Os jesuítas contra o governo espanhol nas missões guaranis

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Robert Southey – Projeto Gutemberg

Robert Southey (Bristol, Inglaterra, 12 de agosto de 1774 – 21 de março de 1843) – História do Brasil

CAPÍTULO II

D. BERNARDINO DE CARDENAS NOMEADO BISPO DO PARAGUAI — CIRCUNSTÂNCIAS DA SUA CONSAGRAÇÃO — DISPUTAS DELE COM O GOVERNADOR HINOSTROSA E COM OS JESUÍTAS — BUSCANDO EXPULSAR ESTES DA ASSUNÇÃO É ÊLE MESMO EXPULSO — BOATOS DE MINAS DE OURO NO TERRITÓRIO DOS JESUÍTAS — VOLTA CARDENAS, É FEITO GOVERNADOR E EXPULSA OS JESUÍTAS A FORÇA — SEBASTIÃO DE LEON NOMEADO VICE-GOVERNADOR INTERINO — DERROTA O BISPO, E RESTABELECE OS JESUÍTAS — SEGUIMENTOS DA DISPUTA

4 H.B. C

A medida de armar os Guaranis os tornara seguros "na sua nova situação, e floresciam as reduções quando os jesuítas do Paraguai se viram envolvidos numa contenda não menos extraordinária na sua causa que seria nas suas conseqüências. Na primavera do ano de 1640 foi pela corte da Espanha nomeado bispo do Paraguai D. Bernardino de Cardenas, natural de Chuquisaca e filho de nobre família. Tinha este em tenra idade entrado para a ordem franciscana, distinguindo-se tanto como pregador, que o nomearam guardião do convento da mesma ordem na sua cidade natal. Um dia pôs-se êle a correr as ruas, coberta de cinza à cabeça, e pesada cruz aos ombros; seguiam-no os seus frades a açoitar as costas nuas, donde emanava o sangue. Se Cardenas tivesse jamais atingido as honras da canonização, ter-lhe-iam contado esta entre as obras meritórias, mas nas ações dos santos muitas coisas se relatam para edificação que não são para exemplo. A atual extravagância foi censurada pelos superiores, que depondo-o do cargo o tiveram por algum tempo preso no convento; mas este excesso de zelo lhe grangeou crédito entre a multidão, e tornou-se êle mais popular do que nunca quando de novo subiu ao púlpito. Havia no país grande falta de clero secular e em Chuquisaca se reuniu um concílio provincial para prover de remédio o mal: mandaram-se regulares para as missões e Cardenas foi um dos escolhidos.1 Viajava a pé, com uma cruz por bordão, adiante dele marchava a fama de seus felizes esforços pela salvação das almas; contados de boca em boca e exagerados os seus jejuns e as suas mortificações, já o povo lhe conferia a designação de santo. Dizia-se que na sua admiração por este novo apóstolo lhe tinham alguns índios convertidos revelado a existência de ricas minas de prata; uma pessoa de autoridade mandou aviso disto ao vice-rei do Peru, e como Cardenas fosse um pouco depois chamado a Lima, todo o mundo acreditou que era por este negócio. Mas os superiores o mandavam vir para repreendê-lo por haver dado causa a este boato falso; por haver nas suas excursões ofendido o clero secular e os outros religiosos, intervindo oficiosamente nos seus rebanhos; por sua procissão de Chuquisaca e por se ter nos seus sermões servido de expressões que o punham debaixo da alçada do santo ofício. Por todas estas razões e lhe recomendou que fosse no retiro compor o seu espírito, discipli-nando-o com salutar estudo. Êle porém pôs-se a dirigir memórias à corte e a invocar as simpatias que adquirira, e d- que não tardou a colher os efeitos. Era por este tempo membro do Conselho das índias. Solezano, bem conhecido como autor duma obra grande sobre a legislação das índias espanholas, tendo ouvido Cardenas pregar, e concebido do seu caráter mui elevada idéia, recomendou-o êle para a sede episcopal do Paraguai então vaga, e para a qual, graças a esta reconstrução foi efetivamente nomeado.

Era Cardenas bispo eleito, agora, mas para poder ser consagrado e exercer com plena autoridade a sua jurisdição, era necessário que de Roma viessem as bulas da sua aprovação e confirmação. Aproveitando-se da liberdade que lhe dava a sua promoção, foi êle aguardá-las no Potosi. Aqui se mostrava com o hábito da sua ordem, uma cruzinha de lã sobre o peito, e chapéu verde, exercendo nestes trajos as suas funções sacerdotais. Morreu por este tempo o cura do Potosi, e sem solicitar licença do arcebispo, nem sequer o informar da sua intenção, chamou Cardenas a si as atribuições do finado, visitando aquela parte da diocese. Ofendido com isto, e tirando partido de algumas circunstâncias2 que haviam feito descer

Dificuldades de consagração de Cardenas

Informe feito pelo P. Andres de Rada, P. 6

Cardenas na estima do povo, ordenou-lhe o arcebispo que se recolhesse à sua própria diocese, e ali exercesse as suas funções, segundo o costume, por nomeação do capítulo, até lhe chegarem as bulas e poder ser consagrado. Começou Cardenas agora a inquietar-se com a tardança das bulas; muitos acidentes podiam ter-lhes demorados a chegada, mas parecia-lhe igualmente possível, recordando-se das circunstâncias em que fora chamado a Lima, que do seu proceder tivessem dado ao Conselho das índias informações tais que fizessem el-rei mudar da tenção de apresentá-lo ao bispado. Ardia êle pois por encartar-se o mais depressa possível, e neste intuito, passando-se a Salta em Tucuman, convocou os jesuítas daquela cidade, e mostrando-lhes cartas que provavam o fato da sua apresentação e confirmação3, rspresentou-lhes as necessidades espirituais da diocese, e pediu-lhes a sua opinião sobre se em tais circunstâncias não poderia êle ser consagrado sem mais demora. Responderam eles que nenhuma dificuldade viam nisto, e a pedido de Cardenas para que emitissem por escrito a sua opinião, assim o fizeram. Remeteu-a êle então a Fr. Boroa, reitor do colégio e universidade de Córdova, pedindo-lhe também o seu parecer e o da universidade, e acrescentando que esperava recebê-lo em Santiago certo de que seria uníssono com o dos jesuítas de Salta. Respondeu Boroa que sentia realmente a tardança das bulas, obra sem dúvida do diabo, que envidava todos os esforços para arredar da sé do Paraguai tão digno prelado; que confiava que o Senhor não permitiria a Satanás levar por diante o seu intento; que submetera aos professores de teologia a opinião do reitor de Salta; que este era homem de muito saber e grandes talento?, mas não pudera consultar os livros em que se achava a matéria amplamente discutida; e que não havia na universidade um só canonista ou teólogo que pudesse autorizar a consagração dum bispo, sem apresentação das bulas. Esperara Cardenas mui diferente resposta, e rasgando em pedaços a carta de Boroa e atirando-se ao chão, ordenou aos seus fâmulos que os apanhassem e deitassem ao fogo. Depois de ter assim dado expansão à sua paixão, procedeu tão cavilosa como imprudentemente; comunicou a opinião dos jesuítas de Salta ao bispo de Tucuman, D. Fr. Melchior Maldonado de Saavedra, ocultando a da universidade, a que a tornava de nenhum efeito, e com tão instante importunidade apertou com êle para que o consagrasse, que o prelado anuiu contra sua vontade, protestando porém que com esta consagração não conferia poder, ou jurisdição alguma, o que só competia ao cabido da Assunção enquanto não chegavam as bulas.4 Dois cónegos apenas assistiram a cerimônia. Não tardou muito que o bispo não soubesse do parecer dado pela universidade e suprimido por D. Bernardino Cardenas, a quem logo escreveu em termos moderados porém severos, censurando-o pela fraude que praticara. Mais sensível mortificação aguardava em Córdova o novo bispo; foram os jesuítas os primeiros a visitá-lo pela sua chegada, cumprimen-tando-o os estudantes em prosa e verso e jantando êle no colégio mas ao oferecer-se Cardenas para conferir-lhes as primícias do seu poder episcopal ordenando alguns, respondeu Boroa que não podia apresentar ninguém a receber as ordens sem licença do provincial, e quando o prelado com singular imprudência lhe pediu uma aprovação por escrito da sua consagração, recusou-se Boroa a isso, dizendo que tanto êle como todos os teólogos que consultara, a consideravam ilegal. Disfarçou Cardenas por então o seu ressentimento, mas soltou-lhe os diques depois da sua partida numa carta concebida em termos tão imoderados, que provocaram segunda epístola reprobatoria da parte do bispo de Tucuman.

Segue Cardenas para Assunção

Em Comentes se embarcou Cardenas para subir o Paraguai. Muitos batéis lhe vieram ao encontro à entrada da sua diocese, cheios de pessoas de todas as classes, ansiosas por verem um bispo, cuja reputação de santidade o procedera. À meia-noite disciplinava-se êle com grande edificação dos circunstantes, e todos os dias dizia missa de pontifical. Espalhou-se a fama destas coisas, e corria que chegara ao Paraguai seguindo S. Tomé. Foi pomposa a entrada na Assunção, indo o bispo de mitra na cabeça, a cavalo e debaixo de pálio levado pelos primeiros magistrados e principais moradores. Pelas leis da Espanha é tal honra privativa do soberano, mas nesta ocasião puseram-se de parte as leis, ou talvez que nem fossem conhecidas nesta parte remota dos domínios espanhóis. Assim foi êle conduzido primeiramente à sua igreja paroquial, depois à catedral, onde cantou missa solene, pregando depois, sem largar a mitra durante estas cerimônias todas. Deu também o anel a beijar ao povo, despedindo-o depois, por serem horas de jantar. «Quanto a mim, acrescentou, sustentam-me invisível alimento, e uma bebida que não pode ser vista dos homens: o meu manjar é fazer a vontade d’Aquèle que me enviou, e cumprir a Sua obra.»

John. 4, 34 Carrillo, § 11

Dúvidas sobre autoridade de Cardenas

Proceder do novo Bispo. Carrilo,

§ 13. Vilalon, P. 16

Bernardino Cardenas há de muitas vezes trazer Tomas Becket à memória do leitor: foram mui inferiores os talentos daquele, mas o espírito era o mesmo, ao representar igual papel sobre um teatro menos conspícuo e num século menos favorecido. Por este tempo parece a exaltação ter-lhe perturbado o entendimento, talvez já por natureza desordenado, e seu proceder foi o dum homem ébrio de poder e de vaidade. Com pasmo do cabido principiou êle a exercer todas as funções do episcopado sem aguardar que aquele lhe conferisse Os poderes de que carecia até à chegada das bulas, sem o convocar, prestar juramento, nem observar formalidade alguma preliminar das que exigem os cânones. O tesoureiro e um dos cónegos atreveram-se a fazer-lhe observações, a que êle respondeu que era bispo e pastor e bem sabia o que lhe tocava. Reuniu-se um capítulo para ver o que devia fazer-se: alguns cónegos ° todo o clero inferior opinaram pela submissão à vontade do bispo, mas a maioria com o tesoureiro e o deão à frente lavrou um protesto contra qualquer ato de autoridade da mitra, como ilegal e por conseguinte nulo. Entenderam os dois partidos dever separar-se na celebração do ofício divino; o bispo ficou com o seu na catedral e os curas não se atreviam a receber os dissidentes, mas os jesuítas emprestaram a sua igreja tendo-se primeiramente assegurado de que com isto se não daria por ofendido o prelado. Sendo meramente sôbr^ um ponto de disciplina eclesiástica pouca popularidade, valendose de todos os meios de consegui-la. Todas as manhãs bem cedo ia à catedral acompanhado do seu clero, permanecia de joelhos enquanto se dizia uma missa, celebrava depois outra de pontifical, ajoelhando depois de erguer a Deus, e di-rigindo-se em preces ao Redentor como presente nos elementos que ali estavam, e concluía por distribuir indulgências, cordões de S. Francisco e mais pertences da superstição romana. Dentro em pouco principiou a celebrar duas missas por dia. Às vezes percorria a cidade descalço e com pesada cruz às costas; outras andava pelas ruas com uma caixa de relíquias, cercado duma multidão de índios; e ainda outras levava a hóstia pelas terras vizinhas, para, dizia, afastar moléstias e tornar fértil o solo. Também instituiu na igreja dos jesuítas uma exercício noturno de preparação para a morte, ao qual êle assistia sempre; mas estas reuniões de desoras davam lugar a irregularidades, de que se queixou o reitor sem que o bispo tomasse medida alguma para coibi-las.

