Luís IX – São Luís da França, Por Voltaire

VOLTAIRE – DO ENSAIO SOBRE OS COSTUMES E O ESPÍRITO DAS NAÇÕES

CAPÍTULO LVIII

De São Luís. Seu governo, sua cruzada, o número de seus navios, suas despesas, sua virtude, sua imprudência, suas desditas

Luís IX parecia destinado a reformar a Europa, se tal tivesse sido possível, a tornar a França gloriosa e civilizada, e a ser, em tudo, o modelo dos homens. Sua piedade, que era a de um anacoreta, não o impedia de possuir todas as qualidades de governante; uma sábia economia não se tornou incompatível com a sua liberalidade. Soube conciliar uma política sagaz com uma justiça rigorosa e exacta; e talvez seja o único soberano a merecer este elogio: prudente e firme nas deliberações do Conselho, intrépido nos combates, sem de deixar arrebatar, compassivo, como se fora sempre infeliz.

Com a regente, sua mãe, que conhecia bem a arte de governar, havia ele reprimido o abuso da jurisdição demasiado ampla dos eclesiásticos. Queriam estes que os oficiais de justiça confiscassem os bens de quem quer que fosse excomungado, sem examinar se a excomunhão havia sido justa ou não. O rei, distinguindo muito sabiamente as leis civis, às quais tudo deve ser submetido, das leis da Igreja, cujo domínio não deve estender-se senão sobre as consciências, impediu fossem as leis do reino violadas pelo abuso das excomunhões. Tendo, desde o início da sua administração, mantido as pretensões dos bispos e dos seculares nos seus devidos limites, reprimira as lutas de facções na Bretanha e guardara uma neutralidade prudente entre os arrebatamentos de Gregório IX 4 e as vinganças de Frederico II.

4 Gregório IX, papa de 1227 a 1241, excomungou por duas vezes a Frederico II, soberano notável, inteligente e culto, mas ímpio e dissoluto, que cometeu toda sorte de violências.

 

Seus domínios, já bastante grandes, foram ampliados por grande quantidade de terras por ele compradas. Os reis da França só dispunham, então, do rendimento dos seus próprios bens e não dos do povo. Sua grandeza dependia de uma economia rigorosa, como a de um senhor particular. Tão esclarecida administração deixara-o em condições de levantar poderosos exércitos contra o rei da Inglaterra, Henrique III5, e contra os vassalos franceses que se tinham aliado à Inglaterra.

Henrique III, menos rico, menos obedecido pelos seus súbditos, não contava com tropas nem tão boas nem tão decididas. Luís IX derrotou-o duas vezes, mostrando sua superioridade principalmente na batalha de Taillebourg, no Poitou, onde o soberano inglês, batido, empreendeu a fuga. A guerra foi seguida de uma paz proveitosa (1241). Luís IX não deixou, todavia, de exigir de Henrique III a quantia de cinco mil libras esterlinas, pelas despesas da campanha. Ao lembrarmo-nos de que ele ainda não contava vinte e quatro anos quando se conduziu de maneira tão brilhante, e que seu carácter estava muito acima de sua fortuna, ficamos a pensar no que não teria feito se houvesse permanecido longo tempo sem se ausentar da pátria, e no quanto a França tem sido infeliz pelas próprias virtudes, que deviam fazer a felicidade do mundo.

No ano de 1244, Luís IX, atacado de moléstia violenta, julgou, dizem, em estado de letargia, ouvir uma voz orde-nando-lhe a tomar da cruz contra os infiéis. Mal pôde falar de novo, fez voto de tornar-se cruzado. A rainha sua mãe, sua esposa, seus conselheiros, enfim, todos os que lhe eram mais chegados sentiram o perigo desse voto funesto. O próprio bispo de Paris lhe fez ver as perigosas consequências, mas o soberano encarava o voto como um nó sagrado que a ninguém era permitido desatar. Preparou durante quatro anos a expedição que planejara (1248); e finalmente, con-fiando à sua mãe a direcção do reino, partiu com a mu-lher e três irmãos, acompanhados também de suas esposas; quase toda a cavalaria da França o seguiu. Faziam parte da expedição três mil cavaleiros de pendão6. Uma parte da grande frota que transportava príncipes e soldados zarpou de Marselha, enquanto a outra partia de Aigues-Mortes, que hoje já não é mais porto.

5 Henrique III (1216-1272), filho de João-sem-Terra, tinha apenas nove anos quando sucedeu a seu pai. Quis reconquistar as províncias da França que Filipe Augusto havia confiscado em 1203 (Normandia, Maine, Touraine, Anjou e Poitou).

