OS COMEÇOS DA FILOSOFIA PATRÍSTICA – História da Filosofia na Idade Média

HISTÓRIA DA FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA



Johannes HIRSCHBERGER

Fonte: Ed. Herder

Trad. Alexandre Correia

2 — OS COMEÇOS DA FILOSOFIA PATRÍSTICA.

Tratando-se de filosofia patrística, não
devemos, como outrora, pensar somente nas obras de filósofos que só foram filósofos.
A filosofia da patrística está antes contida nos tratados dos pastores de alma,
pregadores, exegetas, teólogos, apologetas que buscam antes de tudo a exposição
da sua doutrina religiosa. Mas ao mesmo tempo, levados pela natureza das
cousas e dada a ocasião, se põem – a resolver problemas propriamente pertencentes
à filosofia; e então, pela força do assunto, versam a metodologia filosófica.
Merecem aqui menção os seguintes nomes.

Homens   e   obras

1.    Entre os gregos. Aristides de Atenas com o seu escrito em defesa dos
cristãos. Justino, filósofo e
mártir (f c. 165) com as suas duas Apologias e o Diálogo com o Judeu
Trifon;
Clemente de Alexandria (f
c. 215) que escreveu uma Exortação aos pagãos (Protreptikos), uma Introdução
ao Cristianismo (Paidagogos)
e uma Obra enciclopédica da verdadeira
filosofia (Stromateis)
; Orígenes (†
253) de cujas obras é principalmente importante para a filosofia o De
principiis
e o escrito Contra. Celsum. Os três capadócios: Gregório Nazianzeno (f c. 390), de que
temos sermões, cartas e poesias; Basílio
o Grande (+ 379) que delineia, nas homilias sobre a obra dos seis dias,
a formação cristã do mundo; o seu irmão Gregório
Nisseno (+ 394) que na sua grande Catequese, no Diálogo com
Macrina,
nos ministra a sua doutrina sobre a alma e a ressurreição; e no
livro sobre a criação do homem, a concernente a Deus, ao homem, à alma e à imortalidade.
Além destes, Nemésio de Emesa, que
c. de 400 escreve uma Antropologia cristã (Περì
φúσωος 
·αντροπον), atribuída falsamente a
Gregório Nisseno. E finalmente os
gnósticos cristãos do 2.° e 3.° séculos, como Basilides,
Valentino, Mani, Cerinto, Marcião, que intentam uma filosofia da fé
cristã, mas nos quais também encontramos uma espécie de filosofia da vida e da
existência.

2.    Entre os latinos, (Tertuliano (+ 213) combate a filosofia, mas a utiliza no
seu Apologeticum, no De praescriptione liereticorum e no tratado
sobre a alma. Minúcio Félix no Octavius (imediatamente anterior ou posterior ao Apologeticum de Tertuliano) defende o monoteísmo
cristão contra o politeísmo pagão;   Arnóbio
se volta, em 303, igualmente com fundamentos filosóficos contra, os
pagãos (Adversus gentes), fortemente influenciado por Clemente Alexandrino e o neoplatônico Cornélio
LaBeo. Lactâncio, na obra De officio mundi, toda a estrutura
filosófica, ministra um sem-números de doutrinas anatômicas, fisiológicas e
psicológicas. Um pouco posterior, o escritor de orientação neoplatônica, CalCÍdio (começo do 4° séc.), com o
seu Comentário do Timeu, constitui até o séc. XII para a Idade Média uma
das primeiras fontes da filosofia grega, pois encerra um difuso mostruário de
todas as doutrinas vivas entre os antigos: Platão
e o neoplatonismo, teorias de Aristóteles,
Filo, Numênio, excertos de Crisipo,
Cleantes, dos médicos gregos, dos filósofos naturalistas jônicos, dos
eleatas e dos atomistas pre-socráticos. Mário
Vítorino traduz, c. 350, ao lado de escritos platônicos, também as Categoria e o Perihermeneias de Aristóteles,
bem como o Isagogo de Porfírio.
Macróbio com o seu Contentaria ao Sonho de Cipião (c. 400),
transmite à Idade Média a doutrina neoplatônica da emanação e outras teorias
desse teor, como p. ex, a das relações entre o bem e a luz; a de ser a prisão
da alma o corpo; a tarefa da sua libertação por via da purificação e da união,
na vita contemplativa. E finalmente Marciano
Capela, no De nuptiis Mercurii et philologiae (c. 430) ministra
à Idade Média uma espécie de enciclopédia, que pereniza em particular a
doutrina das sete artes liberais.

