O governo-geral da Bahia (vice-reino) – História do Brasil Colonial

Gottfried Heinrich Handelmann (1827 – 1891)

História do Brasil

Traduzido pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. (IHGB) Publicador pelo MEC, primeiro lançamento em 1931.

SEGUNDA SEÇÃO – A colonização do Brasil –

 

CAPÍTULO IX

O governo-geral da Bahia

(VICE-REINO)

O terceiro grupo de Estados brasileiros, o governo-geral da Bahia, temporariamente decorado com o título de vice-reino, compreende uma região muito extensa, entre o rio São Francisco e o rio Mucuri, a qual atualmente se divide em duas províncias — Sergipe e Bahia; antigamente, como se sabe, existiam na mesma região quatro capitanias, sendo duas da coroa, Sergipe d’El-Rei e Bahia, e duas feudais, Ilhéus e Porto Seguro.

Primeiramente, quanto a estas duas últimas, estava a capitania de Ilhéus, nos fins do século XVI, em posse do herdeiro de Lucas Giraldes, e, por compra, passou mais tarde para a família do conde de Castro; finalmente, no ano 1761, vendeu o último governador hereditário, Antônio de Castro, a capitania à coroa, pelo que o rei d. José Manoel lhe conferiu o condado de Resende e a dignidade de almirante hereditário dos mares lusitanos, com o soldo anual de .5.000 cruzados.

Já, uns pares de anos antes, se havia reunido o feudo de Porto Seguro aos bens da coroa, depois de haver ali dominado mais de 200 anos a família dos duques de Aveiro, desde 1.5.56. Como se sabe, tornou-se culpado de alta traição o chefe desta família, José Mascarenhas, duque de Aveiro, por haver tomado parte na tentativa de assassínio de 3 de setembro de 1758 contra o rei d. José Manuel, e por isso lhe foram, por sentença de lei de 11 e 12 de janeiro de 17.59, tomados a vida, os bens e o feudo, assim também a capitania de Porto Seguro, visto que desde o princípio, no que diz respeito às capitanias hereditárias brasileiras, conservava a coroa de Portugal para o caso de alta traição — somente esse — o direito de confiscação. Assim se extinguiram aqui os poderes feudais; as capitanias de Porto Seguro e Ilhéus, sobre as quais até então o governador-geral da Bahia apenas havia exercido superintendência, ficaram agora incorporadas inteiramente à província da Bahia e constituem, ainda na atualidade, cada uma apenas uma comarca, ao passo que, por outro lado, Sergipe, que, desde os princípios coloniais, era comarca da Bahia, foi recentemente separada e elevada a província autônoma (8 de julho de 1820).

O governador-geral, que desde 1549 residia na cidade do Salvador, na baía de Todos os Santos, exercia, como se sabe, primitivamente o poder supremo em toda a América do Sul portuguesa e usava, por isso, o título de governador-geral do Brasil; porém, se conservou esse título, o seu poder foi, pouco a pouco, restringido para limites cada vez mais estreitos. Ao norte, primeiro o Estado do Maranhão foi tornado independente dele e foi subordinado imediatamente ao gabinete de Lisboa (13 de junho de 1621); mais tarde, igualmente a capitania geral de Pernambuco (a 22 de março de 1657); e finalmente ao sul foi criada a 17 de setembro de 1658 a capitania geral do Rio de Janeiro, cujo território se estendia desde o limite sul da capitania de Porto Seguro até às fronteiras dos Estados espanhóis do Prata.

A jurisdição do governador-geral era, portanto, de fato limitada à região que já indicamos acima como governo-geral da Bahia; fora isto, conservava ele sobre os capitães-generais, aliás revestidos de iguais direitos, uma precedência nominal, certas honrarias; e, finalmente, o que era a única superioridade material, possuía (até ao ano 1751) na sua capital o único tribunal de 2* instância, a Relação da Bahia, fundada a 7 de março de 1609, restabelecida a 12 de setembro de 1652.

