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Capítulo V (¹)

A TEORIA DA EVOLUÇÃO E A CONCEPÇÃO
MONÍSTICA DO MUNDO

I

Chama-se monística a
filosofia que explica todos os fenómenos do universo como simples variações de
uma só e mesma substância. Há uma substância única — eis o dogma fundamental do
monismo. Mas esta substância única continuamente se transforma, e é das
sucessivas transformações por que passa, que resultam todos os fenómenos em que
se desdobra a Natureza em seu eterno desenvolvimento. Ê o que se diria, segundo
a linguagem de Spinoza, o verdadeiro fundador do monismo, empregando esta
fórmula: há uma substância única; mas esta substância única tem uma infinidade
de atributos (de que somente dois nos são conhecidos: a extensão e o
pensamento) e cada um destes atributos tem uma infinidade de modos. No monismo
contemporâneo a noção dos atributos e a noção dos modos foram substituídas pela
idéia de transformação. Ê, pois, por transformação que tudo se explica na
infinita variação em que se desenvolve a substância única. Ora, é exatamente esta
idéia de transformação que, como vimes, constitui o fundo do que se chama a lei
de evolução; por onde se vê que a teoria da evolução e o monismo são duas
concepções que perfeitamente se aliam e até se supõem, podendo-se mesmo dizer
que uma é condição da outra.

Cumpre, porém, antes de
entrar em outras considerações, observar o seguinte: que a substância única que
se resclve na infinita variedade de fatos e de coisas que enchem o espaço e o
tempo, nem sempre é compreendida do mesmo modo. Para uns é de natureza
puramente espiritual: é o monismo idealista. Para outros, e de natureza
puramente material: é o monismo realista. Para outros enfim, é uma e outra
coisa ao mesmo tempo: é o monismo filosófico ou o monismo propriamente dito, de
que podem ser indicados como principais representantes, entre outros, Hartmann,
Noiré, Paulsen, e antes de todos e acima de todos Spinoza.

(1) pp. 113 a 116; 121 a 123; 125 a 127; 131, 132;
157, 158, 160

 

Isto, tratando-se
dos modernos; mas o monismo, conquanto seja nova a palavra, remonta à
antiguidade. Já os filósofos jònios, do período primitivo da civilização dos
helenos, explicavam todas as formas da existência por ação de um princípio
único. Este princípio variava entre os diferentes representantes do sistema:
era para Tales a água: para Anaxímenes, o ar; para Heraclito, o fogo. Foram as
primeiras tentativas para o estabelecimento do que se pode chamar o monismo
naturalista.

Também já o Dr. Sílvio
Romero se exprimiu, a propósito do monismo, nestes termos: "Há cinquenta
interpretações do monismo; há monismos idealistas e os há materialistas".
E antes disto o mesmo pensador havia observado — que não se deve confundir a
tese monística com a mecanista, pois é sabido que os mais ilustres monistas
como Kant, como Fichte, como Hegel, como Schopenhauer, como Hartmann, como
Noiré, como Ihering, são teleologistas, com já dantes o tinha sido Spinoza. — A
primeira afirmação pode se admitir; mas a observação que vem depois envolve
elementos um tanto heterogéneos que não se combinam, e na parte final referente
a Spinoza, vem uma proposição que não se compreende, nem se justifica, a menos
que tenha havido no caso algum erro tipográfico. Nem a coisa se pode explicar
por outro modo, pois realmente custa acreditar que saísse da pena de Sílvio
Romero esta qualificação de Spinoza como filósofo teleologista. Eis aqui como,
sobre este ponto, eu mesmo, depois de consciencioso estudo, já tive de me
manifestar no trabalho que publiquei sobre o monismo de Spinoza, na segunda
parte desta obra: "Spinoza é conhecido na história da filosofia
como o mais poderoso adversário da teleologia. Efetivamente ninguém a combateu
com mais vigor e energia; ninguém a refutou cem mais fortes argumentos. E
demais foi ele o primeiro que abertamente se levantou contra a chamada
concepção teleológica do mundo e contra ela formulou uma condenação decisiva e
formal. E todos os atuais defensores da intuição mecânica, negando a
possibilidade de toda e qualquer explicação dos fenómenos naturais, mesmo dos
fenómenos racionais e humanos, por causas finais, consciente ou
inconscientemente reproduzem a doutrina de Spinoza, se bem que os princípios do
grande pensador, viciados em uns, deturpados em outros, exagerados na maioria,
sejam mal compreendidos e falsamente interpretados por quase todos". Como
se vê, o ponto é capital. Por isto, tanto mais grave é o erro cometido, sendo
que para qualificar Spinoza como filósofo teleologista, era necessário que o
escritor brasileiro nunca tivesse lido a Ética, o que seria imperdoável
da parte de um pensador da esfera do Dr. Sílvio Romero. Todavia o Dr. Sílvio
Romero afirma uma verdade quando diz que há inúmeros modos de
compreender o monismo. Efetivamente assim é; por onde se vê que o monismo que
explica todas as formas da existência como simples variações de uma só e mesma
substância, por sua vez, está sujeito a inúmeras variações.

