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Capítulo III (¹)

A TEORIA DA EVOLUÇÃO COMO SOLUÇÃO DO
PROBLEMA DO UNIVERSO

"Por que me
separo de Augusto Comte" — é o título de um dos capítulos da Classificação
das Ciências
de Spencer. Aí o filósofo que é hoje considerado como o
principal representante da teoria da evolução, protesta contra Laugel que o
qualifica como discípulo do fundador do positivismo, em uma crítica que
publicou na "Revista dos dois mundos" sobre os Primeiros
princípios.
Spencer reconhece que Laugel expõe com cuidado algumas das
vistas principais de sua obra: mas acentua que transmite a seus leitores um
juízo erróneo, quando o apresenta como discípulo de Comte. E, cioso de sua
originalidade e independência, faz uma longa enumeração dos pontos de
divergência em que está para com o autor da Filosofia positiva, e
alegando que se acha mesmo em posição diametralmente oposta quanto às idéias
essenciais, termina. afirmando que só tem de comum com Augusto Comte o que é
comum a todos os pensadores modernos, isto é, a aceitação das verdades
proclamadas pela ciência como base para a investigação filosófica; em outros
termos, a adesão ao conhecimento científico, ou mais precisamente, ao
conhecimento organizado, tal como sucessivamente se veio constituindo através
dos séculos, devendo ser considerado como um legado comum transmitido à época
presente pelas gerações do passado.

Há, pois, uma
distinção radical entre o sistema de Spencer e o sistema positivista. O
positivismo é apenas a filosofia especial, isto é, a filosofia das ciências;
Spencer coloca ao lado das ciências uma filosofia, isto é, ao lado da filosofia
especial, uma filosofia geral. É verdade que seguindo esta direção cai em
contradição consigo mesmo, pois ultrapassa os limites do princípio que com
tanto esforço desenvolve, apresentando-o como a lei fundamental de nossa
atividade cognitiva, isto é, do princípio de relatividade do conhecimento, ao qual
sempre fica fiel o positivismo. Mas isto pouco importa. Nem eu tenho aqui em
vista defender a teoria de Spencer. Apenas quero tornar patente a sua oposição
para com o sistema de Comte.

(D pp. 37; 49-50

 

E, verificando-se
assim que Spencer .não se liga senão acidentalmente ao positivismo, sendo além
disto secundários e não referentes à instituição fundamental os pontos de
analogia e semelhança, vejamos agora qual a corrente de idéias a que realmente
se prende a sua concepção particular. Eli; próprio indica com a máxima
fidelidade o que foi que exerceu real influência sobre a marcha de seu
pensamento. "A verdade entrevista obscuramente por Harvey", diz ele em suas Buscas embriológicas, "percebida, em seguida, mais claramente por
Wolf, e enfim definitivamente formulada por von Baer, — a verdade de que todo o
desenvolvimento orgânico consiste na passagem do estado de homogeneidade ao
estado de heterogeneidade, tal é o princípio de que indiretamente tirei as
conclusões a que definitivamente fiquei ligado".

Foi, pois, a fórmula
de von Baer que lhe serviu de princípio organizador. Da ordem orgânica Spencer
a estendeu a todos os outros fenómenos. Depois, estudando as leis gerais da
força, de que resulta a transformação universal que se observa no cosmos, ligou
todas leis a uma lei única: a persistência da força. Ao conjunto destas idéias
deu o nome da lei de evolução e acrescentando como complemento desta lei o
princípio da dissolução, deu por completa a sua doutrina.

Mas em que consiste
esta doutrina e como deve ela ser interpretada numa classificação sistemática
que porventura fosse tentada das escolas filosóficas? Ê aqui que eu passo a
entrar no exame da teoria particular de Spencer.

A questão é
importante, e considerando a influência extraordinária que tem exercido esta
idéia de evolução, o abuso que dela se tem feito, facilmente se compreenderá
que este estudo não é sem interesse. Eu me proponho a mostrar: 1.°) que a
teoria da evolução é falsa, ou pelo menos deficiente como interpretação da
natureza; 2.°) que essa teoria se confunde com o materialismo; 3.°) que a moral
a deduzir-se daí é exatamente a moral do materialismo, isto é, a moral do
interesse, ou mais precisamente, a moral da força, tal com em sua forma mais
completa e precisa se encontra em Nietzsche.