Bibliografia

H. EiHl, Augustin
und die Patristik
(1923) (Agostinho e a Patrística). Th. Klauser, Reallexikon fiir Antike und Christentum- (1942 ss.).
B. Altaner, Patrologia (1944)
(tr. esp. 1953). H. MeYer, Geschichte
der abendländischen Weltan-schauung,
II (1947). P. Cayré, Précis de Patrologie et
d’Histoire de Ia Theologie,
3 vols.   J, Quarten, Patrology (1950 ss.).

Os pontos temáticos em torno dos quais, como
centros de cristalização, mais e mais se concentra a filosofia  patrística, são
as relações entre a fé e a ciência, o conhecimento de Deus, a essência e a
agência de Deus, o Logos, a criação, o homem, a alma, a ordem moral.

a)    Fé   e   ciência

  α) Antigas concepções. — As
relações entre a fé e a ciência constituem um problema antes axiológico que
lógico. A originalidade vital do Cristianismo, e em geral a sua posição
fundamental como um novo estilo de vida, forçosamente traria consigo, como
fenômeno natural, a conseqüência de enfrentar-se com a ciência com tal entorno
que ameaçava absorvê-la. A ciência é apenas o começo; a fé porém é propriamente
o caminho e a perfeição. O Logos divino abrange o Logos filosófico, de modo
que, como se disse muitas vezes, os cristãos poderiam muito bem, e em sentido
próprio, ser chamados filósofos (Justino).
Pois exatamente, os cristãos possuem a sabedoria por que anelavam em vão
os filósofos pagãos. E para realçar ainda mais e exteriormente essa afirmação,
cita-se a palavra dê Filo, que os
filósofos gregos tinham conhecido o Velho Testamento e Platão era um Moisés a falar grego. Como se. vê,
epistemológica e teorèeticamente, não há nenhuma diferença principal entre a fé
e a ciência. "Uma separação radical entre a fé e a ciência é estranha a
toda a patrística, assim como a Agostinho.
.. Não queriam tal separação; não a tinham como boa e, para a fé cristã,
a consideravam simplesmente como impossível" (H. Meyer). Há apenas entre elas uma sensível diferença de, grau,
como a existente entre o perfeito e o imperfeito. Daí  conseqüência de, por um
lado, ficar garantida a preeminência da fé revelada e, de outro, de não se
excluir a possibilidade de uma futura ciência da fé. Donde o poder constituir-se
uma  teologia negativa e outra, positiva.

β) Concepção moderna. — Aquela cortante
separação lógica implicada nas palavras de Kant:
"Assim, deveria eu excluir a ciência para dar lugar à fé, não se
oferecia aqui como objeto de reflexão. O homem interior não estava ainda
cindido em duas partes: o racional e o irracional. A fé, aqui, é também
pensamento, cum assensu cogitare, como dirá Agostinho; mas um pensamento que se nutre em outras fontes. A
problemática filosófica moderna está já bem esboçada, mas ainda fica excluída.
Só dentro da gnose, que a muitas luzes já apresenta traços modernos,
tem-se a impressão de iniciar-se a oposição entre a ciência e a fé!

b)    Conhecimento   de   Deus

Muito próxima está naturalmente a reflexão Sobre
os fundamentos e as possibilidades do conhecimento de Deus. O moto, nesta
matéria, dá Paulo, Rom. 1,
19, com a sua afirmação, que podemos conhecer a existência de Deus, não somente
pela fé, mas também "pela natureza". A filosofia estóica, com a sua
doutrina dos conceitos básicos universais, fornece, no caso, a necessária
terminologia filosófica. .á Justino a
assume. Igualmente Clemente Alexandrino e
também dos capadócios conhecem o sensus communis que, em face da ordem e
da beleza do mundo, concebe como evidente a idéia de um artífice divino como
cansa dessa harmonia. Idéias teleológicas e causais conduzem assim a admitir a
existência de Deus.