I LI

Charlevois, 2 – 9212

Pretende o bispo arrogar-se poderes temporais

1642

Por algum tempo gozou Cardenas da popularidade que cobiçava: era êle um novo apóstolo, o príncipe dos pregadores, outro Crisóstomo, segundo S. Carlos Borromeu. Mas êle exagerou o seu papel. Duas missas pontificais por dia saciaram o apetite do povo por estas coisas; advertiram-no amigavelmente que tal prática era talvez ilícita e por certo desusada, e êle respondeu que jamais oficiava que não livrasse uma alma do purgatório, que grandes santos tinham havido, que chegavam a dizer nove missas por dia, e que além disto era êle papa na sua diocese, podendo fazer o que lhe parecesse a bem do serviço de Deus. Em outras coisas não dizia o proceder do bispo com esta ostentosa piedade. Sobre pretexto de não haver sacerdotes para todas as igrejas, chamou a si diferentes curatos, cobrando os respectivos benesses, embora fosse impossível servi-los eles todo*s, do modo que uma vez oficiava num e outras noutro, dizendo freqüentemente duas missas conventuais por dia. O escândalo produzido por esta irregularidade ainda c agravava uma irreverência habitual que estava bem pouco em harmonia com a santidade afetada pelo bispo; correndo de igreja em igreja costumava mandar o cálice não levado por um rapazinho, que muitas vezes era visto nas ruas a brincar com o vaso sagrado. Em país reformado passaria isto por uma indecência, mas onde constantemente se inculca e se acredita com fé intensa e intolerante a presença real da divindade nos elementos, não se poderia cometer maior indiscrição. Os primeiros que em público se abalançaram a manifestar o mau conceito que formavam do bispo foram os Franciscanos da Assunção, começando a falar dele sem reserva, como dum hipócrita ambicioso^ que por fas ou por nefas buscou êle rebaixá-los, cortejando os jesuítas, por não viverem com eles em boa paz os Franciscanos. Desavindo assim com a sua própria ordem, ainda foi fazer caprichosamente seus inimigos os Dominicanos. Tinham-se estes estabelecido na cidade, sem prévia impetração de cartas patentes. Além (provavelmente alguma ordem rival) dera contra eles uma queixa perante a Audiência Real de Charcas, que os condenara a demolir o seu convento, eles porém tinham obtido um prazo de seis anos, com a condição de que se dentro dele não apresentassem as cartas, seria executado o decreto. Ninguém contudo se havia lembrado de incomodá-los, quando um dia de manhã cedo saiu do seu paço episcopal Cardenas com rocheta e mur-ça, acompanhado de grande séquito, no qual se via entre outros o governador para este ato convidado, e dirigindo-se direto ao convento dominicano, mandou remover o sacramento, despir dos seus ornatos a igreja, e arrasá-la juntamente com o mosteiro. Baldadas foram as súplicas e lamentações dos frades: a demolição cumpriu-se.5 Passou então o bispo à igreja mais próxima, para onde mandara levar a hóstia, e lavadas as mãos antes de principiar a oficiar, assim falou voltado para o povo: «Meus filhos, bem vedes que estou a ponto de oferecer o santo sacrifício do altar, sem me tér confessado: é que a consciência de nada me acusa, nem eu me achei jamais tão bem preparado para este ato sagrado.» A ação seguinte teve seus laivos de insânia. Recusara o último bispo enterrar em lugar sagrado um suicida; tinham já decorrido alguns anos e Cardenas lembrou-se agora de transferir o corpo para a igreja da Encarnação. Dizendo pois que era o cadáver dum cristão, e que tinha eles razões para supor-lhe no céu a alma, convidou todas as pessoas gradas da cidade a assistirem a este ato, e ajudando com o governador a levar o féretro, cantou em pessoa o ofício fúnebre.

Pouco depois chegaram as tão esperadas bulas, e em boa ocasião vieram elas para da estranha conduta do seu prelado desviar a atenção do povo. Tinha êle mandado buscá-las à Europa pelo sobrinho Fr. Pedro de Cardenas, franciscano devasso, que trouxe também um breve que o papa costumava mandar aos bispos americanos, conferindo-lhes maiores poderes que aos europeus em razão da distância a que ficavam de Roma. Deu Cardenas estes papéis a um jesuíta, que os traduzisse para o espanhol, a fim de serem publicados nesta língua, depois de lidos no latim original, como requeria o costume. Neles se dizia claramente que se na consagração tivesse havido alguma irregularidade, incorrera o bispo ipsb facto numa censura que de todas as suas funções o suspendia. Não quis Cardenas considerar-se neste caso, e lidas as bulas e o breve, dirigiu-se ao seu auditório, dizendo que já nenhuma dúvida podia haver sobre ser êle o legítimo pastor da igreja do Paraguai, inquisidor da sua diocese, comissário da santa cruzada, e achar-se revestido de ilimitados poderes tanto no espiritual como no temporal. Era então governador D. Gregório de Hinostrosa, homem idoso, que servia com distinção no Chile, seu país natal: não pôde êle deixar de notar esta arrogação dum poder que lhe destruiria a própria autoridade, mas sendo de caráter fácil e indeciso, deixou passar a asserção. Até aqui se portara Cardenas sempre com ostentoso respeito para com êle, costumando até erguer-se do seu trono na catedral para ir recebê-lo à porta. Mas agora que se atribuía jurisdição superior, quis também exercê-la.

Tinha o governador prendido um indivíduo chamado Morales, familiar da inquisição, dizendo-se até que ia ser enforcado, pena que nestes países (exceto em tempos de guerra civil) jamais se impõe senão depois de exuberantemente merecida. Correu Pedro de Cardenas a dar a notícia ao tio, clamando que como criado do santo ofício não devia este homem ser levado ante tribunal secular. Uma simples representação neste sentido dirigida a um homem do caráter de Hinistrosa, teria conseguido a soltura imediata do preso. Ao bispo pareceu melhor tomar o cibório, em que tinha sempre a hóstia na sua sala de visitas, e com êle na mão dirigir-se à prisão, onde exigiu que lhe entregassem o preso. Depois mandou trazer uma mesa, c posto em cima dela o cibório, ali ficou com todo o seu séquito à espera do resultado. Aventurou-se o reitor dos jesuítas a observar que não era decente expor assim o corpo de Cristo, como êle chamava a hóstia, à porta da cadeia, nem própria da dignidade dele mesmo bispo conservar-se em posição semelhante, ao que tornou o prelado que ali estava e ali ficaria até que lhe entregassem o homem. Ouvido isto, foi o reitor que conhecia a têmpera de ambas as partes, sendo a facilidade duma igual à obstinação da outra, ter com o governador, a quem sem custo persuadiu a que soltasse Morales. Por esta ocasião observou o povo, que mais valia acharem-se o governador e o bispo sempre desavindos, pois que a concórdia dos dois redundara na destruição duma igreja e convento, enquanto que a contenda produzia a soltura dum preso. Neste caso ainda Cardenas achou pretexto para interpor a sua autoridade, mas em lugar de remeter o acusado ao tribunal competente, deu-lhe ordens menores para subtraí-lo inteiramente à ação da justiça, ato que implicava pelo menos a suspeita de ter estado Morales antes sujeito a ela. Não se mostrou ressentido o governador, dizendo pelo contrário que preferia a paz a tudo o mais, e para dar uma demonstração pública de quanto desejava viver em harmonia com o bispo, presenteou com uns magníficos castiçais de prata, em que Cardenas fixara cobiçosos olhos, mandando levar-lhos à igreja para tornar mais notório o ato. Cardenas os recebeu com semblante risonho, louvando a munificência do governador, acrescentando porém que só faltavam agora o jarro e a bacia que vira em casa dele. Hinostrosa imediatamente lhos mandou também, dizendo que tudo quanto possuía estava às ordens do prelado.

O bispo excomunga o governador

Longe esteve esta condescendência de produzir o efeito que dela esperava Hinostrosa. Queria o bispo que lhe transferissem para êle uma porção de índios que haviam sido concedidos em encomiendas à irmandade do Santíssimo Sacramento, ao que respondeu o governador que era impossível. Injuriou-o então Cardenas num excesso de paixão, e Hinostrosa, re-virando-se como um verme pisado, lançou-lhe em rosto a sua sede de riquezas, e os escândalos que em casa tolerava, aludindo com isto ao comportamento licencioso do sobrinho do prelado. Poucos dias depois tendo o governador de levar numa procissão o estandarte real, o bispo o declarou excomungado, e por conseguinte inabilitado para isto. Com moderação o adviu Hinostrosa, preferindo retirar-se da cerimônia a excitar distúrbios em ocasião semelhante, e resto de que a paciência e equanimidade lhe dariam o triunfo, sendo tão clamorosa a injustiça da parte contrária. Pedro Cardenas porém, encontrando-se na rua, insultou-o com as mais descomedidas palavras. Hinostrosa advertiu o frade que o não provocasse mais; este contudo só depois de esgotado todo o seu vocabulário de injúrias, se retirou para casa do bispo, onde foi cumprimentado pelo modo porque se portara. Veio interromper-lhes o júbilo a nova de que aí vinha o governador com um troço de soldados, e Cardenas mandou tocar o sino, proferindo sentença de excomunhão contra toda a pessoa armada que lhe entrasse em casa. Chegou Hinostrosa antes de bem concluído isto, e sem aparente emoção de cólera disse ao prelado que não via razão para lhe excomungarem os soldados, e deitando logo a mão a Pedro, prendeu-o em nome d’el-rei. Passava-se isto no vestíbulo: o frade safou-se. largando o hábito, correu para casa e voltou com uma pistola, ameaçando matar o governador, se incontinente se não retirava. Ao mesmo tempo apoderou-se um padre dos copos da espada de Hinostrosa que, arrancando-lha das mãos, julgou contudo prudente desistir da empresa. O bispo repetiu a sentença contra êle e os seus soldados, impondo uma multa de cinqüenta coroas a quem quisesse ser absolvido. Terminou esta escandalosa contenda por uma reconciliação tão pouco airosa a uma com a outra parte. Cardenas mandou dizer ao governador que desejava absolvê-lo, e Hinostrosa, que se sentia incomodado debaixo desta segunda excomunhão, foi à casa dele, e ajoelhou-se aos pés. Seguiu-se uma cena ridícula: ajoelhou também o bispo, e quais dois Chins a competir um com o outro em cerimoniosa cortezia, porfiaram qual dos dois beijaria a mão do outro, até que o reitor dos jesuítas, intervindo, reergueu o bispo. Concedeu-se então a absolvição, mas exigiu-se dos soldados a multa, que tão fácil como a cólera não se deixava aplacar a avareza do bispo.

Novas contendas com o governador

Charlevoix, 2, 21-2. Vüanon, 18

1642

O governador outra vez excomungado

Desde a revolução de Portugal no Paraguai era sob pena de morte proibido aos estrangeiros andarem armados. Encontrando um português de espada, mandou-o Hinostrosa meter na cadeia. Não havia nada que o bispo nomeara este homem primeiro alguazil da Inquisição, e era em virtude do ofício que este andava assim equipado: em lugar de explicar isto ao governador, recorreu o prelado aos seus meios do costume e excomungou-o pela terceira vez. Tão freqüentemente ouvidos perdem o seu efeito estes, trovões espirituais. Riu-se Hinostrosa da censura e condenou o português a ser enforcado conforme a lei vigente. Sabido isto, mandou o bispo um padre a consolar o preso e animá-lo a sofrer com paciência a sua desgraça, assegurando-lhe que se tão imerecidamente padeces-sa, morreria mártir, e o mesmo bispo celebraria magníficas exéquias, pregando em pessoa o sermão fúnebre. Fraca consolação era esta para o pobre homem, mas divertiu Hinostrosa, que não querendo terminar tragicamente um negócio em que se dera tão cômico incidente, soltou o preso, sendo então levantada a excomunhão sem que êle da sua parte desse para isso algum passo. Seguiu-se pendência mais séria. Continuava Fr. Pedro no seu insolente comportamento, e como tivesse este proceder degenerado já em escândalo público e notório, entendeu o governador afinal que era do seu dever exigir que se mandasse sair da Assunção semelhante homem. Falou sobre isto seriamente ao bispo, que repreendendo o sobrinho, mandou-o em penitência beijar o chão e dizer certas orações, e recomendou-lhe que se conduzisse com mais circunspeção para o futuro. Vendo quão pouco fruto sacara da sua representação, dirigiu-se o governador ao guardião do convento franciscano, e fazendo-o ver a escandalosa vida de Pedro, e a sua ofensiva conduta pública, requisitou que o tornassem a mandar para o Peru. Respondeu o guardião que não pertencendo o frade ao Seu convento, nenhuma alçada tinha sobre êle. Desenganou-se então Hinostrosa de que ninguém podia ou queria fazer-lhe justiça, e resolvendo valer-se da própria autoridade insultada havia tanto, ordenou ao mestre de campo general D. Sebastião de Leon y Zarate que prendesse o delinqüente. Mas Fr. Pedro andava precatado, e tendo até então morado numa casa particular para estar mais em liberdade, dormia agora por cautela todas as noites no convento, continuando a desafiar e irritar o governador, que perdeu afinal toda a paciência. Sem comunicar a intenção que tinha a seu irmão Francisco, nem a nenhum dos seus amigos, foi êle ao convento pela volta das dez horas da noite seguido de D. Sebastião de Leon e mais quatro ou cinco pessoas, e dirigindo-se direto à cela de Fr. Pedro, fê-lo levantar-se, levou-o em camisa e ceroulas para fora da cidade, e amarrado de pés e mãos o deitou em terra à beira dum rio. Ali ficou dois dias o mísero frade, sem alimento nem cobertura exposto a todos os insetos daninhos do país, até que embrulhado num vestido de mulher o embarcaram num bote confiado à guarda de alguns índios, e com escassa matalotagem de sal e víveres o mandaram para Correntes.