Nestas circunstâncias, sem dúvida as mudanças de governo e os nomes dos governadores-gerais do Brasil na Bahia não têm desde muito a mesma importância histórica como nos tempos antigos, quando era necessário citar cada um; sem embargo, queremos completar aqui a série, segundo a ordem cronológica. A Francisco Barreto de Meneses (18 de junho de 1657 a 24 de junho de 1663) sucedeu Vasco de Mascarenhas, conde de Óbidos, o segundo que usou o título de "vice-rei dos Estados do Brasil" (24 de junho de 1663 a 13 de junho de 1667); depois, Alexandre de Sousa Freire, até 8 de maio de 1671; Afonso Furtado de Mendonça Castro e Meneses, visconde de Barbacena, falecido a 26 de novembro de 1675, a quem substituiu uma regência provisória; em seguida, Roque da Costa Barreto, 15 de março de 1678 a 3 de maio de 1682; Antônio de Sousa de Meneses, até 4 de junho de 1684; Antônio Luís de Sousa Telo de Meneses, marquês das Minas, até 4 de julho de 1687; Matias da Cunha, falecido a 24 de outubro de 1688, substituído por uma regência provisória; Antônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho (10 de outubro de 1690 a 22 de maio de 1694); João de Lancastre, até 3 de junho de 1702; Rodrigo da Costa, até 8 de setembro de 1705; Luís César de Meneses, até 3 de maio de 1710; Lourenço de Almada, até 14 de outubro de 1711; Pedro de Vasconcelos e Sousa, até 13 de junho de 1714; Pedro Antônio de Noronha, conde de Vila Verde, terceiro vice-rei, até 21 de agosto de 1718; Sancho de Faro e Sousa, conde de Vimieiro, falecido a 13 de outubro de 1719; depois de sua morte, de novo tomou as rédeas do governo uma regência provisória que constava, segundo o regulamento, do arcebispo, do juiz da Relação e do mais velho oficial superior.

Daí em diante, o título de "vice-rei dos Estados do Brasil", que até então somente alguns usavam como especial distinção, ficou para sempre ligado ao governo-geral; assim se seguem o IV vice-rei, Vasco Fernandes César de Meneses (23 de novembro de 1720 a 11 de maio de 1735), V, André de Melo e Castro, conde das Galveas (16 de novembro de 1749); VI, Luís Pedro Peregrino de Carvalho Meneses e Ataíde (até 7 de agosto de 1755); VII, Marcos de Noronha, conde dos Arcos (23 de dezembro de 1755 a 9 de janeiro de 1760), e finalmente, VIII, Antônio de Almeida Soares e Portugal, marquês do Lavradio (falecido a 4 de julho de 1760).

Este foi o último vice-rei, que residiu em São Salvador; imediatamente depois de sua morte, resolveram o rei d. José Manuel e o seu grande ministro marquês de Pombal transferir o vice-reinado dos Estados do Brasil para o Rio de Janeiro, e esta província, os seus governadores, gozaram daí em diante da precedência, das honrarias que eram apanágio daquele brilhante título; a Bahia passou para o segundo plano, e os seus governadores usaram daí em diante o modesto nome de capitães-generais da Bahia.

Mais feliz na hierarquia eclesiástica, conservou até hoje a província a sua tradicional primazia. Como se sabe, a alta fundação, que havia sido erigida em São

Salvador em 1551, compreendia, a princípio, toda a América do Sul portuguesa, e o bispo dessa cidade, primitivamente, se chamava bispo do Brasil; porém, com o tempo, não podia continuar naturalmente uma diocese de tão enorme extensão, para cuidar convenientemente do interesse da Igreja, da cura das almas da comunidade.

