As Artes do Extremo-Oriente

Pierre du Columbier – História da Arte – Cap. 15As Artes do Extremo-Oriente

Tradução de Fernando Pamplona. Fonte: Editora Tavares Martins, Porto, Portugal, 1947.

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HISTÓRIA das artes europeias e até não europeias da bacia do Mediterrâneo pode fazer-se desprezando de maneira quase total as artes do Extremo-Oriente, cuja influência só se exerceu de maneira esporádica, quase sempre tardia e superficial. Mais suscitaram modas do que propriamente agiram em profundidade. Mas a recíproca não é verdadeira.

Existe um preconceito tenaz, alimentado pelas imposturas da cronologia china, segundo a qual os países orientais, em especial a China, poderiam jactar-se duma civilização e de artes plásticas mais antigas do que as do resto do Mundo. Ora, nas épocas mais brilhantes da arte egípcia, a China nada mais tinha a apresentar do que uma olaria primitiva, que se distingue para o etnólogo, mas não para o artista, dos ensaios informes tentados por muitos outros povos. Quando Fídias esculpia os mármores sublimes do Parténon, a mesma China não passara ainda dos seus vasos de bronze, semdúvida de alta qualidade, mas aos quais um ocidental reconhecerá dificilmente igual valor humano. Não é até impossível que o Extremo-Oriente só haja descoberto o homem, considerado como objecto essencial, sob a inspiração dos ocidentais. Não se pode afirmá-lo com absoluta segurança, mas negá-lo seria em extremo imprudente.

Que seja assim ou não, o certo é que se torna já impossível sustentar a teoria do isolamento das artes do Extremo-Oriente. Só há divergências acerca das modalidades segundo as quais determinadas influências se exerceram.

Atribui-se grande importância à expedição que levou, cerca de 325 a. J. C, Alexandre até à índia. Importância que não é exagerada, se se considerar que se trata não tanto dos resultados duma empresa efémera como das suas consequências longínquas, entre as quais o estabelecimento de pequenos estados gregos ou helenizados até às margens do Indo é de todas a mais essencial. Depois, a glória súbita do prodigioso Macedónio não deve fazer esquecer o lento trabalho dos que foram por ele destroçados, esses Persas aqueménidas, propagadores infatigáveis das fôrmas ocidentais para leste.

Por outro lado, entre esse Extremo-Oriente ainda um tanto ocidental que é a India e a China, houve relações muito mais activas do que durante muito tempo se julgou. Relações comerciais, sem dúvida, relações religiosas mais ainda. Entre as religiões do mundo antigo, o Budismo é aquela que tem com o Cristianismo mais pontos comuns, pela sua acção sobre as sensibilidades, pela sua caridade, pelas suas pretensões ao universalismo, que dela fazem, não a religião dum só povo privilegiado mas a religião de todos os povos. Ora este budismo, que levava consigo uma iconografia de todo helenizada, franqueou os desfiladeiros, os planaltos, semeou os desertos de santuários, para ir conquistar espiritualmente a China e o Japão — e a conquista, em dado momento, foi quase completa. A noção dos itinerários das peregrinações, que se não pode menosprezar no Oriente, tem sem dúvida aqui mais importância ainda. E, desde que o conhecimento da arte china das altas épocas se espa-palhou, verifica-se que a sua expressão é muito menos oposta à das artes ocidentais do que geralmente se admitira. Não se pretende deste modo atenuar a oposição fundamental entre a alma china e aeuropeia. Parece no entanto que, nas épocas mais recentes, a China mais se fechou do que se abriu e que, a despeito do sonho dos espíritos simplistas, que pretendem ver por toda a parte o progresso contínuo e a unificação da espécie, o isolamento deste grande país mais se tem acentuado. Há muito maior parentesco entre uma escultura de pedra da época Wei e uma estátua românica do que entre uma paisagem china do século XVII e uma obra de Nicolas Poussin. Mas precisamente a arte china começou por ser conhecida na Europa pelos monstros que se designavam pelo nome genérico de «chinesices» e que sâo, na sua maior parte, da baixa época.

 

Convém, no entanto, fazer uma reserva. No que vai seguir-se, tratar-se-á sobretudo, embora sucintamento, de pintura e de escultura. A arquitectura não ocupará nem de longe um lugar tão grande como quando se tratou das artes ocidentais. De facto, o Extremo-Oriente, nos seus meios técnicos, mostrou-se bastante primitivo : a India não conheceu a abobada e limitou-se a cobrir o espaço peló emprego de galerías salientes apoiadas em cachorros; a China e o Japão adoptaram sobretudo a madeira nas suas construções. Todavia, a Grécia ignorara também a abóbada. O que parece que mais faltou foi, salvante na arte «khmer» e numa arte hindu relativamente recente, a preocupação das composições majestosas, equilibradas, grandiosas.

Á Índia

Destas regiões, a índia foi certamente a mais aberta às influências ocidentais. È também aquela cuja arte menos estranhamos: «Esquematicamente, pode dÍ2er-se — escreve o Sr. Philippe Stern — que a índia recebeu consideráveis contribuições do noroeste e que a sua influência se exerce para leste». Após um período muito longuínquo e, em suma, pouco conhecido ainda, em que a civilização da índia, pelo menos no vale do Indo, surge como uma dependência da civilização sumeriana e elamita, produz-se a invasão dos Arias. Mas, para descobrir entre estes, cuja chegada se situa entre o ano de 1.500 a. J. C. e o ano de 800, uma arte figurada, há que esperar até uma época relativamente recente e aliás mal determinada: três ou quatro séculos antes da nossa era. Esta arte, cujas origens conhecemos mal, mas que tem certos pontos de contacto com a da Pérsia, mostra-se, desde o seu início, ligada ao budismo.

Budismo – Ate Budista

Exagerava-se a importância da revolução religiosa budista no seio do bramanismo elaborado pelos Árias. Seria sem dúvida fácil opor brutalmente as duas concepções: o budismo, religião humana, popular, que fazderivar a salvação do homem dos seus próprios méritos; o brama-nismo, cheio de símbolos aterradores, particularista, edificado sobre o regime das castas, sobre o princípio da virtude formal do sacrifício. Isso levaria, contudo, a esquecer que duas religiões muito diferentes, praticadas pelos mesmos homens, tomam sempre um ar de parentesco. Assim, o budismo não procurou sair do sistema geral do bramanismo e, quando este acabou por triunfar do seu rival — que chegou aliás a desacreditar-se pela excessiva importância atribuída à feitiçaria — mostrou-se, sob o aspecto do induísmo, acolhedor em extremo para todas as crenças, tanto para as superstições populares como para as mais altas especulações filosóficas.

Como quer que seja, as primeiras obras da arte hindu são por completo impregnadas do fervor budista que era o dos soberanos da dinastia Maurya. Os santuários principais, espécie de mausoléus–relicários, denominam-se síupas ; elevam-se acima do solo como montes de terra de perfil mais ou menos hemisférico, semelhantes aos que as toupeiras levantam fossando; dir-se-iam cúpulas muito achatadas. Deve confessar-se que o seu aspecto é muito desgracioso e que ainda o devia ser mais quando o stupa tinha ao cimo uma cobertura em forma de guarda-sol. Rodeia-o uma cintura amuralhada, em que se rasgam portas, por certo originariamente de madeira, porque, traduzidas hoje em pedra, conservam, apesar disso, o aspecto da carpintaria. Existem ainda templos escavados na rocha, de planta sensivelmente basilical, cujo altar devia ser substituído por um stupa em miniatura. Estes templos apresentam, no exterior, uma fachada cada vez mais carregada de ornatos, com uma vasta lucarna, cujo pequeno arco é continuado interiormente por uma falsa abóbada com arcos torais, que parece sustentada por colunas cujos capitéis são frequentemente ornados de animais, como os capitéis persas. Depois de citar ainda mosteiros igualmente subterrâneos com sala central quadrangular, ter-se-à mais ou menos referido tudo o que chegou até nós da arquitectura budista na índia. Há decerto que lamentar o desaparecimento das construções de madeira que inspiraram estas construções de pedra. Este pesar é contudo temperado pela mediocridade das imitações feitas com materiais duráveis.