Charlevoix, 2, 23-61

Procura o bispo excitar uma insurreição contra o governador

Merecera sem dúvida castigo o frade, mas infligiram-lhe com as mais odiosas circunstâncias de ilegalidade e violência. Apenas o bispo soube do que acontecera, mandou tocar os sinos apesar da hora adiantada da noite, convocou todo o clero secular e regular, levou-o à catedral e ali solenemente excomungou quantos neste ultrage haviam tomado parte, lançando além disto ainda um interdito sobre toda a cidade. Representaram-lhe que, não se tendo feito processo verbal, nem publicado admoestação alguma, era este proceder por demais precipitado, mas observar tais formalidades não lho teria sofrido a natural veemência. No estado da maior confusão se viu agora a cidade: buscava o governador apoderar-se do bispo, e mandá-lo atrás do sobrinho; buscava o bispo excitai o povo contra o governador, e fazer que o clero clamasse contra êle do alto do púlpito; mas por mais que ameaçasse com a excomunhão os que não lhe obedecessem neste ponto, persistiram os padres com unanimidade tal na sua recusa que o prelado se não atreveu a realizar a ameaça. Querendo porém a todo o custo impressionar o espírito do povo, declarou que ia celebrar um ato de penitência pública, e dirigindo-se uma manhã cedo à catedral, convocou o capítulo para acom-panhá-lo numa procissão à igreja dos Franciscanos, como reparação do insulto que aquela ordem sofrera na pessoa dum dos seus membros. Reuniu-se grande multidão; depois de ter rezado perante o altar, ordenou o bispo a um dos seus servos índios que o despisse para a cerimônia, e ficou descalço com as pernas e as espáduas nuas, preso um saco por uma corda em volta do resto do corpo, e um grande azorague na mão. Nesta figura pôs-se a orar veemente por algum tempo, com a voz entrecortada por soluços, e as lágrimas a caírem-lhes pelas faces, e depois começou a açoitar-se. Pediram-lhe os cónegos que não continuasse, mas êle respondeu que era de mister apaziguar a justa indignação do céu pela injúria irrogada à ordem seráfica, e que a êle como membro desta e bispo da diocese tocava expiar o crime e oferecer ao Senhor o seu sangue para. Saiu então a procissão da catedral para o colégio dos jesuítas. Partiu adiante um bedel a avisar os padres, que se aprontassem para receber um apóstolo que se estava cobrindo do próprio sangue. Saindo ao encontro da procissão, avistaram eles primeiro uma bandeira cercada de desordenada multidão de homens e crianças; logo uma fila de homens, que pareciam mui comovidos pela cerimônia; em seguida mulheres todas lacrimosas, e por fim o bispo meio nu, açoitando-se e vertendo sangue, cercado do seu clero. Dois jesuítas abriram caminho até onde êle vinha, e de joelhos o suplicaram que desistisse, mas o prelado parecia, dizem eles, nada ver nem ouvir, todo absorvido em Deus. Avançou a procissão até à porta da igreja da companhia, onde os jesuítas em corporação se postraram diante de Cardenas, tornando-o a rogar que cessasse: mas êle, dando-lhes a mesma resposta que aos cónegos, continuou a lacerar-se enquanto as mulheres por detrás Se apinhavam, acotovelando-se e empurrando-se umas às outras, todas ansiosas por ensopar os lenços naquele sangue, a fim de guardá-los depois como relíquias. O reitor pôs termo a este asqueroso espetáculo, tirando a própria capa e lançando-a sobre o bispo. Entrou este então na igreja, onde orou nos degraus do altar. O servo índio limpou-lhe então o sangue, e estancando-lhe como pôde, vestiu-o outra vez lançando-lhe o rochete e a murça, e feito isto, voltou o prelado à sua catedral, onde celebrou missa pontificial.6

 

 

Tendo assim, ao que supunha, disposto o povo para o seu intento, publicou Cardenas uma pastoral, convocando todos cs moradores da cidade e circunvizinhanças a acharem-se na catedral em dia e hora fixos sob pena de excomunhão. Sabia o governador que alguma medida violenta se meditava e receando os efeitos desta reunião, ordenou para o mesmo dia uma revista geral da tropa. Inquietaram-se os magistrados, e dirigiram uma representação ao bispo, que mandou o reitor dos jesuítas, Lourenzo Sabrino, a dizer ao governador que êle nada desejava tanto como ajustar aquelas diferenças, e que no domingo seguinte o aliviaria das censuras, pedindo somente que assistissem os soldados na catedral à leitura da pastoral que convocara o povo. Na esperança de ver terminada uma disputa em que tinha a consciência de haver obrado ilegalmente, anuiu Hinostrosa. Inúmera foi a multidão que se reuniu; o bispo explicou a pastoral que se lia, insistindo na autoridade do Santo Ofício, e depois arengou o povo. Devia este, disse êle, obedecer aos mandados da Inquisição mesmo com sacrifício das próprias vidas, e dar desta devota submissão um exemplo qual dera S. Ambrósio, quando resistira ao imperador Teodósio e passando a fazer a resenha das ofensas do governador contra a Igreja, insinuou saber por um revelação quando a cólera do Senhor estava acesa contra o delinqüente: depois exaltando o proceder de Moisés, que ferira com o corte da espada os israelitas rebeldes , declarou que a ira de Deus se satisfaria agora com menor castigo, qual a prisão do governador, medida porém indispensável. Concluindo a sua oração episcopal, exclamou êle: «Cristãos fiéis, segui-me! Quem se escusar, condeno-o numa multa dé mil coroas, ou duzentos açoites à falta de pagamento. Que todos os que seguem o estandarte do Senhor me ajudem a apoderar-me do inimigo da Igreja, e se encontrarmos resistência, mate irmão o seu irmão, o comarada o seu camarada, o vizinho o seu vizinho». E logo saiu da catedral, e tomando a bandeira das mãos dc comandante da guarda, mostrou-se qual outra Fineas cercado dos seus clérigos, que todos traziam armas debaixo dos hábitos. Mas para cena como esta não vinha preparado o povo; c governador manteve-se firme à frente dos seus arcabuzeiros, e vendo que não seria apoiado como esperava, deixou-se o bispo persuadir a retirar-se para o seu paço. Entabolou-se agora uma negociação, em que uma única dificuldade apareceu, a das condições com que seria levantada ao excomunhão, pois que o prelado, em quem a avareza sobrepujava o orgulho, e que sabia que neste caso, tendo contra si a justiça havia o governador por força de ceder, insistia numa multa de quatro mil arrobas de erva do Paraguai, valor de oito mil coroas. Submeteu-Se a arbitramento esta exigência, e julgando-a ajustada, marcou o bispo para a cerimônia da absolvição um dia de festa, querendo dar maior publicidade ao seu triunfo. Hinostrosa prostrou-se por terra à porta da igreja, pedindo misericórdia, e Cardenas, revestido dos seus hábitos pontificiais, depois de o ter repreendido em áspero e estirado dircurso, absolveu-o, levantou-o e abraçou-o. Entrando ambos na catedral, entoou-se o Te-Deum, findo o qual, subiu ao púlpito, donde pronunciou o elogio do penitente reconciliado, comparando-o com Teodósio, o Grande, e deixando ao auditório o cuidado de suprir a outra parte do paralelo. . . entre êle mesmo e Santo Ambrósio.-

Se nesta transação havia sido rapace o bispo, fora pouco sincero o governador: prometera pagar as quatro mil arrobas e contra a exação protestava em segredo. Vendo como s-protraía o pagamento, mandou-lhe Cardenas dizer que, não cumprida esta condição, tornava-se a absolvição nula. Representou Hinostrosa que era a multa superior às suas forças, o reitor Sobrinho tentou interceder por êle, e o bispo num novo acesso de cólera embarcou para Correntes, deixando a° seu vigário-geral ordem escrita para publicar no dia seguinte um interdito geral, local e pessoal, o que quer dizer para onde quer que fosse o governador, iria com êle o interdito como uma praga. Conjuntamente se afixou no coro nas costas do crucifixo um papel, declarando que o governador recaíra em estado de excomunhão, de que só podia tirá-lo o mesmo bispo, nomeando outras muitas pessoas que tinham incorrido na mesma pena, e especificando a soma que cada um devia pagar pela sua absolvição. Às mulheres, aos negros, e a certas pessoas ali referidas se permitia ouvir missa, mas para este fim nenhuma igreja se dava como isenta do gerai interdito. Tomada sem formalidade alguma, considerou-se cada qual obrigado ou não por esta medida, segundo o próprio juízo, ou talvez segundo o partido a que aderira; conservaram-se pois algumas igrejas sempre abertas em menosprezo do interdito, e outras sempre fechadas em obediência a êle. O governador afirmava que em virtude do seu cargo tinha direito, ou não a ser tratado como um excomungado, ou a ser absolvido. Mas um católico nunca se sente muito a gosto quando ferido por semelhante sentença, e Hinostrosa não tinha tão pura consciência que dela tirasse a consolação interna que o caso requeria. Consultou pois sobre isto as diferentes ordens religiosas: os jesuítas responderam com alguma repugnância, que, visto não se achar em guerra, devia êle, para evitar escândalo, considerar-se excomungado até que

Sai o bispo da Assunção

1643

Tipos de habitações dos índios (desenho de Debret)

Armas ofensivas indígenas (desenho de Debret)

Charlevoix, 2, 28-34

Vai o bispo ae Jaguarao, onde prende dois cônegos

o mesmo bispo lhe desse a absolvição; que os dominicanos e os Padres das Mercês pelo contrário entendiam poder partir do vigário-geral. Recorreu Hinostrosa a este, que, sendo do partido do bispo, respondeu que o absolvesse quem assim opinara. Ouvido isto, dirigiu-se o governador com um troço de soldados ao aposento do vigário-geral, apregou-lhe as portas e as janelas, e declarou que ninguém estaria nela ou sairia enquanto aquele padre se não resolvesse a absolvê-lo. Vã ameaça era esta, e impossível de executar, nem o vigário-geral se deixou intimidar tendo o governador de retirar-se corrido. Tratou então Hinostrosa de redigir um memorial, que apresentou à Audiência Real de Charcas, perante a qual também expôs o bispo as suas queixas. Assim continuaram as coisas por algum tempo, até que vindo de Tucuman para a Assunção como vice-provincial dos jesuítas, viu Fr. Truxilo em Correntes o bispo, que o nomeou seu vice-gerente e vigário-geral com plenos poderes. À sua chegada suspendeu êle tanto o interdito como a excomunhão, deixando tudo à decisão do tribunal a que estava agora afeta a causa. Pouco satisfeito ficou o bispo com o proceder de Truxilo. Partiu agora para a Assunção, mas parou oito léguas aquém no Jaguarão, grande aldeia de índios em terra, fértil e sadia, e de lá expediu um edito caprichoso, proibindo a todo o mundo exceto os regulares, ir ali durante a sua estada, sob pena de excomunhão e multa de cinqüenta coroas. O tesoureiro do cabido D. Diego de Leon e o cónego D. Fernando Sanchez, mandaram pedir licença para ir apresentar-lhe os seus respeitos, e êle escreveu-lhes em resposta uma carta de convite, acrescentando por um recado de boca que desejava falar-lhes sobre negócios do bispado. Apenas porém Os avistou, exclamou: «Eis-vos aqui pois, traidores ao vosso bispo e à Igreja!» em logo os mandou recolher a estreito cárcere, cada um na sua câmara. Suspeitara Ou descobrira êle um plano que o partido oposto havia forjado de desconhecê-lo por bispo, em razão da irregularidade da consagração, e pensou intimidar o cabido com a prisão destes dois cabecilhas. Vieram interceder por eles os superiores das diferentes ordens, mostrando se Sobrino sobre todos caloroso por ter sido o instrumento de que o bispo se servira para esta traição. A tantas instâncias respondeu Cardenas que estava resolvido a expurgar a sua diocese, e que se valia de medidas rigorosas, como o bom médico empregava cáusticos para bem do doente. Ameaçou m’-ter Sanchez em processo crimina], apesar de invocar o cónego o seu privilégio como comissário da cruzada. Após quarenta dias de cárcere evadiram-se ambos os presos, fugindo junto do governador. Começou-se agora a tratar seriamente do que Cardenas receara. Os vice-provinciais dos Franciscanos e dos Dominicanos emitiram ambos a opinião de que se podia legalmente desconhecer a jurisdição do bispo; Sanchez os apoiou e mandou-se chamar a Correntes o tesoureiro para vir fazer causa comum com os outros. O prelado enviou à Assunção uma pessoa de confiança a inserir os nomes dos dois cónegos na lista dos excomungados, que lá estava ainda nas costas do crucifixo, e exigiu do governador que lhos entregasse. Recusou Hinostrosa, mas aconselhou aos dois que se retirassem, o que também eles julgaram prudente para se gurança própria. A coragem do bispo lhe dava grande vantagem sobre os seus antagonistas, nem êle hesitou em excomungar os dois fugitivos, anular os atos do seu vice-regente Tru-xilo, lançar novo interdito sobre a cidade, e proibir a todos ter relações com o governador ou mesmo falar-lhe. Como Henrique II da Inglaterra, ou os imperadores gibelinos, viu Hinostrosa que em vão lutava contra um clérigo altivo; foi pois ao Jaguarão, prostou-se aos pés do bispo, assinou uma obrigação pelas quatro mil arrobas, jurou pagá-las, recebeu a absolvição e ouviu uma repreensão humilhante, que bem me-recia, quando não pelo seu mau procedimento, pela sua pusilanimidade.