Depois de um provisório desmembramento no século XVI, o rei d. Pedro II e a cúria romana no século XVII puseram-se de acordo para uma definitiva fragmentação dessa diocese, e aproveitou-se o momento em que vagou o bispado do Salvador, quando, portanto, não havia que recear oposição daji, para realizar a nova organização (1676-1677).

Inteiramente separado da Igreja brasileira e subordinado ao arcebispado de Lisboa, ficou o Estado-rlo Maranhão com todo o conjunto do interior das terras do Amazonas, e para essa circunscrição se criou primitivamente um só bispado, em São Luís do Maranhão (1677); depois, criou-se segundo, em Belém do Pará (1719); finalmente, por bula de 6 de dezembro de 1746, foram fundadas em Goiás, na província de igual nome, e em Cuiabá, na província de Mato Grosso, mais duas dioceses que, de resto, só a 3 de novembro de 1827 receberam o completo título de bispados.

Até certo ponto em compensação por estas perdas, foi em 1676 anexado à Igreja brasileira o vice-reinado português de Angola, na costa africana ocidental, com seus dois bispados de São Tomé e São Paulo de Loanda; e este território foi mais tarde, desde a declaração de independência, permutado pela cúria papal contra o Estado do Maranhão e suas dependências, de sorte que atualmente também as quatro fundações acima mencionadas, do norte e oeste, pertencem à província eclesiástica do Brasil.

Porém, o primitivo tronco da Igreja do Brasil foi constituído pelo próprio Estado brasileiro, e dentro dos limites deste foi assim organizada, por bula de 16 de novembro de 1676; à sua testa ficava o bispo de São Salvador, que assumiu agora a dignidade de arcebispo e metropolitano, e como tal devia exercer a superintendência sobre toda a província eclesiástica; a sua particular diocese, por outro lado, era mais ou menos a atual, limitada à província da Bahia e Sergipe, ao passo que o restante do país era dividido entre dois novos bispos; um deles, o bispo de Pernambuco, recebeu para diocese toda a região ao norte do rio São Francisco; o outro, o bispo do Rio de Janeiro, toda a região do limite norte do Espírito Santo para o sul.

Ambas estas altas fundações tiveram, pouco a pouco, que sofrer fragmentação. De Pernambucano foi desmembrado, nos tempos recentes, o bispado do Ceará, na província de igual nome; do Rio de Janeiro, reunido a partes da Bahia, formaram-se os bispados de São Paulo, na província de igual nome, e Mariana, na província de Minas Gerais, ambos por bula de 6 de dezembro de 1746; finalmente, nos últimos anos também a alta fundação na cidade de Diamantina, em Minas Gerais, e São Pedro do Rio Grande do Sul, na província do mesmo nome.

O metropolitano do Brasil, arcebispo de São Salvador, tinha, portanto, à sua primeira entronização, em 3 de junho de 1677 (além dos dois africanos), apenas dois bispos sufragáneos: atualmente tem onze, que, historicamente, assim se sucedem: Pernambuco e Rio de Janeiro (16 de novembro de 1676); São Luís do Maranhão (1677); Belém (1719); São Paulo, Mariana, Goiás e Cuiabá (6 de dezembro de 1746), finalmente, as recentes criações de Ceará, cidade de Diamantina e São Pedro (1855).

No mais, a situação da Igreja brasileira, especialmente no que diz respeito às suas relações com o governo do Estado, não mudou, mas ficou tal qual a descrevemos nas suas origens. Como os outros funcionários dependentes do Estado, e dele recebendo salário, sem recursos próprios, dignos de menção, nunca pôde exercer o clero secular, como corporação e no correr do tempo, grande influência91, ao passo que, sem dúvida, alguns padres e príncipes da Igreja tiveram grande prestígio passageiro, por suas individualidades.