Escultura A escultura é de outro quilate e bem depressa denuncia as fontes de inspiração que serão cons-tantemente as da India. E narrativa, carregada e frequentemente voluptuosa. Estes homens experimentam grande alegria em contar belas historias — a deliciosa lenda do Buda — e até em as contar tagarelando, atravancando a superfície de que dispõem, enrique-cendo-a de motivos ornamentais caprichosos, que parecem dobrar-se a custo a uma ordenação rígida. Olham com particular simpatia os animais que os rodeiam e notou-se que, num dos mais antigos monumentos, o capitel de Sarnath, que data de cerca de 250 a. J. C, do apogeu da dinastia Maurya (322 a 185 aproximadamente), se encontram, justapostos sem se misturarem, os leões persas hieráticos e os elefantes indígenas observados, pelo contrário, com malícia. Mas, aos lintéis da porta dum stupa de Santchi (que deu o seu nome a todo um estilo) suspendem-se fadas de graça ainda um pouco pesada, mas singularmente insinuante. E lícito perguntar se, ao invés dos Egípcios — e talvez até dos Gregos — os Hindus não enfileiraram entre os amantes mais requintados do corpo da mulher, no que este tem de mais específico. Se conseguiram dar-lhe uma expressão tão pessoal, foi provavelmente com sacrifício da firmeza da sua arte. O seu desenho parece-nos por vezes um tanto mole, mas logra desse modo traduzir melhor ainda a ligeira gordura duma carne em plena florescência. Se parecem pouco atentos à ossatura, é que pretendem imprimir à mulher flexões que a tornam semelhante a uma liana e em particular a tripla flexão denominada tribhanga: a cabeça inclinada para um lado, o torso para outro, enquanto a bacia e as pernas retomam, por compensação, a direcção primitiva. Mas tudo isso sem quebra de linhas: uma infinita maleabilidade, promessa essencial de volúpia do corpo feminino. Acrescentemos ainda que o nu, pelo menos na parte superior do corpo, delimitada por linhas inverosímilmente delgadas, é para eles um hábito quase constante. Comprazem-se em o fazer ressaltar, de preferência a procurar velá-lo, graças a tecidos transparentes. Enfim* este nu está muito longe da inocência de que se reveste para ôs Gregos da grande época; condimenta-se de atitudes provocantes e até dum falso pudor que em nada contribui para atenuar a provocação. Mas é antecipar um tanto: no estilo de Santchi, a sensualidade não deixa de ser algo pesada.

Que dividas contraiu esta antiga arte da Arte greco-budista

India, pelo menos indirectamente para, com a arte grega? gabemos, nem o saberemos talvez nunca, mas a invasão helénica produz-se numa escala que assombra. No noroeste da India e particularmente na região chamada Gandara, que é o vale de Cabul, foram exumadas grandes quantidades de cabeças e de baixos-relevos de estilo tão absolutamente greco e grego-romano, que é difícil não os considerar esculpidos em boa parte por artífices de importação. O seu mérito não é aliás muito elevado e nós pedimos à arte hindu alguma coisa mais do que os sucedâneos insípidos duma arte estrangeira.

No entanto, a importancia deste estilo greco-budista, que parece ter durado aproximadamente do I ao V século, não deve ser considerada em função do seu próprio valor. Teve resultados apreciáveis e provavelmente em particular a representação do próprio Buda. Com efeito, no estilo de Santchi, o seu lugar permanece vazio nos baixos–relevos que descrevem a sua lenda. E sobretudo as primeiras obras que o representam, particularmente na estatuária, são visivelmente enroupadas à moda grega, e esta convenção de roupagem subsistirá por muito tempo. O que é novo é evidentemente a expressão de serenidade pensativa que transfigura até os produtos abastardados do helenismo e que será levado ao mais alto grau pela escultura «khmer». Mas é sem dúvida decisivo para a evolução da arte hindu que o Buda tenha nascido de Apolo (como dele também nasceu verosimilmente Cristo), isto é, dum certo ideal de beleza.

A arte greco-budista não se limitou, no entanto, a reproduzir com servilismo modelos de importação; apresenta tardiamente produções bastantes singulares: estatuetas de estuque modeladas nervosamente, pequenas cabeças de expressão a tal ponto pronunciada que parece por vezes caricatural, indicações de movimento quase dolorosas que fazem lembrar a arte gótica, devendo entender-se, contudo, que uma comunicação entre ambos, embora longínqua, é de todo impossível. Mas tais encontros nada têm de surpreendente, pois os homens oscilam sempre entre dois poios: expressão-movimento por um lado, estabilidade-beleza pelo outro — e é quase fatal que surjam afinidades imprevistas.

O helenismo da arte hindu surge pois como um fenómeno capital da história das artes. O Buda grego põe-se a caminho para Leste pela estrada dos oásis, onde encontrará as formas persas e chinas que vêm fundir-se com ele.

Apogeu da Arte hindu Imediatamente e como se estivesse à espera desta fecundação, a arte hindu, do II ao X século, produz suas obras-primas.

Contemporâneos em parte da arte greco-budista são os estilos de Matura e de Amaravati. O primeiro continuou na India do Norte, sob uma dinastia indo-sita, a arte de Santchi, enquanto o segundo se desenvolveu ao sul, no Decão. Um e outro, relativamente independentes do helenismo, denotam carácter indígena muitíssimo pronunciado. Independência contudo parcial, porque não deixaram de buscar inspiração na iconografia e até na estética de Gandara. Em Matura, as formas são espessas, pletóricas de sumo: os seios pesados, cujas duas esferas ultrapassam de longe a largura do torso, as ancas opulentas cortadas por um cinto que passa muito acima do sexo assumem valor predominante. Marfins recentemente descobertos sublinham ainda mais a expressão de volúpia. Amaravati tem mais elegância e, de certo modo, mais classicismo: os seus baixos-relevos são compostos com uma clareza, uma ciência do agrupamento bastante raras na arte hindu. Acontece até que o artista abusa da sua sabedoria de compositor e não consegue evitar por completo a frieza. A grande ciência do movimento tempera-se com o sentido da graça e a falta de ossatura nota-se menos aqui.

Quanto à flor suprema da arte budista da índia, encontra-se ela nos ciclos de pintura das cavernas de Adjanta, que datam de épocas diversas, mas cujas obras mais perfeitas foram executadas entre 600 e 650 aproximadamente. Aqui, a nota humana, manifestada, por exemplo, pela sublime melancolia do «belo Bhodisattva», a impalpável delicadeza dos pares de amantes enlaçados corrige o que o estilo de Matura conservava de pesadamente sensual. O traço, e adorável flexibilidade, assume extraordinária pureza nesta arte gupta que a índia não logrará ultrapassar. Tal atitude de pudor, tal movimento de retracção, como o duma banhista surpreendida pela água fria e clara, fica na memória dos olhos e do coração por um desses privilégios que criações mais regularmente belas nem sempre conseguem obter. Em Sigiriia, na ilha de Ceilão, onde há

frescos animados de figuras femininas de estilo análogo, mantêm-se as formas graciosas, mas com sensibilidade menos apurada.

