A FORCA E O DIABO – conto mexicano antigo

México

Neste conto, que o povo faz passar de geração a geração, vemos que também no México a região do lendário sofre, antes de tudo, a imposição do horror ao crime, das angústias do remorso, e do castigo final.

A FORCA E O DIABO

QUANDO o cavalheiro espanhol Don Carlos Orazábal chegou ao México, — e isso se passou há muitos e muitos anos, — instalou-se numa casa grande e antiga,

encravada em uma das ruelas mais estreitas e somarias da cidade. Uma rua sem vizinhança, e pela qual ninguém passava durante todo o dia. Aquilo despertou a curiosidade dos habitantes da cidade, que de início olhavam o espanhol com receio e desconfiança. Depressa, porém, convenceram-se todos que Don Carlos era um homem de bem, e, apesar da atmosfera de mistério que o envolvia e da vida retraída que levava, completamente inofensivo. Souberam que ele se dedicava à compra e venda de jóias, e que para isso fazia viagens freqüentes às povoações circunvizinhas.

Fazia já um ano que o cavalheiro espanhol estava no México, quando um domingo, ao sair da igreja de Santa Maria, em vez de voltar imediatamente para sua casa, como era de seu costume, dirigiu-se a dona Leonor — viúva distinta e belíssima — e começou a conversar com ela. Todos ardiam em desejo de saber que teria Don Carlos para dizer à viúva, e no dia seguinte aquela curiosidade ficou satisfeita, quando se soube que a senhora e o espanhol iam casar-se.

O casamento foi realizado caladamente, e dona Leonor passou a morar em sua nova casa, a lôbrega mansão de seu segundo marido. Aquele casal era feliz. Dona Leonor ia à missa todas as manhãs, transbordante de simpatia e sempre muitíssimo alegre, tendo apenas palavras de elogio para o marido, que, segundo ela, era o homem mais cavalheiresco e bondoso do mundo.

Assim se foi passando o tempo, e Don Carlos começou a mostrar-se impaciente para ter um filho. Freqüentemente interrogava a esposa a tal respeito: de início carinhosamente, depois com frieza, e, mais tarde, com rancor. O espanhol desejava ardentemente ter um filho, e o amor que sentia por sua esposa já começava a não ser o suficiente para encher-lhe a vida. Quando os anos se passaram, com os esposos ainda sem descendência, já se criara entre eles um fosso de hostilidade e constrangimento.

Don Carlos mudou de gênio, tornou-se azedo, e por qualquer coisa se enfurecia. Quando saía para viajar prolongava mais sua ausência, e ao regressar, sendo recebido com frieza por sua mulher, chegava a sentir por ela autêntico ódio.

Um dia, achando-se Don Carlos numa hospedaria de uma povoação vizinha, onde costumava ir para tratar de negócios, entregaram-lhe uma carta. Abriu-a, e terrível foi sua surpresa, ao ver que se tratava de um anônimo e lhe dizia que sua esposa, durante sua ausência, enganava-o. Mal acabou, de ler, Don Carlos partiu rapidamente para a sua cidade, dirigindo-se, como uma fúria, para sua casa.

Ali chegando, bateu fortemente à porta. Don Carlos, sem cumprimentar sua mulher, entrou na mansão e começou a revistar tudo. Dona Leonor perguntou-lhe qual a razão de semelhante comportamento, mas não obteve resposta.

Na manhã seguinte, tornou êle a viajar, sem ter feito mais perguntas, temeroso de que aquela carta anônima fosse falsa e sua esposa estivesse limpa de qualquer culpa.

Dois dias depois, achando-se Don Carlos na pousada de outra povoação, recebeu nova carta anônima. Esta assim dizia: "Tua mulher é esperta e sabe fingir muito bem, mas podes estar certo de que ela te engana". Cego de cólera, Don Carlos regressou correndo à cidade. Uma vez em sua casa, repetiu-se exatamente a cena de dois dias antes, somente, agora, ante a estupefação de sua esposa, Don Carlos, agarrando-a por ambos os braços, exigiu-lhe, aos gritos, que confessasse sua falta. Houve uma luta feroz entre ambos, durante a qual as imprecações do homem se misturavam ao pranto de sua esposa, e esta jurou, uma e mil vezes, que nada de mau havia feito na ausência dele. Don Carlos não se deu por muito satisfeito, e decidiu adiar a viagem, para ficar vigiando a mulher.

Assim viveu o casal durante alguns dias, em meio a uma violência sufocante, quase sem trocar palavra, e convertida, enfim, sua mútua companhia, num inferno verdadeiro. Don Carlos observava a todo o momento os olhos da esposa, e esta os desviava, então, nervosa, mostrando-se permanentemente estonteada e inquieta.

Aquele estado de ânimo convenceu Don Carlos de que sua mulher o enganara, de que ela tinha um amante.

Uma noite, enquanto sua esposa fazia a ceia, e êle estava sentado diante da lareira, pensava Don Carlos em quem poderia ser o amante de dona Leonor. Observava o crepitar das chamas, e disse consigo mesmo que daria sua alma ao diabo, só pelo prazer de matar quem ultrajava sua honra. Mal acabara de manter tal idéia em sua mente, por alguns instantes, e eis quando nas chamas da lareira aparece o diabo.