Outro era o estado dos religiosos nos conventos que, se não eram em número excessivo, apresentavam a maior diversidade. Um bom número de ordens, das mais diferentes regras, se haviam estabelecido aqui; existiam muitos conventos de frades e de freiras; todavia, tudo isto, pelo que se depreende em parte das atuais circunstâncias, em parte das notícias históricas, não foi tanto resultado do sentimento religioso do povo, mas foi trazido, para ali, da mãe-pátria. O brasileiro, no seu clima tropical, pouco se presta ao modo de vida ascético e severo; muito menos lhe convém o celibato; e, por mais que os padres seculares e frades façam voto de castidade, não o cumprem; ninguém nesta terra tem grande vontade de ser sacerdote. E quando realmente alguém, por especiais condições, se sente atraído pelo ascetismo, esse geralmente vira as costas para o mundo e prefere viver como eremita do cristianismo primitivo na solidão da mata, em vez de procurar a paz no artificial isolamento do claustro.

Nestas circunstâncias, os conventos de frades brasileiros recrutavam-Se em grande parte — na maior parte, deveríamos dizer — entre imigrantes estrangeiros, na maioria religiosos de ordens portuguesas e italianas; e atualmente, onde este afluxo cessoivdesde muito eles estão quase vazios; nos 72 que se conservaram ainda, existem somente 47 1 religiosos (relatório oficial de 1856).

Essencialmente diversa era a situação dos conventos de freiras; eram propriamente meras instituições sociais, resultantes da tendência aristocrática, que também em muitos países protestantes dá motivo à subsistência de especiais conventos para jovens solteiras. Famílias distintas, não bastante ricas para dotarem as suas filhas de conformidade com a posição, porém vaidosas demais para as casarem abaixo de sua condição, costumavam e costumam resolver essa dificuldade fazendo a jovem, na idade de casar, tomar o véu de freira; assim era costume em Portugal, e com os portugueses passou esse singular expediente para o Brasil.

A princípio, quando era forte a corrente imigratória de todas as classes, faltavam mulheres em toda parte, esse recurso talvez fosse usado raramente, e as poucas filhas restantes eram devolvidas a Portugal para a reclusão do claustro; pouco a pouco, porém, quando a população foi ficando mais numerosa e estável, tornou-se uma necessidade para o Brasil ter os seus próprios claustros de freiras, e assim foi requerida para a Bahia, em primeiro lugar, a licença para tal fundação, cerca do ano de 1675.

Os mais experimentados estadistas aconselharam indeferimento, pois seria erro num país tão escassamente povoado estabelecer ainda impedimentos para o crescimento da população; porém o rei d. Pedro II deu o consentimento.

A 8 de maio de 167 7, quatro freiras do convento de Santa Clara em Évora chegaram então à cidade de São Salvador, onde elas fundaram e organizaram o primeiro convento de freiras brasileiras. Pouco a pouco, estabeleceram-se idênticas instituições também em outras cidades, e tornou-se mais cômodo esse recurso para os brasileiros.

Brotou, porém, nesse campo um erro prejudicial à coletividade. Com o crescente orgulho e riqueza da aristocracia rural, tornou-se questão de honra não recorrer ao claustro nacional; quem quisesse valer alguma coisa, devia mandar a sua filha para um convento português e justamente daqueles onde se exigia um dote muito considerável; assim é que se conta de um baiano que, desse modo, havia mandado para lá seis filhas, cada uma com um dote de 6.000 cruzados.

Somente em meados do século XVIII ousou o marquês de Pombal, tão esclarecido quanto enérgico, opor-se a isso publicamente; por uma lei especial, proibiu que qualquer jovem brasileira recebesse acolhimento em claustro português, salvo se obtivesse e apresentasse especial permissão régia; esta prescrição, dada a disposição de espírito do gabinete de Lisboa de então, equivalia a uma formal proibição; o antigo abuso desapareceu. Em geral tiveram que recorrer de novo aos conventos de freiras brasileiras; todavia, nos tempos modernos parece que também estes foram pouco a pouco decaindo, pois atualmente somente 12, com 206 freiras, são oficialmente citados.

