NATAL – Ensaio de Washington Irving

Washington Irving (Nova Iorque, 3 de abril de 1783 – 28 de novembro de 1859)

NATAL

Mas o velho, o velho e bom Natal acabou? Além do cabelo da sua cabeça grisalha e da barba, nada resta? Pois então isso me basta, já que não posso obter mais.

(Gritos de Natal)

NA Inglaterra, nada exerce tão delicioso encanto sobre a minha imaginação como a conservação dos costumes dos dias santificados e dos jogos rurais dos tempos antigos. Evocam os quadros que a minha fantasia costumava traçar na manhã primaveril da existência, quando só conhecia o mundo através de livros e acreditava-o ser tudo quanto os poetas pintavam. E trazem consigo o sabor daqueles dias de antanho, nos quais, talvez com igual falácia, posso pensar que o mundo era mais natural, sociável e feliz do que actualmente.

Lastimo declarar que estão diariamente ficando mais e mais alquebrados e gradativamente gastos pelo tempo, porém ainda mais obliterados pelos costumes actuais. Assemelham-se àquelas pitorescas ruínas de arquitectura gótica que costumamos ver esfarinhando-se em vários pontos do país, em parte dilapidadas pela acção do tempo e, em parte, perdidas com as alterações e acréscimos posteriores.

A poesia, contudo, apega-se muito gostosamente aos jogos rurais e às festas dos dias santificados, dos quais tem retirado tantos temas — como a hera enrosca sua exuberante folhagem em volta dos arcos góticos e torres em ruínas, recompensando, com gratidão, o apoio destas, unindo os destroços vacilantes e, por assim dizer, embalsamando-os em verdura.

Dentre todas as festas antigas, contudo, a de Natal desperta-me as mais poderosas e cordiais associações. Há um tom de solene e sagrado sentimento que se mescla com jovialidade e eleva o espírito a um estado de santificada ternura. Os ofícios da igreja são, nessa época, extremamente ternos e extasiantes. Baseiam-se na longa história da origem da nossa fé e nas cenas pastorais que se seguiram à Revelação. Gradativamente, aumentaram de fervor e de ênfase durante a estação do Advento até irromperem em pleno jubileu na madrugada que trouxe paz e boa vontade aos homens.

Não conheço maior efeito da música sobre os sentimentos morais do que ouvir o coro pleno e o som do órgão, executando uma antífona de Natal numa catedral e enchendo cada canto da imensa nave de harmonia triunfal.

É também um belo acaso o festival que comemora a revelação da religião coincidir com a estação própria às reuniões de parentes e reaproximação dos grupos de corações homogéneos, os quais as preocupações, os prazeres e as desventuras do inundo continuamente obrigam à separação; à volta dos filhos de uma família, os quais foram aventurar a sorte e muito se afastaram, ora mais uma vez reunidos sob o. tecto paternal, aquele sítio acolhedor de afectos, onde se tornam crianças amadas novamente.

Há algo na própria estação do ano que dá encanto às festividades do Natale Noutras ocasiões, haurimos uma grande parte dos nossos prazeres da simples beleza da natureza. Os nossos sentidos saltam e se dissipam no panorama de sol e nós "vivemos fora e em toda a parte". O canto do pássaro, o murmúrio do riacho, a fragrância aromática da Primavera, a voluptuosidade branda do Verão, a pompa áurea do Outono, a terra sob seu manto de verde refrescante e o céu com seu delicioso azul escuro e suas nuvens magníficas — tudo nos enche de um deleite delicioso mas indefinível, e aderimos ao festival por meio das simples sensações.

Mas nos rigores do Inverno, quando a natureza se encontra despojada de todos os seus encantos, envolta na sua mortalha de neve, nos volvemos para os nossos prazeres de origem moral. A melancolia e desolação do panorama, os dias curtos e sombrios e as noites escuras, enquanto barram os nossos passos impedem também os nossos sentidos de se expandirem em derredor e mais nos predispõem para os prazeres do convívio social. Nossos pensamentos são mais concentrados, nossa afabilidade, mais acentuada. Apreciamos melhor o encanto da companhia de outrem e, para nos regalarmos, dependemos mais da aproximação alheia. Há maior efusão de corações. Sacamos os nossos prazeres dos poços profundos de amor que jazem nos recessos silentes dos nossos peitos, os quais, quando solicitados, transudam o genuíno fautor da felicidade doméstica. A escuridão profunda do exterior faz dilatar-se o coração, ao entrarmos no lar, cheio da claridade e do aquecimento da lareira. As brasas rubras difundem um verão e raios solares pela sala, e alumia todas as faces numa afável recepção. Onde a hospitalidade se expande em mais largo e cordial sorriso — onde os olhares furtivos de amor são mais eloquentes do que ao pé da lareira, no Inverno? E quando a rajada surda do vento hibernal projecta-se pelo corredor, bate a porta distante, uiva pelas janelas e desce pela chaminé, que existe mais delicioso que o sentimento de segurança e abrigo com que olhamos em derredor o conforto da sala e a cena de alegria doméstica?