c)    Essência   de   Deus

No concernente à essência de Deus, se acentua
desde, o começo que melhor podemos conhecer a Deus afirmando o que ele não é
(teologia negativa) do que o que ele é. Mas já desde, então se filosofa sobre a
possibilidade do emprego, relativamente a Deus, dos nossos conceitos hauridos
no mundo da experiência. Têem-lhe a transcendência e particularmente com olhos
neoplatônicos, como o mostra Clemente afirmando
a unidade de Deus, mas ao mesmo tempo" certificando que ele está para lá
do um e da unidade. A TeRtuLIano contudo
se torna difícil representar-se Deus de outro modo que não materialmente. É ele
certamente espírito; mas toda realidade não é, pergunta ele com os estóicos,
em. última análise de natureza material? Mesmo os maniqueus vêem nele algo de
material, algo como uma luz corpórea, concepção de que participou Agostinho também, na sua mocidade. Mas
já Orígenes arreda essas
dificuldades», elucidando que Deus eterno não é mutável como o mundo dos
corpos; que, espírito inextenso, não está colocado no espaço e, portanto, é
indivisível e não pode ser de natureza corpórea. Para os capadócios a
materialidade e transcendência de Deus já é doutrina pacífica e ê determinada
minuciosamente. Muito cedo também se mostra,  apesar  da  teologia negativa, 
uma.série de ensinamentos mais largamente fundamentados sobre o conhecimento da
unicidade de Deus, da sua eternidade, seu caráter de ser absoluto, da sua
infinidade e onipotência. E por último já nota Orígenes que em Deus nada pode haver de odioso, injusto e
mau; nem nada que encontre a natureza, mas o que a ultrapasse.

d)    Criação

Um problema’ particular e especificamente
cristão é o do conceito de criação. Cobra ele atualidade com o relato bíblico
da criação. Como devemos formá-lo com acerto, filosoficamente?

α) Idéia. — Clemente
considera, de novo sob influência platônica, que a criação implica
fundamentalmente idéias exemplares e significa a realização de um mundus
intelligi-bilis.
Mas diferentemente do modo por que o faziam Platão  e o neoplatonismo, introduz, de
acordo cora a Bíblia, a idéia da criação do nada, criação realizada no tempo
por força de um ato da  vontade divina.

β) Tempo. — Mas exatamente este momento
temporal acarreta dificuldades e estas, vacilações. Ora, admite-se uma criação
eterna, mas no concernente apenas ao ato de vontade, ao passo que a-/sua
realização se dá no tempo (Clemente). Ora,
não é somente o ato de vontade, mas é o mundo, em si mesmo, eterno no sentido
que, sem cessar, se realizam novos mundos, a se sucederem de eternidade para
eternidade (OrígeNes), doutrina
visivelmente influenciada por Aristóteles.
Outras vezes se ensina que o tempo começou com este nosso mundo visível,
sendo porém o ato da criação em si mesmo atemporal, porque não se pode fazer
começar sempre o tempo no tempo, sob pena de ir-se ao infinito (Basílio).

γ) O nada. — Mas nenhuma dúvida há a
respeito da criação, do nada. Já Orígenes
avança nesta doutrina a ponto de dizer, que a criação no tempo há de
admitir-se em oposição à atitude habitual de toda a filosofia grega,
introduzindo assim um filosofema específico e permanente para todo o pensamento
cristão.

δ) Criação simultânea. — É típica também a
idéia da criação simultânea, pela qual, não obstante a narrativa bíblica da
obra dos seis dias, o mundo foi criado de nina vez na totalidade da sua riqueza
de formas. Esta convicção devia por si mesma casar-se com a morfologia
idealista implicada no platonismo e na sua doutrina da eternidade das formas.
De acordo com esta, o devir e a evolução não consistem propriamente no
nascimento de novos seres, mas somente na realização de formas preexistentes. E
tais ensinamentos se encontram assinaladamente em Clemente, Orígenes, Basílio, Gregório Nisseno e Agostinho e nos pensadores particularmente
aparentados com o platonismo.

