. Os tais cantos são cheios de alegorias, de personificações, de máquinas retóricas de velho uso, tudo próprio a embaraçar-lhes a leitura. Qualquer deles pode servir de exemplo. A Coroa de Fogo, verbi gratia, começa por uma personificação de Lisboa a dormir e aparecer-lhe, também em forma de matrona, o Rio de Janeiro, sob o nome de Guanabara. Esta se mostra de semblante amorenado, como a tez do jambo, e outras pieguices molestantes. Segue-se um diálogo entre as duas cidades-matronas a respeito do poeta que vai à fogueira, tudo num tom displicente de meter dó… É inútil citar. Quem quiser vá inteirar-se por si.38 Norberto é pouco eminente na poesia.
Tenho pressa de avistá-lo nos seus trabalhos de história e crítica literária.
É onde é mais apreciável, por ser onde está mais a gosto e mais em harmonia com a sua índole. Nesta esfera o primeiro elogio que lhe faço é o seguinte: hoje é impossível escrever a história, principalmente a história literária do Brasil, sem recorrer às publicações deste laborioso escritor. É que existem certas averiguações, especialmente na história da literatura, que pertencem de direito a Norberto Silva. Dividamos o assunto e comecemos pela história do Brasil.
Neste campo de ação o escritor não nos dotou com uma obra geral sobre todo o país, ao menos nalgum período de seus anais. Deu-nos quatro produções principais: Memória Histórica e Documentada das Aldeias dos índios da Província do Rio de Janeiro, História da Conjuração Mineira, Estudo Sobre o Descobrimento do Brasil, as Brasileiras Célebres. As duas primeiras sobrelevam de muito as duas últimas.
38. Vide Cantos Épicos, por J. Norberto de Sousa Silva, Rio de Janeiro, 1861, págs. 21 e seguintes.
Os méritos principais do historiador são a clareza na exposição e o acuramento das pesquisas. Não há movimento dramático, nem há vistas filosóficas, nem há vivacidade de estilo. Em compensação há critério, bom senso, conhecimento do assunto. No livro sobre as aldeias do Rio de Janeiro fornece bons dados para o conhecimento da fundação das principais cidades da província e formação da população.
No livro sobre a conjuração de Minas lança muita luz sobre a vida política dos mineiros e do Brasil em geral nos fins do século XVIII, sobre a sociedade de Vila Rica, sobre o caráter dos poetas e escritores do tempo e vinte outros pontos secundários.
Contribuiu para reduzir as proporções assustadoras que vai tomando entre nós o mito de Tiradentes. Não contesto aos brasileiros o direito de fantasiar heróis e encher de semideuses o céu de sua história; se lhes praz criar uma mitologia política, criem-na como lhes bem quadrar.
Estão no seu direito, e, quanto a Tiradentes, nas páginas mesmas deste livro, já tive ensejo de manifestar a minha simpatia. O que não posso tolerar é a pretensão estólida e brutalizante de se querer impedir o direito da crítica. Ainda hoje não posso compreender os selvagens ataques de que foi vítima Norberto Silva, por haver tocado de leve na figura de Tiradentes!
E isto da parte de espíritos que se dizem liberais!
É uma grosseira intolerância, só própria de ânimos selvagens. Além de tudo, é uma enormíssima injustiça; porque o livro de Norberto, bem longe de ser obra de reacionário, é um livro animado de fortíssimo espírito liberal, alentados ímpetos democráticos. Qual o motivo pelo qual grandes e consagrados heróis, divinizados pela humanidade inteira, podem ter sido visitados no seu nimbo de luzes e sombras pela crítica, e não se há de fazer o mesmo no Brasil a certos heroizinhos de ontem?
39. Impensada a frase de S. R. que. no Compêndio, nao a repetiu. — Nota de N. R.
Qual a razão pela qual um Strauss pode chegar até Cristo e arrancar-lhe parte da auréola39 e não poderá um Norberto praticar o mesmo com Tiradentes? Ora, deixe-mo-nos de fantasias inúteis e respeitemos antes de tudo a verdade.