Os Ingleses, devido à grande influência dos hábitos rurais sobre todas as classes sociais, sempre apreciaram essas festas e dias santificados, que interrompem agradavelmente a quietude da vida do campo, e observavam, com particular devoção, nos tempos mais remotos, os ritos sociais e religiosos do Natal. E é sugestivo ler-se as memórias que, embora sem brilho, alguns antiquários nos legaram, das brincadeiras esdrúxulas, dos espectáculos burlescos, do completo abandono à alegria e extrema cordialidade em meio às quais se celebravam as festas. Dir-se-ia que todas as portas se abriam e, igualmente, todos os corações. Uniam o camponês e o

fidalgo e misturavam todas as camadas sociais num caudal quente e generoso de bondade e contentamento. As velhas galerias dos castelos e as casas de campo ecoavam com a harpa e as cantigas de Natal e seus sólidos pisos gemiam sob o peso da hospitalidade. Até as cabanas mais humildes saudavam a data festiva com decorações verdes de louros e azevinho — o fogo, exuberante e vivo, gerava seus raios através das grades, convidando os transeuntes a abrirem a porta e entrarem para aderirem à palestra, bem unidos em torno da lareira, passando a longa noite com divertimentos lendários e contando os velhíssimos contos de Natal.

Um dos menos agradáveis efeitos do refinamento moderno é a destruição dos costumes cordiais dos velhos dias santificados. Eliminou completamente as expansões d’alma e o conforto espiritual desses adornos da vida e aplainou a sociedade, é verdade, que ficou mais lisa e polida mas com uma superfície menos característica. Muitos dos jogos e dos cerimoniais do Natal desapareceram inteiramente e tornaram-se assunto de especulação e disputa entre os comentadores. Floresceram em épocas cheias de espírito e vigor, quando os homens gozavam a vida rudemente, mas sincera e ardorosamente; tempos selvagens e pitorescos que ofereceram à poesia seus melhores motivos, e ao drama a mais atraente variedade de caracteres e costumes. O mundo tem-se tornado mais mundano. Há maior dissipação e menor alegria. O prazer expandiu-se num regato mais largo, porém mais raso, e abandonou muitos daqueles canais profundos e calmos onde manava suavemente no peito sereno da vida do lar. A sociedade adquiriu um tom mais brilhante e elegante, mas perdeu muitas das suas fortes peculiaridades, seus sentimentos simples, seu prazer do convívio ao pé da lareira.

Os costumes tradicionais dessa época áurea, sua hospitalidade feudal e libações à larga desapareceram com os castelos baronais e com as casas de campo sumptuosas nos quais se celebravam. Conciliaram-se com os corredores sombrios, a galeria vasta de carvalho e a sala atapetada, mas são irreconciliáveis com os salões pomposos de luz e as salas de estar adornadas das modernas vilas.

Cerceado embora, como se encontra, em suas honras antigas e festivas, o Natal é ainda uma data de grande vibração na Inglaterra. É confortante observarmos aquele sentimento doméstico, que ocupa tão poderoso espaço nos corações ingleses, elevado a uma potência ainda mais alta. Os preparativos que se fazem por toda parte para a recepção que deverá unir novamente amigos e parentes; os presentes de regozijo passando de mão em mão — esses sinais de consideração e estímulo e de sentimentos de bondade; as sempre–vivas espalhadas pelas casas e igrejas, emblemas de paz e contentamento: tudo isso é sumamente agradável nas reuniões amáveis, da máxima cordialidade. Até o ruído da música dos criados irrompe em meio a uma noite de vigília, revestido de perfeita harmonia. Quando por ele fui acordado naquela hora silente e solene, "quando o sono profundo cai sobre o homem", escutei-o com especial deleite e, fazendo-lhe associação com a data sagrada e feliz, quase o imaginei outro coro celestial anunciando paz e boa vontade entre os homens.

Como a imaginação transforma tudo em melodia e beleza, quando tangida por essas influências morais! O próprio cantar do galo, ouvido às vezes no profundo silêncio da noite, "para tranquilidade de suas companheiras emplumadas", foi considerado pelo povo em geral como anúncio da aproximação da festa sagrada.

Dizem que sempre à chegada daquela madrugada
Quando se celebrou o nascimento do Salvador,
Essa ave da alvorada canta toda a noite;
E então, dizem, nenhum espírito ousa sair,
As noites são saudáveis — nenhum planeta gira,
Nenhuma fada encanta, as bruxas não podem enfeitiçar,
Tão sagrado e tão gracioso é o tempo.

Em meio às gerais expressões de felicidade, às expansões de espírito e troca de afeições, que dominam nesse período, quem poderá ficar insensível? É com efeito a data de regeneração dos sentimentos, a data de cordialidade, não apenas o fogo da hospitalidade na sala, mas a flama genial da caridade no coração.

Também vem a lume a cena do primeiro amor, fresca na memória, d’além do desperdício estéril dos anos. E a ideia do lar, carregado com a fragrância da alegria da vida em família, reanima o espírito combalido, como a brisa árabe às vezes conduz o frescor dos campos distantes aos cansados peregrinos no deserto.

Estranho e itinerante na terra, como sou — embora não partilhe do aconchego de nenhuma lareira familiar, nenhum lar me abra as portas, nenhum abraço fraternal me admita em casa — ainda assim sinto a influência do dia penetrando na minha alma, partindo dos olhares felizes dos que me cercam. Em verdade, a felicidade é reflexiva como a luz dos céus, e todo semblante inundado de sorrisos e aceso de excitamento inocente é um espelho a transmitir aos outros os raios de uma benevolência suprema e sempre actuante.

Os que podem esquivar-se grosseiramente de contemplar a felicidade dos seus semelhantes e são capazes de retirar-se, tristes e amargurados, a uma solidão, quando tudo em derredor é jovial e feliz, podem ter seus momentos de forte excitação e de exultação introspectiva, mas carecem dos sentimentos sociais que constituem o encanto de um feliz Natal.

Fonte: Ensaístas Americanos, Clássicos Jackson. Tradução de Sarmento de Beires e José Duarte.

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