Entre os seus mais recentes
intérpretes, ou antes, como representante de uma das suas mais recentes
variações, mereceu particular predileção da parte de um dos nossos pensadores,
da parte de Tobias Barreto, o filósofo alemão, da escola de Schopenhauer,
Ludwig Noiré. Não sei se esta predileção se justifica. Tobias chegou a dar a
Noiré proporções excepcionais. Mas sem dúvida há exagero, senão quanto ao valor
de suas idéias, pelo menos quanto à extensão de sua obra. O certo é que Noiré
exerceu pouca influência na Alemanha, e quase nenhuma no estrangeiro, a não ser
em nosso país, onde, sob o influxo de Tobias, o seu nome tem sido muitas vezes
repetido, se bem que sejam conhecidas as suas doutrinas, sendo de notar que o
próprio Tobias, sobre elas, apenas nos deixou indicações vagas, limitando-se a
apregoá-lo como uma espécie de renovador do pensamento. Seu livro, entretanto. Der
monistiche Gedanke,
publicado em 1875, é apenas um estudo crítico do
desenvolvimento histórico do pensamento, a partir de Kant, esforçando-se o
filósofo por conseguir realizar o que chama "uma concordância entre a
filosofia de Schopenhauer e a de Darwin, Mayer e Geiger". No livro — Die
Welt ah Entwicklung dea Geis-tes,
publicado um ano antes, lança, como ele
diz, uma pedra para a construção de uma intuição monástica do mundo. É um
trabalho de mérito; mas nada aparece aí de excepcional.

II (¹)

É aos princípios de
Noiré que mais ou menos diretamente se liga um homem notável; não um filósofo
propriamente dito, mas um dos grandes representantes da filosofia jurídica
atualmente na Alemanha. Refiro-me a Alberto Hermann Post, a respeito do qual um
valioso estudo é feito pelo Dr. Clóvis Beviláqua, em seu belíssimo livro Juristas
filósofos,
publicado em 1897; pelo Dr. Clóvis, pelo nosso Clóvis, como já
se costuma dizer, ao mesmo tempo jurista e pensador eminente; tão
simples e modesto, quão consciencioso e fecundo; consciente de sua obra;
sincero em suas convicções; e também isolado em seu pensamento, e por isto
mesmo indiferente e, por assim dizer, estranho ao movimento e às convulsões da sociedade. No seu pensar, Post está perfeitamente nas
condições de ser colocado ao lado de Rodolfo von Ihering, o mais autorizado
representante da filosofia moderna no domínio particular do direito. Ambos
trabalharam por colocar a ciência jurídica em harmonia com o estado atual do
espírito humano; ambos trabalharam por fundar o direito sobre uma base
experimental; um, como diz Clóvis, "desdobrando em bloco a evolução do
direito e de seus diferentes institutos"; outro "explicando como essa
evolução se efetuou por meio da luta"; um "apanhando as manifestações
de quase todos os povos antigos e rudimentares, costumes, livros de leis ou
códigos, para destacar os instintos que se universalizam, e salientar uma certa
feição de identidade fundamental que oferece o arcabouço do direito";
outro "preocupando-se com as reações físicas determinadas pelo direito,
com a irritabilidade contra a injustiça, mesmo quando não nos fere diretamente,
com o vigor do caráter que revela o indivíduo quando pugna por seu
direito"; um, Post, "vendo o direito agindo na sociedade, e
reconhecendo nele uma força semelhante à força cósmica, não procurando acentuar
senão as suas formas diferentes e a sua evolução"; outro, Ihering,
"olhando diretamente para o direito, a fim de descobrir nele o núcleo de
interesse que o gerou, e decompô-lo, como se fosse um verdadeiro organismo, nos
seus elementos anatómicos, na sua estrutura e em seu funcionamento
fisiológico".

