Continued from: CORRESPONDÊNCIA DE VOLTAIRE - Cartas de Voltaire para vários destinatários.

HUMILDE DECLARAÇÃO DE ORTODOXIA

Ao venerando padre Tournemine 3

Dezembro de 1738.

Meu muito caro e venerando padre, é verdade que a minha Merope vos agradou? Reconhecestes ali alguns desses sentimentos nobres que me inspirastes na minha infância? "Si placet, tuum est" 4 é o que digo sempre falando de vós e do padre Porée. Desejo-vos boa entrada de ano e uma vida tão longa quanto mereceis. Estimai-me sempre um pouco, apesar da minha admiração por Locke e Newton.

2 Juliano, o Apóstata.

3 Sábio jesuíta (1661-1739), que dirigiu o "Jornal de Trevoux ", de 1702 a 1736.

4 "Se minha obra agrada, é a vós que ela o deve" (Horácio. Odes, IV. 3).

Esse gosto não é, absolutamente, um entusiasmo que se obstina contra as verdades:

"Nullius addictus jurare in verba magistri" 5

Confesso o quanto Locke me seduziu por essa ideia de que Deus pode, se assim o quiser, conceder o dom mais sublime de pensar à matéria mais informe. Parecia-me não ser possível ampliar mais o poder do Criador. "Que somos — dizia eu — para limitá-lo?" O que reforçava esse meu sentimento era concordar ele às mil maravilhas com a imortalidade de nossas almas; pois, a matéria não perecendo, que poderia impedir o poder divino de conservar o dom eterno do pensamento a uma porção de matéria que ele faria subsistir eternamente? Não percebia a incompatibilidade, e era nisso, provavelmente, que me enganava.

Minhas leituras assíduas de Platão, Descartes, Malebran-che, Leibnitz, Wolff e do modesto Locke não me serviram, todas elas, senão para me fazer ver o quanto a natureza de minha alma me era incompreensível, o quanto devemos admirar a sabedoria desse Ser supremo que nos fez tantas dádivas, que usufruímos sem conhecê-las, e dignou-se conceder-nos ainda a faculdade de ousar falar dele. Man-tenho-me sempre nos limites em que Locke se enquadra, nada assegurando sobre a nossa alma, mas acreditando que Deus tudo pode. Se, entretanto, esse sentimento tem consequências perigosas, abandono-o de todo o coração.

Vereis se o poema da Henriade, com o qual espero vos presentear dentro em breve, numa edição bastante correcta, respira outra coisa senão o amor às leis e a obediência ao soberano. Esse poema, afinal, tem por motivo a conversão de um rei protestante à religião católica. Se em algumas outras obras que me escaparam na mocidade (esse tempo dos erros) e que não foram feitas para serem publicadas;

5 "Resolvido a não jurar jamais sobre a convicção de qualquer mestre" (Horácio. Ep. I. v. 14).

que foram truncadas e adulteradas, e que jamais apro\< i, encontram-se proposições a lamentar-se, minha resposta seri bem curta: é que estou pronto a riscar sem misericórdia tudo que possa escandalizar, embora inocente no fundo. Não me custa, absolutamente, corrigir-me. Continuo refoi mando minha Henriade, retocando todas as minhas tra gédias, refundindo a Histoire de Charles XII. Por que tendo tanto trabalho para corrigir as palavras, não o terei para corrigir coisas essenciais, quando basta às vezes unia penada?

O que nunca corrigirei são os sentimentos do meu coração por vós e pelos que me educaram; os amigos que possuía em vosso colégio conservei-os todos. Minha respeitosa ternura por meus mestres é a mesma.

Adeus, meu venerando padre; sou, .por toda a vida, etc.

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