Nossa democracia não precisa, para viver, de firmar-se em exageros e falsidades.
Antes de tudo respeitemos os direitos da ciência. O livro de Norberto Silva é um bom e equitativo serviço em prol da verdade. Não é obra de reação; é antes de propaganda liberal.
Como historiador, a época melhor conhecida de nossa história por J. Norberto é o século XVIII em Minas.
É pena que não tenha ele tirado de seus estudos um trabalho de conjunto.
A predileção, porém, que tinha pelo assunto é evidente. Como poeta, novelista, historiador, crítico literário, sempre e sempre ele voltava ao assunto. Na poesia, A Cabeça do Mártir é dedicada ao protagonista da Conjuração Mineira; no conto, O Martírio de Tiradentes é referente ao assunto; na história, o livro a que me tenho referido; na história literária, os interessantes prólogos e notas que acompanham as edições de Gonzaga e dos dous Alvarengas, além do estudo consagrado a Cláudio.
Tais e tantas pesquisas sobre a história mineira no descambar do século XVIII devem ser consideradas dos melhores serviços pelo operoso fluminense prestados às letras pátrias. O pequeno volume sobre as Brasileiras Célebres tem grande número de páginas relativas ao assunto predileto. Como amostra do estilo de Norberto darei aqui um trecho desse belo livrinho, e seja um de assunto mineiro. Ei-lo:
"A rica capitania de Minas Gerais achava-se sob a pressão do terror e das perseguições. Ah! e que calamidade! Dir-se-ia que o anjo da agonia tinha estendido as asas enlutadas sobre Vila Rica, e que o hino da consternação ecoava de todos os lábios!
Por toda a parte a justiça seqüestrava. Não exigia tão-somente o ouro, as jóias, os trastes, os escravos e os animais domésticos; seqüestrava também a roupa do corpo, roubava também o teto, o lar e o pão, e a família isolada, malquista, aí ficava nua à face do céu, aí vivia sem habitação, aí morria sem alimento!
O medo precedia os infelizes atirados como náufragos da tempestade política a praias inóspitas. Eram os lázaros da inconfidência, cujo contacto se temia como se tisnasse a mais pura e cândida reputação. Ante eles se fechavam todas as portas, porque a piedade e a compaixão eram sinônimos de cumplicidade no dicionário do governo colonial.
Ainda a sentença não havia impresso o ferrete da infâmia sobre os descendentes dos mártires da independência brasileira e já sobre eles pesava a mão negra e mirrada do destino acerbo que os aguardava!
Descendente das mais notáveis famílias da capitania de São Paulo, distinguia-se também Dona Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira pela sua formosura e pelas suas prendas, e esses dotes, que lhe deram a natureza e a educação, atraíram a atenção, mereceram a simpatia, cativaram o amor do Coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto.
Era ele poeta como Tomás Antônio Gonzaga e, como o cantor da beleza de Vila Risa, celebrou a beleza de São João d’El-Rei. Dotada de imaginação brilhante, sentindo o estro borbulhar-lhe no cérebro, a jovem donzela retribuía afeição por afeição e folgava com poder pagar-lhe igualmente versos por versos, e o comércio das musas santificou e engrandeceu aquele amor em que mutuamente se abrasavam.
Bacharel formado em cânones na Universidade de Coimbra e despachado ouvidor da comarca do Rio das Mortes, depois de ter servido de juiz de fora de Sintra em Portugal, Inácio José de Alvarenga abandonou a carreira que abraçara com tantos sacrificios, que tão longas viagens, e tão aturados estudos lhe havia custado; esqueceu-se para sempre do seu ninho natal, esse majestoso Rio de Janeiro com seu céu esplêndido, com sua magnífica baía, suas soberbas montanhas, suas belas florestas e estabeleceu-se no país, cofre dos diamantes e de gemas de ouro.