ε)    Logos

Conexa com a doutrina da criação anda sempre
neste tempo a idéia do Logos. Todo mundo falava então do Logos, de modo que se
tornou ele um tópico obrigatório. Já foi assim na filosofia paga; Filo corroborou e consagrou essa moda;
e desde que JOÃO Evangelista, com a sua mensagem do Filho de Deus, habituou o
mundo helênico com esse conceito, essa idéia ficou como sancionada. São, na
essência, os pensamentos seguintes os que andam ligados ao conceito do Logos.

α) Logos e Deus. — Primeiro, o Logos
é a suma das Idéias com que Deus a si mesmo se pensa. Já em Filo as Idéias,
que. no mundo genuíno da filosofia platônica eram um mundo objetivo de verdades
impessoais subsistentes por si mesmas, se convertem na idéia de um Deus
pessoal. Agora refletem a inteira essência divina, onde reside a origem delas.
O Logos é a eterna sabedoria de Deus, na qual ele a si mesmo., se pensa, é o
verbo que ele a si mesmo se fala, sendo por isso um Filho de Deus no qual de
algum modo se projeta a si mesmo.

β) Logos e Mundo. — Mas o Logos está em relações também com a criação,
da qual é o modelo primeiro, a ordem e a lei estrutural. Assim como no Timeu o mundo foi feito pelo demiurgo, contemplando as Idéias eternas, assim
também aqui tudo o criado o foi pelo Logos. Tudo o que no mundo é
espírito e lei procede dele.   Daí o não ser o mundo totalmente estranho a
Deus; ao contrário, é uma irradiação de Deus e podemos apenas explicá-lo como
seu vestígio e um caminho para Ele. O Logos é uma ponte lançada sobre o abismo,
entre o mundo e Deus, como já pretendiam sê-lo os seres intermediários 
neoplatônicos.

γ) Logos e Homem. — Num terceiro ponto de vista é
o Logos importante para o homem. É também para ele o modelo ideal-espiritual,
a medida ética do dever, que eleva o homem sobre o puramente natural e
demasiado humano e o une com Deus. Todas as doutrinas posteriores do divino no
homem, sobre a scintilla animae e a consciência, como regra divina, já
estão em substância aqui preludiadas.

δ) Logos e Devir. — E finalmente
aqui fica a Idéia-Logos, o ponto de apoio a uma teoria da evolução. O conteúdo
do Logos são as rationes seminalcs (λογοι
σπερματικοι), como já o
tinham dito os estóicos. Por isso, segundo Justino,
já muitas verdades do Cristianismo preexistem na filosofia paga. No
Cristianismo esses germes chegaram ao pleno desenvolvimento, mas no fundo
existiram sempre, de modo que podemos também chamar cristão aos filósofos
pagãos, desempenhando assim de novo o Logos o seu papel unificador. Mas não
somente na esfera histórico-espiritual, senão em todo o âmbito da evolução,
atua o Logos como esboço do processo. "Ele encerra em si os começos, as
formas e as ordens de todas as criaturas", diz Orígenes (De princ. I, 22). B como o Logos para ele
não é senão a segunda Pessoa divina, conclui-se que já Orígenes tinha lançado as bases para a célebre doutrina da Lex
aeterna,
que, através de Agostinho, veio
a constituir um patrimônio comum do pensamento cristão.

f)    O    Homem

Especial atenção dedica ao homem a filosofia
patrística. NemÉsio (De nat.
hom.
c. 532, Migne, P. G. 40)
resume num sucinto Panegírico o essencial.

α) Ser régio. — O homem é uma criatura
regia. Na escala dos seres, que Gregório
Nisseno e Nemésio concebem
esquematicamente ocupa o homem o lugar supremo, nos reinos dos  corpos 
inanimados,   das  plantas  e  dos  animais.    Só  os anjos o sobrepujam. O homem
completa o mundo visível, porque resume tudo o que lhe é inferior e assim
constitui um microcosmo. Criado à imagem divina, em conseqüência de participar
do Logos, é aparentado com Deus. E assim de certo modo e por si mesmo pode
compreender a essência divina, principalmente quando se liberta da carne e
vive de todo pelo espírito.

