EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS DOS ÁRABES

Gustave Le Bon

A Civilização árabe (1884) – volume V

Capítulo IV

CIENCIAS GEOGRÁFICAS

I

EXPLORAÇÕES GEOGRÁFICAS DOS ÁRABES

Os árabes sempre foram intrépidos viajantes; as distâncias jamais embaraçaram o árabe, que ainda hoje se dirige a Meca dos pontos mais distantes, e os europeus que com tanta dificuldade alcançam o interior da África, deparam freqüentemente com caravanas de árabes realizando a mesma viagem como uma coisa banal.

Desde os primeiros anos da formação de seu império os árabes entravam em relações comerciais com regiões de cuja existência mal suspeitavam os europeus, por exemplo a China, certas regiões da Rússia, as partes inexploradas da África, etc.

Como as terras com as quais os muçulmanos estiveram em relações comerciais, e os caminhos que seguiram para chegar a esses pontos serão indicados no capítulo referente ao seu comércio, limitar-me-ei por agora a dar uma idéia sumária de seus trabalhos geográficos e de suas explorações.

Os primeiros exploradores árabes foram mercadores que viajavam por seu interesse comercial, e embora as pessoas desta profissão não tenham geralmente a aptidão necessária para fazer observações científicas, o que elas vêem pode todavia conter às vezes indicações úteis. É o que sucede com o mais antigo relato que nos legaram os árabes, e consiste numa viagem à China feita no século IX por um mercador chamado Sulaiman. Saiu êle de Siraf, porto do golfo Pérsico, onde freqüentemente chegavam juncos chineses, atravessou o mar das índias e alcançou as costas da China; seu relato, escrito em 851, foi completado em 880 por um de seus compatriotas, Abud Zaid, o qual lhe acrescentou novos dados comunicados por outros árabes que também haviam visitado a China.

O livro de Sulaiman é a primeira obra que se publicou no Ocidente a respeito do Celeste Império, e no princípio do século passado foi traduzido para o francês.

Sulaiman não passava de um observador vulgar, mas a essa categoria não pertencia outro viajante, o célebre Almas-sudi, que nasceu em Bagdad nos fins do século IX da nossa era, e dedicou vinte e cinco anos de sua vida a percorrer o imenso império dos califas e as terras contíguas, incluída a índia. Suas observações foram publicadas em diversas obras importantes, das quais a mais notável é conhecida sob o título de As Pradarias de Ouro. O sábio historiador árabe Ibn Khal-dun, que já citamos várias vezes e escrevia quatro séculos depois daquele viajante, aprecia-a nos seguintes termos:

"Nas Pradarias de Ouro, Almassudi descreveu o estado dos povos e dos países do Oriente e Ocidente na época em que o escreveu, ou seja no ano 330 da hégira (941 da nossa era); seu livro revela-nos as crenças, costumes e natureza das terras daqueles habitantes, suas montanhas, mares e reinos, suas dinastias, as ramificações de suas raças e das nações estrangeiras; é assim um modelo seguido pelos demais historiadores, e uma obra fundamental em que estes se apoiam para demonstrar a exatidão de seus dados."

Ibn Haukal, nascido em Bagdad como Almassudi, iniciou suas viagens quando este terminava as dele, e êle próprio nos deu de seu livro a seguinte idéia:

"Descrevi a terra em sua longitude e latitude, e fiz conhecer as regiões muçulmanas; cada região particular contém um mapa representando sua situação: indico os limites de cada região e as cidades e províncias que ela contém, os rios que a regam, os depósitos de água que modificam sua superfície, os recursos de qué dispõe, os impostos de diferente natureza que paga, os caminhos que a atravessam, as distâncias que a separam das terras vizinhas, o gênero de comércio que mais resultados produz; em resumo, juntei todos os dados que elevaram a geografia a uma ciência interessando aos príncipes e a toda a sorte de pessoas".Mapa árabe de meados do século XII, desenhado no Cairo, por Prisse d'Avesne.

Fig. 233

Mapa árabe de meados do século XII, desenhado no Cairo, por Prisse d’Avesne.

 

Albiruni, que acompanhou Mahmud-il-Gasnaui em sua expedição à índia no ano 1000, publicou excelentes observações sobre a região de Sind e o norte da índia, procurando retificar com seus cálculos astronômicos o mapa daquele país.

Abul Hassan, de quem falamos como astrônomo e que vivia nos começos do século XII, pode ser incluído no número dos viajantes, pois percorreu toda a costa do norte da África, desde Marrocos até ao Egito, e levantou o plano da situação de 44 pontos importantes dela, com o objetivo de retificar o mapa dos contornos da África feito por Ptolomeu.

O último grande viajante que citaremos é Ibn Batuta, que começou suas viagens em 1325, partindo de Tânger em Marrocos, e visitando a África setentrional, o Egito, a Palestina, a Mesopotâmia, o norte da Arábia até Meca, a Rússia meridional e Constantinopla. Em seguida foi à índia, passando pela Bukara, o Korasão e Kandahar; e como ao chegar a Delhi, então capital de um reino maometano, o monarca lhe deu uma incumbência para o imperador da China, êle dirigiu-se a esse império pelo mar, e depois de visitar Ceilão, Sumatra e Java, chegou à cidade hoje conhecida pelo nome de Pequim, da qual regressou à sua pátria pelo mar. Estas primeiras viagens duraram vinte e quatro anos, e como o não deixassem fatigado, Ibn Batuta visitou ainda a Espanha, penetrou no interior da África e chegou até Tombuctu.