(1) pp. 121 a 123-

 

Mas Post, antes de
entrar no trabalho de sua construção jurídica propriamente dita, tentou
primeiramente arquitetar uma concepção do mundo. São apenas linhas gerais,
porém bem definidas, parecendo que o grande jurista teve a clara compreensão de
que a noção do direito só nos pode ser fornecida por uma filosofia.

É a sua concepção
filosófica que principalmente me interessa, por enquanto, máxime por uma certa
analogia que se nota entre os seus e os princípios de Ludwig Noiré. E esta
analogia realmente se dá e de algum modo se faz perceber: 1.°) na tonalidade monística
de seu sistema; 2.°) na redução de toda a existência a essa dupla modalidade: o
sentimento e o movimento.

III (¹)

Eu poderia aqui
ocupar-me ainda do monismo de Hartmann, do monismo de Paulsen e outros na
Alemanha, que foi onde o monismo teve maior desenvolvimento; poderia ocupar-me
também, entre os pensadores franceses, do monismo de Izoulet:, inspirado do
socialismo e por isto mesmo dominado de forte tonalidade social e moral. Mas
isto me levaria muito longe, e não teria grande interesse para o fim a que me
proponho. Não me deterei, pois, no exame de todas estas variantes do sistema.
Limitar-me-ei a estudar o monismo naturalístico; o que quer dizer: a intuição
mecânica, ou mais precisamente, o materialismo de Haeckel. É a forma do monismo
que mais radicalmente se identifica com a teoria da evolução, e também a que de
modo mais decisivo torna patente a identidade desta teoria cem a concepção
materialista de mundo. Além disto foi Haeckel quem se mostrou mais exaltado
pela idéia, e a ela dedicou mais amplos esforços, por tal modo que a sua
intuição monística, na última fase de seu desenvolvimento filosófico, já não se
apresenta como filosofia, mas como religião.

* Há uma coisa contra
a qual o filósofo se mostra particularmente irritado: é contra o papismo.
"O que é pior", diz ele, "é ver o Estado, num país civilizado,
lançar-se nos braços da Igreja, esta inimiga da civilização, e ver também o
egoísmo mesquinho dos partidos, a cegueira dos chefes de vista
limitada, sustentando a hierarquia".

Cito estas palavras
por mera curiosidade. Não é que eu pretenda defender o papismo, nem a Igreja.
Mas é que não me agrada esta linguagem. O filósofo não se irrita, nem se
revolfa: observa e explica. Tudo tem a sua justificação, tudo tem a sua
necessidade . Por isto observa sem constrangimento e sem ódio tedas as
convulsões sociais, assiste com serenidade a todas as tempestades do mundo. Que
o político se revolte quando a sua idéia periga, explica-se; é o homem da
paixão e da luta. Que o industrial se perturbe, quando o seu trabalho
naufraga,.é legítimo: é o homem da atividade e do ganho. Que o general
desanime, quando o seu exército se desorganiza, é explicável: é o homem das
incertezas do combate. Mas o filósofo não: não pode ter fraqueza, nem óido; não
pode ter indignação, nem revolta. Seu ideal é a verdade, e esta só pode sair
vitoriosa. E a verdade, de fato, vence sempre, mesmo quando sucumbe aquele que
a defende. Por isto, sejam quais forem as circunstâncias do memento, não deve o
filósofo desesperar, e menos ainda se deixar dominar pela indignação ou pelo
ódio; e no meio de todas as lutas que a paixão desenvolve, de todos os crimes
que o interesse produz, como no meio das convulsões da
natureza, observador impassível, deve permanecer sempre calmo e tranquilo; e em
face da sociedade, como em face da natureza o seu ponto de vista só pode ser o
de Spinoza: non ridere, non lugere, neque detestare, sed intelligere.