β) Ser médio. — Ele tem contacto com um
mundo superior, sendo um meio-têrmo entre o sensível e o espiritual. Mas
igualmente é considerada a sua posição média entre o bem e o mal. O homem pode
escolher entre o mundo terrestre-sensível e o espiritual supra-sensível, de
modo a afundir-se no terrestre ou tornar-se "homem celeste".

y) Liberdade. — Por isso mesmo é livre (αντεξουσιοζ),
dotado de autodeterminação e em si não está submetido a nenhuma força estranha.
O poder haver abuso da liberdade, quando inclinada ao mal, Orígenes, e com ele Gregório NissEno, o explica pelo seu
caráter de criatura. Enquanto Deus tem o ser de si mesmo e, portanto,
necessário e imutável, as criaturas começaram e, logo, são mutáveis. Na
mutabilidade fundada na contingência da criatura temos a explicação do
fundamento metafísico do mal. Claramente inspirado na Bíblia é a doutrina
sempre repetida, desde Orígenes, que
a mortalidade do homem e também a sua concupiscência são conseqüências do
pecado.

g)  A Alma

α) Essência. — O que sobretudo interessa
no homem é a alma. O homem é mesmo, para a patrística, e antes de tudo,
alma.    Mas que é a alma?

αα) Corpo ou Espírito? — TertuliaNo ainda tinha dificuldades de
concebê-la como diferente do corpo, embora de mais sutil qualidade. Decisivas
para este modo de ver eram reminiscências estóicas e, com ela, a reflexão sobre
o como da agência da sensibilidade, que é de natureza corpórea, sobre a alma.
Mas já para Orígenes é claro de
todo que alma é espírito e aparentada com Deus.   E Gregório Nisseno prova já a imaterialidade da alma fundado na
capacidade que tem o homem de pensar e raciocinar, atividades espirituais conducentes
portanto à conclusão, que a sede dessa atividade, o NOUS,  deve ser imaterial.

 ββ) Substância ou Forma?
Mais acentuadamente que na filosofia grega, se afirma a unidade, a
individualidade e a substancialidade da alma. "Alma é uma substância
criada, viva, inteligente, causa da faculdade vital e sensível do corpo, dotado
de sensibilidade, enquanto houver para isso uma natureza correspondente" (Gregório Nisseno, Macr., 29
B). Por isso Nemésio se opõe à
divisão da alma em partes vegetativa e sensitiva, que não passariam então de
potências de uma alma intelectual, e não seriam o imediato princípio vital como
pensam Platão e Aristóteles. Mas além disso rejeita a
concepção aristotélica da alma como enteléquia, que a reduziria a uma simples
qualidade ou forma do corpo, deixando de ser algo de independente e existente
por si (De nat. h., 564). Aguda observação! Lá dentro do Perípato se
tinha advertido Aristóteles que ele
não admitia uma alma substancial, como vimos. "Devemos confessar ao nosso
crítico que, como nenhum outro pensador cristão, descobriu a fraqueza da concepção
aristotélica da alma e sentiu a sua inconciliabilidade com a concepção
cristã" (Gilson-Bohner). Percebe-se
claramente como, para o pensamento cristão, a alma é mais que uma forma; e se
posteriormente é considerada a forma do corpo, esse conceito foi pensado de
modo mais substancial do que o fez Aristóteles.
É antes entendido na acepção do ειδοζ; platônico, que só pode ser
substância. Seria digno de exame mais minucioso o saber-se como esta
transformação do conceito de forma, em conexão com a doutrina da alma, veio
exercer influência na Idade Média.