Todas essas ordens e claustros, se bem que alguns temporariamente recebessem’ subvenção dos cofres do Estado, viviam, todavia, dos seus próprios recursos, que em parte lhes haviam sido atribuídos como dotação no momento da fundação, e muitas vezes eram representados em prédios; a piedosa crença do povo, que julgava ganhar o céu com tais boas obras, aumentou consideravelmente pouco a pouco essas posses, por meio de esmolas, doações, e, às vezes, legados testamentários; ocorre-nos à memória a herança colossal que o primeiro príncipe dos pastores do Piauí legou aos jesuítas, realmente a maior jamais doada a uma ordem eclesiástica.

Assim estavam (em oposição com o clero secular), os conventos independentes da autoridade civil; porém os seus moradores tinham o espírito voltado simplesmente para a vida contemplativa, ou ocupado em atividades missioneiras, e não pretendiam de nenhum modo exercer influência política.

Somente uma ordem faz exceção, a Companhia de Jesus, que se destacava entre todas pela riqueza, disciplina, inteligência e experiência do trato do mundo, como também gozava das mais extensas relações e recursos na Europa, e foi de preferência favorecida nos primeiros cem anos pela dinastia de Bragança. De fato, os jesuítas representaram no desenvolvimento histórico do Brasil papel importante, porém mais à força do que por livre vontade. Por haverem desde o princípio, e durante muito tempo, só eles tomado em mãos converter a raça dos índios e procurado educar os índios para serem cidadãos livres, com igualdade de direitos, como de um Estado cristão europeu, foram envolvidos numa renhida luta de princípios contra a aristocracia dos fazendeiros, que de seu lado queria reduzir à escravidão a população indígena.

Duzentos anos durou essa contenda, com alternadas vicissitudes, até que afinal triunfou a causa justa, o princípio da humanidade, que os jesuítas haviam formulado e defendido gloriosamente.

Todavia eles não desfrutaram a sua vitória; o mesmo estadista, marquês de Pombal, que assentou o definitivo reconhecimento da liberdade pessoal e da igualdade de direitos civis dos índios (6 de junho de 1755), imediatamente depois destroçou, em todas as partes do reino de Portugal, a Companhia de Jesus, confiscou os seus bens, perseguiu e baniu os seus membros (3 de setembro de 1759)92.

Já descrevemos a denominada "questão dos índios" nos seus aspectos gerais, e depois acompanhamos o seu curso no interior do Estado do Maranhão, até ao fim (caps. III e VII), e mais adiante, na história provincial de São Paulo, teremos ainda uma vez que voltar ao assunto; ao contrário, aqui na Bahia, nada temos que mencionar a respeito. Verdade é que foi justamente nestas províncias do centro, na Bahia e Pernambuco, entre os anos de 1550 e 1560, que em primeiro lugar surgiu a questão; porém os fazendeiros daqui, porque recebiam da vizinha África um rápido e numeroso afluxo de negros, dispensavam mais facilmente os braços dos índios, logo se retiraram da luta, embora pouco a pouco.

Os jesuítas tiveram assim liberdade de ação; fundaram aqui numerosas missões que, uma após outra, libertadas de sua tutela, foram elevadas a aldeias e a cidades, de sorte que à queda da ordem em 1759, no interior da Bahia, apenas umas nove missões estavam em atividade. De então para cá, muita coisa, que eles criaram nesse campo, se transformou ou caiu em ruínas; porém, sempre ainda existem atualmente, como testemunho de sua antiga eficiência, 31 aldeamentos de índios civilizados na diocese da Bahia; o número de habitantes dos mesmos (assim como em geral a população indígena dessa região) diminuiu, todavia, muito, e conta apenas umas 5.000 almas (relatório oficial de 1855).