Rapacidade do bispo

Dos outros excomungados sobrou-se a multa sem perdão dum ceitil. Um bando de ávidos parasitas, que achavam nestas medidas uma colheita rica, instigavam o bispo a multiplicar estas exações. Na quinta-feira santa a todas as pessoas que entravam na igreja se declarou não poder ser admitido à comunhão quem tivesse tido relações com algum excomungado..sem assinar um papel, obrigando-se ao pagamento duma certa multa. Dois indivíduos que tentaram subtrair-se a esta imposição, foram postos fora. Sabendo disto, dirigiu-se o mestre de campo Leon à igreja, onde disse aos padres, que Judas vendera o seu mestre por trinta dinheiros, eles punham-lhe preço mais subido, mas ainda assim o vendiam barato: Sois todos simonistas, acrescentou, e estão me dando cócegas de servir-me do meu cinturão em vez de azorrague e enxotar do templo estes sacrílegos traficantes, não de animais para o sacrifício, porém do mesmo sacrifício. Mas, se não acaba já, já este escândalo, eu o farei acabar dum modo, que não vos há de fazer bom cabelo Este arreganho militar produziu o seu efeito, e a comunhão foi interrompida. A maior parte das pessoas que tinham assinado a obrigação, eram pobres demais para pagarem a multa, e o licenciado que tinha de cobrá-la entendeu poder reduzi-la a um quinto, pensando que se insistisse pela totalidade, nada receberia, mas por assim o haver feito foi banido e condenado a pagar trinta mil arráteis de erva mate. Raivando com isto, convocou as pessoas que haviam assinado, rasgou todas as obrigações, e declarou-lhes que estavam quites do pagamento.

Nova excomunhão do governador

Não tinha limites nem paradeiro a rapacidade do bispo e dos seus parasitas. Entregou o governador à pessoa para isso designada pelo bispo as quatro mil arrobas, que, sendo embarcadas, perderam no rio, e Cardenas exigiu que êle pagasse de novo outras tantas, o que com indignação foi recusado. Ofcreceu-se o bispo para aceitar como composição quatro mil coroas, metade do valor, mas Hinostrosa tratou com o mesmo desprezo esta proposta, e o intolerante prelado mais uma vez o excomungou, declarando que quem lhe obedecesse, ou prestasse qualquer serviço, seria banido da província, e considerado ermo suspeito na fé, pelo que responderia perante o supremo tribunal da Inquisição em Lima; e lançando novo interdito na cidade, mandou consumir todas as partículas consagradas. A paixão, o orgulho, o poder desenfreado o tinham levado à insânia. Reinava uma moléstia contagiosa na Assunção conjuntamente ameaçada por um corpo de Guaicurus. Não passavam estes de trezentos, mas eram inimigos tremendos; os moradores não eram já os espanhóis dos tempos de Irala, e excomungados o governador e os principais oficiais todos lhe recusava ma obediência. A poder de instâncias, e atendendo ao estado dos negócios públicos e da epidemia, levantou o bispo o interdito, suspendendo por quinze dias a excomunhão. Fora mais o susto que o perigo e os selvagens retiraram-se. Por este mesmo tempo recebeu o governador despachos do vice-rei do Peru, que lhe ordenava fizesse sair para Santa Fé todos os portugueses estabelecidos na Assunção. Entrava o vice-rei também nos negócios da província, recomendando-Zhe que não tolerasse mais a pressão do povo nem o aniquilamento da própria autoridade, c restabelecesse as coisas no pé legal, compelindo o bispo a conter-se dentro dos limites da sua jurisdição espiritual. Com i;-to cobrou Hinostrosa novos brios, e passando revista às suas tropas, fez saber aos índios das aldeias próximas que ia visi-tn’-los, esperando achá-los prontos para o que deles exigisse o bem do serviço do rei. Em lugar de aguardar o ataque, renovou Cardenas o fogo, e notificando a renovação da sentença por terem expirado os quinze dias, proibiu a espanhóis e a índios sob pena de excomunhão maior obedecerem ao governador. Mas este, animado com as cartas do vice-rei, procedeu da sua parte com igual energia, e declarando ter deveres importantes que cumprir no serviço do rei, exigiu do clero em nome de Sua Majestade que o aliviasse de todas as censuras eclesiásticas. A resposta foi que isto só o bispo podia fazê-lo, e êle passando ao Jaguarão, caminhou direto à igr£ja com todo o seu séquito armado. O prelado cedeu, absolveu-o e o elogiou num sermão, convidou-o a jantar, suspendendo a pedido dele o interdito da cidade até depois da festa da Assunção, donde ela tirava o nome.

Causa da inimizade do bispo com os jesuítas

Não fora efeito do medo esta súbita mudança. Preparando-se para pugnar com outros inimigos, queria Cardenas ter o governador por aliado. O parecer dado em Córdova pelos jesuítas contra a sua consagração, tinha-lhe excitado contra a companhia um ressentimento que êle disfarçara por algum tempo, afetando até distingúi-la e favorecê-la na Assunção. Não tinham os padres desmentido durante estas contendas a costumada prudência, mas era claro que desaprovavam o proceder de Cardenas, e que teriam apoiado o governador, se este quisesse impugnar a legitimidade da jurisdição do bispo, o qual. mal o soube, voltou contra eles todo o ímpeto das suas paixões vingativas. Principiou a fazer guerra, mandando-os fechar as escolas, e nomeando um dos seus sequazes para instruir a mocidade da cidade, dizendo que por ordem dei rei e para serviço de Deus os dispensava deste encargo. A medida Seguinte foi inibir os regulares de pregar e dar absolvição, restituindo depois estas faculdades a todos, exceto aos jesuítas. Foi Sobrino ter com o vigário-geral, requerendo-o que lhe mandasse examinar todos os presbíteros que tinha no convento, a fim de que, se se mostrassem habilitados para o seu ofício, fossem reintegrados, como os das outras ordens, no exercício das suas funções Sagradas. Consultou-se o bispo, e a resposta foi que êle não punha em dúvida as habilitações, mas que não convinha permitir aos jesuítas a administração dos sacramentos nem o púlpito. Em seguida procurou interessar o governador nas medidas ulteriores que pretendia tomar, e mandou dizer-lhe por um agente (continuava o prelado a residir no Jaguarão) que estava resolvido a expulsar da sua diocese os jesuítas, e, à guisa de peita, oferecer-lhe para dote duma filha natural as quatro mil coroas que reclamava como indenização pela perdida erva. Respondeu Hinostrosa vagamente a esta confidência, e em segredo informou dos desígnios do bispo os jesuítas, sem contudo lhe dar esperança de que se empenharia por eles, parecendo antes disposto a deixar que as coisas por si mesmas se compusessem, por ventura alegre de ver que ao seu incansável e implacável espírito de contenda, achara o bispo diverso objeto. Não era o governador a única pessoa que o bispo tratava agora de ligar aos seus interesses. Convocou todos os candidatos a ordem sacras, fazendo-os jurar que lhe seriam fiéis, ainda que fosse a vida o preço da lealdade; ora era isto criar um partido forte pois que as melhores famílias destinavam sempre alguns dos seus filhos ao estado eclesiástico, como melhor m’-io de arrumá-los, e elevá-los na sociedade. As arguições que conversando e pregando fazia aos jesuítas, dirigiam-se aos antigos inimigos: acusava-os de se fazerem a si mesmos senhores dos índios, em detrimento da coroa, da Igreja e dos espanhóis, privando os últimos das encomiendas que lhes competia, dos seus tributos a primeira, e dos seus dízimos a Igreja. Tinham descoberto, dizia êle, ricas minas de ouro, que ocultavam para seu uso privativo. Tinham entrada no Paraguai só com seus hábitos, e eram já soberanos dum vasto país, mas êle estava resolvido a tratá-los como os paulistas e os venezianos haviam feito. Bem escolhidos eram estes tópicos para os ouvintes, fazendo reviver entre eles esse ciúme e má vontade que tantas vezes haviam impedido os jesuítas no prosseguimento de seus vastos planos.

Procura o bispo expulsar da Assunção os jesuítas

Tinham os jesuítas comprado uma fazenda chamada de S. Isidoro; propôs o bispo que eles lh’a cedessem, pelo que lhes havia custado, e sem esperar a resposta mandou dizer-lhes que eram assaz ricos para dela lhe poderem fazer presente, mas que confiando pouco na sua generosidade, devia declarar-lhes que O terreno pertencia aos índios do Jaguarão, e assim o despejassem dentro de oito dias, aliás os expulsaria, dando o que lá se achasse em recompensa aos que lhe executassem as ordens. O mensageiro desta intimação disse ao reitor que dela não havia apelação senão para o papa, e que para isto faltava o tempo. Mas Cardenas metera-se agora com homens que tinham consciência tanto da sua força como do seu direito. Em lugar de vergar a cerviz recorreu Sobrino ao governador, que mandou um alcaide com dez homens armados a defender a propriedade ameaçada. Tiriha o bispo tomado para seu confessor e principal favorito um frade agostinho renegado, por nome Francisco Nieto, homem de espírito audaz e vida dissoluta, esse aconselhou agora ao prelado que obrasse com energia, expulsando de uma vez Os jesuítas do seu colégio, e cortando assim a árvore pelo tronco, em lugar de lhe estar podando a rama. O povo, dizia êle, estava bem disposto, eram odiosos o9 jesuítas, e se o governador se atrevesse a arrostar c bispo, comprometia-se êle Nieto a fazê-lo entrar na razão com dois ou três bons murros: «Por Santiago, pois, e a eles!» Seguiu Cardenas um conselho tão caracteristicamente dado. contando com a disposição popular e a cordial cooperação das outras ordens regulares. Nesta confiança mandou aos Franciscanos, Dominicanos e aos Padres de la Merced instruções secretas, para arranjarem pessoas idôneas, que das reduções do Paraná se encarregassem, enquanto se lhis não davam curas, e com igual segredo mandou fretar embarcações para transporte dos jesuítas, e comprar biscoito e sal para a viagem. Tomadas estas medidas, abalou o bispo do Jaguarão, repicando os sinos à sua saída, como diz Charlevoix, fosse a conquis-rar aos muçulmanos a Terra Santa. Contara êle chegar no mesmo dia à Assunção, mas uma chuva violenta o demorou; Nieto contudo seguiu avante e topando na cidade o tencnte-gcneral D. Francisco Florez, foi por este convidado para a ceia. Não sabia Florez do segredo, e Nieto lho comunicou, dizendo que o bispo tencionava entender-se primeiro com 0 governador, e se visse que este não queria fazer causa comum com êle, pedir-lhe que se ausentasse. Também acrescentou que não podia falhar o plano, por trazer o bispo consigo quatrocentos índios bem armados. Talvez que a boa ceia tivesse tornado Nieto assim tão expansivo. Escutou Florez, como se se deixasse convencer por estes argumentos a abraçar o partido do bispo, mas partiu imediatamente a avisar o governador, que sem perda de tempo informou aos jesuítas do que se tramava. Era dever deles, disse-lhes, defenderem-se por todos os meios legais contra a meditada violência, e conseqüentemente enviou-lhes armas. Na manhã seguinte saiu com a maior parte dos moradores ao encontro do bispo, e Cardenas perguntou-lhe porque não via ali nenhum jesuíta. Respondeu Hinostrosa que tinham eles na véspera sabido vir o bispo a expulsá-los do seu colégio, pelo que estavam preparados para resistir. Nac era aquele o lugar, acrescentou, para dizer o que pensava da intenção do prelado, mas teria a honra de conversar com êle em particular sobre este objeto. Voltando-se então para Nieto, exclamou Cardenas: Algum diabo descobriu tudo, e estamos traídos».

 

Duplicidade do governador

Assim contrariado no desígnio de surpreender os jesuítas, foi o bispo alojar-se no convento dos Franciscanos, procurando adormecer-lhe a vigilância com enganosas civilidades. Eles pela sua parte, não tendo sido ainda abertamente agredidos, retribuíram-lhe com igual insinceridade as cortezias, que era este o século das máximas italianas de insidiosa política, segundo as quais era o maior embaixador o melhor estadista. Hinos-trosa fêz ver o bispo que melhor seria atacar os jesuítas nas suas reduções, aliás fariam vir uma força de nofitas para sua defesa na Assunção; na aldeias porém poderiam ser apanhados de improviso, para o que lhe oferecia uma escolta suficiente. Aprovou Cardenas o conselho, e continuou a entreter os jesuítas enquanto se aprontava a força. Entretanto ocupou-se em redigir um memorial para coonestar o procedimento que premeditava, alegando como autoridades e documentos justificativos ordens dei rei, e petições contra a Companhia assinadas pelo clero regular e secular, habitantes da Assunção e grande número de índios. Assim se achavam as coisas quando da Audiência Real de Charcas vieram despachos ordenando ao bispo que levantasse o interdito e a excomunhão, sem extorquir multa de pessoa alguma, e anulasse todos os impostos que debaixo de tal pretexto havia lançado. Uma carta particular da Audiência exortava a voltar à Assunção, governar a sua igreja da forma que da sua virtude e talentos se devia esperar, viver em melhor harmonia como governador, e manter tanto na conversação, como nos seus escritos e atos, a dignidade do seu caráter, de que por demais se havia esquecido. Ao mesmo tempo recebeu o governador instruções particulares em que se lhe recomendava que visto ser êle o representante do rei no Paraguai, fizesse compreender isto ao bispo. Desejando preservar a paz com o seu fogoso adversário, não queria Hinostrosa publicar o decreto da Audiência, mas obrigaram-no a isso as pessoas por êle aliviadas de multas e censuras, e tornada assim a acender a mal extinta inimizade do bispo, buscou este satisfazê-la contra o governador e os jesuítas ao mesmo tempo. Neste intuito tentou haver de Sebastian de Leon, o mestre de campo, uma carta de Carlos V que julgava em poder deste oficial, carta que autorizava o povo da Assunção em caso de morte do governador a nomear outro ad ínterim. Jamais, disse êle, houve tanta razão para exercer este privilégio como agora. Com isto só pretendia ver-se à frente do povo para expulsar os jesuítas. Era dever seu executar esta grande medida, como o era do cirurgião cortar um dedo gangrenado para salvar a mão: o papa lhe levantaria por isto uma estátua, e ainda que outra e nenhuma obra boa executasse, só esta o tornaria digno da canonização. Desta conversa deu Leon parte ao governador, a questão era agora de saber quem havia de ser o governador, êle ou o bispo, e HinostrOsa resolveu não perder a vantagem de dar o ataque em lugar de aguardá-lo. Fiel porém ao seu sistema de duplicidade enquanto declarava a Cardenas que em quinze dias ficaria pronta uma escolta de cento e trinta homens para a expedição às reduções, conjuntamente mandava buscar a estas seiscentos índios armados para operarem debaixo das suas próprias ordens contra o bispo, e com o receio de que não chegassem a tempo, enviou segundo mensageiro a fazê-los avançar a marchas forçadas 7.