 

Os grandes navios utilizados no transporte das tropas haviam sido, na sua maioria, construídos nos portos da França, e o seu número atingia a mil e oitocentos. O rei da França não poderia hoje organizar semelhante armada, porque a madeira é incomparavelmente mais cara, o custo bem mais elevado, e a artilharia necessária torna a despesa maior e o equipamento muito difícil.

Vê-se, pelas anotações e cálculos deixados pelo soberano, o quanto suas cruzadas empobreceram a França. Ele pagava ao senhor de Valery oito mil libras por trinta cavaleiros sob o seu comando, o que corresponde a cerca de cento e quarenta e seis mil libras em nossos dias. O condestável tinha, por quinze cavaleiros, três mil libras; o arcebispo de Reims e o bispo de Langres recebiam, cada um, quatro mil libras por quinze cavaleiros que cada um deles conduzia. Cento e sessenta e dois cavaleiros comiam às expensas do rei. As despesas com os preparativos eram imensas.

Se o entusiasmo pelas cruzadas e a crença nos juramentos houvessem permitido ao virtuoso soberano escutar a razão, não somente teria ele visto o mal que fazia ao país com tais gastos, como a injustiça extrema de tal empreendimento, que lhe parecia tão justo. Se o seu objectivo fosse apenas o de dar aos Franceses a posse do mesquinho território de Jerusalém, ainda assim não se justificaria, pois eles não tinham nenhum direito a isso. Mas o que ele fazia era marchar contra o velho e prudente Mélecsala 7, sultão do Egipto, que certamente nada tinha a disputar com o rei da França. Mélecsala era muçulmano; aí estava o único pretexto para fazer-lhe guerra.

6 Cavaleiro de pendão era o que se fazia acompanhar de seus vassalos, reunidos sob sua bandeira.

7 Mais exactamente Malek Saleh.

 

Havia tanta razão para devastar o Egipto, porque este seguia os dogmas de Maomé, quanto haveria hoje para levarmos a guerra à China, porque esta se liga à moral de Confúcio,

Partindo da França, Luís IX escala na ilha de Chipre, cujo governante a ele se une, e dali dirige-se para o Egipto. O sultão do Egipto não tinha nenhuma autoridade sobre Jerusalém, e a Palestina estava sendo, então, devastada pelos Corasmínios, pela complacência do sultão da Síria, que lhes abandonara essa infeliz terra. O califa de Bagdad, que lhe era agradecido e nunca tivera grande poder, evitava envolver-se em tais guerras. Restavam aos cristãos Ptolemais, Tiro, Antioquia e Tripoli. Suas divergências expunham-nos constantemente a serem esmagados pelos sultões turcos e pelos Corasmínios.

Em tais circunstâncias, é difícil compreender por que o rei da França escolhia o Egipto para teatro da guerra 8. O velho Mélecsala, enfermo, pediu a paz, que lhe foi recusada. Luís IX, fortalecido por novos reforços chegados da França, passou a ter sob seu comando sessenta mil combatentes, que o amavam e obedeciam, tendo agora, à frente dos inimigos já vencidos, um sultão às portas da morte. Quem não acreditaria que o Egipto e, logo depois, a Síria, seriam subjugados? Entretanto, a metade dos componentes desse exército morreu de moléstia contraída naquela região; a outra foi vencida perto de Mansourah. São Luís vê seu irmão Roberto d’Artois (1250) ser morto pelos inimigos, e logo depois é ele próprio capturado com seus dois outros irmãos, o conde d’Anjou e o conde de Poitiers.

Não era mais Mélecsala quem reinava no Egipto, mas seu filho Almoadan °. Este novo sultão possuía, certamente, grandeza de alma, pois, tendo o rei Luís oferecido um milhão de besantes10 pelo seu resgate e o dos outros prisioneiros, Almoadan lhe devolveu a quinta parte. Esse sultão foi, logo depois, massacrado pelos Mamelucos, cuja milícia havia sido criada por seu pai. O governo, dividido então, parecia tornar-se funesto aos cristãos. Entretanto, o conselho egípcio continuou os entendimentos com o rei. Joinville conta-nos terem os próprios emires, numa de suas assembleias, pro-posto a escolha de Luís IX para sultão.

8 " Não era uma simples guerra nem uma expedição, mas a fundação de uma grande colónia no Egipto" — diz Michelet.
9 Malek-el-Moadham.