Hinduísmo

O novo prestígio das velhas crenças hindus, que, por volta do século VIII, eliminam pouco a pouco o budismo, não foi, no entanto, acompanhado de decadência artística. Surgem as mais autênticas belezas tanto em Elora como no santuário vichnuíta de Mavalipuram e no santuário civaíta de Elefanta. Elora e Mavalipuram patenteiam curiosas particularidades arquitectónicas. O templo mais célebre de Elora — onde todos os cultos se encontram em boa vizinhança — o Kai-lasa, é em parte descoberto, mas talhado na rocha. Em Mavalipuram, pequenos rochedos foram transformados em templos que parecem construídos. Mas não passariam de bagatelas sem a escultura. Jamais a arte gupta atingira uma expressão tão máscula como a do sono de Vichnu, com o braço estendido largamente para fora da linha do corpo. Certas figuras de Elora, lançadas nas paredes, dão menos a impressão do voo do que do arremesso da flecha. E os animalistas hindus ultrapassaram-se, tanto nos grupos isolados de Mavalipuram, como no imenso relevo da Descida do Ganges.

Numa época que não ultrapassa os limites do século IX, a grande escultura indu deixa de existir. Ela não cai, porém, bruscamente e alguma coisa da sua elegância sobrevive, de maneira um tanto acanhada, nos bronzes dravidianos e, em particular, em pequenas estátuas da Dança de Shiva, em que o deus, em equilíbrio sobre uma perna, lança ousadamente a outra para o ar e em sentido lateral, num movimento que se encontrava já em estatuetas gregas. Mas a escultura de pedra abastardou-se depressa. Não foi todavia por falta de aplicação. Nunca os templos foram tão vastos nem tão decorados. A profusão do ornato quase abafa o homem. Embora os basbaques se maravilhem perante os cavalos empinados que se encostam caprichosamente aos pilares do templo de Srirangam (século xvii), o amador espanta-se sobretudo de que a soberba elefantomaquia do Kailasa de Elora tenha podido degenerar até este ponto de inconsistência. E, todavia, do ano 1.000 até à conquista muçulmana, e, mais tarde ainda, no sul, constroem-se todos os grandes templos que causam o assombro do viajante. Os que foram elevados pelos fiéis da religião «djaina», nascida quase ao mesmo tempo em que surgiu o budismo, mas muito diferente dele pela secura dogmática em particular no Monte Abu, por volta do século XIII, formam um capítulo à parte e que nâo é o mais sedutor. A sua decoração, toda de mármore, é de riqueza e complicação esmagadoras. E verdadeiramente uma arte arrivista. Nos edifícios propriamente hindus, diferenciam-se dois tipos: um tipo do norte, que conta entre os seus monumentos mais célebres o Lingaradja de Buvaneçvar, com os altas cúpulas enrugadas, de perfil contínuo, chamadas cikharas e rematadas muitas vezes por um bolbo. No templo do sul, pelo contrário, o edifício eleva-se em pirâmide de adelgaçamentos sucessivos, que marcam as diversas galerias salientes, apoiadas em cachorros. A este tipo pertencem em particular Tandjore (cerca do ano 1.000), Velore (século XVI, Madura (século XVII). O templo do sul torna-se um organismo complexo. Além da torre-santuário em forma de pirâmide ou vimana, atribuiu um lugar importante à porta monumental ou gopura; há ainda galerias cobertas, providas de pilares. E um conjunto bastante claro no que respeita à planta, rígido até, e que se desenvolve horizontalmente, com muralhas sucessivas, mas sem grande efeito monumental. As linhas perdem a a nitidez sob a incrível orgia da escultura ornamental, cuja qualidade é em extremo medíocre.

Merece rivalizar com a arte hindu a arte dos países geralmente denominados da índia exterior: Java e Cambodja no primeiro plano, Anão e Sião no segundo.

Ilha de Java

O florescimento da arte javanesa, suscitado sem dúvida pelos melhores estilos hindus, durou pouco tempo, do século VIII ao X. A despeito de certos bronzes de alta categoria, a despeito de pequenos templos sorridentes que não são destituídos de graça, ele resume-se para nós em dois conjuntos escultóricos do centro de Java: Borobudur e Prambanam. Os relevos de Borobudur recobrem, no dizer daqueles que os mediram, uma extensão de seis quilómetros e, por isso, é tanto mais surpreendente a constância da sua qualidade. Na maior parte das vezes, são quase estátuas despegadas do fundo. Com uma arte de contar tão viva como a hindu, a composição possui mais clareza. O ornato mostra-se menos absorvente. Também aqui, as figuras de mulheres formam o principal factor da sedução; têm elas algo de inchado, que dá às figuras

hindus encanto irritante, mas com mais saudável equilíbrio. Reina sobretudo um sentido muito mais vivo da pedra, uma bela pedra vulcânica granulosa. Em Prambanam, que é posterior a Borobudur, o problema do baixo-relevo foi mais francamente tratado. O escultor não somente procura manter o plano do fundo, mas também salvaguarda a superfície externa, e tenta por vezes esforços difíceis de condensação. E toda esta escultura da Java central respira uma vida muito humana, muito familiar, que surpreende tanto mais quanto a ornamentação propriamente dita, que sofreu importante influência china, abunda em monstros grotescos e aterradores.

Da Java central, que entra de decair por volta do século X, a arte passa para o leste da ilha, mas a sua abundante produção nunca ali atinge a qualidade dos conjuntos antigos. Outrora envolvida, a forma retalha-se, quebra-se, perde muito da sua nobreza espiritual. Aparecem caricaturas. Uma decoração mais luxuriante do que cuidada acaba por se impor. No século XV, o Islão, penetrando em Java, precipita o declínio da arte javanesa, de que hoje só restam recordações, que bastam, porém, para atestar uma fortíssima tradição : testamentos humanos que são as atitudes rituais das dançarinas e testamentos inanimados como os batikes. Os títeres da ilha mantêm reputação superior ao seu mérito, embora o desenho quebrado, acidentado, anguloso, não deixe de possuir certo pitoresco.

Arte "khmer" Entre as artes derivadas da arte hindu, a mais grandiosa e talvez também a mais próxima da nossa sensibilidade é a «khmer». A parte capital do reino deste nome, Angkor, invadida pela floresta e em parte reconquistada à mesma floresta, constitui um dos tesoiros do Mundo, um dos mais fecundos para o sonho. A sua cronologia, hoje rigorosamente estabelecida, permitiu distinguir os estilos sucessivos. Fundado no fim do século IX, os seus diversos conjuntos escalonam-se aproximadamente até ao século XV e completam-se com o majestoso Baion, começado no fim do século XII. Depois, a civilização «khmer» cai sob os golpes de inimigos bárbaros.

«O que dá à arquitectura «khmer» fisionomia particular, escreve o Sr. Philippe Stern, é a união dos dois elementos, a torre-santuá-rio e a pirâmide de degraus». Nenhum dos outros povos do Extremo-

-Oriente produziu conjuntos revestidos desta majestade. Quando se fala, como sucede muitas vezes, de templos-montanhas, obedece-se sem dúvida a uma sugestão ritual, mas traindo gravemente, quanto ao aspecto, o que se designa desse modo. Os edifícios «khmer», submetidos a uma geometria que se poderia considerar rígida, nâo lembram em nenhum grau a desordem terrível da montanha. Nas fotografias de avião, a ordenação de Angkor Vat em especial desenha-se admiravelmente: quadrados cada vez mais pequenos e cada vez mais elevados, contornados de galerias, providos de torres de ângulo e de grandiosos propileus, até ao terraço mais alto, em que se ergue um torreão central. É certo que um bordado ornamental tão abundante como o da arte hindu reveste todas as superfícies, mas é menos indiscreto, mais liso, não destrói as linhas mestras, não afronta as estátuas.