III (¹)

Essa teoria da
evolução é hoje a teoria da moda. Por evolução tudo se explica, em evolução
tudo se resolve, desde a queda dos corpos até as mais altas operações do
espírito.

(1) pp. 50-54 110

 

Em verdade, a evolução já
não é simplesmente uma lei, nem uma fórmula; mas um grito tde guerra. Fala-se
em evolução cosmogónica, em evolução estelar, em evolução planetária, em
evolução geológica, em evolução inorgânica, em evolução orgânica, em evolução
superorgânica, em evolução biológica, em evolução celular e até em evolução
atomística.

Ora, quando uma
idéia chega a tomar tão vastas proporções, termina por perder o caráter preciso
de uma idéia positiva. Explicar é distinguir. Se uma idéia nada distingue,
também nada explica. É precisamente o que se dá com a famosa lei a que começam
a dar o valor de fórmula mágica. É uma noção vaga e incerta, uma palavra
sonora, nada mais. Costuma-se dizer; tudo evolui Equivale a dizer: tudo se
desenvolve. São expressões correspondentes a esta outra: tudo se move. Mas tudo
isto que explica? Eu me inclino a pensar que a coisa não passa de uma fórmula
oca. Não é isto. entretanto, o que satisfaz ao espírito sequioso de verdade.
Aqui a sonoridade da frase disfarça a pobreza das idéias. Mas sub-meta-se o
caso a uma rigorosa análise e logo se verá que toda a construção levantada
sobre tão frágil alicerce desaba pela base.

Bem sei que a muitos
parecerá esta afirmação extrema ousadia e mesmo louca temeridade. Pois não é a
teoria da evolução a doutrina hoje vencedora, e não estão por seu lado os mais
eminentes representantes do pensamento?

Tudo isso, porém,
nada importa, nem fica provado que aí se ache a verdade. Neste ponto pertenço
ao número daqueles que não se deixam levar pela onda. Não estou convencido e
isto basta: resisto. E devo acrescentar que não resisto porque ainda permaneça
na dúvida. Pelo contrário, estou convencido de que a doutrina é falsa,
cumprindo acentuar que quando não fosse falsa, não seria nova, porquanto essa
doutrina não é senão uma nova forma do materialismo; e o materialismo estava já
claramente formulado desde Epicuro.

Não desconheço o valor
daqueles que a defendem. Trata-se realmente de espíritos fecundos, originais e
que sem dúvida se mostram inflamados pelo amor da ciência. Não se pode deixar
de admirar neles a extensão do saber, a profundeza, e talvez a sinceridade; e
por certo hão concorrido para o desenvolvimento do pensamento e progresso das
ciências. Mas só por isto não se segue que tenham chegado à solução definitiva
quanto ao problema do mundo. Sobre este ponto não raro acontece que quando se
supõe que tudo está feito, perto vem o momento em que se chega a reconhecer que
tudo está por fazer. Aqui precisamente se apresenta este caso, sendo forçoso
reconhecer que, em relação aos problemas fundamentais da natureza e do
espírito, o vigor do pensamento, a profundeza do saber enciclopédico, a
originalidade das concepções, o estrondo da erudição, e mesmo a soberania do
sábio, nada disto garante a verdade. Esta, pelo contrário, nasce muitas vezes
dos corações mais singelos e como por uma espécie de inspiração do alto. O
génio não é um esforço, mas uma alucinação.

Eu penso, pois, que a
teoria da evolução é falsa. Digo mais: é uma teoria que nada explica, uma
concepção meramente fantástica, um jogo de fórmulas ocas. E para prová-lo basta
indicar os fatos e distinguir as idéias. Nem há, para isto, necessidade de
grande esforço. Trata-se de uma coisa que cada um poderá verificar por si
mesmo. Basta que se dê ao sistema a sua verdadeira e legítima interpretação, determinando
o sentido rigoroso e preciso dos conceitos com que é arquitetado.