 

Joinville encontrava-se prisioneiro, juntamente com o loberano. O que relata um homem do seu carácter deve pesar, sem dúvida; mas lembremo-nos de como num acampa-mento, numa casa, estamos sempre mal informados dos Pactos particulares que se passam no acampamento próximo ou na casa vizinha. Sendo pouco provável terem os Muçul-manos pensado em escolher para seu chefe um cristão inimigo, do qual não conheciam nem a língua nem os costumes e cuja religião execravam, não podendo, por conseguinte, ser encarado por eles senão como chefe de bandidos estrangeiros, conclui-se que Joinville não fez mais do que citar uma versão popular do facto. Reportar fielmente o que se ouviu dizer é, muitas vezes, divulgar de boa fé notícias um tanto duvidosas.

São Luís, liberto do captiveiro, retirou-se para a Palestina, onde permaneceu cerca de quatro anos, com os remanescentes da sua frota e do seu exército. Passado esse tempo, cm vez de retornar logo à França, resolveu fazer uma visita à cidade de Nazareth, só regressando à pátria depois da morte da rainha Branca, sua mãe; e, ainda assim, para organizar nova cruzada.

Sua permanência em Paris trouxe-lhe, continuamente, proveitos e glória. Recebeu uma homenagem só prestada a um rei virtuoso: o soberano da Inglaterra, Henrique III, e seus barões escolheram-no para árbitro de uma contenda entre eles. Pronunciou sua sentença como soberano, e se essa sentença, favorável a Henrique III, não chegou a remover as agitações na Inglaterra, teve o mérito de fazer ver à Europa o respeito que os homens, apesar de tudo, têm pela virtude. O conde d’Anjou, irmão de Luís IX, deveu à sua reputação e à boa ordem do reino o ter sido escolhido pelo papa para rei da Sicília, honra que não merecia pelos próprios dotes.

10 De Bizâncio. Moeda de ouro do Oriente na Idade Média.

 

Luís IX, entretanto, aumentava seus domínios com a aquisição de Namur, Péronne, Avranches, Mortagne e Perche. Podia, se assim o quisesse, arrebatar ao rei da Inglaterra tudo que este possuía na França; as disputas de Henrique III e seus barões facilitavam-lhe os meios. Mas preferiu a justiça à usurpação. Deixou-os na posse da Guiana, do Périgord, do Limousin, mas fê-los renunciar para sempre à Touraine, Poitou e Normandia, reunidas à coroa por Filipe Augusto. Assim a paz foi consolidada, graças à sua reputação.

Entre outras sábias medidas, Luís IX estabeleceu a justiça de apelação; e os súbditos oprimidos por sentenças arbitrárias podiam apresentar suas queixas aos quatro grandes ajuizados reais, criados para ouvi-los. No seu governo, os letrados começaram a ter assento nas sessões desses parlamentos, onde os cavaleiros, que raramente sabiam 1er, decidiam da sorte dos cidadãos. Luís IX reunia à piedade de um religioso a segurança esclarecida de um rei, reprimindo as manobras da corte de Roma pela famosa pragmática 11 que conservava os antigos direitos da Igreja, denominados liberdades da Igreja galicana, se é exacto tenha sido dele tal pragmática. Enfim, treze anos de sua presença repararam na França tudo que sua ausência havia arruinado. Mas a paixão pelas cruzadas arrebatava-o; os papas encorajavam-no. Clemente IV concedeu-lhe o direito de um décimo sobre o clero por três anos. E ele parte, por fim, pela segunda vez e mais ou menos com as mesmas forças que conduzira na primeira. Seu irmão, Carlos d’Anjou, que o papa fizera rei da Sicília, teve de segui-lo. Mas já não é para o lado da Palestina nem para o do Egipto que volta sua devoção e suas armas; dirige-se agora com a frota para Túnis.

11 Ordenação real atribuída a São Luís, na qual este príncipe, precisando as relações entre a França e Roma, teria limitado os direitos da Santa Sé e afirmado as liberdades ditas galicanas.

 

Os cristãos da Síria já não pertenciam à raça dos primeiros francos que se estabeleceram em Antioquia e em Tiro; era uma geração mesclada de sírios, arménios e europeus. Chamavam-nos potros, e esses remanescentes sem vigor estavam, em sua maioria, submetidos aos Egípcios. Os cristãos não possuíam outras cidades fortes senão Tiro e Ptolemais.

Os religiosos templários e hospitaleiros, que podemos, em certo sentido, comparar à milícia dos Mamelucos, faziam uma guerra tão cruel entre si, nas referidas cidades, que num combate desses monges militares não restou um só templário vivo.