Quanto à escultura, ela só deve à sua novidade relativa no conhecimento dos homens o não ser olhada como uma das mais majestosas do Mundo. O escultor «khmer» não é um voluptuoso como o hindu, mas um artista másculo, que tem o gosto da bela pedra robustamente talhada, e bem assim da simplicidade de atitude. Existe um sorriso de Angkor que está tão longe de ser um esgar como o sorriso grego das épocas arcaicas; e nada é mais nobre de expressão e mais doce ao mesmo tempo, duma doçura sem qualquer afectação, do que as cabeças de Budas que se encontram por toda a parte nos museus: fronte lisa e alta, sobriedade linear da boca, nariz um pouco largo, queixo curto, oval puro coroado por uma cabeleira estilizada em pequenos cachos, que forma uma espécie de capacete pontilhado. Os olhos baixam, acusando a meditação interior. O modelado é cheio, mas não gordo. Mais um pouco de gordura vinculá-los-ia excessivamente à terra. Existem por certo importantes diferenças entre os diversos estilos. E possível que os períodos mais antigos, anteriores a Angkor, nos reservem ainda surpresas. Eles possuem, muitas vezes, algo de rústico, de muito próximo do real, e contudo a pureza não pode ir mais longe do que em certas estátuas como o Hari-Hara (divindade que reúne numa só pessoa Çiva e Vichnu) do Museu de Pnom Penh. Pouco a pouco, esta arte transforma-se; no Baion, é extremamente decantada, decantada até em demasia, quase estereotipada. Apesar de tudo, reconhece-se sempre a raça dos escultores.

Reconhece-se também a qualidade dos artistas pela maneira como ordenam as composições; criam de bom grado, nos seus baixos-relevos, paralelismos, simetrias de movimento, sem sacrifício do estilo vivo que fora o segredo do antigo Egipto. E é com efeito muitas vezes nele que se pensa perante as obras-primas dos «Khmers», embora estes nao sejam tão frequentemente bem sucedidos.

O estudo da arte «khmer» implica o da arte de outro império que ocupava dantes o território do Anão, o Tchampa. Côm efeito, esta não atinge a mesma categoria. Submetida, sem dúvida, às influências hindus, mas havendo recebido também largamente as da China, o Tchampa refina quanto à complicação ornamental e mostra tendência para tratar o homem como um ornato. Para se resgatar dos seus monstros, dá-nos algumas obras de rara elegância — dançarinas sobretudo — e algumas sólidas estátuas. Mas nada nelas é de comparar às grandes produções «khmers».

Tanto se falou, durante estes últimos anos, da arte da Ásia Central tal como foi revelada pelas missões alemãs, francesas e inglesas que talvez se tenha errado quanto à sua importância histórica e ao seu valor próprio. A primeira não deve ser exagerada; esta aventura da marcha do budismo e das influências helénicas que vai carreando, através das estradas dos oásis, até às portas da China, constitui um capítulo absolutamente novo da história da arte. A mistura em doses desiguais, consoante o tempo e os lugares, destas influências com uma arte china já antiga suscita problemas apaixonantes. Mas os historiadores têm um tanto a tendência para encarecer o que os entusiasma assim. Em suma, estas pinturas rupestres com preparo, executadas muitas vezes por artífices inábeis, que beneficiam, quando muito, de boas tradições, têm apenas interesse secundário.

Secundária também, como se pode crer, a arte cultivada à sombra dos grandes mosteiros, nas montanhas tibetanas. Viu-se ela tratada com injustificado desdém, porque, nas suas obras, se encontram reproduzidos indefinidamente e, quase sempre, mediocremente os mesmos modelos. Apesar disso, é o Tibete um dos pontos em que o budismo tomou, de forma inesperadamente, um semblante terrível. E frequente a anedota, contada aliás com vivacidade. Mas certos retratos dos grandes sacerdotes, dos grandes feiticeiros lamaicos irradiam rara espiritualidade. Esta arte tibetana foi por certo modificada pela sua vizinhança com a China, o que se reconhece sobretudo pelo grafismo; mas o seu espírito é-lhe por completo oposto.

A China

Eis a arte que faz hesitar todos quantos não são especialistas: a arte china. Sem a certeza de terem uma consciência pura, eles sentem confusamente que estão em presença duma civilização que, tanto como a europeia, merece este nome, mas se funda muitas vezes em princípios opostos: a subtileza do que têm de apreciar torna-os receosos de se mostrarem horrivelmente grosseiros e incompreensivos. Tal xícara de porcelana, tal jade, tal paisagem para nós um tanto hermética proporcionam ao coleccionador de objectos de arte china prazeres delicados que nos enchem de confusão. Torna-se lícito, no entanto, perguntar se os apologistas da arte china, em seu entusiasmo pelo objecto dos seus estudos, não contribuíram mais para dificultar do que para simplificar e tornar acessível tudo quanto pode levar-nos à convicção de que nada percebemos do assunto. Nota-se neste ponto uma espécie de contradição. Esses mesmos sábios foram os primeiros a fazer justiça às obras de alta época, postas em voga por eles próprios. Ora tais obras exercem sobre nós um encanto muito mais directo do que as «chinesices» que seduziam os nossos antepassados, precisamente porque elas os surpreendiam, porque lhes traziam um exotismo por vezes, aliás, adulterado.

Evidentemente, a China é imensa, mas as suas diversas regiões participaram muito desigualmente na formação da sua arte. Todas as capitais das suas primeiras dinastias, todas as estações arqueológicas que nos revelaram os produtos da sua mais antiga civilização se encontram largamente ao norte do Iansequiâo. O seu eixo é formado, de certo modo, pelo Rio Amarelo ou Huâo-Hó. Era a região onde os Chins se encontravam mais frequentemente em contacto com os nómadas da Mongólia e portanto com a misteriosa arte das estepes; lá iam dar também as estradas vindas da índia pelos oásis. A teoria do isolamento permanente da China antiga está hoje definitivamente posta de banda e não seria de maneira alguma fácil descobrir uma época em que este mito tenha revestido uma aparência de verdade.

Das artes do Extremo-Oriente, a da China é, em todo o caso, a única que nos permite recuar mais de um milhar de anos antes da era cristã; então, os imperadores Chang, depois Tcheu, dominavam uma sociedade de tipo feudal. Esta arte começa, não por representações humanas, mas por aquilo a que, na Europa, se convencionou chamar objectos de arte decorativa, aos quais, atribuímos, por motivos não talvez tão frívolos como supõem alguns, um segundo plano na nossa admiração. Ora esta espécie de hierarquia não parece ter existido na China. Um Chim dá tanto valor a um jade bem polido, a uma panela de bronze, a uma xícara de porcelana como a um quadro ou uma estátua.

Bronzes na Arte Oriental

Até à dinastia dos Han, isto é, até ao fim do século Iíl antes da era cristã, o esplendor da arte china manifesta-se sobretudo nos seus jades de forma elementar (há-os que são constituídos por um simples círculo com um orifício ao centro), mas de trabalho impecável, e nos seus bronzes. Estes só são bem conhecidos há pouco tempo e a sua classificação dá ainda azo a numerosas discussões. Os seus tipos não são mais variados que os düs vasos gregos e têm em geral destinos rituais: caldeirões de grande bojo, tripeças, taças, umas relativamente pouco profundas, outras alongadas e aproximadamente com o aspecto duma boca de trombeta. O perfil tem uma continuidade, uma pureza que nos surpreendem. Em suma, o que quase nos escandaliza nestes objectos chinos é o facto de terem um ar tão pouco chino, de não apresentarem os acidentes bruscos da linha a que nos habituaram as chine-sices. Depois, o tempo deu a estes vasos, graças às qualidades particulares da matéria e aos produtos utilizados para a tratar, uma patina que vai do verde-cinza ao roxo, conferindo-lhes assim um encanto mais. Analisando a sua decoração, logo salta à vista a abundância de motivos, a sobrecarga que, em geral, produz tão vivo desagrado; mas aqui a decoração é apenas superficial e não destrói a forma geral. A maior parte dos elementos são elementos naturais, que, transformando-se, geometrizando-se, tomaram valor simbólico, e de que se torna difícil determinar a origem. Um dos mais espalhados é o n’ao-t’ie», cabeça de monstro que se reduziu finalmente às grandes bolas dos olhos, separados por urna especie de grega que significa o nariz e a boca. Por outro lado, alguns destes bronzes reproduzem, animais ao natural distribuidos com sobriedade: rãs ou lagartos que ornam uma pega, uma casa. Outros enfim, mais raros, tomam, no seu conjunto, o aspecto do próprio animal, mas um aspecto robusto, atarrecado, muito distante do que tanto se apreciou mais tarde.