— Carlos, — disse-lhe êle, — se queres agarrar aquele que te ofende, sai amanhã de viagem, e de noite regressa, antes das onze horas. Esconde-te na esquina de tua rua, e, aquele que vejas vir, esse é. Se me dás tua alma, eu farei com que êle apareça amanhã por aqui, e que ninguém descubra a sua morte…

Don Carlos, depois da momentânea surpresa que a aparição lhe havia produzido, aceitou o trato, e o demônio desapareceu.

Na noite seguinte, Don Carlos esperava, emboscado na esquina escura de sua ma. Onze horas iam soar quando passos foram ouvidos. O vingativo cavalheiro, com o ânimo

em suspenso, tirou de entre as dobras de sua capa um punhal bem afiado, e esperou.

No fundo da rua divisava-se a figura de um homem. Don Carlos meteu-se mais para as sombras, e quando o homem se aproximou, atirou-se sobre êle e, sem mais nada aguardar, assentou-lhe terrível punhalada em pleno peito, matando-o instantaneamente. Então, carregou o corpo, e atirou-o a um fosso que havia ali perto. O diabo tornou a aparecer-lhe, dessa vez dentro de uma nuvem de enxofre, e rindo, com espantosas gargalhadas.

— Caíste na armadilha — disse êle. — O homem que mataste nada tinha a ver com tua esposa. Tratava-se, apenas, de um desgraçado, cuja morte, nesta noite, me era muito conveniente, a fim de poder levá-lo para o inferno.

Furioso, Don Carlos tentou agredir o diabo com sua faca, mas êle saltou de um lado para o outro, até que o agressor se sentisse completamente esgotado.

— É inútil que te enfureças — disse Satanás. — O que aconteceu hoje foi apenas uma pequena peça que eu te preguei, mas tenho um trato contigo, e hei de cumpri-lo. Amanhã, torna a ficar no lugar indicado, e juro que acabarás com o homem que detestas. Podes fiar-te na minha palavra, pois é tua alma que procuro angariar.

E, tendo dito isso, desapareceu.

Na noite seguinte, de novo Don Carlos esperava febrilmente a chegada do homem que o enganava. Às onze horas, a figura de um homem apareceu, e quando passava a seu lado, êle saiu-lhe ao encontro, cravando-lhe o punhal no coração. O homem tombou, e Don Carlos quis ver-lhe o rosto. Ao contemplá-lo, não pôde conter um grito de espanto: tratava-se de seu cunhado, do irmão de sua mulher! Fora novamente enganado! E ante sua desesperação, ouviu de novo o riso sarcástico do diabo, embora dessa vez não pudesse vê-lo.

Don Carlos, realmente transtornado, começou a sentir remorsos terríveis. Ninguém o havia acusado daquelas mortes, — nesse ponto Satanás tinha cumprido sua palavra, — mas a consciência não o deixava descansar um só instante, e, sem mais poder resistir, foi ter com Frade Ricardo.

Era este último um frade velho, com fama de sábio e extravagante, que vivia sozinho num eremitério, no cume de uma pequena colina. Don Carlos, cheio de remorsos, confessou-lhe seus terríveis pecados, e o frade lhe disse que não o absolveria de todos eles se não cumprisse penitência especial, que consistia em ir, durante três noites consecutivas, às onze horas, para junto da forca, e ali rezar um rosário pela alma dos dois homens que tinha assassinado.

Assim prometeu fazer Don Carlos.

Na primeira noite o espanhol já se sentiu constrangido junto da forca, mas rezou seu rosário. Ao terminá-lo, uma voz surgiu das trevas da noite: "Três Ave-Marias pela alma de Don Carlos". Este, atemorizado, cumpriu a misteriosa ordem, rezando as três Ave-Marias.

Na manhã seguinte contou a Frei Ricardo o que se passara, e o religioso disse-lhe que continuasse a penitência, sem falta. Assim o fêz Don Carlos, e naquela noite, ao chegar junto da forca, viu ao lado dela um vulto negro e comprido. Era um ataúde. Don Carlos ficou rezando o rosário, mais pelo fato do terror embargar-lhe a fuga do que por outra coisa. Depois de o ter rezado, a voz soou novamente, e o atemorizado espanhol rezou de novo as três Ave-Marias.

Quando contou tudo a Frei Ricardo, o religioso deu de ombros, e, sorrindo misteriosamente, advertiu-lhe que não poderia absolvê-lo se não fosse até o fim da penitência.

Naquela noite — a última em que devia rezar o rosário junto da forca — Don Carlos chegou, tremendo, ao lugar. Ajoelhou-se, como sempre, e observou que ali estava o ataúde, mas dessa vez aberto… Rezou seu rosário, sempre tremendo. Quando terminou, ouviu a voz: "Outro rosário pela alma de Don Carlos". O espanhol, assustado, recomeçou as orações…

No dia seguinte encontraram Don Carlos enforcado, e a seu lado o ataúde aberto. Ninguém jamais soube como aquilo veio a acontecer. Uns dizem que o homem, tomado de terror, se suicidara. Outros, que foi o demônio, irritado com o arrependimento do cavalheiro. Outros, — e, enfim, isso é o mais possível, — que foram uns anjos, que procederam assim para que a remissão de Don Carlos fosse completa e para que a justiça não se deixasse de cumprir, em relação a seus crimes. Também nunca se soube se eram certas as acusações feitas à esposa do espanhol.

O caso é que, até hoje, quantos passam pelo lugar onde se erguia a forca, ou pela rua onde existiu a casa dos dois esposos, sentem um estremecimento de horror.

Fonte: Maravilhas do conto popular. Adaptação de Nair Lacerda. Cultrix, 1960.


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