 

Marcha o governador com os guaranis a apoderar-se do bispo

Chegaram ao Jaguarão os índios convocados para o serviço do bispo, antes de se ter aproximado a força que o governador para si mesmo destinava. Voltou Cardenas para ali, e principiando já a desconfiar da publicidade de Hinostrosa, observou a alguns amigos, que, se atacasse primeiro as reduções, achariam os jesuítas tempo para se fortificarem no seu colégio, onde poderiam manter-se até obterem a seu favor ordens da Audiência Real ou do vice-rei do Peru: enquanto que pelo contrário se lhes descarregasse logo o golpe sobre o quartel-general, expulsando-os de uma vez, era provável que o rei, embora não fosse talvez possível obter dele que a ordenasse, aprovasse a medida antes do que correr o risco de provocar uma insurreição do povo, que a apoiaria. E como cautela preliminar para assegurar o bom resultado da empresa, resolveu apoderar-se do governador. Não tardou Hinostrosa a saber deste desígnio. Achava-se já a quatro léguas da Assunção a força Guarani, composta de oitocentos homens bem armados, e o governador saindo-lhes ao encontro com uns poucos de soldados, e marchando com eles toda a noite, entrou no Ja guarão ao romper do dia 8. Foi o bispo acordado pelos seus criados aterrados, tendo apenas o tempo preciso para saltar da cama e vestir-se à pressa, quando Flinostrosa lhe entrou pela câmara adentro, dizendo que a reconduzi-lo para Assunção vinha, pois que os índios daquele aldeamento, tornando-se insolentes e arrogantes debaixo da proteção do prelado, recusavam obediência ao seu governador. Os advogados do bispo afirmam que já estava ali um bote pronto, para transportá-lo preso e em ferros: os jesuítas não confessam semelhante intenção, mas nem eles nem o governador seriam escrupulosos nos meios, ou melindrosos no modo de segurar o seu pri-sroneiro, e Cardenas, percebendo-o logo, meteu-se por uma porta do s-u aposento, que dava para o altar, e num momento estava agarrado a um dos pilares do santuário. Seguiu-o Hi-nostrosa, lançando-lhe a mão9, mas o bispo estava no seu terreno, e gritando em altas vozes, declarou excomungado o governador. Um padre e uma mulata (cozinheira do bispo) foram os primeiros que acudiram aos gritos. Atiraiam-se ambos ao governador, d’-rrubando-o sobre os degraus do altar. Quase no mesmo instante se encheu de povo a igreja. Com esta vista cobrou ânimo o bispo, que, tendo à mão as suas próprias armas, tomou do tabernáculo o cibório, ergueu-o ao ar, e quem ali estava prostrou-se ante a presença da Divindidade. Perguntou êle então ao governador a que viera. «Anunciar o vosso exílio da província, respondeu Hinostrosa, e o seqüestro das vossas tempoialidades, por haverdes usurpado a jurisdição que d-1 rei tenho. É uma ordem do vice-rei que assim vos intimo». Depois parecendo-lhe decoroso ou prudente sair da igreja, assim o fêz, tencionando apoderar-se do bispo mal este viesse para fora. Mas Cardenas não se afastava do santuário, e o governador o bloqueava, sem que o malogro doutra tentativa semelhante na Assunção o convencesse da sua loucura. Entretanto apoderavam-se os seus de quanto podiam haver à mão, saqueando a casa do b:spo, matando-lhe o gado, assolando-lhes os campos e despindo os habitantis. Na esperança de pôr

termo a estes excessos saiu o bispo em procissão com a hóstia J(), trazendo as índias do lugar ramos verdes adiante dele, c salmiando os cantores o Pange Língua. Tendo na hóstia proteção suficiente, fêz alto diante da tropa do governador, e dirigindo-se a alguns que não tinham ajoelhado assaz prontos, chamou-os bárbaros, hereges e cismáticos. De volta ao seu asilo arengou o povo contra o governador, respondendo-lhe este da porta em estado de igual exasperação e para cúmulo do escândalo entrando na igreja e fazendo sair os índios, a pau apesar da presença do sacramento.

Orrillo § 29

Charlevoix, § 60-70

Promete o bispo submeter-se e marcha em segredo para Assunção

 

Os jesuítas depõem o bispo

Antes de findo o dia veio a reflexão ou o cansaço aconselhar a moderação a ambas as partes. Tiveram uma entrevista, e prometendo o bispo deixar a província dentro de seis dias e levantar a excomunhão, despediu Hinostrosa os Guaranis. Viu-se o bispo porem-se em marcha para casa, e mandou se-gui-los por algumas pessoas, querendo ficar seguro de que não se expedia contra ordem para voltarem, e descançado a este respeito, partiu para a Assunção antes do nascer do dia. Diferentes boatos traziam agitada a cidade: entre outras coisas dizia-se que o governador fizera Cardenas seguir rio abaixo e vinha agora à testa dos Guaranis debelar-lhe o partido na capital. Mas ao saber-se da vinda do bispo repicaram os sinos, e retumbaram com aclamações as ruas: trazia êle ao peito uma hóstia numa caixinha de cristal, e adiante marchavam padres munidos de armas debaixo dos hábitos. Confiando na força do seu partido, mandou marchar contra o colégio do? jesuítas, mas dizendo-s–lhe que quatrocentos homens o defendiam, deixou-se aterrar pela mentira, e foi para o convento dos Franciscanos. Fortificá-lo foi o seu primeiro cuidado; abriram-se canhoneiras nas muralhas, assestaram-se peças, reforçaram-se com basões as partes mais fracas, e para que não faltassem socorros espirituais, trouxeram-se da catedral a imagem c!a Virgem e a de São Braz da sua própria igreja, colocando-se ambos os ídolos de sentinela sobre o altar 11. Feitos estes preparativos, tocou o sino a rebate, reuniu-se o povo, e tendo um alcaide e Os regedores ao lado, dirigiu-se o bispo à multidão: disse que os índios armados dos jesuítas tinham saqueado Jaguarão e vinham em marcha para fazer o mesmo à Assunção: e êle, por ter querido defender os privilégios do povo, havia de ser agora expulso da sua diocese. Mas reclamava agora em nome dei rei a proteção desse mesmo povo, e exortava-o, caso não aparecesse à carta que o autorizava a eleger um governador, a que procedesse sem ela a eleição, sendo justificação suficiente a necessidade do caso. Aterrado com a descrição que ouvira fazer do proceder dos Guaranis, correu o alcaide a ter com o governador, requerendo que aos índios se não permitisse a entrada na cidade. Tinha-os Hinos-trosa efetivamente tornado a chamar por conselhos do mestre de campo Leon, e o alcaide, vendo que não lhe respondiam à medida dos seus desejos, tornou-se insolente, pelo que foi metido na cadeia. Raivou com isto o povo e a conseqüência teria sido uma insurreição, se não fora o receio dos Guaranis, que se dizia virem avançando com perfeita disciplina e por ordem do governador. Procuraram o bispo e o seu partido vencer este temor, e apoderarem-se da carta e do estandarte real, mas como nem uma nem outra coisa lograsse, recorreu o prelado às suas armas costumadas, excomungando Leon e os seus amigos. Muitos dos melhores e mais bem avisados moradores julgaram agora prudente prover a própria segurança, retirando-se da cidade. O governador, sentindo-se autorizado pela carta do vice-rei, justificado pelas circunstâncias, e habilitado a levar avante o que principiara, graças à força que os jesuítas punham à sua disposição, mandou o escrivão del-rei declarar ao bispo que estava pronto um navio para transportá-lo a êle e a toda a sua casa, cumprindo partir sem detença. Ao aparecer o escrivão diante da porta do convento, tentou um frade assassiná-lo com um dardo: o barulho que se seguiu atraiu fora o bispo, o qual, ouvida a mensagem do escrivão, respondeu excomungando-o, acrescentando que, se não se portasse como tocava a quem se achava ferido por semelhante sentença, seria multado em quinhentas coroas e entregue a Inquisição por contumaz. Neste estado de exasperação afirma-se que quatro eclesiásticos se ofereceram para matar o governador, tendo o bispo na sua paixão declarado

 

1644

que não seria crime; que eles se armaram para este efeito e que no conselho do prelado se resolveu que uma partida mais forte poria fogo ao colégio dos jesuítas enquanto os padres cometiam o assassinato. Aproveitou-se o governador deste boato, talvez para isso mesmo espalhado, e mandou entrar na cidade cem Guaranis, postando metade no colégio e outra metade na sua própria residência. Seguro com a superioridade que esta força lhe dava, procedeu Hinostrosa com as fórmulas da lei. A primeira medida foi prover ao governo da igreja, como se estivesse vaga a sé. Dos antigos cónegos o único que estava na cidade, era Sanchez, que antes da chegada de Cardenas havia servido de vigário-geral e provisor do bispado. Convidou-o o governador a reassumir aquelas funções, alegando acharem-se os direitos do bispo viciados pela maneira da sua consagração, e prometendo sustentar o cónego com a autoridade del-rei. Exigiu Sanchez como primeira e indispensável medida que se provesse à sua segurança pessoal, e logo se lhe deu uma força que o escoltasse até ao colégio dos jesuítas. Tocou-se então a rebate, arvorou-se na praça público o estandarte real, e ordenou-se a todos os moradores sob pena de morte que comparecessem armadas, prontos para qualquer serviço que em nome do rei deles se exigisse. Obedecendo apareceram os oficiais com a tropa; a municipalidade à frente da milícia; e formaram também em linha cento e cinqüenta Guaranis. Dirigiu-se o governador então ao colégio, perguntando formalmente por D. Cristoval Sanchez de Vera, provisor e vigário-geral da diocese, que em seguida foi conduzido à catedral com uma procissão militar. Mal abertas as portas encheu-se a igreja de pessoas de todas as idades ávidas de verem o que se ia passar. Concluída a sua oração, tomou Sanchez de sobre o altar um crucifixo que deu a beijar ao governador, e depois tomando o assento que ocupara sede vacante, declarou reassumir o cargo, por não ter D. Bernardino Cardenas jurisdição legítima. Repicaram Os sinos, arrancaram-se as listas dos excomungados e levantou-se o interdito. Como único meio de aparar este golpe acabava Cardenas de levantá-lo por si mesmo. O governador publicou um edito, referindo as razões de queixa contra o ex-bispo, e proibindo a todos sob pena de morte a entrada na casa, onde êle buscava defender-se. No mesmo sentir promulgou o provisor uma pastoral. Forte como era o partido do bispo, achando-se sem dúvida alguma do seu lado a maioria dos espanhóis, tinham agora os adversários combinado tão bem as suas medidas que impossível se lhe tornava a resistência. Declarou pois Cardenas que estava pronto a partir. Despediu-se de alguns dos seus mais dedicados amigos, excomungou e anatematizou outra vez os inimigos e dirigiu-se ao embarcadouro, levando como de costume a hóstia pendente no pescoço, seguido dos seus clérigos com tochas acesas. Mal se viu a bordo, tornou a lançar o interdito, tocando uma campanhia que fazia parte indispensável do seu trem de viagem. Os seus partidários tinham recebido instruções para a um sinal convencionado anunciarem o ato com o toque dos sinos do convento franciscano e da igreja paroquial que fora de Cardenas, de modo que o partido oposto julgou necessário fazer repicar todos os outros sinos, abafando o som sinistro daqueles.