Com a dinastia dos Han, uma das dinastias chinas que duraram mais tempo, — quatrocentos anos às cavaleiras no começo da era cristã (202 a. J. C. a 220 depois de Cristo) — com os seus príncipes guerreiros e conquistadores, os contactos entre a China e os povos vizinhos multiplicam-se. Os bronzes mantêm aliás alta qualidade e, tanto quanto podemos fiar-nos nas datas, o relevo da decoração torna-se ainda mais discreto; no entanto, a superfície enriquece-se com incrustações. Os espelhos denunciam rebuscas particularmente requintadas e deram-se nomes variados aos diversos tipos de ornamentação que eles apresentam, ordenada concéntricamente em relação a uma saliência arredondada e por vezes reduzida a uma espécie de pontilhado. Aqui e além, por toda a parte, surgem certos motivos da arte das estepes, sobretudo as lutas de animais ferozes, e arabesco aparentemente caprichoso, mas, na verdade, muito equilibrado.

Escultura Oriental

 Então se nos revelaram nitidamente, pela primeira vez, a pintura e a escultura chinas. A primeira, conhecemo-la mal, ou antes, conhecemo-la demasiado pelos textos, muito pouco pelas obras. Como os textos afirmam que ela era de inspiração budista, pode conjecturar-se que nos surpreenderia pouco. Disso temos aliás confirmação pelos recortes de pedra (não se pode designar doutro modo esta técnica aparentada com a bizantina e que mais se integra no desenho do que na escultura propriamente dita) descobertos em grande número nas câmaras funerárias. Nota-se neles grande facilidade na expressão do movimento, mas não se adivinha de forma alguma a tendência para a abstracção que há-de assinalar uma arte china posterior. O obreiro compraz-se, pelo contrário, em neles narrar anedotas em extremo claras, cenas de batalha, recepções, aventuras mitológicas, que não nos surpreendem senão por motivo da nossa ignorância. Algumas estátuas, como os pesados cavalos que velam sobre o túmulo do general Huo-K’iu–ping (117 a. C), alguns baixos-relevos em pilares funerários mostram que a verdadeira escultura foi igualmente cultivada, mas deixam-nos indecisos quanto ao desenvolvimento desta arte.

O seu apogéu vem mais tarde, durante um período bastante perturbado da história china, em que a unidade nacional se rompeu durante perto de quatrocentos anos. Está ele ligado a uma dinastia nâo china mas mongólica, a dos Wei, que reinava no norte do país; está ligado também ao desenvolvimento do budismo, de que estes príncipes se tornaram os propagandistas. As cavernas de Yun-kang e de Long-men lembram sem dúvida, pelo aspecto superficial da sua escultura, os santuários indo-iranianos. No fundo, a diferença é enorme. Os Chins carecem de ingenuidade e as lendas do Buda deixam-nos frios. O que deixaram como obras-primas são antes estátuas isoladas, estáveis, muitas vezes hieráticas. Mostram tendência para acentuar o alongamento das figuras, algumas das quais lembram curiosamente, pelo seu próprio alongamento e pelo esquematismo das roupagens sob as quais o corpo se apaga, a nossa estatuária românica.

Escultura e budismo estão sempre em plena florescência sob a breve dinastia Suei (589-61 7) e sob a longa dinastia T’ang (618-906), que, quatrocentos anos depois da dinastia Han, faz reviver o mesmo carácter batalhador, a mesma força de conquista e também o mesmo espírito aberto. Época enérgica, por certo. Alas será essa propriamente a impressão que nos deixa a sua escultura ? Nas cavernas de Long-men, em que os escultores T’ang continuam os escultores Wei, como em T’ien-long-chan, dir-se-ia antes que surgiu algo de repousante: a sua elegante flexibilidade é menos elevada talvez, mas mais afável que a dos seus predecessores. E a época T’ang deve sobretudo a sua popularidade mais firmemente alicerçada às estatuetas de terra-cota — muito numerosas e multiplicadas ainda pelos falsários — encontradas nos túmulos e que foram objecto de entusiasmo muito legítimo: esses cavalos modelados com suficiente largueza para não resvalarem no «bibelot» têm flama e movimento. Quanto às figurinhas de mulher, evocam elas, pela naturalidade de atitude, pela delicadeza, pela sumptuosidade do trajo, que não as afoga em demasia, uma vida de sociedade cheia de finas distracções. São as Tanagras da China.

Poder-se-ia, pois, crer que uma superabundância do sentido plástico levou os artistas a fazer destas pequenas obras o seu passatempo. Todavia, fenómeno singular, a escultura monumental e até a pequena escultura vão, dentro de poucos anos, senão desaparecer completamente na China, pelo menos perder a alta qualidade que as recomendava aos amadores.

Este fenómeno inesperado produz-se durante o período Song, que os historiadores apresentam, ao sair da época de perturbações que duraram cerca de meio século, como bastante glorioso, mas sem cessar ameaçado. Explicam eles ainda que a escultura da China é sempre arte arte de importação, que os Chins, entregues a si próprios, a desprezam, e que precisamente o reinado de Song representa o regresso do velho espírito chino, o reencontro da China consigo mesmo, a ruptura das suas relações com o estrangeiro-

Pintura Chinesa

O certo é que o período Song é para nós um momento capital da história da China no que respeita à pintura e à cerâmica. Não quer isto dizer que a pintura china tenha então nascido. Assinalámos a sua existência desde a época Han. Mas a sua reconstrução constitui — há que confessá-lo — tarefa de arqueólogo, com tudo o que os métodos empregados podem ter de contigente. Para fazer ideia da pintura Wei, recorre-se ao célebre rolo de Ku-k’ai-tche, que quase todos os sábios consideram uma cópia Song. Para fazer ideia da pintura Tang, examinem-se as decorações murais de Tuen-huang, uma estação que se encontra nos confins da China, perto do deserto de Gobi, ou certas paisagens conservadas no Japão. Mas, das primeiras, não se pode dizer se representam bem o que se fazia então em plena China e se, em particular, não estão gravemente deformadas pelas influências ocidentais; as segundas são muito contestáveis e muito contestadas. Pelo contrário, existe uma quantidade bastante grande de pinturas Song e especialmente de paisagens, que constituem, a despeito das aparên cias, que não deixam de seduzir, o que a arte china patenteia do mais estranho às nossas concepções. Vale a pena que nos detenha mos neste ponto.