Entretanto, não devemos considerar as atividades da Companhia de Jesus somente na sua feição gloriosa: tinha outra face, indigna e perniciosa. Aqui, na casa matriz da ordem, no colégio de São Salyador, muita coisa se fez em prol da ciência, do conhecimento do lipoma dos índios, não menos em favor da instrução religiosa e elevação moral do povo; daqui partiu a maioria daqueles apóstolos que saíram a pregar o Evangelho e coibir a selvageria da população indígena; finalmente, aqui terminaram uma vida cheia das mais benéficas atividades os dois irmãos da ordem, que entre todos maior glória merecem, padre Manuel da Nóbrega, provincial do Brasil (falecido em 1570), e padre Antônio Vieira, superior do Maranhão (falecido em 1696).

Porém, ao mesmo tempo, o colégio da Bahia, como nenhuma outra casa de ordem religiosa, tornou-se para o Brasil um foco das piores superstições, de feição puramente egoística e que somente tinham em mira elevar o prestígio da Companhia de Jesus.

Não lhes bastando o inesgotável tesouro de santos, mártires e relíquias, que a Igreja católica romana recomenda à veneração dos crentes, eles procuraram enriquecê-lo ainda mais, com ídolos do próprio seio da sua companhia; as mais exageradas lendas foram postas em circulação, para recomendar à santidade, ora um irmão da ordem que morrera sofrendo o martírio, ora outro de menos glória, mas que falecera asceta.

E para isso se ofereceram freqüentes oportunidades; logo nos primeiros tempos, enriqueceu-se o calendário da ordem com 52 mártires, pois na viagem da travessia de Portugal para aqui, doze jesuítas, no ano de 1550, quarenta no ano de 1569, caíram às mãos de navios piratas de huguenotes franceses, que os trucidaram sem piedade; entre estes últimos estava Inácio de Azevedo, cujas pretensas relíquias foram expostas e veneradas na Bahia. Mais tarde, o Colégio do Rio de Janeiro fez ainda mais nesse sentido: ali morreram dois irmãos da ordem em fama de santidade; o primeiro, José de Anchieta, que, na segunda metade do século XVI, como missionário, gloriosamente trabalhou, e do qual se contam milagres de toda espécie; chamaram-lhe o "taumaturgo do Novo Mundo, segundo Adão, mesmo vice-Cristo".

Não menor fama mereceu o seu discípulo João d-e Almeida, de origem inglesa (o seu verdadeiro nome era John Martin), que, porém, já em criança havia sido levado para Portugal e depois no Brasil foi acolhi.’c pelos jesuítas; durante 65 anos, "esse anglo, que se havia tornado anjo"93, foi ornamento e honra de toda a Companhia; não que ele a tivesse verdadeiramente servido com obras missioneiras, ou de qualquer modo nos interesses da religião ou apenas aos da ordem, porém o seu merecimento consistiu em viver num fanático ascetismo, em autoflagelações incríveis, causando a todos os seus irmãos e a toda a população, a mais profunda veneração; faleceu no Rio de Janeiro, na idade de 82 anos, a 24 de setembro de 1653.

A sua morte foi chorada como desgraça nacional; ninguém faltou aos seus funerais; disputavam as suas milagrosas relíquias e os que não conseguiram nada, recorreram a "audaz, mas piedoso" roubo, violando-lhe a sepultura e tomándome o cabelo da cabeça e a batina.

Três decênios depois, os jesuítas de São Salvador, de seu lado, festejaram de novo um grande triunfo; no ano de 1686 foi o Brasil flagelado por uma peste que, vinda de Pernambuco, pouco a pouco foi descendo a costa e sobretudo assolou, terrível, a Bahia. Debalde empregaram os médicos toda a sua ciência para atalhar a peste; resolveram então as autoridades recorrer à intercessão de um santo, e a sua escolha recaiu num dos irmãos da ordem dos jesuítas, o apóstolo das índias, São Francisco Xavier, cuja imagem foi imediatamente levada em procissão solene pelas ruas (10 de maio de 1686).