Não era a sede desses tesouros, mas o amor pelas grandes empresas quem o chamava a novas lidas que seguia. Bem depressa se viu senhor das ricas fazendas dos Pinheiros e na freguesia de Santo Antônio do Vale da Piedade e do engenho de Paraopeba de Vila Rica e das terras e águas minerais da Boa Vista, de Santa Rufina, de Espigões, de São Gonçalo Velho, de Manuel José de Castro, do Campo do Fogo, dos Espigões do Aterrado, do Ourofala, de Santa Luzia, e ainda outras, onde trabalhavam perto de duzentos escravos. E o poeta favorecido da fortuna ofereceu a sua mão, deu o seu nome à jovem que não possuía senão os seus dotes naturais.
Naquelas lidas, naqueles enganos d’alma, passaram os dias felizes e o Céu legitimou o consórcio destas duas almas com três filhos e uma filha, sendo que esta, que os precedeu, era a mais querida de seus pais, passava como o anjo da felicidade doméstica, representava a alegria e o riso de toda a casa.
O Coronel Inácio José de Alvarenga, alma afinada pela lira da poesia, jamais deixou de cultivar o talento com que Deus o distinguira; porém sua esposa no meio de seus deveres caseiros, de sua missão de mãe, esqueceu-se de seus versos e votou-se de todo o coração à educação de sua filha Maria Ifigênia, tão formosa aos
doze anos que lhe deram o nome de Princesa do Brasil e essa antonomásia tornou-se popular.
Apesar da falta de recursos que havia no lugar para uma educação acima da medíocre, D. Bárbara Heliodora empregou todos os meios a seu alcance e a peso de ouro logrou que viessem se estabelecer na sua vila, junto do seu domicílio, os melhores mestres que existiam na capitania, e enquanto os filhos varões se entregavam aos brincos infantis, aos jogos pueris, pois eram ainda de tenra idade, a formosa menina estudava e se aperfeiçoava não só na sua língua como nas estrangeiras e ainda nas belas-artes; a dança, a música, o desenho ilustravam-lhe o espírito e lhe serviam de agradável entretenimento. À maneira, porém, que a distinta e virtuosa mãe redobrava de esforços e se extremava pela educação de sua filha, crescia-lhe o amor maternal, excedia-se em afeição, exagerava os seus carinhos. Já não a amava; adorava-a e exigia dos mestres não só toda a paciência como deferência para com aquela que, dizia ela, devia ser tratada como princesa.
Eram críticos os tempos. Sob a máscara da amizade penetrava a espionagem em todas as casas, ouvia todas as palestras, e depois delatava tudo com a mira nas recompensas políticas. Havia o Coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto tomado ativa parte na conjuração mineira; a denúncia o envolvera na lista dos implicados, e o despotismo colonial viu nele um dos chefes mais ardentes da causa nacional, e interpretou no entusiasmo pelas cousas da pátria, que nota-se nas suas poesias, a prova cabal de sua cumplicidade. Foi arrancado do seio de sua família, preso e conduzido ao Rio de Janeiro, onde o lançaram nas masmorras asquerosas e imundas da fortaleza da ilha das Cobras.
Uma portaria expedida pelo governador Visconde de Barbacena em 9 de setembro de 1789 mandou seqüestrar-lhe todos os bens, para o fisco e câmara real. No dia 13 de outubro de 1789 achava-se D. Bárbara Heliodora na sua casa do arraial de S. Gonçalo, na freguesia de Santo Antônio do Vale da Piedade, termo da vila de São João d’El-Rei, abraçada com seus filhos, misturando suas lágrimas com os ais das tristes criancinhas, que em vão chamavam o desditoso pai, quando viu entrar o Desembargador Luís Ferreira de Araújo e Azevedo, ouvidor-geral e corregedor da comarca do Rio das Mortes, com o escrivão de seu cargo, e o meirinho-mor, e exigir dela o juramento para que declarasse os bens que houvesse do seu casal, sob pena de perjúrio e das em que incorrem os que subnegam bens a inventário, e para logo procedeu ao seqüestro e real apreensão.
Toda aquela grande fortuna acumulada com o trabalho suado de tantos anos e que ainda não estava consolidada, pois havia dívidas a solver, foi fazer parte do acervo amontoado pelo fisco na penhora dos bens dos implicados.