19 de nov. 1644

Charlevoix, 2, 70-7

O bispo acusa os jesuítas

Bem sabia Cardenas durante todas estas transações qual era o seu lado vulnerável, nem lhe escapava que por mais certa que houvesse sido a sua nomeação para o bispado, e acidental a demora da chegada das bulas, tinha havido na sua consagração por falta delas uma omissão de formalidade, que o tornava Sujeito a censuras, embora lhe não viciasse a posse Era este de fato um ponto de direito, que a ambas as parcialidades servia de pretexto, mas a questão real que se agitava, vinha a ser se haviam os jesuítas de prosseguir-se no seu sistema de catequese, ou se devia continuar a antiga prática de escravizar os pobres índios. Nenhuma destas duas coisas perdeu Cardenas de vista: para ser aliviado de censuras em que houvesse incorrido, requereu para Roma, mas bem sabia êle quão vagarosas são as formulas legais, podendo passar anos antes que isto se resolvesse. A execução dos seus planos contratos jesuítas confiou-a êle a agentes mais ativos. A acusação contra os padres da companhia fazia de terem descoberto minas de ouro, trabalhando nela ocultamente em proveito próprio, era das que excitam imediato ciúme. E repetia-a nas suas cartas com a maior confiança; os seus partidistas chegaram até a dirigir a este respeito memoriais ao Conselho das índias, que de tão importante que julgou o assunto, logo expediu ordens para que nas reduções se não tolerassem missionários que não fossem súditos natos de Sua Majestade Católica, com receio de que estrangeiros servissem de agentes para passar o ouro a outros países. A este boato, originado na credulidade, cobiça e malícia, veio dar agora grande força o testemunho dum índio por nome Buenaventura. Servira este homem num convento de Buenos Aires; fugindo dali, reunira-se a algumas tribos errantes, vindo a dar no correr das suas aventuras a uma das reduções do Paraná, onde se declarou cristão, adquiriu fama de piedade, e acabou por fugir com uma mulher casada. Perseguidos Os fugitivos, foram alcançados e reconduzidos, sendo Buenaventura, depois de açoitado na praça, expulso da redução. Voltou a Buenos Aires e declarou que os jesuítas o haviam empregado nos trabalhos das suas minas nas quais em três dias achara bastante ouro em pó para encher um meio alqueire. Como confissão acrescentou que êle e outro índio tinham combinado fugir com o metal que pudessem transportar, mas que o camarada o havia traído,-pelo que fora êle açoitado e expulso. Para defesa das minas, disse, tinham-se erguido fortalezas em que guarnições munidas de armas de fogo faziam o serviço. Era circunstanciada a história, e a sua congruência bem como a aparente simplicidade com que o seu autor respondia a todas as perguntas, lhe mereceram crédito. O reitor do Colégio de Buenos Aires julgou necessário requerer que fosse este homem inquerido por um magistrado; a arte do índio não estava a par duma inquirição habilmente dirigida, e as informações sobre os costumes vieram confirmar & má opinião que da veracidade dele se havia formado. Oficiou pois o governador da província ao Conselho das índias, que o boato das minas, de que tanto se falava, não tinha o menor fundamento. Foi este governador pouco depois rendido por D. Hyacintho de Laris, de quem o índio obteve uma audiência, repetindo-lhe o conto e protestando que para lhe negarem crédito ao testemunho positivo outra nenhuma razão havia além de ter-se êle assustado pelas fórmulas dum inquérito judicial. Deu D. Hyacintho ouvidos a uma história, deque tantas vantagens para si mesmo esperava, e uma carta, que ao mesmo tempo lhe chegou, na qual Cardenas falava da existência das minas dos jesuítas como de fato de que não podia duvidar-se, determinou-o a ir em pessoa averiguar a verdade no próprio lugar. Assim partiu para as reduções com uma escolta de cinqüenta soldados, levando consigo Buenaventura e um marinheiro experimentado. Tinha o índio provavelmente inventado o seu conto como meio de tirar alguma coisa dos que o escutavam, e perseverado nele por tornar-se assim pessoa de alguma conseqüência. Agora porém tornava-se a coisa séria, e ¿ meio caminho desapareceu o homem. Fosse qual fosse a opinião que D. Hyacintho à vista desta fuga passou a formar do depoimento do seu informante, seguiu até à redução mais próxima, e sem comunicar aos jesuítas o fim da sua expedição, principiou por interrogar secretamente alguns neófitos a respeito das minas. Bem lhe sabia das intenções Diaz Taño então superior das missões, como bem o devia ter previsto o governador, a quem aquele pedido que já tinha chegado ali passasse a visitar todas as reduções, requereu em nome do rei obrigasse Cardenas a dar a prova das asserções que na sua carta fazia. Entrou pois D. Hyacintho no Paraguai, percebendo grande agitação enfre os neófitos onde quer que se apresentava. Era que estavam persuadidos que vinha êle depor os jesuítas, e que o capelão que o acompanhava havia de tomar posse das igrejas. Ponderou-se pois ao governador que se não tranqüilizava prontamente os conversos a este respeito, o menor mal que podia esperar era a deserção completa das reduções.12 Explicado o negócio, perderam os Guaranis todo o receio. Era do interesse dos missionários proporcionar a D. Hyacintho todas as facilidades para as suas pesquisas. Ofereceram-se grandes recompensas a quem descobrisse uma mina, e o governador prometeu ao primeiro soldado que obtivesse a desejada notícia, uma patente de capitão, equipamento completo para o novo posto, e uma gratificação de duzentos filipes. Afinal apareceu um índio, dizendo que o pai o levara a uma mina • de ouro quando rapaz, e que apesar de ter tido então apenas cinco anos de idade, lembrava-se do lugar perfeitamente. Mandou-se o mineiro com êle, e após alguns dias de jornada chegaram ambos a um sítio, em que nada se achou além duma substância brilhante, que uma criança poderia tomar por metal. 13 Entretanto escrevera D. Hyacintho a Hinostrosa, e também exigira de Cardenas as provas da sua asserção. De ambos recebeu agora resposta: dizia-lhe o primeiro que muitas vezes havia ouvido falar nas minas do Uruguai, sem nunca dar crédito a tais boatos, o segundo que a seu tempo e lugar devido apresentaria as provas, mas que o verdadeiro modo de principiar era pela expulsão dos jesuítas, devendo os benefícios que daí resultariam, exceder os das mais ricas minas que se pudessem descobrir. A única sombra de dúvida que podia restar, nascia do desaparecimento de Buenaventura, e os jesuítas, bem sabendo que haviam de suspeitá-los de ter feito desaparecer este homem, tanto fizeram até que lhe lançaram a mão. A situação em que êle agora se viu, privou-o de toda a astúcia, e até da coragem precisa para teimar na sua, a ver se lograva segunda vez escapulir-se; e neste estúpido estado de medo, romo D. Hyacintho lhe oferecesse as maiores recompensas se fazia a descoberta que prometera, negou ter nunca feito semelhante promessa, ou haver jamais dito coisa alguma a tal respeito. Era possível que o medo dos jesuítas lhe tapasse a boca. Prc-meteu-lhe o governador solenemente protegê-lo, tentando em vão todos os meios de persuasão e acoroçamento. Empregou-se então a tortura, coisa jamais sem execração se pode referir, mas em que nenhum governo escrupulizava naqueles tempos. O mais que dele se pôde arrancar foi que se jamais havia falado em minas e fortalezas, devia ter estado ébrio. «Embriaguez ou impostura, exclamou D. Hyacintho, há de custar-te vida»! e deu ordem que o enfrocassem. Intercederam os jesuítas, como exigia a boa política, e graças a essa intercessão fizeram-lhe a coisa por duzentos açoites.

81

Charlevoix, 2, 80-85

Charlevoix, 2, 91-97

Parte Cardenas para a Assunção mas tem de retroceder

Entretanto exercia Cardenas em Correntes autoridade tanto civil como eclesiástica, prova suficiente de ser por êle a maioria dos habitantes. Dali despachou o sobrinho com uma carta para o bispo de Córdova, reiterando as suas acusações contra os jesuítas, especialmente a de lavrarem minas em proveito próprio. Acusando-os também de enriquecerem Estados estrangeiros em detrimento do erário, e de condenarem milhares de pessoas ao inferno pelas doutrinas heréticas que ensinavam aos seus conversos, convidava D. Melchior, como o bispo mais antigo da província (estava então vaga a sé metropolitana) a convocar um concílio provincial, que pusesse cobro a este mal tremendo. A pertinácia com que Cardenas dirigia a este prelado suas queixas, depois dos repetidos desenganos que recebera, é um dos sintomas dessa insânia com que o seu proceder tão freqüentemente parece ter sido eivado. Respondeu Maldonado no seu tom costumado de digna e calma reprovação. Na acusação de heresia mal tocou, e quanto à das minas, tratou-a como invenção do mesmo diabo, para destruir as reduções. Muitas vezes, dizia êle, se perguntara êle a si mesmo porque canal, se tais minas existiam, poderiam os jesuítas remeter o seu ouro para países estrangeiros e hostis, e nunca o descobrira; por S. Paulo de certo que não era. Quanto ao proposto concílio provincial, não havia então na província bispos que a êle pudessem concorrer, exceto Cardenas e êle, a respeito dos quais era já sabido que jamais poderiam chegar a um acordo. Concluiu tornando a exortá-lo à caridade cristã.

Entretanto valiam-se tanto Cardenas como os seus antagonistas de toda a sua influência na Audiência Real e na Espanha, para fazerem prevalecer cada qual a sua causa. A Audiêda três vezes convidou Cardenas a comparecer perante ela em Chu-quisaca, chegando a expedir ordem para que, se recusasse obedecer, fosse banido dos domínios d’el rei, exigindo-o assim a paz da província e o serviço de Sua Majestade. Mas estava o bispo por demais seguro dos seus amigos, e era também por demais resoluto para submeter-se sossegadamente; estavam no mesmo lugar a sua força e as esperanças, e êle decidiu-se a voltar à Assunção, e tornar a disputar o campo ao governador, inculcando que antes de empreender a jornada para apresen-‘ tar-se à Audiência, precisava olhar pelos negócios da sua diocese, e nomear um vigário-geral, que fizesse as suas vezes durante a ausência. Efetivamente avançou até algumas léguas da Assunção, onde, contraindo-se, não mede o rio de largura mais dum tiro de mosquete, lugar que por isso se chama Angostura, ou Estreito. Aqui tinha o governador estabelecido um posto para dominar a navegação, e homens que tinham nas mãos os meios de se fazerem obedecer, ordenaram a Cardenas não passasse avante. Queria êle desembarcar algures, e continuar a marcha por terra, mas os seus companheiros, julgando a coisa por demais arriscada, contra vontade dele o tornaram trazer para Correntes.

Tal é a narração dos jesuítas, mas os partidistas do bispo contam mui diversa história. Durante os dois anos até agora decorridos desde a expulsão do prelado, ficara a Igreja, dizem eles, num estado de adultério espiritual. O primeiro cuidado de Hinostrosa fora fazer com que todo o mundo, em despeito do interdito, ouvisse missa e cumprisse todas as cerimônias da religião na igreja dos jesuítas, não nas que o bispo designara, e nas quais só podiam administrar-se validamente os sacramentos. Os homens tinham de obedecer a esta ordem sob pena de morte, as mulheres sob a de açoites e cadeia. Para dar peso à ameaça, todas as manhãs se erguiam, uma diante do colégio, outro no meio da praça, duas forcas, que ao cair da tarde se retiravam, não fosse o povo destruí-las de noite, mas todo o dia ali estavam com suas cordas e polés já prontas, para serem mais expeditas as execuções. Além disto obrigavam, o governador, velhos e mancebos, varões e mulheres a assinar depoimentos contra o bispo sem que ninguém soubesse de que dava testemunho. Fizeram estas medidas com que muitas pessoas fugissem para as matas, onde suportaram toda espécie de sofrimentos, abortando muitas mulheres e perdendo outras as vidas. Nem isto era tudo: asseveram os advogados do bispo que Deus castigara visivelmente a cidade e a província, por terem tolerado a injustiça que se fazia ao seu prelado ou pelo terem contrariado. Muitos dos perseguidores de Cardenas morreram morte violenta, e entre eles nove jesuítas.14 Uma só gota de chuva não caiu em todo o tempo da ausência do bispo; parecia de ferro o firmamento, exaustas as fontes, secos os riachos (coisa nunca antes vista no Paraguai), rebanhos, manadas inteiras pereciam por falta dágua, morrendo muitas criaturas humanas à sede, e muitas de fome. Des-povoou-se o país acudindo todo o mundo à cidade por causa do rio. Sentiram-se pela primeira vez terremotos, e insetos destruidores assolaram os campos. Entretanto declararam o :ribunal e o juiz metropolitanos ter sido a expulsão do bispo violenta e sacrílega, mandaram-no voltar à sua sé, ordenaram que todos lhe obedecessem como o seu legítimo prelado, depuseram Hinostrosa de seu governo, e condenaram-no a uma nulta de dez mü coroas. A Audiência Real confirmou esta >entença. Partiu pois o bispo para Assunção, e vendo-se delido na Angostura por um troço de mosqueteiros guaranis das •eduções, que os jesuítas ali haviam estacionado, e por alguns espanhóis excomungados, que o governador mandara a cooperar com eles, e aos quais os padres da companhia forneciam /inho em abundância e tudo o mais, mandou o guardião do :onvento dos Franciscanos de Correntes com uma carta a íinostrosa. Dizia a missiva que em cumprimento da sentença lo juiz metropolitano, confirmada pela Audiência Real, vi-íha ainda uma vez a tomar posse da sua igreja, absolver os excomungados, abençoar os campos, e implorar a misericórdia Jivina, para que Deus se amerceasse da aflita província, defumando sobre ela orvalho do céu. O governador rasgou a :arta, ameaçando enforcar os barqueiros, se tentassem passar ivante; os jesuítas no orgulho do seu triunfo disseram que mtes se veria voar um boi e correr atrás o Paraná de que ,-oltar Cardenas à sua sé; e o bispo, que por força teve de regressar a Correntes, embora repetidas vezes requisitasse meios ie subsistência, apenas pode obter de duas a três mü coroas im todo o tempo do seu exílio. Assim referem as coisas os idvogados do prelado.