Repete-se frequentemente, até entre nós, que o desenho é uma escrita. E uma fórmula que, para as artes europeias, só se torna admissível a título de figura de retórica mas que pode ser tomada letra para a pintura china. Esta e a escrita constituem uma só e mesma coisa e mal se podem separar no espírito dos seus admiradores, a tal ponto que os coleccionadores deste país guardam com o mesmo interesse um modelo de escrita e as pinturas dum mestre, O virtuosíssimo extremo do traço, a habilidade gráfica consumada são o resultado desta confusão, assombrosa para nós. Em contrapartida, pintar é para um Chim operação muito mais directa do que para um Europeu. Mais reflexão se interpõe entre o sentimento do artista e a sua expressão. Daí resulta também frequentemente tendência para a repetição. Os rolos chinos são por vezes muito longos, de qualidade constante, mas a pessoa diz de si para consigo que nenhuma necessidade os limita, que o artista houvera continuado assim, sem desfalecimento, numa extensão dupla ou tripla. Tudo isto é feito a frio, após decantação e abstracção tão severas que se torna difícil encontrar aqui a divina emoção, a emoção dum Corot perante um espectáculo circunscrito e individualizado da natureza. Fazemos muitas vez s aos nossos artistas a censura de cultivarem uma arte «literária»; tal censura não teria qualquer sentido para um Chim: os críticos esforçam-se por demonstrar que, entre a poesia e a pintura, não há quaisquer fronteiras.

A época Song pôs ao serviço de concepção tão diferente da nossa uma técnica de que a habilidade china soube tirar prodigioso partido: a aguada a tinta da China. O pincel passeia por sobre o papel, ora, fiando linhas duma tenuidade de aracnídeo, ora deixando um traço largo e gordo. A tinta mais ou menos diluída exprime as gradações imperceptíveis. Mas estas paisagens demasiado perfeitas possuem pouca variedade. Para Corot, uma paisagem do Morvan não se assemelha a uma paisagem da Bretanha. Ora é inútil procurar, nas paisagens dos pintores chinos, o retrato da China. Uma árvore de ramos retalhados, uma bruma de cujo seio se ergue uma montanha. Gostaríamos de ter a certeza de que a soma das receitas não ultrapassou de longe a soma das impressões experimentadas. Tendência tanto mais perigosa quanto foi favorecida por uma organização académica cheia de pontinhos, que achou que nada havia de mais urgente do que codificar a pintura. O Sr. Grousset falou a justo título, quanto à época Song, da intelectualização da arte china. Quanto a fazer a exegese filosófica destas paisagens, se o admitíssemos sequer, porque não faríamos antes, por maioria de razões, a exegese das paisagens ocidentais?

Impressionara-nos muito mais profundamente os retratos chinos, em que o artista, refreado pelo seu modelo, não pôde seguir inteiramente a rotina. Então, sentimos melhor os méritos dum desenho acentuadamente nodoso e nervoso, autoritário por sua nitidez, ávido do traço expressivo e da elipse. Da eliminação dos meios que não são essenciais resulta por vezes uma força singular, Depois, nesta mesma época, o budismo, que evoluíra, em reacção contra a tendência materialista do confucionismo oficial, para um misticismo pronunciado, para a contemplação, produziu algumas obras deliciosas, em que o invisível não prejudicou o visível e em que a aparência, apreendida sem dúvida como o indício duma realidade mais profunda, conservou no entanto a sua frescura.

 Antes de tudo, para os amadores, Song e Ming sao sinônimos de porcelana. Ha aqui que prestar rendida homenagem. Xada talvez nas artes ocidentais atinge a perfeição de factura das porcelanas Song, nem a infalibili. dade de gosto que revelam. É impossível desenvolver com mais elegante variedade o mais simples dos temas. Vasos, xícaras, pires e taças revestem formas que não variam nunca, pois são, por assim dizer, definitivas. Nenhuma figura desenhada ou pintada as orna na maior parte das vezes: cores e artifícios de fabrico são o bastante. Verdes—mas, verdes macios, cinzentos violáceos, «beiges»,bistres aveludados que lembram a pelagem da lebre. Ora passam insensivelmente duns aos outros, ora se tornam mais escuros no centro duma mancha, ora imitam a densidade colorida duma pena de ave. Certos subterfúgios de cozedura — provavelmente defeitos na origem — como o salpicado do esmalte, são empregados com habilidade consumada para animar a superfície, retalhando-a à vista em polígonos de dimensões regulares, mas de contornos variados. Enfim, os fundos tomam uma brancura ebúrnea ou leitosa que dá a estes pequenos objectos o aspecto mais precioso.

Cem anos de intermédio (1280-1368), em que os conquistadores mon góis Yuan dão provas, na China, da mesma tolerância já usada no resto do seu imenso império, forçam os artistas chinos, apesar do respeito com que os soberanos honram a sua tradição, a olhar para o exterior. Na história da pintura china, poucas obras nos são tão acessíveis como as imagens de cavaleiros mongóis, de contorno incisivo, muito calmos de expressão, que cavalgam em suas montadas a pleno galope, de crinas ao vento.

Depois, o eterno movimento pendular da história da China traz, com os Ming, Chins empenhados em reagir duramente cnotra os antigos conquistadores (1368-1644). A época Ming não carece, por certo, de brilho. A maior censura que se possa fazer-lhe é que quase tudo o que se disse da época Song se lhe pode aplicar, um tom abaixo. A pintura está mais em evidência de que nunca; os pintores, cada vez mais numerosos, gozam, no Estado, de consideração imensa. Mas as academias tornam-se também mais apertadas em seus conceitos e a espontaneidade diminui. Assiste-se a uma espécie de cristalização, o arcaísmo campeia. Seria de preferir menos perfeição e mais vida. Quanto à porcelana, admite-se geralmente que nunca ela foi mais brilhante. As fabricações concentram-se e a manufactura imperial de King-to-tchen, nas cercanias de Nanquim, tende a monopolizar a produção. Tecnicamente, as porcelanas Ming são perfeitas; brancura, sonoridade, homogeneidade da matéria — tudo é impecável. Os artífices permitem-se audácias, como a que consiste em reduzir a espessura a quase nada. Ao mesmo tempo, o número das cores de que dispõe o ceramista multiplicou-se, surgem belos vermelhos, os azuis — sobretudo os azuis importados da Pérsia — possuem severa beleza, que os torna ilustres. Sobretudo, usa-se largamente da policromia para aumentar a variedade e por vezes também, sem dúvida, para atingir um público menos exigente. Demais, o Europeu começa a disputar as peças mais esplendorosas ao Chim, e os artífices da China trabalham de bom grado para este novo cliente. O relevo, a inscrustação somam-se à cor. Não é que, com esta gama muito mais extensa, os ceramistas chinos não dêm incontestáveis provas de gosto. Causa até surpresa que, a despeito de todas as tentações, ele se mantenha tanto tempo em nível tão elevado. No entanto, já não é a severidade esmerada da época Song, da qual se diria que o artífice só contou com as qualidades inerentes à porcelana para lhe dar todo o seu encanto. As lacas pintadas e incrustadas de oiro igualam quase a produção dos Nipões, especialistas na matéria. Haveria que ser muito exigente para contestar tudo isso e só a velha China pode eclipsar a China Ming.

A última dinastia, de origem manchu, que ruiu em 1912, não exerceu sobre a China a virtude regeneradora das precedentes dinastias estrangeiras. Também é certo que não trouxe consigo bagagem comparável à daquelas que a haviam precedido. Sob a sua soberania, a China, defendendo embora a sua alma com superstição receosa, abriu-se materialmente de maneira muito mais larga às importações europeias. O tufo chino haverá sido mordido ? Os pintores permaneceram na sua torre de marfim, protegidos em suma pelo facto de que só atentam neles alguns raros ocidentais de espírito esclarecido. Pelo contrário, os ornamentistas, cujas obras foram tidas em maior apreço, fartaram-se de fazer concessões. As policromías berrantes dominaram na porcelana e o oiro nas lacas. Trabalhou-se até por encomenda. Os amadores de exotismos apreciarão vivamente certos objectos especialmente destinados à exportação e cujos modelos vieram da Europa. Vendo a sua interpretação executada por mãos chinas, logo se conclui que uma habilidade consumada nem sempre basta. No artífice chino que copia um grupo de Watteau ou até simples brasões de armas, os hábitos do espírito e da mão afirmam-se a todo o instante, o modelo é esquecido e daí resulta uma obra semi-europeia e semi-oriental de estranho sabor.