Este insigne viajante morreu em Fez em 1377, depois de visitar quase toda a terra então conhecida. Ainda hoje semelhantes explorações bastariam para tornar ilustre o homem que as empreendesse.

II

PROGRESSOS GEOGRÁFICOS REALIZADOS PELOS ÁRABES

As viagens de que acabo de falar, juntamente com os conhecimentos astronômicos dos árabes, tiveram como resultado fazer progredir notavelmente a geografia. Quando os árabes iniciaram o estudo desta ciência, tomaram por guias os autores gregos que os tinham precedido, especialmente Ptolomeu, mas, segundo o costume, logo deixaram para trás seus próprios mestres.

Fig. 234 — Mapa árabe áe Eãrisi (1160), segundo V. de Saint-Martin.

Fig. 234 Mapa árabe áe Eãrisi (1160), segundo V. de Saint-Martin.

As situações geográficas que Ptolomeu atribuía às cidades que citava eram muito errôneas, pois só no concernente à longitude geométrica do Mediterrâneo se equivocava em 400 léguas, e para demonstrar os progressos que os árabes fizeram neste ramo da geografia basta comparar as posições por eles dadas com as que tinham dado os gregos. Com efeito, a comparação demonstra que as latitudes dos primeiros só são inexatas em alguns minutos, ao passo que as dos gregos o são em muitos graus; a respeito das longitudes, embora as dos árabes sejam mais defeituosas, dado que então era muito difícil determiná-las por falta de cronômetros e tábuas exatas da lua, esse erro quase nunca vai além de dois graus, ao passo que entre os gregos era muito mais sério. As situações por estes estabelecidas enfermavam às vezes de erros extraordinários. Assim a longitude de Tânger, segundo o meridiano de Alexandria, é, no dizer de Ptolomeu, de 58° 30′, quando não passa de 35° 41′, ou seja 18° menos. Nas tábuas árabes o eixo maior do Mediterrâneo, desde Tânger a Tripoli, na Síria, não está errado de mais de um grau, ao passo que nas tábuas de Ptolomeu a longitude do mesmo eixo tem um excesso de 19°, o que equivale a umas 400 léguas.

Os árabes deixaram-nos importantes obras de geografia, algumas das quais serviram durante muito tempo para ensinar esta ciência na Europa.

O mais antigo tratado de geografia árabe que conhecemos, é um manual publicado em 740 por um certo Nadar de Bassora; a obra trata de vários assuntos, alguns alheios à geografia, e parece livro destinado aos nômades.

O tratado de geografia de Alstarki, publicado em meados do século IX, é muito superior ao precedente, embora não contenha outra coisa além da enumeração dos rios, cidades, montanhas, etc, de diferentes regiões.

Os livros de Almassudi, contemporâneo de Alistarki e de Almakadsi, que escrevia em 985, são mais um relato de viagens que propriamente obras geográficas.

O mais famoso geógrafo árabe é Edrisi, cujos livros, traduzidos para o latim, ensinaram a geografia na Europa da Idade Média.

Edrisi nascera na Espanha, e certas aventuras levaram-no à corte de Roger, rei da Sicília, pouco depois dos normandos haverem conquistado essa ilha. Em 1154 escreveu sua grande obra de geografia/a qual não só contém todos os trabalhos de seus antecessores, como também muitos dados recolhidos pelo autor de diferentes viajantes. O livro incluía numerosos mapas, e durante três séculos a Europa limitou-se a copiá-lo servilmente.

Entre esses mapas há um curiosíssimo, no qual figuram como nascentes do Nilo os grandes lagos equatoriais d), descoberta que os europeus só muito recentemente fizeram. Este dado revela serem os conhecimentos geográficos dos árabes a respeito da África muito superiores ao que por longo tempo se imaginou.

Entre os demais geógrafos árabes citarei também Al-kazuini e Iaku, que viviam no século XIII. O livro deste último é um dicionário repleto de documentos sobre todos os países que compunham o Califado.

Abulfida, príncipe de Hamah (1271-1331), figura também entre os geógrafos, embora não fizesse mais que resumir os tratados de outros. O mesmo se pode dizer de Almakrisi e de Hassan.

Tarefa pesada seria enumerar os nomes e obras dos principais geógrafos árabes, pois só Abulfida cita 60 que viveram antes dele. Basta o que dissemos para provar a importância que tiveram, de modo que sem os preconceitos hereditários que tão tenazmente existem ainda contra os muçulmanos, seria difícil compreender como geógrafos da categoria de Vi-vien de Saint Martin, puderam ignorá-los. O que os árabes nos legaram tem tanta importância que sua simples menção é prova de seu interesse. No terreno científico estabelecem aquelas situações astronômicas exatas que servem de base principal à formação dos mapas, retificando os erros dos gregos; no das explorações publicam livros de viagens que dão a conhecer diversas partes do mundo cuja existência quase ninguém suspeitava antes e onde os europeus nunca tinham podido entrar; e no da literatura geográfica publicam livros que substituem todos os anteriores, e que os povos do Ocidente se limitaram a copiar durante muitos séculos.

(1) Eis como fala Edrisi das nascentes do Nilo: "O Nilo tira sua origem dessa montanha (a da Lua), por meio de dez mananciais, cinco dos quais se encaminham e juntam num grande lago, e os demais descem também da montanha, dirigindo-se para outro grande lago. Três rios saem de cada um destes lagos; os rios terminam por juntar-se e vão parar e desembocar num imenso lago situado perto de uma cidade chamada Taríi."

 

Tradução de Augusto Souza. Fonte: Paraná Cultural ltda

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