Não quer isto,
entretanto, dizer, entenda-se bem, que nada se encontre de aproveitável nos
trabalhos dos evolucionistas. Isto seria absurdo. Sobre o princípio da evolução
há já uma vasta literatura, e desta, por certo, muita coisa pode ficar. A noção
mesmo da evolução pode ser admitida em certo sentido. O que não pode ser
admitido é a teoria da evolução como concepção do mundo; o que não pode
ser admitido é a interpretação da natureza pelo princípio da evolução.

É o que vou tentar fazer bem
patente. Para isto, porém, consideremos, cada um à parte, os dois grandes
representantes do sistema: Herbert Spencer e Haeckel.

De cada um apresentarei, em
primeiro lugar, um resumo da doutrina; depois tratarei de examinar a verdadeira
significação filosófica; e por último a verdadeira significação moral da mesma.

V (¹)

A lei de transformação e
equivalência das forças, tal como até aqui a temos desenvolvido, reproduzindo
as idéias de Spencer, já, só por si, dá uma idéia precisa do que se deve
entender pela lei de evolução. Evoluir é transformar-se, sendo que explicar, por
evolução, a origem de qualquer coisa, é explicar a origem desta coisa por
transformação. Apenas à idéia própria de transformação se deve acrescentar mais
este princípio, o desenvolvimento; o que quer dizer que a transformação se
realiza sempre no sentido do aperfeiçoamento. De maneira que a fórmula —
evoluir é transformar-se —, pode ser substituída por esta outra: evoluir é desenvolver-se.
Mas na forma aperfeiçoada que sucede a uma forma anterior, nada se acrescenta,
nada se cria, havendo apenas mudança de direção nas forças em ação. É deste
modo que, com o aperfeiçoamento que se realiza, não há produção de elementos
novos, mas unicamente transformação de elementos anteriores, não podendo, como
se sabe, por efeito da lei da persistência da força, haver aumento nem
diminuição na quantidade de força existente na natureza. Por conseguinte o que
se verifica é unicamente isto: que as forças se transformam. De onde se vê que
a idéia fundamental é sempre a transformação. É assim que a doutrina é
entendida por Haeckel; é assim que é entendida por Darwin; é assim que é
entendida por todos, tratando-se, pois, de uma noção vaga, indeterminada que,
em rigor, nada explica. Spencer, porém, dá à lei da evolução uma significação
particular.

(1) pp. 80; 81-87

 

Evoluir, também no seu
sistema, é sempre transformar-se; mas ele explica as condições dessa
transformação; estuda a evolução em cada fenómeno particular e no conjunto dos
fenómenos; determina, em função da matéria e do movimento, cada fase do
processo evolutivo; sustenta que a teoria da evolução, para completar a síntese
do conhecimento, deve considerar cada coisa desde sua saída do imperceptível
até sua entrada, de novo, no imperceptível; faz, a seu modo, a história da
génese cósmica; interpreta a evolução que, em verdade e no sentir geral de
todos os evolucionistas, é uma série continua de transformações, como uma redistribuição
contínua da matéria e do movimento.

Fica, assim, sem mais exame,
patente que a teoria da evolução é uma concepção materialista do mundo. Não se
trata, pois, rigorosamente falando, de um sistema novo, mas apenas de uma nova
forma de um sistema já velho, isto é, de uma nova forma do materialismo.

Mas terá o materialismo
elementos para triunfar, sob esta variante? Se não há na natureza outro
princípio, além da matéria e do movimento; se a matéria e o movimento são os
únicos agentes produtores de todos os fenómenos, a coisa realmente nao se
poderia compreender por outra forma, uma vez que, entre corpos, que são os
únicos modos concebíveis da matéria, não se pode imaginar outra relação, por
ação da força, a não ser de composição ou decomposição: ou mais precisamente, e
para empregar os termos mesmos de Spencer, a de integração ou desintegração,
dando-se a integração, quando há dissipação, e dando-se a desintegração, quando
há absorção do movimento. Mas serão, de fato, a matéria e o movimento as únicas
manifestações fundamentais da substância, as únicas manifestações concretas da
força? Em outros termos: será verdadeira a concepção materialista do mundo? Não
é tempo ainda para estudar a questão sob este aspecto.

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