Pouco depois cessou a peste; o povo, agradecido, elegeu o santo intercessor para padroeiro da cidade de São Salvador, escolha que a 3 de março de 1687 foi ratificada por um documento escrito pelo próprio punho do rei; e daí em diante, até ao ano de 1828, passou a ser anualmente celebrada esta escolha, a 10 de maio, por uma solene e magnífica procissão.

Tais fatos colocaram naturalmente a Companhia de Jesus muito alto na opinião pública; por outro lado, não se pode negar que haviam de influir menos vantajosamente na cultura da população. Porque então também as outras ordens de frades, os padres seculares, enciumados com os louros dos jesuítas, cada uma no seu círculo esforçou-se por fazer igual coisa; assim favoreceram a tendência para a superstição cristã (ao passo que de seu lado os negros importavam as supersticiosas feitiçarias africanas); e destarte a superstição, pouco a pouco, foi tomando tais raízes na massa do povo e na gente de baixa condição, invadindo e deturpando de tal modo a doutrina cristã, que não só o protestante mas também o católico fervoroso de outros países com isso se escandalizavam.

Resta ainda, finalmente, mencionar uma instituição da Igreja, que pesou duramente, tanto sobre Portugal, como sobre o Brasil: — a Inquisição. Na verdade, nunca teve o Brasil um tribunal desta espécie, porque as tentativas dos reis de Espanha e Portugal, d. Filipe II e seus sucessores, para erigir um tribunal de inquisição em São Salvador, malograram-se diante da esclarecida oposição do Conselho Municipal e dos cidadãos; todavia, o Santo Ofício de Lisboa estendia a sua jurisdição sobre toda a América do Sul portuguesa, e tinha por toda parte os seus comissários, os seus espiões. A terrível espada da Inquisição pairou sempre de preferência sobre as cabeças de uma determinada classe de povo. Era a dos denominados "novos cristãos", os descendentes dos judeus portugueses, que outrora haviam sido obrigados ao batismo, e que já desde algumas gerações pratica, am as exterioridades do cristianismo, porém, dizia-se, no s^u íntimo, conservavam sempre predileção pela religião dos seus antepassados, o judaísmo.

Para muitos não era essa exprobração sem fundamento. Já narramos como, durante a dominação holandesa em Pernambuco, proclamada a liberdade de crenças, os novos cristãos voltaram em grande número para a sinagoga; porém, em regra geral, tal imputação servia apenas de pretexto para o juiz inquisidor persegui-los, para a avidez de roubo de seus sequazes.

E justamente esta última representava maior papel, visto que uma não pequena parte dos negociantes brasileiros abastados era de "cristãos novos"; assim, havia-se aqui, tal como além-mar, cuidadosamente tomado registro dessa raça amaldiçoada, em cujo seio se ia de tempos em tempos buscar uma vítima para o sacrifício.

Abstemo-nos inteiramente de considerar a feição desumana dessas maquinações e somente chamamos a atenção para o fato de que deviam repercutir prejudicialmente sobre o progresso material do país. Desde que uma pessoa, por uma denúncia qualquer, estava exposta ao processo da Inquisição e com isso a uma rigorosa confiscação de todos os seus bens, naturalmente todos aqueles, que estavam em relações financeiras com ela, eram arrastados na ruína, tanto mais porque ninguém ousava facilmente opor uma reclamação, por mínima que fosse, contra a Inquisição.

Repercutia, por isso, freqüentemente em vasto círculo a ruína de uma casa de comércio de cristão novo; uma feita — isto aconteceu na primeira metade do século XVIII — quando muitos dos mais consideráveis negociantes do Rio de Janeiro caíram às mãos ck> Santo Oficio, paralisou-se o trabalho em tantas fazendas, que a produção e o comércio da província só muito tempo depois destes golpes se puderam reerguer.