γγ) Corpo e Alma. — Com
a substancialização da alma cresce de porte a dificuldade de explicar a sua
relação com o corpo. Como se poderia então salvar a unidade? Quer-se evitar o
dualismo de sabor platônico. Já não se admite, como o faria ainda Orígenes, que a alma se uniu ao corpo
como para expiação de um .pecado. Ora, tal pessimismo não se adapta à doutrina
cristã, em virtude do qual também o corpo é criatura de Deus. A alma não deve
ter no corpo um como revestimento,  pensa Nemésio, 
pois,  de novo,  isso comprometeria a verdadeira unidade. Mas se ele, na
seqüência de Gregório, considera
o corpo um instrumento da alma e crê que a alma se serve do corpo como o
amante, do amado, o dualismo ressurge. Doutrina de Platão e do jovem ARISTÓTELES.

β) Origem. — Particulares dificuldades
oferecia a questão da origem da alma. Tateia-se aqui e acolá na busca de uma
solução. Ora inclinam-se para o generacioismo e o traducionismo, pelos quais a
alma é gerada, pelos pais á maneira de transmitentes (tradux) da sua
vida (Tertuliano, Gregório Nesseno). Ora
se decidiam pelo criacionismo, pelo qual a alma é diretamente criada per Deus (Clemente, Lactâncio, Hilário e a
maioria dos Padres). Ora aceitava-se a preexistência e conciliava-se essa doutrina
com o criacionismo, admitindo-se a criação eterna da alma (Orígenes, Nemésio).

γ) Imortalidade. — Desde o
princípio, a posição cristã se pronunciou com firmeza e determinação, em face
da filosofia antiga, no tocante à imortalidade, considerando-a incondicionalmente
com o individual, e não mais se contentando com o mero nous divino universal.

h)    Moral

Nenhures podia a síntese entre o helenismo e o
cristianismo ser mais fácil do que na ética, onde platonismo e estoicismo se
apresentam precisamente como degraus conducentes à moral cristã.

α) O Bem. — Platão quer o assemelhar-se com Deus, E igualmente o quer a
prescrição: sede perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito. Ora, isso é
apegar-se imediatamente a um motivo platônico no fundamento filosófico da
ética: o caminho do homem está preassinalado no Logos. Naturalmente agora é o
Logos divino. "Não há nenhum outro Logos senão Cristo, o Verbo de Deus,
existente junto do Padre e pelo qual tudo foi feito; e não há nenhuma outra
vida senão o Filho de Deus, que diz: Eu sou o caminho, a verdade e a vida"
(Orígenes). Clemente escreve que
o formalismo moral estóico da "razão reta" não significa outra cousa
mais que o Logos divino; é a ordem da natureza à qual temos de nos submeter. E
quando Gregório NissEno considera
como a tarefa do homem participar de Deus, exemplar de todo o bem, o que é
possível por abranger o espírito humano todos os bens, embora somente em
imagem, assim como o sol se reflete num espelho, nisso já se torna
irreconhecível o platonismo. O quanto a filosofia estóica contribuiu em
particular, para a estruturação prática da moral cristã, é bem conhecido. Que
com o apelo à natureza ou à razão do homem a lei moral objetiva ainda não está
firmemente estabelecida, já Lactâncio o
viu.

β) A Consciência. — Podemos divisar
na vida natural o bem moral só quando se trata da natureza melhorada, i. e,
daquela que nos é notificada pelo senso do valor e da consciência. Mas isso
implicava em chocar-se de novo com o estoicismo. Já  Epicteto conhece o conceito de consciência (συνεíδησιζ);
também Filo; e Cícero introduziu o termo conscientia. Sêneca usou muitas vezes
desse vocábulo. Também Paulo recebe
da filosofia popular estóica, a idéia. E agora, sob a influência dessas
inspirações, é concedido pelos Padres da Igreja à consciência moral um lugar
predominante. Ela é a expressão subjetiva da lei natural objetiva e por aí, ao
mesmo tempo, um ditame divino. "Em todas as cousas eu me aconselho com a.
razão e o juízo de Deus. Por ele sou muitas vezes condenado, ainda quando
ninguém me acusa; e sou absolvido quando muitos me condenam. A este tribunal,
cuja sede está em o nosso íntimo, ninguém pode escapar; devemos respeitá-lo
para assim trilhar o reto caminho da vida"   (Gregório  Nazianzeno).


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