Vilalon, § 40-51. Carrilo, § 38-48

Expira o governo de Hinostrosa

Tinha Cardenas amigos poderosos, aliás não poderia ter resistido naquele século à formidável influência dos jesuítas. Como meio de terminar a contenda com o menor escândalo possível, nomeou-o a corte bispo de Popian, mas olhando isto só como um modo honroso de tirá-lo da disputada sé, tinha êh por demais altivo o ânimo para aceitar o partido. Escreveu pois ao metropolitano e ao cabido, dizendo que a idade lhe não permitia já empreender tão longa viagem, e ao rei representou no mesmo sentido. Era que ainda esperava êle gozar do dia do triunfo, nem perdida tinha por então a coragem. Expirou o termo do governo de Hinostrosa, a quem deram por sucessor D. Diego Escobar Osório. Entendeu-se que poderia o bispe viver em paz com um governador novo; pelo menos não havia entre eles inimizades velhas, que tornassem impossível essa harmonia tão essencial à tranqüilidade pública. Na esperança de satisfazer ambas as partes por uma espécie de compromisso, resolveu a Audiência Cardenas conservasse a sua pé, mas não residisse nela, e ainda uma vez o citou para Chu-quisaca; o bispo porém, querendo só julgar obrigatória a parte da sentença que ia de acordo com os seus desejos, partiu imediatamente para a Assunção.15 Com transportes de alegria o recebeu o povo, dançando diante dele os negros ao conduzi-lo e exultante multidão para o antigo alojamento do convento dos Franciscanos. Tinha Osório recebido instruções para evitar que o bispo ou o seu partido empreendesse coisa alguma contra os jesuítas, ordem que devia ser do seu interesse observar. Três semanas se passaram durante as quais procurava o governador persuadir Cardenas a obedecer ao chamado da Audiência, e tratava este de fortificar a sua facão, preparando-se para operações ativas. Findo aquele tempo tomou posse da sua catedral. A história que Os aderentes do bispo preparavam para lhe houvessem acrescentado que a volta do prelado pôs termo a todas as calamidades físicas da província. Afirmam eles que enquanto Cardenas dizia na catedral a sua primeira missa, toldaram-se os céus, caindo no dia seguinte uma chuva branda e vivificadora; reassumiram os orvalhos o seu curso natural, tornaram a escher-se as nascentes, manando abundante a água, e foi das mais ricas a colheita. É muitas vezes difícil escolher entre o testemunho desses dois nativos, nenhum dos quais escrupulizava em matéria de falsidade, mas os fatos, documentos e probabilidades por parte dos jesuítas não os contraporem por certo os milagres que os inimigo lançaram na balança.

O clero dissidente passou-se como já antes havia feito para a igreja dos jesuítas, estabelecendo ali o seu cabido; Cardenas excomungou-os todos, interdizendo o colégio, mas eles repicaram os sinos enquanto se lançava o interdito, e continuaram em despeito dele a celebrar missas, confessar, absolver, pregar, casar e enterrar. Irritado com o proceder do bispo, declarou Osório que pois tão obstinadamente havia teimado em entrar na catedral, dela não sairia, e pôs ali uma guarda. Acudiu o provincial dos Franciscanos, e excomungou o governador, que não estando costumado a estas coisas como o seu predecessor, sujeitou-se à sentença, retirando-se. Mas como Os jesuítas o consolassem com a opinião provável de não ser válida a excomunhão, renovou êle o bloqueio, postando cinqüenta homens a cada uma das três entradas da catedral, pregou as portas, e esperou com paciência até reduzir o bispo por meio da fome. Mas ou esquecera um janela que dava para a sacristia, ou faleciam-lhe os meios de acesso a ela: por esta janela eram os sitiados abundantemente providos, e passados quinze dias ouvia-se o velho bispo cantar com voz mais forte do que ao princípio. Entretanto tinha-se a opinião pública fortemente pronunciado a favor dele, distinguindo-se especialmente as mulheres no seu zelo pela causa do prelado. Nomearam dentre s; uma procuradora, que fosse patentear à Audiência Reai os desejos de todas a tal respeito, e seguras da impunidade, levantaram contra o governador um motim mais eficaz do que poderia ser uma assuada de homens. Afinal julgou Osório indispensável contemporizar ou ceder; abriu pois as portas aceitou ou quiçá solicitou mesmo, a absolvição, e procurou dc então por diante evitar todo o comprometimento pessoal, guardando, até onde fosse possível, perfeita neutralidade entre as duas partes exasperadas.16

Medidas contra os jesuítas

1648

Morte do governador. Sucede-lhe Cardenas

1649

Os jesuítas tumultuariamente expulsos da Assunção

Charlevoix, 2. 108-9-Dito Peças Justificativas, 2, P. xxx Papel em verso

Confiscam-lhes os bens

Não tinham ainda setenta invernos quebrado consideràvelmen-te as forças corporais do bispo, nem lhe haviam esfriado o temperamento fogoso. Mal se viu outra vez solto recomeçou as operações ofensivas, marchando à frente da sua força eclesiástica a exumar o cadáver duma pessoa que, tendo sido por êle excomungada, fora ultimamente enterrada na igreja dos jesuítas. Defenderam os amigos do finado a sepultura, arrancaram-se espadas, e como Osório não quisesse sancionar este ato de indecente violência, teve o bispo de retirar-se. Em outros pontos de maior importância foi êle desgraçadamente ma’s bem sucedido. Tinham os jesuítas principiado a formar duas reduções entre os Itatines, do lado ocidental do rio, importantíssima posição, pois que estes estabelecimentos, se houvessem prosperado, teriam refreado os Guaicurus e Paraguas, tribos que cada dia se tornavam mais audazes e formidáveis. Nesta tentativa tinham Romero e alguns companheiros dele encontrado o martírio, mas os fundamentos estavam lançados, e eram belas as esperanças do futuro, quando Cardenas mandou dois dos seus eclesiásticos a substituir os missionários. Não tinham aqueles nem o zelo nem a habitidade destes; as índios suspeitaram o desígnio de reduzi-los ao sistema das encomien-das, que era provavelmente a intenção real, tornaram-se turbulentos, e ao primeiro rebne fugiram os novos pastores, abandonando as suas ovelhas que se dispersaram. Nestas mal entendidas medidas não encontrou Cardenas oposição da parte do governador, que talvez as considerasse puramente eclesiásticas. Era porém evidente que nunca a cidade ficaria tranqüila, enquanto nela existissem tais facções, e o meio óbvio de restituir-lhe o sossego, era compelir o bispo a obedecer a Audiência Real, apresentando-se perante aquele tribunal em Chu-quisaca. Afinal obtiveram os jesuítas uma qu:nta ordem da Audiência Real, autorizando-os a nomear qualquer funcionário público, que compelisse à obediência, se o bispo persistisse na sua contumácia e na sua inação o governador. Escolheram o excomungado mestre de campo Leon, mas quando este convidou os moradores da Assunção a coadjuvarem-no em nome d’el rei recusaram-se eles a operar contra o bispo. 17 Talvez que Osório sentisre agora a necessidade de cumprir o seu dever para evitar a multa de duas mil coroas, a que a Audiência o condenara em caso contrário; mas exatamente por este tempo, após curta e repentina enfermidade, veio surpreendê-lo a morte, mui a propósito para o bispo, que foi então aclamado governador e capitão-general.19

Foram imediatamente apeados todos os funcionários do partido oposto, e no segundo dia da nova adimnistração cQnvo-cou-se o povo em roda do estandarte real para executar as ordens do bispo. Conduziram-no contra o colégio. Estavam fechadas as portas, mas não apercebidos para a resistência os jesuítas; faltava-lhes o apoio das autoridades constituídas, para reunir uma força guarani escasseara o tempo, e o vulgacho era decididamente contra eles. Arrombaram as portas, e o tenen-te-general, penetrando na igreja, intimidou oficialmente ao reitor que com toda a sua comunidade deixasse sem demora a cidade, evacuando igualmente todos os estabelecimentos da companhia no Paraguai. Baldada era toda a resposta. Diaz Taílo apresentou as cartas régias da ordem, mas pouco cabedal soem fazer destas coisas facções exasperadas e plebes vitoriosas: êle e os seus irmãos foram derribados, contundidos, pisados aos pés, arrancaram-se de seus leitos os doentes, e, se ao historiador da companhia podemos dar crédito, amarrados de pés e mãos foram metidos num batelão sem remos, barqueiros nem víveres, e assim entregues à corr:nte.i9 Tinhsm eles, dizia o povo, entrado no país só com as suas sotainas e breviários, e era justo que tão pobres como haviam vndo se fossem agora.

Nomeiam-se os jesuítas dois juízes conservadores

Nomeia a Audiência um vice-governador

Charlevoix, 2, 102-4

Marcha o vice-governador contra o bispo

Para que neste indigno proceder houvesse ao menos alguma demonstração de religião, declarou-se que Os edifícios que haviam pertencido à companhia, seriam apiedes a fins religiosos, custeando-se a despesa destes e:tabdecimentos com o rendimento dos bens seqüestrados, cujo excesso iria para o tesouro real. Mas quando se açula a can-.lha contra os bens daqueles que ela odeia, todos os séculos têm testemunhado as devastações que naturalmente se seguem. O púlpito e os confessionários foram destruídos, por se terem dali, diz"a se, tantas vezes ensinado doutrinas peçonhen as, arguição tão verdadeira no seu sentido literal, quão pouco compreendida era pelos que a faziam. As peças do altar, obras dos melhores artistas espanhóis, foram arrancadas para decorar a catedral. Santo Inácio de Loiola e São Francisco Xavier for.m metamorfoseados em São Pedro e São Paulo. Uma imagem do Redentor em hábitos de jesuíta, como se dizia ter êle aparecido a D. Maria d’Escobar, foi entregue às chamas com indignação justa porém irrefletida. Despojado inteiramente o colégio, lançaram-lhe o fogo, e como não ardessem os muros, queseram os jesuítas fazer passar por milagrosa a preservação dos mesmos. Mas eram pouco peritos no seu ofício os demolidores. Não se tendo descoberto cal naquele país, havia o edifício sido feito de seixos, ou pedra bruta, e tijolos me’idos em caixilhos de madeira e cimentados com barro. De diferentes andares ou panos desta natureza se compunham a torre do colégio, e para arrazá-la, passara o povo à volta dos principais apoios compridas cordas, pelas quais se pôs a puxar, até que de cansado desistiu da empresa. Expulsos assim os contrários, fácil era ao bispo arranjar quantos atestados queria: formou-se pois segundo as prescrisções legais um processo verbal, prepararam-se e assinaram-se memoriais, e com estes documentos mandou o prelado o seu procurador Fr. Juan de Santiago y Villon jus-tificá-lo em Madri, enquanto outros agentes o defend:am perante a Audiência Real.

Pela sua parte reuniram cs jesuítas um Con elho em Córdov\ nem se viram embaraçados quanto ao que deviam fazer. Como outras ordens religiosas gozavam eles dum privilégio, cuja existência só de per si prova vício de administração nos países onde é admitido como corretivo necessário. Quando sofriam alguma injustiça séria, era-lhes pe mítico e’eger um juiz conservador que tomasse conhecimento do caso, proferindo sentença em nome do papa, como delegado seu em virtude dessa mesma eleição; a única coisa que se requeria era qus os tribunais superiores reconhecessem a causa como da alçada deste juiz e aprovassem a escolha da pessoa. Que o caso carecia de remédio imediato, não podia entrar em dúvida, nem menos certo era ser exatamente para emergências como esta que havia sido concedido o privilégio: mas onde andava tão derramado o espírito de partido, alguma dificuldade se dava cm designar indivíduo contra quem nenhuma exceção pudesse pôr-se. Nomeou-se em primero lugar Peralta, o deão da sé de Córdova, que se escusou quanto à parte que dissesse pessoalmente respeito ao bispo, por ter também razões de queixa contra êle, consentindo porém ser juiz nas causas dos cúmplices do prelado, pelo que fo: designado para a parte mais importante do processo Pedro Nolasco, superior da ordem das Mercês. Aprovou a Audiência20 a escolha, e considerando ou que era nula a eleição do bispo para governador (negando os jesuítas a existência duma carta régia que conferisse ao povo semelhante direito), ou que o comportamento subseqüente do prelado provara a incapacidade deste, para se lhe confiar o poder, nomeou governador interino D. André Garavito de Leon, um dos seus próprios membros, ordenando ao mestre de campo Sebastião de Leon que servisse de vice-governador até à chegada daquele, e reunisse uma força armada, com que reintegrasse os jesuítas na posse dos seus bens na Assunção, reduzidos ao seu dever os moradores da cidade.