O Japão

A arte nipónica beneficiou, na Europa, na segunda parte do século XIX, de voga muito superior à de todas as outras artes do Extremo-Oriente. Demais, esse favor, está agora a expiá-lo. Os próprios Nipões se encarregaram de fazer compreender aos amadores de estampas nipónicas, que haviam cometido grave con-tra-senso, que admiravam uma arte desprezada no Japão, uma espécie de imagens de Epinal, que Burty, os Goncourt, tantos outros entusiastas do Japão se tinham enganado e que a arte nipónica não era nada disso. Mas então ofereceram o flanco, por sua vez, aos amadores da arte china. Estes só nutrem deprezo pelo Japão, um simples arrivista sem comparança com a antiga civilização da China. Demonstraram — o que é incontestável — que a arte nipónica é uma arte «dirigida», que recebeu as suas impulsões da China e que essas impulsões, longe de se verificarem com longos intervalos, se produziram quase continuamente. Com quase perfeita regularidade, encontram-se no Japão os vestígios de todos os estilos da sua gTande vizinha. É ainda exacto que não se lobriga qualquer movimento em sentido inverso, pois a China, neste domínio, considerou-se sempre superior a um país cujo menor pecado não é, a seus olhos, o de ser um país jovem — crime inexpiável para os Chins, que atribuem à antiguidade exorbitantes privilégios.

Por este critério, poucas artes poderiam ser olhadas como originais. Entre os dois povos, entre os seus modos de viver, as diferenças são capitais. O Xipâo é mais vivo, mais aberto, mais permeável e também mais individualista, mais guerreiro, menos amoldado aos hábitos administrativos. Conheceu sobretudo uma civilização feudal, com tudo o que esta. palavra comporta de fidelidade ao soberano, de culto do ponto de honra, de sentido épico da existência. Reflectidas por um temperamento nipónico, as artes chinas não tardam a transformar-se. Falando dum paisagista como Jasoka, que florescia no século XV, o Sr. Grousset observa que ele está, na realidade, muito mais próximo da chamada escola vulgar do Japão que os paisagistas Song, que são seus mestres. Seria em extremo difícil escrever uma história, embora, muito sucinta, da arte nipónica sem referir nomes de artistas.

A injustiça tomou ainda proporções maiores no dia em que subiu de ponto o entusiasmo pelas altas épocas: a civilização nipónica não poderia arrojar-se, neste particular, grandes pretensões, pois só aparece à luz da História por alturas do século iv depois de Cristo quando os traços definidores da civilização china se tinham já fixado havia muito. E a primeira fase da sua arte é, com demasiada frequência, uma imitação secundária.

Período de Nara 

De novo aqui o humanismo búdico actua como fermento. No século IV, o budismo espalha-se e generaliza-se no Japão, mais se sobrepondo ao shintoísmo do que propriamente substituindo-o. Ele traz consig-o a grande escultura china — cuja existência devia ser tão passageira — sobretudo sob a sua forma Wei, e também grande número de elementos hindus, que se manifestam principalmente na pintura. Assim nasce no Japão uma arte búdica, que brilha e se nacionaliza em especial no chamado período de Nara, cidade que, durante todo o século VIH, foi a capital dos imperadores nipónicos. Mais do que a China, o Japão conservou os seus antigos santuarios de madeira, cuja fragilidade arquitectónica resistiu aos tremores da terra ou, pelo menos, foi fielmente, reproduzida por espirito de veneração. Os templos de Nara e das cercanias, em particular o célebre Horiuji, encerram as mais belas obras-primas dos séculos Vil e VIII, tanto no que respeita à pintura como à escultura. Pela primeira vez, não há que procurar, como na China, as obras de melhor quilate na pedra, que nunca teve a predilecção dos Nipões: os seus materiais favoritos são o bronze, a madeira e até a laca seca, processo original mas frágil, que permitiu no entanto a esses hábeis artífices erigir grandes estátuas. A famosa Nyoirin Kwannon, que se vê no Chuguji, é muito característica do ideal nipónico comparativamente à arte china. A deusa, que não é mais do que uma transformação duma divindade masculina e que, sob a sua forma feminina, é muito popular no Japão, ergue-se numa atitude meditativa consagrada, com dois dedos sobre o rosto, de torso nu e de pernas cruzadas recobertas dum panejamento de dobras muito achatadas. O modelado extremamente fácil e sumário apaga os acidentes da forma. Daí resulta sem dúvida uma expressão de alta espiritualidade, mas, com um pouco mais, só nos restaria uma boneca. Os traços do rosto adelgaçam-se até chegarem a uma secura linear, enquanto se acusam com nitidez certas formas arredondadas: em suma, a vida quase que se esvai. É certo que, por contraste, os Nipões exeoutam, no século Vlll, alguns admiráveis retratos de bonzos, em que se casam harmoniosamente o individualismo e o grande estilo, enquanto, nas estátuas quase caricaturais dos Reis celestes, se dá livre curso à veia humorística dos modeladores de máscaras.

A pintura apresenta o soberbo conjunto do Kondô de Horiuji. Em boa verdade, a mão que a executou não é provavelmente nipómca nem sequer china, de tal modo as reminiscências do estilo de Adjanta se manifestam aqui tiránicamente.

Nem só aliás da arte búdica se encontram vestígios no Japão. Numa época um pouco posterior à de Nara, a chamada época de Heian, surgem influências bramânicas inesperadas, visto que nunca o hinduísmo, como religião, teve acesso a este país, e que tomam a mais evidente das formas, a das estátuas de vários braços, o que não implica aliás nada de muito profundo.

Período 

A vida nipônica adquire plena originalidade  durante o período Fujiwara, que tomou o nome desses grandes senhores, que substituíram por uma autoridade continuamente contestada e por fim derrubada a dos imperadores. Nada de mais semelhante ao feudalismo ocidental do que este feudalismo de indomáveis batalhadores recobertos de armaduras que, ostentando os seus brasões, arrastam após si os vassalos, a que os liga um vínculo de fidelidade irredutível. Se a escultura, antes de entrar em decadência, produz ainda algumas obras notáveis, como as estátuas de madeira de Kokei, em que a vontade da estrita imitação redunda por vezes, no entanto, em prejuízo do estilo, a pintura tende a emancipar-se da tutela china, quer se trate de retratos quase cruéis à força de precisão abrevia-tiva pintados por Fujiwara Takanobu, quer das irreverentes caricaturas do bispo budista Toba-Sojo, em que os brutos tomam o lugar dos homens. Desde esse momento também, começa a estar em voga um processo muito da predilecção dos Nipões e que permite ao seu gosto anedótico e narrativo, muito distante do dos modelos chinos, desenvolver-se à vontade: adoptam uma espécie de perspectiva mergulhante e tiram os telhados das casas, para mostrar o que se passa dentro delas.