V (¹)

Eis, pois, Haeckel,
intransigente e livre pensador, um dos mais notáveis representantes do
materialismo contemporâneo, teo-sofista e deísta! Deus é o éter — eis a última
afirmação da sua filosofia monista. É para admirar que tenha causado uma certa
estranheza a afirmação que ousei avançar em 1891 na primeira parte desta obra:
Deus é a luz. Uma coisa corresponde à outra, porquanto é pelo éter que a luz se
explica, sendo corrente na óptica moderna a idéia de que a luz não é senão a
sensação produzida pelas ondulações das moléculas do éter, do mesmo medo que o
som é a sensação produzida pelas ondulações das moléculas do ar. Sabe-se com
quanta dificuldade se teve de lutar para chegar ao estabelecimento desta
doutrina. "O estudo da luz", diz Bourdeau, "levanta problemas
que por muito tempo fizeram o desespero dos físicos’‘. E Newton
dizia: Nihil luce obscuríus. Mas hoje ninguém desconhece: a
interpretação da luz pelas ondulações do éter é uma doutrina triunfante. De
maneira que dizendo-se: — Deus é a luz —, isto significa a mesma coisa que
dizer: — Deus é o éter —, com esta única diferença: que a noção da luz é mais
clara, mais precisa, mais facilmente compreensível. E eu não apresentei uma
idéia inteiramente nova e estranha, porquanto S. Tomás de Aquino, o mais
autorizado representante da fé revelada, já havia dito positivamente: — Deus é
a luz.

Dando-se ao éter
estas extraordinárias propriedades, logo se compreende que é dele que tudo
parte, que é para ele que tudo volta, não se podendo recorrer a outro princípio
de explicação, uma vez se cogitando de interpretar a verdadeira natureza da
causa última das coisas. O éter é a fonte de onde, em última análise, emanam
todas as coisas; o éter é o princípio supremo. Quer tudo isto dizer: o éter é
Deus.

(1) pd. 157-160

Temos, pois, Haeckel teísta! Parece bem estranho, não é assim?
Entretanto o fato é este mesmo. Ê verdade, porém, que este teísmo pouco adianta
para os teólogos, nem há aí ganho de causa para a teologia, porque o filósofo
não só identifica o seu teísmo com o panteísmo, como, de mais a mais,
identifica o psnteísmo com o ateísmo.

VI (¹)

Estabelecido por esta
forma o monismo, um problema novo se levanta, e vem a ser: como se deve, uma
vez adotada a idéia de um substância única, compreender e explicar a variedade
infinita dos fenómenos? Em outros termos: com se deve, pela interpretação
monística da natureza, compreender e explicar a gêness das coisas?

É o que passamos a examinar.
Isto equivale a dizer que passamos, na linguagem de Spinoza: da substância para
os modos; na linguagem de Kant: do númeno para os fenómenos, da "coisa em
si" para a aparência; na de Hegel: da idéia para a realidade; na de
Fichíe: do eu para o não eu; na de Schopenhauer: da vontade para
a representação; na de outros: do absoluto para o relativo; em termos monistas:
da unidade para a multiplicidade. Eu diria: é a passagem do pensamento para o
movimento. No sistema de Haeckel é a transição do monismo para a teoria da
evolução. É a questão das relações entre o infinito e o finito, o problema da
génese cósmica, a questão da. criação, "o maior e o mais difícil
entre todos os enigmas", no dizer de Haeckel.

Tudo, porém, se pode
resolver muito facilmente e quase que se pode dizer, por uma simples penada,
uma vez adotada a fórmula mágica: evolução.

 

(1) pp. 162-163 124

 

Trata-se efetivamente de uma
fórmula que tem o poder de uma vareta mágica. Mas quem não vê que tudo isto não
passa de uma fórmula oca que em rigor nada explica, justificando-se assim
plenamente a afirmação que avancei no começo deste trabalho? Eu disse
efetivamente: — A teoria da evolução é falsa. Digo mais: é uma teoria que nada
explica, uma concepção meramente fantástica, um jogo de fórmulas ocas. E para
prová-lo,

basta indicar os fatos e distinguir as idéias. Nem há para
isto necessidade de grande esforço. Trata-se de uma coisa que cada um poderá
verificar por si mesmo. Basta que se dê ao sistema a sua verdadeira e legítima
interpretação, determinando o sentido rigoroso e preciso dos conceitos com que
é arquitetado. É o que acredito já está feito, nem me parece que haja
necessidade de insistir, tratando particularmente de Haeckel, uma vez que do
princípio, ou mais precisamente, da chamada lei de evolução, já apresentei uma
exposição bastante minuciosa, a propósito de Spencer: e aqui a doutrina é a
mesma, nada tendo sido alterado, em essência, quanto às idéias fundamentais.

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