Um dos maiores merecimentos do marquês de Pombal foi haver posto termo a esses abusos. Pelo decreto de 2 de março de 1768, ordenou ele que se exibissem, para serem destruídos, todos os registros de "cristãos novos" e ameaçou com o mais severo castigo todo aquele em cuja posse, depois, se achasse semelhante documento; segunda lei, de 25 de março de 1773, removeu as desvantagens legais que pesavam até então sobre a descendência das vítimas da Inquisição, e colocou os cristãos novos em absoluta igualdade de direitos civis com os antigos cristãos; uma acusação malévola de descendência da raça judaica seria tratada como crime; além disso, foi de novo organizada, em outros regulamentos, e consideravelmente limitada, toda a atuação do Santo Ofício.

Embora, com isso, continuasse a existir a Inquisição, até princípios do século XIX, todavia o seu poder e-o seu funesto funcionamento ficavam cerceados, e estava removido de uma vez para sempre um dos piores obstáculos que estorvaram o progresso, tanto moral como espiritual, do Brasil94.

Assim estava a situação, no que diz respeito às instituições religiosas, as quais, com sede central na Bahia, dali atraíam ao domínio de suas atividades todo o Brasil.

Precisamos agora limitar de novo as vistas apenas a um mais reduzido campo, o território do antigo governo geral da Bahia; e consideraremos em primeiro lugar a sua constituição natural.

A região ao sul do rio São Francisco, no conjunto, é de formação idêntica à que se estende ao norte desse rio; aqui, como lá, encontramos uma fértil faixa de costa, primitivamente coberta de densa mata virgem, cortada por inúmeros rios e riachos, por uma cadeia de outeiros, e que além disso vai ganhando sempre maior extensão, até afinal alargar-se sobre quase toda a província do Espírito Santo. Eleva-se uma cadeia de montanhas, que acompanha em distância variável a orla costeira, e, por fim, não longe da baía do Rio de Janeiro, vem abeirar-se do mar; porém, estas montanhas da costa formam somente o primeiro degrau para o planalto interior da Bahia, que por outro lado desce de novo, na direção do norte e na do oeste, para o apertado vale do rio São Francisco, ao passo que na direção do sul vai subindo para o próprio coração de rocha do Brasil — o planalto de Minas Gerais.

Em regra geral, embora existam muitas pequenas distinções, adapta-se ao interior da Bahia a mesma descrição desfavorável que retraçamos para o planalto nor-te-brasileiro, a bacia do rio São Francisco; são campos ralos, de pouca aguada, expostos às secas, e unicamente próprios para criação de gado. Somente alguns rios oferecem nas suas nascentes e nos seus vales terreno apropriado para a lavoura; esses rios tinham antigamente um maior atrativo, pelo fato de se haverem achado, durante o século XVII, de tempos a tempos, grãos de ouro no seu leito; estabeleceram-se bateias, que, porém, não tardaram a esgotar-se; todavia, sempre elas deram lugar à fundação de muitas povoações, entre as quais citaremos apenas as duas maiores, Jacobina e Rio das Contas, ambas no interior da atual província da Bahia, porém, separadas uma da outra por cinqüenta léguas de terra plana, onde nem um só regato, um só poço, oferecem refrigério ao viajante.

Depreende-se naturalmente que este interior, excetuando algumas guerras de índios, não tem história; a sua população vive de preferência da criação de gado, da exploração de barreiros salinos, e por toda parte está no mais baixo grau de cultura da vida pastoril.

O desenvolvimento histórico propriamente dito limita-se à orla da costa, sobretudo na imediata vizinhança da baía de Todos os Santos; porém aqui, visto que as condições gerais e, o que não é menos importante, os artigos de comércio — cana-de-açúcar e algodão — são os mesmos, a feição e composição do povo se tornaram idênticas às de Pernambuco, e podemos, portanto, reportar-nos à descrição ali feita.

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