Renascença Niponica 

Todavia, o eclipse chino está longe de ser difinitivo e os Nipões nao persistem no caminho aparentemente marcado pelos rolos do século Viu, que narram os combates de feudatários ilustres. A Renascença nipónica, assinalada primeiro pela dominação dos Ashikaga e depois pelos altos feitos dos três grandes homens que verdadeiramente forjaram a alma do seu país — Nobunaga, Hideyoshi e Ieyasu (1568–1616) — vê espalhar-se, com um atraso ritual, a paisagem Song, que evolui em seguida no Império do Sol Nascente, afastando-se muito das suas origens: nunca o Japão conhecerá, por exemplo, nada de análogo ao academismo Ming. Sesshu (1420-1466) adoptou a técnica priveligiada dos Song, mas, nas suas mãos robustas, a aguarela branca e negra torna-se angulosa e surge o sentido local da paisagem. Aos Nipões repugna a universalidade da paisagem china. Se os mais clássicos não imitam um «motivo» determinado, é ao menos o seu país que representam, quando compõem com os mesmos ele-

mentos que os seus mestres e quando se recusam a precisar em extremo, como o farão mais tarde os artistas da escola vulgar. Os oficiais saídos mais ou menos directamente da oficina de Kano Masanobu, entre os quais o belo artista Motonobu, possuem estimável vitalidade. Mas este Japão está em plena fermentação. Cria o teatro Nô e, com ele, as máscaras usadas pelos actores, trechos notáveis por vezes, em que a rebusca da expressão leva a uma observação muito aguda e deferenciada, por inflexões quase imperceptíveis dos traços desenhados. Eis produções em extremo originais, um tanto desdenhadas, embora sem razão, pelo fim a que se destinam — uma arte à margem, como o é a escultura pintada espanhola. E sobretudo as artes menores atingem um esplendor sem igual: os armeiros rivalizam com os forjadores; os punhos dos sabres tornam-se obras-primas de cinzelagem, em que o artista se esforça por representar, às vezes com profusão excessiva mas sempre com a técnica mais perfeita, tanto o mundo animado como o mundo inerte. Os laquistas cuja habilidade, desde os tempos búdicos, se tornou proverbial, enriquecem a sua técnica sem a sobrecarregar.

Período Tokugawa

É aliás entre eles, assim como entre os pintores, que se manifesta mais tarde, sob os Tokugawa, que reinam até 1868, data do novo rumo

da arte nipónica, o mais afamado dos artistas clássicos, Kôrin, ao mesmo tempo laquista e pintor, cujo talento não recua perante nenhuma empresa, cuja habilidade não destrói nem a espontaneidade nem a frescura e que leva ao mais alto ponto a elipse, a arte de exprimir um movimento por alguns traços escolhidos, de evocar a pelagem dum animal por uma simples degradação de tons.

No entanto, para os Europeus, é ainda menos o nome de Kôrin. que representa a arte nipónica nos séculos XVII e xvin do que os nomes dos artistas da escola vulgar denominada Ukiyo-e. Pela primeira vez no Extremo-Oriente e sem dúvida sob a influência dos Europeus surgem artistas que rompem francamente com o passado e se propõem representar a vida familiar, a que vêem da sua janela ou em suas vadiações. O teatro e as belas cortesãs encantam-nos acima de tudo. Não foram profetas na sua terra. Mas, por sua vez, os Europeus «à la page» julgaram de boa prática seguir as pisadas das amadores nipónicos e hoje os artistas da escola vulgar não estão longe de ser olhados como traidores à sua patria.

No entanto, em última análise, são bem eles que dão à arte nipónica a sua mais segura originalidade e que a libertaram completamente da tutela china. E, no desdém que lhes manifestam alguns dos seus compatriotas, não entrará uma espécie de complexo de inferioridade de que os meios artísticos nipónicos não conseguiram desembaraçar-se e os leva a condenar tudo quanto não obedece às regras chinas ? O meio de expressão preferido por estes artistas foi a estampa, de que fizeram, sobretudo desde meados do século xviil, quando a policromia lhes tornou possível obter efeitos menos impressionantes do que subtis, um instrumento de maravilhosa docilidade. A gravura colorida de madeira dos Xipões em nada se parece com a dos Europeus: os primeiros impressionam o papel com tintas de aguarela de aérea leveza. A finura dos tons e dos gris de rara doçura dão a estas estampas uma distinção que ultrapassa de longe o seu destino quase inteiramente popular. Os nomes dos artistas, contrariamente ao que geralmente sucede com quase tudo o que respeita ao Extremo-Oriente, são quase célebres na Europa. Harunobu, a despeito dum colorido por vezes delicioso, não atinge o nível de Kiyonaga e de Utamaro, os dois intérpretes por excelência da mulher nipónica. O primeiro, espectador sempre divertido, mantém, no entanto, um comedimento cheio de frescor. Utamaro acentua o carácter especificamente sensual, mas com uma distinção inata que sempre o impede de resvalar na grosseria. Essas patrícias das vielas têm uma elegância discreta, que conservam no exercício da mais velha profissão dó Mundo, e a sua própria reserva mais espicaça o desejo. Evitam elas desnudar-se em demasia: um seio descobre-se na abertura do «kimono» e deixa adivinhar o resto. O traço longo e preciso do artista dá-lhes esbelteza excessiva; o seu maneirismo ajuda-o a criar um tipo obsecante, que é bem seu.

Como Utamaro é o talento feminino desta escola, Hokusai, quê viveu até meados do século XIX, é o seu génio masculino. Xão há que pedir-lhe requintes. Por vezes até, o seu colorido não é isento de durezas e de espalhafato. Mas o desenhador brilha pela sua veia e pela sua força. Da sua formação nacional conservou o gosto da caligrafia, que se traduz por uma segurança de mão que não hesita diante de coisa alguma. Mas aqui a caligrafia é posta de banda como fim propriamente dito e cada traço se carrega de vida, de observação espontânea. Aplicava o preceito de Delacroix que por certo não conhecia: no tempo que um homem leva a cair dum quinto andar, ele teria conseguido desenhá-lo. A sua produção é duma abundância prodigiosa. Tendo vivido perto de noventa anos, chamava-se a si próprio o velho doido pelo desenho. Esta pletora desagrada aos paladares esquisitos, que logo sublinham aspectos menos felizes do que outros. Tendo tido conhecimento de que Hokusai não é tão apreciado na sua pátria como entre nós, quiseram retirar-lhe a admiração com que anteriormente fora acolhido. Todavia, se tomarmos como padrão o nosso gosto do desenho — e como diabo fazer para adoptar o padrão dos outros ? — concluiremos que este Nipão é um dos maiores artistas do Mundo. Fez séries de paisagens populares pelo assunto, como as suas vistas de Fujiyama, mas o que mais nos enche de admiração e assombro são ainda os esboços marginais tão numerosos com que ilustrou a enorme compilação da Mangwa, espécie de suma da lenda popular do Japão. A fertilidade da sua imaginação, o seu conhecimento de todos os movimentos, de todas as molas do corpo humano manifestam-se aqui em toda a sua plenitude-A não ser algumas vezes e em domínio muito mais restrito, o paisagista Hiroshigé, os seus sucessores não lograram nunca aproximar-se dele. A pequena injecção de arte europeia admitida pelos pintores do Ukiyo-e havia-lhes sido, em suma, favorável, ajudando-os a sair dum caminho em que só podiam achar a imitação e talvez essa imobilidade que parece apanágio da arte china há longos anos. Por uma impulsão fatal, os que vieram mais tarde foram demasiado longe. A visão peculiar dum povo constitui um grande mistério. Até que ponto os Nipões podem adaptar-se à visão da Europa? Andaram por toda a parte, alcançaram grande aura em Montparnasse. Conservaram por certo os méritos da habilidade linear próprios da sua raça, mas esses méritos resvalaram no virtuosismo puro. A sinceridade das reminiscências da arte nacional que surge nas obras deles é bastante suspeita, porque trai muito artifício. E, no entanto, os Nipões nunca chegam a pintar inteiramente como Europeus. Encontram-se eles na situação extravagante e falsa duma assimilação levada longe demais mas que não chega a completar-se.

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