Que relação haveria entre a situação de alguns mestiços nas costas da Síria e a viagem de São Luís a Túnis? Carlos d’Anjou, rei de Nápoles e da Sicília, ambicioso, cruel e interesseiro, servia-se da simplicidade heróica do soberano para a consecução dos seus fins. Pretendendo que o rei de Túnis lhe devia alguns anos de tributo, queria tornar-se senhor do país; e São Luís esperava, dizem todos os historiadores (não sei com que fundamento), converter o rei de Túnis. Estranha maneira de convertar esse maometano ao cristianismo! Realizou-se um desembarque à mão armada nos referidos Estados, na direcção das ruínas de Cartago.

Logo, porém, o próprio Luís IX viu-se sitiado no seu acampamento pelos mouros reunidos; as mesmas doenças que a intemperança dos seus súbditos transplantados e a mudança de clima tinham atraído ao acampamento do Egipto, assolaram o acampamento de Cartago. Um dos filhos do soberano, nascido em Damieta durante o cativeiro, contraiu terrível enfermidade, morrendo diante de Túnis. Afinal, chegou a vez de Luís IX. Sentindo próximo o desenlace, mandou que o deitassem sobre a cinza, e expirou (1270), à idade de cinquenta e cinco anos, com a piedade de um religioso e a coragem de um grande homem. Não é dos mais insignificantes exemplos dos caprichos da fortuna, terem as ruínas de Cartago visto morrer um rei cristão, que vinha combater os Muçulmanos no país para onde Dido havia trazido os deuses dos Sírios. Apenas havia o rei Luís expirado, chegou o irmão, rei da Sicília. Fez-se a paz com os Mouros, e os cristãos restantes foram reconduzidos para a Europa.

Nada menos de cem mil pessoas foram sacrificadas nas duas expedições de São Luís. Se a esse número acrescentarmos os cento e cinquenta mil que seguiram Frederico Barbarroxa; os trezentos mil das cruzadas de Filipe Augusto e Ricardo; os duzentos mil, pelo menos, do tempo de João de Brienne; os cento e sessenta mil 12 cruzados que já haviam passado para a Ásia; os que pereceram na expedição contra Constantinopla e nas guerras seguintes — sem falar da cruzada do Norte e daquela contra os Albigenses — veremos ter sido o Oriente o túmulo de mais de dois milhões de europeus.

Vários países ficaram despovoados e empobrecidos.

Joinville declarou expressamente não ter querido acompanhar Luís IX na sua segunda cruzada, porque não o podia; a primeira havia arruinado todo o seu feudo.

O resgate do soberano tinha custado oitocentos mil be santes — cerca de nove milhões em nossa moeda actual (em 1778). Se cada um dos dois milhões de homens que morreram no Levante tivesse levado consigo cem francos, isto é, um pouco mais de cem sous, na época, contaríamos mais duzentos milhões de libras para indicar o custo de tal empreendimento. Os Genoveses, os Pisanos e, sobretudo, os Venezianos, enriqueceram-se com as cruzadas; mas a França, a Inglaterra e a Alemanha ficaram esgotadas.

Diz-se terem os reis da França lucrado com essas cruzadas, porque São Luís lhes aumentou os domínios comprando algumas terras dos senhores arruinados. Mas ele não realizou tal coisa senão durante os treze anos de permanência no reino, pela sua economia.

12 Todas essas cifras são hipotéticas.

O único bem resultante dessas empresas foi a liberdade que vários burgos conseguiram comprar dos seus senhores. O governo municipal fortaleceu-se com a ruína dos possui-dores de feudos. Pouco a pouco, as comunidades, podendo trabalhar e comerciar em seu próprio proveito, desenvolveram as artes e o comércio, que a escravidão paralisara. Entretanto, os poucos cristãos mestiços acantonados nas costa da Síria foram logo exterminados ou reduzidos à servidão. Ptolemais 13, seu principal asilo e, na realidade, refúgio de bandidos famosos por seus crimes, não pôde resistir às forças do sultão do Egipto, Mélecseraph 14, que a conquistou em 1291, seguindo-se a rendição de Tiro e Sídon.

Em suma; ali pelos fins do século XIII não havia mais na Ásia nenhum vestígio aparente dessas emigrações de cristãos.

13 Nome antigo de São João d’Acre, na Síria.
14 Kalil-Ascraf, que reinou de 1290 a 1293.

 

Fonte: Voltaire. Clássicos Jackson. Trad. Brito Broca.

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