D. Bárbara Heliodora submeteu-se ao despotismo colonial. Entregou todos os bens de sua suntuosa casa, sua pesada baixela de prata, as jóias que recebera de seus pais, e de seu marido, e até uma caixa de rapé que tinha o seu retrato circulado de pedras preciosas.
Dous dias depois requeria ela que achava-se casada corn carta de ametade, que de seu matrimônio existiam filhos e que sendo na forma das leis do reino em todo e qualquer caso livre a meação da mulher, se procedesse antes do seqüestro o inventário e partilha para se saber o que pertencia da meação a cada um, e na parte que tocasse a seu marido se procedesse ao seqüestro, ficando a parte dela livre e desembaraçada.
O seu requerimento foi atendido; procedeu-se na forma da lei, e assim pôde ela amparar a miséria de seus filhos e preparar-se um futuro menos acerbo.
Não foi, porém, bastante para a tranqüilidade de sua alma. A justiça, que via fugir metade da mais importante parte do seqüestro, achou na delação dos vassalos fiéis o" meio de envolver a ilustre mineira com os implicados, e seu nome veio a figurar nas duas famosas devassas que se procederam por esse tempo.
Viu-se na antonomásia de Princesa do Brasil, pela qual era conhecida a jovem Maria Ifigênia, um crime de lesa-majestade, uma idéia de independência nacional; e o próprio professor de música de sua filha, José Manuel Xavier, foi por duas vezes chamado a depor em juízo; porém nada disse que a comprometesse, e o depoimento de outra testemunha caiu não só por falta de provas como por nimiamente insignificante.
Aqui da sua prisão da ilha das Cobras, levava o coronel os olhos saudosíssimos pelas serranias da magnífica baía que o vira nascer; lá penhascos horríveis e incultas brenhas cansavam-lhe a vista, que em vão procurava pelo ninho de sua desditosa prole; sol~ tava então um brado de agonia, e atirava-se sobre a barra dura que lhe servia de leito, e chorava. Pouco a pouco se resignava e a poesia do amor e da saudade vinha enfim com as suas asas de ouro afagá-lo, limpar-lhe o pranto e traduzir-lhe os gemidos em harmonias eróticas. Se a imagem da sua esposa lhe estava sempre presente como uma viva lembrança, aí também para seu martírio via nos braços maternos aquela filha, aquele anjo que aos doze anos era todo o seu encanto, toda a sua alegria e orgulho."40
Em história literária Norberto não possui uma obra completa.
Chegou a anunciar uma história da literatura brasileira ; mas este livro não foi escrito.
Seus mais prestimosos trabalhos no gênero são a Introdução às Modulações Poéticas, diversos artigos na Minerva Brasiliense, na Revista Popular, e, especialmente, os estudos e notas que acompanham as edições dos autores da Brasília Biblioteca do Sr. Garnier.
Norberto Silva dirigiu a publicação de Gonzaga, Silva Alvarenga, Alvarenga Peixoto, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Laurindo Rabelo.
Os bons serviços do escritor fluminense nesta esfera não são de caráter teórico e doutrinário; ele é pouco fecundo em recursos de análises e apreciações literárias. Seu mérito positivo, por este lado, está na parte biográfica dos autores, na verificação das datas e dos fatos. Tal qual Varnhagen.
40. Brasileiras Célebres, págs. 182 e seguintes.
Bem se vê ser este um trabalho preliminar indispensável para quem tiver de empreender a história da literatura brasileira. É bem possível escrevê-la sem recorrer nunca às publicações de J. M. Pereira da Silva e do Cónego Fernandes Pinheiro. Estes não foram pródigos nem de teorias, nem de fatos; seus livros são cópias mais ou menos hábeis dos antecessores.
Norberto não; é caprichoso e tem probidade literária. Seus defeitos capitais são falta de cultura clássica e falta de cultura filosófica e científica. Daí a ausência de idéia dirigente no complexo de seus trabalhos e o desalinho perpétuo da forma em seus escritos.41
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