Retira-se o mestre de campo Leon para a província mal o partido do bispo principiara a preponderar decididamente. Pouco incomodava as excomunhões, e como semnre arremetera co rajosamente contra Cardenas, tinham os jesuítas provido como lhe cumpria, às necessidades deles e da sua família na desgraça. A êle se iam agora reunir os exilados e os fugitivos, entre os quais Hinostrosa e os cónegos dissidentes. Trouxeram-se das reduções quatro ml Guaranis, notando-se entre os jesuítas que os comandavam, Diaz Taño e o padre Juan Antonio Man-quiano, que havia sido rudemente tratado pelo bispo e a Sua corja.21 A frente desta força avançou Leon para S. Lorenzo, í, ‘ três léguas da Assunção, e fazendo ali alto numa das fazendas dos jesuítas, notificou à municipalidade a sua nomeação, e demorou-se três dias, durante os quais vieram da cidade alguns partidários incorporar-se às suas tropas. Preparando-se para as hostilidades, convocou o bispo em nome do rei o país a reunir-se à volta do seu estandarte. Poucos acudiram ao seu chamado, mas sempre se juntou alguma gente, e, criaturas deles, responderam os magistrados a Leon, que se vinha como vice-governador, devia rodear-se dum séquito conveniente, fazer retirar o exército e apresentar os seus papéis, de cuja existência tinha razão por desconfiar quem o visse avançar à testa haviam de arruinar a cidade com todos os seus moradores. Era duma força armada de índios, que, inimigos dos espanhóis., tarde para recear este perigo, se perigo se dava; tinham Cardenas e os seus posto o exemplo de governar pelo poder das armas, nem Leon podia exercer o cargo q e lhe fora confiado, senão restabelecendo à força os que pela força haviam sido expulsos. Saiu a gente do bispo, composta duns trezentos cavaleiros e infantes e quatrocentos índios, contra o exército ex comungado, enquanto o prelado expunha na catedral o sacramento, prostrando-se em oração ante o altar. A inferioridade do número do seu lado era compensada talvez pela maior proporção de espanhóis, muitos dos quais tinham inteira fé na justiça da casa. Tentou cada parcialidade o efeito dos protestos contra a outra, antes de travada a ação; coube a primeira vantagem à força episcopal, que não acostumados ao uso das armas de fogo, voltaram os Gua-anis o rosto ao chegarem a mecha ao ouvido, com receio das próprias esp’ngardas.22 Mas tinham eles à frente um jesuíta flamenga, Fr. Luiz Arnote, excelente soldado a cujas manobras se deveu a vitória. Vinte e quatro espanhóis, alguns pertencentes às melhores famílias do Paraguai, caíram por parte do bispo.23 Entrou então Leon sem mais oposição na cidade, onde se devemos dar crédito ao historiador dos jesuítas, cessaram logo todos os males e toda a resistência; mas os inimigos deles asseveram terem cometido grandes excessos os Guaranis.24 Perdida a batalha, procurcu Cardenas ainda manter o seu posto na catedral com o clero e alguns partidistas, refugiando-se ali também algumas mulheres. Sustentaram um bloqueio de onze dias, durante os quais se tentou debalde por meio do fumo obrigá-lo a sair: Leon foi achá-lo de pontifical com o sacramento em mãos. Sem perda de tempo o embarcaram então, mandando-o pelo rio abaixo, que tomasse o caminho que mais lhe conviesse, para a Audiência Real.

Charlevoix, 2 114-117. Carrillo. § 115-57

Dão os juizes conservadores a sua sentença

1650

Restituíram-se aos jesuítas dos s-us bens move’s, o que foi possível reaver, empossados os padres outra vez do seu colégio, cuja torre, que tinha sido puxada fora da perpendiculai, foi novamente aprumada. . . por especial graça do céu, como pretendem eles inculcar. . . esforçando-se Leon tanto em reparar os danos sofridos pelo edifício, que o geral da companhia lhe conferiu o título de restaurador do colégo com os mesmos privilégios do fundador primitivo, recompensa cujo valor espiritual excedia todo o preço. Afinal proferiram os dois juízes conservadores a sua sentença. Fr. Nolasco declarou c bispo réu de ter difamado os jesuítas acusando-os de crimes enormes, como ensinar doutrinas heréticas aos índios confiados aos seus cuidados, revelar os segredos da confissão, e forjar reais provisões; e absolvendo os jesuítas de todas estas acusações, pronunciou sentença privatória contra o bispo, condenando-o à reclusão num convento, e suspendendo-o de dizer a missa até que a sé apostólica decidiss? o contrário. Excomungou-o por ter apreendido duas jangadas das reduções que haviam ido à Assunção comprar gêneros, retendo e.cravos os Guaranis que as tripulavam, e condenou-o a indenizações peta imagem do Cristo vestido de jesuíta que havia sido destruída, e por todos os danos que a companhia sofrera no seu colég‘0 e demais propriedades. Os principais cúmplices do bispo foram condenados por outro juiz conservador, Peralta, um a servir quatro anos no Chile à sua custa, outra a metade deste tempo, atenta a contumác:a dos dois; outros, cuja culpa era menor, mas que persistiam contumazes, foram multados e excomungados: aos que se submeteram perdocu-se a pena. Ga-ravito à sua chegada condenou a multas pecuniárias os magistrados, que tinham seguido as partes do bispo, mandando arrancar dos registros públicos e queimar na praça os atos emanados da usurpada autoridade.

Contudo tão favorável era ainda ao bispo a op nião pública, que Sebastião de Leon ao passar o governo sentia a necessidade de retirar-se da Assunção, mal podendo achar na província asilo seguro. E quando o bispo, obedecendo afinal às repetidas intimações da Audiência Real, se apresentou em Chu quisaca, pareceu um triunfo a sua entrada naquela cidade: todos os sinos repicavam exceto os do colégio dos jesuítas, e os amigos fizeram sair uma tropa de soldados índios a recebê-lo com uma banda de música. A rua em que ficava o convento dos Franciscanos, estava ornada com colchas de seda, erguendo-se à entrada um arco triunfal, guarnecido de flores artificiais, obra das freiras, e de distância em distância flu tuavam bandeiras. Parte dos frades minoristas o aguardavam com o crucifixo e tochas acesas para conduzir o bispo à sua igreja; o resto o recebeu debaixo de pálio, e cantou-se um Te-Deum.25 De nada valeram a bem da causa de Cardenas esses esforços dos seus partidistas. Contava êle mais de setenta anos de idade, e ainda que não intervissem senão as delongas ordinárias da lei, pouca esperança podia haver de viver êle até chegar a decidir-se uma causa, que devia ser debatida em Madri e em Roma. Dizem os seus advogados que êle de bom grado teria ido à Europa para celebrar o andamento do processo, se não o tivesse impedido as intrigas dos jesuítas: estes pelo contrário dizem que, aconselhando-se-lhe este passo, reputara êle o conselho cilada dos inimigos para arredá-lo do país, o que é por certo a mais provável das duas asserções. Permitiram-lhe nomear um provedor para a sua igreja, ou antes aprovar um que o metropolitano recomendara. Neste estado continuou a diocese por quinze anos até que o rei, como cansado de aguardar o passamento de quem parecia dotado de vida patriarcal, nomeou Cardenas para a sé de Santa Cruz de la Sierra, provendo logo a da Assunção, como vaga por transferência.

Peças justificativas, P. x, XII. Charlevoix, T. 2

1651

Sorte final de Cardenas

17 de março

 

Acusação de heresia contra os jesuítas

Se a questão relativa à consagração de Cardenas chegou jamais a ser decidida, é o que não se pode averiguar de documento algum impresso ou acessível: era sobre este ponto que versava o processo. Vingou-se êle dos jesuítas, que lhe tinham suscitado esta controvérsia, envolvendo-o em discussões sobre assunto mais curioso, quando não mais importante. Acusou-os de terem introduzido no catecismo guarani monstruosas heresias sobre a geração do Verbo divino, a Imaculada Conceição de Maria, e o nome soberano do mesmo Deus. A outra acusação de que tratavam eles de entregar aos portugueses os seus cem mil vassalos, parece ter sido tratada com o desprezo que merecia, mas esta reputou-se digna de séria investigação, e do palácio de Buen Retiro se expediu ordem ao arcebispo de Chuquisaca, que convocasse uma reunião dos mais graves e abalizados teólogos versados na língua guarani, submetendo ao juízo deles as alegadas heresias. Convidado a formular distintamente as suas arguições, apresentou-as o bispo com a habitual violência. Duas referiam-se às palavras de que se queixava, eram, dizia êle, piores ainda. Neste catecismo se designava Deus pela palavra Tupã, e Deus Padre pela de Tuba, ambos nomes de espíritos infernais, e como tais apontados nas atas dum concílio reunido em Roma pelo papa Zacharias no ano de 45, e no qual foi examinada e condenada a oração usada por um certo herege, chamado Aldeberto, achando-se estes dois entre os nomes de oito espíritos que êle invocava, e que todos eram nomes de diabos, exceto Miguel, que, como declarou o concílio, havia sido inserido para fazer passar os outros. Acrescentou o bispo, que, se não houvesse trabalhado por extirpar estas heresias, teria sido réu do mesmo crime; que tinha a este respeito dirigido memoriais à inquisição de Lima; que proibira na Assunção e todas as suas cercanias proferir estes horríveis termos; que por isto lhe haviam suscitado tantas perseguições os dois demônios cujos proscrevera26; e jurava mil vezes pelo Deus Trino, pelo Verbo Encarnado, pelo sinal da Cruz, e pela sua própria consagração, que eram estas coisas tais quais êie as expunha, mil vezes denunciava estes hereges à sua Majestade, como defensor e coluna da fé, e ao santo ofício, e protestou que outras tantas queria sacrificar a própria vida antes do que ouvir pronunciar uma só destas blasfêmias contra o Deus Supremo, a Encarnação do Verbo e a pureza da Virgem Santíssima.

Teve a exame lugar na Assunção, por não haver com quem formar o conselho em Chuquisaca, onde se não falava Guarani. Convocaram-se dez pessoas, oito das quais eram teólogos, e as outras duas militares, escolhidos pela sua perfeita proficiência na língua. Um dos indivíduos para isto nomeado foi o provincial dos jesuítas, que, escusando-se de comparecer para que não o considerassem parte interessada, mandou todavia uma memória justificada, que foi lida em sessão. Dizia êle que o catequismo em questão havia sido traduzido para o guarani pelo venerável padre Fr. Luiz de Bolanos, frade franciscano;. . . talvez que se Cardenas tivesse sabido desta circunstância, jamais houvesse buscado heresias em tal;. . . que tinha sido examinado e aprovado duas vezes por um sínodo diocesano, ordenando-se em virtude da santa obediência e sob pena de excomunhão maior o uso dele e não doutro a todos os sacerdotes que oficiassem entre os índios; além disto ignorava o bispo inteiramente a língua, podendo facilmente ter sido iludido pelos maliciosos. Quanto às palavras Tayra e Membira eram estritamente rigorosos e mui decorosas, sendo as mais autorizadas expressões da sagrada Escritura suscetíveis de se lhe ligar a mesma idéia falsa que se queria unir a estas. No mais curioso argumento a respeito das palavras Tubá e Tupá, não era exato o bispo, pois que os nomes dos dois espíritos infernais da oração de Aldeberto, condenada pelo papa Zacharias, eram Tubuel e Tubuas.27 Observaram alguns membros desta junta, que onde o bispo havia proibido o uso do nome guarani que significa Deus28, substi-tuindo-lhe a palavra espanhola, nenhum escrúpulo faziam os índios de tomar esse nome em vão, não estando acostumados a proferidos com deferência, como sucedia a respeito da designação tirada da sua própria língua maternal. O resultado foi aprovar-se mais uma vez o catequ’smo, resolvendo-se definitivamente a questão.

Peças relavas à junta. Char.cvoix, 2, I. xci

Nova balela de minas no Uruguai

Charlevoix, 2, 145

 

Não puderam os jesuítas justificar-se tão plenamente da acusação relativa às minas que os seus inimigos de contínuo renovavam e a que tanto os governantes como o povo miúdo estavam sempre prontos a dar crédito. Requereram a Garavito que, antes de acabar-se-lhe o governo, visitasse as reduções, desenganando-se a si e ao público por meio de segundo exame das localidades: mas Garavito estava por demais convencido da falsidade destes boatos para empreender tão incômoda e penosa jornada. Foi um índio do Jaguarão que veio fazer reviver o boato, declarando haver visto as minas, ficarem perto da redução da Conceição no Uruguai, e serem extremamente ricas, e chegando a apresentar uma planta delas. Correu por alguns anos esta fama, até qué por fim tão geral se tornou, que foi preciso nomear um novo visitadoi, D. Blazquez de Valverde, para ir averiguar o fato. Repetiu-se a história da primeira impostura; o sujeito procurou escapulir-se, foi de novo apanhado, e, ameaçado com a tortura, confessou ser tudo invenção, mas acusou a seu amo, capitão espanhol ao serviço do bispo, de lhe haverem ensinado a lição. Escapou este oficial ao castigo, morrendo a tempo. O agente dele porém foi reconduzido para a Assunção, e ali montado num burro açoitado pelas ruas da cidade, cerimônia cujo remate seria a forca, se os jesuítas intervindo o não houvessem livrado da parte capital da sua sentença. Mal porém se haviam refutado os boatos a respeito de minas de ouro, quando se espalhou outro de possuírem os padres da companhia uma de prata. Um índio deu a um religioso da Assunção um pedaço deste metal, dizendo havê-lo trazido do Uruguai, onde os jesuítas lavraram uma mina. O religioso mostrou-o do púlpito e os mesmos amigos dos jesuítas ficaram confusos ao ver esta prova aparente, até que se descobriu ter sido a amostra arrancada do pedestal auma virgem, que se supunha vinda do Peru.29

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